Os anéis de Saturno de Sebald, ando lendo. Ele vaga pela feia Bélgica e pela decadente Holanda. Vaga pelo leste da Inglaterra, areia abandonada. Pensa em Joseph Conrad e no rei Leopoldo da Bélgica destruindo o Congo atrás de dinheiro, riquesa, poder. Os feios monumentos que esse rei deixou na Bélgica, esse período, 1880/1910, época em que a razão era inquestionada, em que o futuro seria racional. Época que criou a sociologia moderna, a psicanálise e a linguística, apreender a vida em um sistema. A tolice dessas ilusões.
Decadência. Sebald anda e tudo o que percebe é decadência. Campos que são explorados a mais de mil anos. Montanhas erosadas. Animais cheios de medo ou transformados em idiotas. Palácios tomados pela sujeira, pelo vento, pela umidade. Projetos de cidade hiper-racionais que nos dão desalento e vazio grudento. Histórias dentro de histórias que remetem a outra história.
Em dois meses eu perdi um futuro casamento, um emprego, um pai e todas as certezas da vida. Passei a andar e fotografar árvores, casas abandonadas e animais perdidos. Restos de sentido. Do meu sentido. Árvores que sobrevivem em heroísmo. Casas que são memórias do que não fiz. Animais que testemunham o que não pode ser falado. Minhas fotos são o sentido.
Manhã de sentido:
Numa aula de clássicos é lido o fragmento número um de Arquíloco. Respeito silencioso. Mas o milagre é feito no sentido de quando falta rumo: ela o relê em grego clássico. Ergue-se da sala um zumbido. Vejo pessoas se voltando para trás. Sorrisos. Faz-se todo o nexo. O segredo grego é intuído. A língua que eles tinham e sabiam.
A voz ecoa como milhares de sinos. A voz canta em sua fala. Essa língua é canção ao ser dita. Prosa que é poesia e verso que nasce ritmado. Suave como sopro. Sopro de Afrodite. Ela é certa como o mar e a maré, a lua e sua fase. Cadências que sobem e descem, voz/língua humana. Ouço e me comovo. A voz foi feita para aquela língua. Com tal instrumento voce cria a poesia, o teatro e a filosofia. Milagre.
Decadência.
Nenhuma língua tem tal sonoridade. Ela é como deslizar de água em subterrâneos cheios de eco. Entendo porque para eles toda língua soava bárbara. A voz que fala enfeitiça, dá luz, é uma fala de sortilégios e de seduções. Silêncio na sala. O tempo se vai, distância desfeita, versos de 2500 anos.
Poesia só em grego.