PEANUTS COMPLETO ( DEVE SER DIFICIL CRESCER NO MEIO-OESTE )

   Vale muito a pena gastar 300 reais na edição da LPM das tiras de Peanuts. São livros em edição de luxo, capa dura, dignos da obra de um dos caras mais influentes do século. Quanto mais eu leio sobre Charles M. Schulz mais eu o admiro. O livro 1 tem uma bio dele e melhor, uma longa entrevista feita em 1987. Apesar da melancolia que sempre o acompanhou, Schulz teve uma vida abençoada.
    Schulz cresceu na era da depressão, em St.Paul, naquele tipo de cenário com muita neve e muito gelo. O pai era um barbeiro, e os pais, que ele sempre adorou, estudaram apenas até a terceira série primária. Schulz cresceu muito inseguro. Sentia-se amado em casa, mas desamparado na escola. Achava-se feio, desajeitado e pouco inteligente. Mas tinha algum jeito em esportes com bola e desenhava bem. Foi office-boy e entregador. Tinha a fama de ser "pouco viril" na rua. Filho único. Então veio a grande tragédia, a mãe, ainda jovem, teve um câncer e ao mesmo tempo ele foi convocado para a segunda guerra. Na véspera do dia em que ele deveria partir, a mãe se despediu dele "para sempre". Schulz embarcou para o front logo após o enterro da mãe.
   O garoto "pouco viril" se destacou na guerra e se fez sargento. Chegou a liderar um pelotão de metralhadoras. Quando voltou aos EUA pensou: - "Se isso não é ser um homem não sei o que será". Publicou sua primeira tira num jornal local, foi despedido!!!! e conseguiu na sequencia ser aceito em New York!!! Chegamos ao trabalho de Schulz....
   Quem gosta superficialmente de quadrinhos não tem a menor ideia da importância de Peanuts ( nome que Schulz detesta ). Ele criou, sózinho, tudo o que se entende por tira de quadrinho moderna. É o primeiro a lidar com crianças como seres complexos, o primeiro a ser desenvolvido e criado em progresso, o primeiro a exibir neuroses, o primeiro a não ter o menor traço de heroísmo ou humor chulo... e poderia ficar até amanhã enumerando as ousadias modestas de Schulz. Mas talvez a principal criação seja a depuração, a extrema simplicidade do traço de Schulz. Todo grande artista almeja a pureza, o refinamento final, a simplicidade que diz tudo. Charles M. Schulz chegou nessa depuração, estágio a que só os grandes conseguem ir. E tudo sem grandes malabarismos intelectuais, Schulz chegou a sua arte pela intuição, pelo faro, fazendo apenas aquilo que desejou sempre fazer.
   Ao contrário de vários mercenários dos cartoons, Schulz nunca permitiu que Charlie Brown crescesse, mudasse ou seguisse os ventos da moda. Sempre fez questão de desenhar todos os cartoons ( Schulz trabalhava só, sem assistentes ), e nos desenhos de TV, exigiu a técnica de semi-animação, o que deixava os personagens iguais aos cartoons ( Charlie Brown se movendo hiper-animado é impensável ). Já bastante doente, em 2000, Schulz continuou desenhando seus cartoons todo dia. Menos em sua última noite. Pela primeira vez em 50 anos ele não conseguiu fazer Peanuts e foi deitar. No dia seguinte, sua última tira, feita um dia antes, foi publicada. Ao mesmo tempo em que essa tira, que ninguém sabia ser a última, estava nos jornais, Charles M. Schulz morria. Era o fim, para sempre, de novas tiras dos Peanuts.
   Recordo de um amigo na faculdade me avisar da morte de Schulz. Fui pra casa e li a matéria no jornal. Lembro com clareza que me surpreendi. Eu imaginava que Schulz ia viver para sempre. Chorei.
   Ele era o tipo de americano, filho de imigrantes, que fez a fortuna da América. Era econômico, idealista, modesto porém muito teimoso, trabalhador incansável ( ele nunca tirou férias em toda a vida ). Ia a igreja, agradecia a Deus por sua sorte, amava os filmes de John Ford e as aventuras passadas em desertos ou em selvas. Ouvia música country e lia Tolstoi.
   Charlie Brown em 1950 é muito diferente daquilo que veio a ser. Linus, Lucy e Schroeder ainda não existiam. Snoopy era magrinho e não pensava. E Charlie tinha um lado violento, adorava tirar uma da cara dos outros. Mas já tinha momentos de total deprê e era um zero nos esportes. Duas frases que eram muito repetidas em 1950 acabaram por ser abandonadas: ele era chamado pelas pessoas de "o bom e velho Charlie Brown", e "Eu também dou minhas risadas", que Charlie falava ao aprontar uma pegadinha com alguém. Nessas tiras uma das inovações de Schulz fica bem nítida, os personagens evoluem, não são figuras acabadas e prontas.
   Eis a primeria tira:
   Shermy e Patty estão na rua. Charlie Brown vem andando. Shermy diz: Lá vem o bom e velho Charlie Brown! No quandrinho seguinte ele repete: Sim senhor! O bom e velho Charlie Brown! No terceiro quadro ele fala novamente: O bom e velho Charlie Brown! E no último quadro, com Charlie já ido, Shermy diz: Como eu odeio ele!
   Falsidade, agressividade, isolamento, ingenuidade, pronto, eis a apresntação de Charlie Brown.
   Na terceira tira nasce Snoopy. Ele anda pela rua com uma flor na cabeça. Patty rega essa flor. Ela murcha. Apenas isso. Ainda não é O Snoopy, o cão que de todos os personagens é o único criativo, o único personagem que imagina saídas, que colore com fantasia seu mundo cinza; mas já é um Snoopy extra-cool, na dele, que tem sua vida de observador reservado das tolices dos outros.
   Em novembro de 1950 vejo a primeira tira que revela todo o gênio de Schulz. Nela, Shermy e Charlie Brown estão sentados na calçada. Nada é dito, eles olham pro chão. Por três quadros ninguém se mexe e ninguém fala nada. No fim, Shermy diz: "É...então....é assim que as coisas são!"   O que mais se pode dizer? Está tudo aí, em oito palavras, em duas figuras paradas. O máximo de concisão, de depuração, a simplicidade sendo atingida no alvo.
   As tiras logo foram adotadas pelos beatnicks, pelos hippies, pelos defensores dos direitos civis. Filósofos começaram a ver milhares de significados em Peanuts, artistas divagavam sobre mensagens ocultas. Snoopy e Charlie Brown se tornaram as duas figuras mais pop do planeta e até à Lua foram enviados ( a Apolo 10 tinha um módulo Snoopy ).  E em meio a tudo isso, Schulz continuou o mesmo. Trabalhando todo dia, rindo dos sentidos que os filósofos davam a toda frase dita pelos cartoons, fazendo a única coisa que ele realmente amava: desenhar.
   Percebo agora, escrevendo isto, que Peanuts também antecipa a infantilização do mundo. É como se hoje o máximo de maturidade que pudéssemos ter fosse aquela de Charlie Brown e Linus. Nas tiras de Schulz jamais apareceu um adulto. E nelas, um cão era rei. Intuitivamente, Charles M. Schulz previu nosso pequeno mundo de crianças/adultos desamparados e neurotizados.
   O que mais alguém deve fazer pra ser chamado de gênio?