CAMINHANDO NA SUMARÉ COM UM AMIGO ( E "A DOCE VIDA" )

Um helicóptero leva uma estátua de Cristo pelos céus de Roma. No ar, Marcello, um jornalista, vai sorridente, e paquera algumas moças de bikini em terraço ensolarado. Não se deixe enganar, neste filme, que marcou época e criou toda uma moda de paparazzi e azarações, o que Marcello irá testemunhar é um apocalipse.
O filme, três horas de caos, é dividido em blocos. Marcello e um bando de fotógrafos ( o filme criou o termo paparazzo ), andam pelas noites romanas. Sabemos que ele sonhava em ser "um escritor" e que agora se conforma em viver de noticias. Então uma atriz americana chega a Roma, bebe em boate, anda bêbada pela cidade e toma banho numa fonte ( uma das mais famosas cenas do cinema, e que sexy o decote de Anita! ). A desilusão de Marcello começara antes, sua namorada, ciumenta, tentara se matar. Com a estrela americana ele tenta ficar, conhece seu namorado decadente ( um ex-Tarzã ) e conhece a tolice das estrelas.
Depois, e só então, o filme começa a atingir sua grandeza. Duas crianças dizem ter visto Nossa Senhora em descampado periférico romano, sobre uma árvore. A imprensa vai para lá, os paparazzi fotografam os pais das crianças em poses de "milagre", doentes fazem oração, o povo invade tudo. Um circo é armado e as crianças apontam onde a aparição está. Mas chove e todos se vão. Um dos doentes morre, as luzes são desligadas e Marcello parte para outra. Que milagre?
Ele vai a casa de intelectual seu amigo. Lá estão artistas e a familia feliz do amigo. Esse amigo ama seus filhos e é calmo, correto, a imagem que Marcello gostaria de ter. Há uma linda cena desse pai ao berço de seus filhos, amoroso. Mas, mais ao fim do filme, esse homem assassinará seus dois filhos e se matará. Marcello, em cena fortíssima, irá lá reconhecer os corpos, e verá os livros, a sala, a casa de seu amigo sendo profanada pela policia e pela imprensa. O corpo do amigo ao canto, sob um lençol. Quando a esposa volta a casa, há uma cena maravilhosa, dúzias de paparazzi a cercando e fotografando sua dor. O patético em seu auge.
O pai de Marcello vem o visitar. Se encontram na via Appia ( Roma nunca foi tão bela e fútil ), carros, vespas, paqueras. Ele leva o pai a cabaret e o apresenta a moça da noite. Mais tarde ela o chama, o pai passou mal no quarto. Marcello o encontra à janela do quarto, humilhado, impotente, velho...
Ele sai então com Nico ( sim, é a cantora do Velvet Underground, quando ainda era modelo e atriz ). Vão a casa de nobres romanos. Nesse palácio, vemos filhos esquisitos, gays, matronas, travestis, velhos loucos, e uma excursão às ruínas da casa dos fundos do palácio. Em cena de terrível beleza, adentramos a escuridão vazia dessa casa mofada. Lá está uma mulher que Marcello talvez ame, mas ela beija outro, longe de seus olhos, isso logo após dizer que o ama.
Vem então a morte de seu amigo e Marcello vai a orgia. Invade a casa de milionário e com "amigos", bebado, tem noite de violência, ridiculo, gratuidade, vazio. Marcello encontra o nada.
Todos vão para praia, onde magnifico ser marinho é achado morto. A câmera insiste em mostrar seus olhos de vidro. Todos se vão e Marcello vê ao lado uma menina loura que o chama com um aceno. Ele não a entende. O filme termina.
Ontem eu andei por ruas da cidade, de tarde, com um amigo. De certa maneira nosso assunto foi todo o tempo o mesmo: onde encontrar sentido. Comprei um livro que abre seu texto com frase que espelha este filme: Platão podia escrever sobre justiça, beleza e ética porque ele é de um tempo em que o sentido e a existência eram plenas. A preocupação desses filósofos arcaicos era então o estudo da vida cidadã. Hoje, tempo em que nada mais fazemos que destruir todos os mitos, passamos todo o tempo tentando criar sentido, criar razão. Não podemos mais filosofar sobre a beleza, o bem ou a moral, porque não temos o minimo para começar a pensar nesses temas nobres: sentido.
E numa carta a Einstein, Freud diz: " Voce me acusa de tentar criar mitos. Não o nego. Não é isso que sua física também faz? Vivemos tempo que precisa de novos mitos."
A Doce Vida demonstra de forma exemplar o esvaziamento da vida. A jornada de Marcello é perda de inocências, de mitos, de belezas. Sua última chance é a menina que o chama. Mas, infelizmente, Marcello, como nós, não a entende mais. O que lhe resta são orgias de sexo e drogas e o sensacionalismo de eventos vazios. Fellini cria um filme tão rico ( que não é seu melhor ) que poderíamos ficar dias a falar sobre seus símbolos.
Se hoje ir ao cinema é gritar e ter sensações ( o que não deixa de ser legal ), em filmes como este, ir ao cinema equivalia a adentrar uma catedral. Tentar encontrar um mito na morte dos mitos. Procurar sentido na falta de sentido. Não deixa de ser uma jornada heróica. Mas o ser marinho é morto e a menina-anjo nos acena em vão....
Que Bello Federico!!!!!!!