CARNAVAL

   Não existe mais samba enredo que vire sucesso popular. Eu ainda peguei o tempo de "Nesse palco iluminado/ Só dá Lalá/ És presente imortal....", ou então, "É hoje o dia/ Da alegria/ E a tristeza/ Nem pode pensar em chegar..." E eu adorava uma que dizia, "O carnaval é a maior caricatura/ Na folia o povo esquece a amargura...."
   Samba enredo é hoje apenas um tipo de marchinha militar com a única função de fazer o povo evoluir. Desfiles de escolas de samba perderam qualquer traço de espontaniedade. Os desfiles se tornaram competição, têm tática, meta e planejamento; o deslumbre visual se aprimorou, o maravilhoso kaos dionisíaco se foi. Apolo é o deus do carnaval das escolas e dos trios da Bahia. A estupenda e estúpida comunhão de suores e de alegrias foi substituída por uma organizada e burocratizada bebedeira geral.
   Acompanhei os desfiles dos anos 70/80. Sem sambódromo, eram feitos na avenida. As toscas arquibancadas de madeira podiam ruir e o povo invadia o asfalto e não deixava a escola andar. Para isso existia o abre-alas, para abrir caminho na multidão. A platéia assistia a escola como se estivesse dentro dela, se podia tocar as fantasias. Um kaos que fazia com que sempre houvesse atraso e lembro de um desfile ( 1977? ) que acabou às 15 horas de segunda-feira!!! Era menos bonito que hoje, mas era lindo. Havia suspense, voce nunca sabia o que podia acontecer. Carros quebravam, a bateria atravessava ( não havia sistema de som ), se chovesse a pista alagava, tudo de errado podia vir. Mas em compensação, quando dava certo, voce via o povo entrar na escola e levar o samba junto. Eram palmas e cantoria vindo da arquibancada para a escola e vice-versa. Por estarem passando muito perto tudo era uma coisa só. Era lindo. A escola passava e o povo ia atrás.
   Quem desfilava era da comunidade, poucos famosos desfilavam, e esses poucos frequentavam a escola o ano inteiro. E o legal é que cada uma tinha seu estilo. A Portela era metida a aristocrata, toda séria e cheia de pose; a Mangueira era a falida, de uma digna pobresa, a rainha da tradicionalidade, brega e de raiz; o Salgueiro era excêntrico. A mais ousada, inovadora, doida de pedra. O Império Serrano sempre comia pelas beiradas, vinha na empolgação, caprichava nos sambas. A Mocidade tinha a melhor bateria e a Imperatriz era a mais fria e sem carisma. Quando veio o furacão Beija-Flor, em 1976, todas entraram em crise e perderam o rumo. O carnaval mudava para sempre com Joãozinho Trinta. O luxo se fazia rei, mulheres nuas e destaques sobre os carros. Todas as outras se beijaflorizaram e a diversidade foi pras cucuias. Que pena...
   Comecei a me interessar pelos desfiles pra ver mulheres sem roupa. Mas depois comecei a achar aquilo tudo muito emocionante. E lembro de até ter chorado com os desfiles da Portela em 81 e da Mocidade em 89. Mas desisti faz tempo. Tá tudo exatamente igual.
   Na Tv, 1981 foi alucinante. Algum maluco na TVE do Rio teve a idéia de cobrir todo o carnaval do cidade ao vivo, sem interrupções, todos os quatro dias. É isso mesmo: de sábado à terça, 24 horas no ar, só carnaval e só na cidade. Isso fazia com que eles passassem blocos da zona norte e desfiles de fantasias de todo clube metropolitano. Eram bastidores de festas, ruas sendo preparadas, rodas de samba em botecos, desfiles de escolas do grupo 3. Voce imagina o que era arriscado transmitir carnaval às nove da manhã de segunda-feira? Sempre ao vivo. De noite voce ouvia os narradores esgotados, avisando que iam dormir quatro horas para logo voltar à folia. Era uma maratona de revesamento, era uma das coisas mais loucas e soberbas que a TV já ousou. E deu certo. Lembro de Clóvis Bornay comendo uvas... Isso que voce leu, Bornay comendo uvas e falando abobrinha, pois não havia mais nada de interessante para passar às 18 horas de terça-feira, então tome Bornay na sua sala e tome desfile de fantasia infantil em Paquetá. Carnaval tem de ser assim: cheio de erros, de desafios, de bobagens, e sempre lindo. A equipe de Fernando Pamplona deu um show!!! 76 horas no ar sem parar, sem nada pré-gravado, nas ruas, correndo para onde houvesse folia. Mesmo os que estavam nas ruas do Rio não se sentiram tão dentro do clima de carnaval do Rio como aqueles que sintonizavam a TVE.
   Carnaval é também guerra de água nas ruas quentes de meu bairro, são os bailes do Flamengo que a TV passava, e que com seus exageros de sexo ajudaram a derrubar a censura. Foram os desfiles que eu via em Santos, na rua, bestificado pela força que uma bateria tem ao vivo. Que show de rock que nada, a zueira é uma bateria completa. Voce fica dias com aquela batida dentro da cabeça. Carnaval era também se fantasiar para correr pelas ruas, jogando confete nos poucos carros e rir e rir e rir...
   E pra voce que odeia carnaval mas adora Keith Richards ou Ozzy, saiba que se eles aqui estivessem estariam na rua, vendo, ouvindo, fazendo. Se perdendo entre as curvas da mulata e alucinando com o ritmo do surdo. O Carnaval verdadeiro não é pra amadores.