O EU E O INCONSCIENTE- CARL GUSTAV JUNG

Não é pelas respostas que Jung me fascina. É por suas perguntas. Jung levanta as questões que mais me interessam, dá o passo que Freud temeu dar: além do sexo, fora da razão, o que há?
Me agrada o fato de que ele jamais diz "é assim" ou "com certeza". Jung diz sempre "talvez seja" e "pode ser que". Ele evita brilhantemente ser dono de qualquer verdade. Sua sina é a do caminhante, faz perguntas, procura respostas, mas já avisa de cara que essas respostas são impossíveis, pois são irracionais.
A vida é irracional. Não existe lógica alguma fora de nosso consciente. Nós criamos uma razão para poder viver em sociedade, para contar o tempo, para fazer da vida algo previsível, que funcione. Mas fora de nosso consciente nada é racional e claro, e mesmo dentro de nós há o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo, ambos escuros, sem qualquer lógica, não verbais e pré-históricos. A razão, portanto, não pode explicar a vida.
Longe de mim então, tentar explicar este livro tão instigante. Feito a partir de uma série de seminários de Jung ( anos 30 ), ele descreve com precisão coisas que vivi em minhas crises e certas quase crenças que compartilho com o psicólogo suiço.
Jung fala de persona, de anima, de animus. Usa muito a imagem do inconsciente, seja pessoal, seja coletivo, e mostra que a individuação é o mais alto grau de desenvolvimento que um homem pode atingir. Falando de um modo bastante crú, a persona seria a máscara que nos obrigamos e que nos obrigam a usar. Máscara que se opõe a nosso inconsciente, estância profunda e em eterna revolução, que não cessa nunca de cutucar essa persona. Criamos persona para poder viver em trabalho e para nos defender, o perigo é crer nela. Mas o livro fica melhor quando se fala do medo que todos temos do inconsciente. A sensação de morte, de loucura, que existe ao se mirar esse tipo de fantasma que mora em nós e que não nos reconhece. A neurose como o medo desse tipo de aspecto da mente, o pavor de se perder em seu interior e não poder sair mais, daí então o hiper-controle do neurótico, e o sintoma: toques do inconsciente pessoal, toques sem qualquer razão, energia que se libera.
Todos nós temos momentos de medo ou de crise ao tocar o inconsciente. E é esse momento que nos faz andar. É nessa hora que mergulhamos em imagens e inspirações, em desejos e mudanças. Podemos então crescer ou sucumbir. Me agrada ler que Jung considerava todo neurótico como um ser-humano mais brilhante em potencial, mas que naufragou no medo de seu inconsciente.
O inconsciente pessoal sendo a herança de nossos antepassados genéticos, de pais e tios, país e nação. E o inconsciente coletivo sendo tudo aquilo que carregamos da história da humanidade. Mas veja: não é uma lembrança linear. Não é sequer uma lembrança. São imagens sem texto e sem voz, são símbolos que ficam gravados e se tornam lenda, mitos, religião. Todo inconsciente é religioso porque tudo que é irracional acaba se tornando linguagem religiosa. Conhecer toda religião, compreender seu símbolo e seu ritual é primordial para se tentar entender o inconsciente.
A individuação. O ser se tornando si-mesmo. A saúde plena sendo o homem que se torna aquilo para o qual nasceu. O homem que consegue ir ao inconsciente e retornar: mito de todo herói. O herói que vai ao mar, a floresta, ao castelo e retorna outro, mais velho, mais sábio, inteiro. O ser que se faz si-mesmo descobrindo algo sobre seu inconsciente. Jung usa a imagem de caminhar sobre o fio da navalha.
O que impede essa descoberta é o medo. Medo de se perder, de deixar de ser, de morrer ou enlouquecer. Medo do irracional, medo da vida ( que é mortal e irracional ). Apego a persona como meio de não pensar e não questionar e apego a imagem materna como meio de escapar do inconsciente.
Bela sacada de Jung: não desejamos apenas sexualmente a mãe. O que desejamos é seu consolo contra o medo de viver. Ela nos protege de nossas trevas inconscientes, ela "ilumina" a escuridão. As sociedades primitivas realizavam cerimonias para livrar o menino dessa proteção. Hoje não as há mais. Então o que o homem faz é usar mulheres como proteção. A mulher usada como antídoto contra o perigo, contra o inconsciente, contra a individuação. O homem se infantiliza com essa mulher e nega toda a treva irracional que vive dentro dele.
O pai protege o filho do mundo real. A mãe o salva do mundo simbólico, irracional.
Bem.... há muito mais a dizer, mas deixo aqui apenas um aperitivo sobre esse pensamento que me perturba e me seduz. Jung valoriza o homem original, poético, em conflito. Ele joga fora certezas e máscaras e deixa de lado a facilidade de se explicar tudo por repressão e libido ( a libido junguiana é bem mais complexa ).
Mas não se exaltem, freudianos. Jung aceita várias conquistas de Sigmund. O que ele renega é o fato de Freud não ter seguido adiante, não ter tido a humildade de fazer uma auto-crítica, e de ter se deitado sobre os louros de uma única grande teoria. Freudianismo acabou se tornando um tipo de crença que dá a seu fiel o consolo de crer em guru infalível. Uma coisa automática e sem dúvidas. A racionalização do que nunca é racional.
Jung está longe de ser infalível. Mas nessa disposição ao risco, nesse desequilíbrio e nessa incessante busca pelas questões certas, ele se apresenta como um ser mais artístico, mais músico, muito mais livre. E o principal: suas descrições de crises se casam a perfeição com minhas crises e meus medos. Se em Freud eu preciso me adaptar a suas crenças, com Jung vejo maravilhado a descrição daquilo que eu já sabia.
PS: antes que se pense que individuação seja sinônimo de egoísmo, explico: a individuação, a descoberta do si-mesmo se dá pelo mergulho em seu inconsciente ( e a habilidade de não sucumbir em psicose ou mania ), mas esse si-mesmo só se solidifica no contato com o outro. É impossível se tornar voce mesmo no isolamento. O homem é um ser social, para ser Homem é preciso o outro. Todos compartilhamos esse inconsciente coletivo, essa herança de símbolos ( e é isso que nos faz pensar em vida eterna ), esse inconsciente é sempre igual, seja em que tempo for. Saber que ele não nos pertence é o primeiro passo rumo ao conhecimento. E a humildade.