VARAIS E PORÕES ( SER CRIANÇA )

Há um tempo na vida em que não existe rumo. Nenhuma regra para seguir e voce pode deixar as coisas seguirem sem razão ou sentido. O modelo não foi criado e o mapa é feito enquanto se viaja. Cada manhã apresenta uma possibilidade, acordar é como beber com sede. Na verdade tudo é impensado e portanto, milagroso. A vida é uma amiga, o que não faz parte dessa amizade não é natural.
Havia então um doce namoro entre eu e meus sonhos. Eu ainda não aprendera que era errado sonhar. Nenhuma teoria me dizia que aquilo podia ser auto-erotismo ou preguiça. Sem culpa, eu amava minha companhia e pensava que viver seria amar cada vez mais. Dava prazeres para mim mesmo. Revistas coloridas, brinquedos que eu inventava e cantos secretos da casa onde me escondia. Todo momento era devaneio, todo detalhe uma descoberta. O espaço dentro de mim era maior que o universo ( mas eu não sabia ).
Tinha certeza de que moravam homens dentro da televisão, ficava olhando a tv por trás para tentar surpreende-los. Assim como acreditava que havia um quarto secreto em casa onde viviam os antigos donos. Quando chovia de madrugada e a água escorria pelas calhas de lata eu ficava acordado para ouvir aquele barulho. Já intuia que podia ser a última chance. O sinal do tempo já nascia.
Mas eu insistia. Cada passo dado no capinzal era o risco de se topar com o desconhecido. E acima das nuvens eu sabia que havia Deus. Meu pai nunca morreria, minha mãe nunca ficaria velha e ser grande era ser igualzinho a meu pai. E todo aquele mato, aqueles cantos de pássaros e os córregos claros seriam sempre como eram então: meus. ( Mas na verdade não eram meus, eram mais que isso, eu sentia que eu pertencia a eles e por eles eu sobreviveria ).
Todo homem vive seu momento de Adão, a queda. A minha ainda estava distante. ( Me dá raiva saber que por mais ateu que eu tenha sido, e lutado orgulhoso para o ser, voce sempre age e sofre como um cristão. )
Debaixo de meus cobertores eu via um mundo e fora do quarto um infinito. A lua entrava em cheio no chão onde eu brincava e de madrugada os cães e os galos cantavam. A manhã era criada pelo rádio de meu pai e o cheiro do café coado. Ele era grande e cheirava a loção de barba.
Se eu tivesse a coragem todo esse mundo voltaria a viver aqui, em mim. Esses quartos e quintais e cheiros moram ignorados no porão que eu não deixei. E sei, cada vez mais, que é impossível ser feliz sem eles comigo vivos. O único sentido é cantar sua existência.
Todas as meninas que amei foram tentativas de recuperar esse espaço. Falhas tentativas. Ninguém pode ir lá comigo, elas já estavam lá, eu é que não sabia.
A roupa que minha mãe lavara estava voando no varal. O sol e o vento, as videiras e o canto que ela cantava. A tartaruga comendo melancia e meu irmão bebendo o mel das flores vermelhas. O começo de se saber é ver que eu sou esse varal, esse sol e esse vento, e saber que tudo está onde sempre esteve e sempre irá estar.
Todo o resto é silêncio.