Voltaire nasceu filho de burguês bem colocado. Dinheiro e prazer, sua vida será marcada por esses valores. Mas um fato doloroso marcará sua entrada na maturidade, o fato de que na França de seu tempo, dinheiro comprava prazer, mas jamais comprava respeito. Doeu no imenso orgulho de Voltaire a percepção de que ele era apenas um escritor, um burguesinho, uma piada. Mas estou me adiantando. O belo texto de Roger Bastide começa analisando o porque de Arouet, nome verdadeiro do autor do Candide, assinar Voltaire. E não só isso, o porque de ele usar vários nomes e muitas vezes não reconhecer sua própria autoria.
Uma questão de auto-preservação? A lei era autoritária, e textos ferinos podiam custar a prisão. Mas as máscaras de Voltaire dizem mais. Bastide diz que os pseudônimos servem na verdade para nomear os múltiplos seres que habitam em cada um de nós. Voltaire percebe que vivemos várias realidades, que em nós existem mundos díspares. Eis sua modernidade.
Desde cedo ele amou a diversão e o teatro. Sua primeira filosofia é a do prazer. A vida existe para se divertir. E não vamos esquecer que em seu tempo ( século XVIII ), era o teatro que dava fama a um autor. Literatura séria era teatral, e os poetas vinham logo em seguida. Escrever prosa era considerada ocupação pouco nobre, futil. Voltaire ama o teatro e ama a fama. Tem ambição, quer ser o novo Corneille e o novo Racine, o rei do teatro francês. Por toda a vida ele escreverá peças, algumas de grande sucesso, outras não. Deve-se dizer, todas estão mortas em nosso tempo. O teatro de Voltaire é velho, chato, não mais se representa. Sua fama eterna virá de sua filosofia e de seus contos. E da ação que ele produziu. A vida de Voltaire fez dele um gigante.
Fez dinheiro. Apesar de ser artista e filósofo, sabia capitalizar. Era cruel. Emprestava a juros altos, aplicava na bolsa e ganhava. Comprava terras. Era considerado frio, ambicioso, duro, implacável. Voltaire amava o dinheiro. Sonhava em ser embaixador, se fazer um nobre.
Mas um de seus escritos ofende um conde que o esbofeteia na rua. A crise nasce aí. Nenhum amigo toma seu partido. E o conde nem admite um duelo, pois não iria se sujar em duelo contra um plebeu. Voltaire, que emprestava dinheiro aos nobres vê a realidade da França. Ele era um nada. Quando acontece em 1755 o terremoto de Lisboa, catástrofe que mudou a Europa, que deu impulso a crítica à religião ( que Deus é esse que mata uma cidade inocente? ), o amargor de Voltaire atinge seu apogeu. Mas que amargor é esse?
Cartesiano ainda, ele ama a razão. E para ele, se Deus não pode ser racional, pois um ser racional não permitiria a injustiça, então Deus não pode existir. A razão não pode explicar Deus. Observe que Voltaire salva a razão destruindo Deus. Segundo Roger Bastide, Kierkegaard dará um passo adiante: nada é racional, incluindo Deus que é inexplicável como a vida. Para um cartesiano como Voltaire esse pensamento é impossível. O tempo de Voltaire é tempo em que a fé na razão é absoluta. Tudo é explicável, tudo tem um porque, uma causa e um fim. O surpreendente é que Voltaire nega Deus mas não se faz ateu. Ele crê num Deus que habita em todos nós. É um deísta.
Mas o mundo é para ele absurdo. Esse absurdo vem do fato de que ele não consegue se livrar da razão. À luz da razão tudo parece absurdo. É preciso nada levar a sério. É preciso saber rir.
E ao mesmo tempo é preciso saber tudo. Voltaire tem uma curiosidade sem fim. Pesquisa, vê, tenta entender. É poeta, contista, historiador, autor teatral, ator, cientista, filósofo, político e jornalista. Participa da Enciclopédia e faz-se inimigo de Rousseau.
Rousseau acredita nos sentimentos. Voltaire zomba dos bons sentimentos. Rousseau fala da bondade natural do homem. Voltaire ama a civilização. Rousseau é sensível e Voltaire é intelectual. São inconciliáveis. Mas voltemos no tempo....
Logo após o duelo que tanto o humilhou, Voltaire vai à Inglaterra. Detalhe: ninguém ia à Inglaterra então. A ilha era um país que não contava. Europa era França, Espanha, Roma, Viena e Prússia. Ninguém sabia nada sobre a Inglaterra e ninguém falava inglês. Pois será Voltaire quem lançará a moda inglesa, a mania que se apossará do continente. Na Inglaterra ele encontrará uma nação que tinha muito em comum com suas ideias. Uma crença na força do dinheiro, escritores como homens respeitados e a liberdade de se escrever o que se desejar. Sem medo. Os ingleses amavam seus escritores, os nobres aumentavam suas rendas, e a igreja não se metia na vida cotidiana dos cidadãos. Mas há também algo nos ingleses que desconcerta Voltaire. Ele observa que é um povo que está feliz de manhã, mas que no fim da tarde cai em terrível melancolia. Eis uma imensa diferença entre França e Inglaterra que se mantém séculos afora. A França é fria, racional, faladora, analítica, e de humor constante. Falta-lhe fantasia. Já a Inglaterra é sonhadora, melancólica, quieta, piegas e de humor desconcertante. Voltaire logo percebeu tudo isso. Shakespeare seria impossível na França ( apesar de logo se tornar um sucesso em Paris ), com suas fadas e ações irracionais. O que Voltaire não percebeu foi o humor inglês. Ele, como francês, tinha um humor ácido, destrutivo, cruel. O humor inglês é auto-irônico, carinhoso, tem pitadas de amor.
Voltando a França ele logo lança sua obra de história, mais peças, contos, e com o tempo, e por ter tido a sorte de viver 82 anos, sua fama começa a se espalhar por todo o mundo. Já no fim da vida, Benjamin Franklyn vem da América e o visita. O filho de Franklyn lhe beija as mãos e diz que sua nação o ama. Voltaire percebe, espertamente, que a América consegue algo que ele sempre desejou. A união de Deus e da Liberdade. A divisa americana seria "God and Liberty".
Há muito mais no texto de Bastide. A estada dele na Suiça, país que amava a liberdade mas que puritano, odiava o teatro. Suas relações com Frederico, rei da Prússia, monarca que desejava fazer de seu reino uma nova Atenas. E as mulheres, várias, variadas, usadas e descartadas.
Voltaire viveu no auge da França. Tempo em que a razão era a rainha da vida. A ciência misturava-se com a filosofia e a arte com a politica. A vaidade imperava, a etiqueta. E Voltaire era muito vaidoso, esnobe, egoísta. Difamava sem remorsos quem o atacava, era agressivo, vingativo.
Foi o primeiro escritor que chamei de ídolo. Teve enorme influência em minha adolescência. E desde então sempre peço a todo amigo que o leia. Se voce quer ser levado a sério, leia Voltaire. Depois a gente conversa. E nunca encontrei alguém que não gostasse de Candide, de Zadig ou de Micrômegas.
Voltaire é pra sempre.
Uma questão de auto-preservação? A lei era autoritária, e textos ferinos podiam custar a prisão. Mas as máscaras de Voltaire dizem mais. Bastide diz que os pseudônimos servem na verdade para nomear os múltiplos seres que habitam em cada um de nós. Voltaire percebe que vivemos várias realidades, que em nós existem mundos díspares. Eis sua modernidade.
Desde cedo ele amou a diversão e o teatro. Sua primeira filosofia é a do prazer. A vida existe para se divertir. E não vamos esquecer que em seu tempo ( século XVIII ), era o teatro que dava fama a um autor. Literatura séria era teatral, e os poetas vinham logo em seguida. Escrever prosa era considerada ocupação pouco nobre, futil. Voltaire ama o teatro e ama a fama. Tem ambição, quer ser o novo Corneille e o novo Racine, o rei do teatro francês. Por toda a vida ele escreverá peças, algumas de grande sucesso, outras não. Deve-se dizer, todas estão mortas em nosso tempo. O teatro de Voltaire é velho, chato, não mais se representa. Sua fama eterna virá de sua filosofia e de seus contos. E da ação que ele produziu. A vida de Voltaire fez dele um gigante.
Fez dinheiro. Apesar de ser artista e filósofo, sabia capitalizar. Era cruel. Emprestava a juros altos, aplicava na bolsa e ganhava. Comprava terras. Era considerado frio, ambicioso, duro, implacável. Voltaire amava o dinheiro. Sonhava em ser embaixador, se fazer um nobre.
Mas um de seus escritos ofende um conde que o esbofeteia na rua. A crise nasce aí. Nenhum amigo toma seu partido. E o conde nem admite um duelo, pois não iria se sujar em duelo contra um plebeu. Voltaire, que emprestava dinheiro aos nobres vê a realidade da França. Ele era um nada. Quando acontece em 1755 o terremoto de Lisboa, catástrofe que mudou a Europa, que deu impulso a crítica à religião ( que Deus é esse que mata uma cidade inocente? ), o amargor de Voltaire atinge seu apogeu. Mas que amargor é esse?
Cartesiano ainda, ele ama a razão. E para ele, se Deus não pode ser racional, pois um ser racional não permitiria a injustiça, então Deus não pode existir. A razão não pode explicar Deus. Observe que Voltaire salva a razão destruindo Deus. Segundo Roger Bastide, Kierkegaard dará um passo adiante: nada é racional, incluindo Deus que é inexplicável como a vida. Para um cartesiano como Voltaire esse pensamento é impossível. O tempo de Voltaire é tempo em que a fé na razão é absoluta. Tudo é explicável, tudo tem um porque, uma causa e um fim. O surpreendente é que Voltaire nega Deus mas não se faz ateu. Ele crê num Deus que habita em todos nós. É um deísta.
Mas o mundo é para ele absurdo. Esse absurdo vem do fato de que ele não consegue se livrar da razão. À luz da razão tudo parece absurdo. É preciso nada levar a sério. É preciso saber rir.
E ao mesmo tempo é preciso saber tudo. Voltaire tem uma curiosidade sem fim. Pesquisa, vê, tenta entender. É poeta, contista, historiador, autor teatral, ator, cientista, filósofo, político e jornalista. Participa da Enciclopédia e faz-se inimigo de Rousseau.
Rousseau acredita nos sentimentos. Voltaire zomba dos bons sentimentos. Rousseau fala da bondade natural do homem. Voltaire ama a civilização. Rousseau é sensível e Voltaire é intelectual. São inconciliáveis. Mas voltemos no tempo....
Logo após o duelo que tanto o humilhou, Voltaire vai à Inglaterra. Detalhe: ninguém ia à Inglaterra então. A ilha era um país que não contava. Europa era França, Espanha, Roma, Viena e Prússia. Ninguém sabia nada sobre a Inglaterra e ninguém falava inglês. Pois será Voltaire quem lançará a moda inglesa, a mania que se apossará do continente. Na Inglaterra ele encontrará uma nação que tinha muito em comum com suas ideias. Uma crença na força do dinheiro, escritores como homens respeitados e a liberdade de se escrever o que se desejar. Sem medo. Os ingleses amavam seus escritores, os nobres aumentavam suas rendas, e a igreja não se metia na vida cotidiana dos cidadãos. Mas há também algo nos ingleses que desconcerta Voltaire. Ele observa que é um povo que está feliz de manhã, mas que no fim da tarde cai em terrível melancolia. Eis uma imensa diferença entre França e Inglaterra que se mantém séculos afora. A França é fria, racional, faladora, analítica, e de humor constante. Falta-lhe fantasia. Já a Inglaterra é sonhadora, melancólica, quieta, piegas e de humor desconcertante. Voltaire logo percebeu tudo isso. Shakespeare seria impossível na França ( apesar de logo se tornar um sucesso em Paris ), com suas fadas e ações irracionais. O que Voltaire não percebeu foi o humor inglês. Ele, como francês, tinha um humor ácido, destrutivo, cruel. O humor inglês é auto-irônico, carinhoso, tem pitadas de amor.
Voltando a França ele logo lança sua obra de história, mais peças, contos, e com o tempo, e por ter tido a sorte de viver 82 anos, sua fama começa a se espalhar por todo o mundo. Já no fim da vida, Benjamin Franklyn vem da América e o visita. O filho de Franklyn lhe beija as mãos e diz que sua nação o ama. Voltaire percebe, espertamente, que a América consegue algo que ele sempre desejou. A união de Deus e da Liberdade. A divisa americana seria "God and Liberty".
Há muito mais no texto de Bastide. A estada dele na Suiça, país que amava a liberdade mas que puritano, odiava o teatro. Suas relações com Frederico, rei da Prússia, monarca que desejava fazer de seu reino uma nova Atenas. E as mulheres, várias, variadas, usadas e descartadas.
Voltaire viveu no auge da França. Tempo em que a razão era a rainha da vida. A ciência misturava-se com a filosofia e a arte com a politica. A vaidade imperava, a etiqueta. E Voltaire era muito vaidoso, esnobe, egoísta. Difamava sem remorsos quem o atacava, era agressivo, vingativo.
Foi o primeiro escritor que chamei de ídolo. Teve enorme influência em minha adolescência. E desde então sempre peço a todo amigo que o leia. Se voce quer ser levado a sério, leia Voltaire. Depois a gente conversa. E nunca encontrei alguém que não gostasse de Candide, de Zadig ou de Micrômegas.
Voltaire é pra sempre.