FELIZ 2011 - O CINEMA DOS SONHOS

Tendo o mesmo aspecto onírico que a poesia, o cinema dos anos 30 é absolutamente simbólico e arquetípico. Mesmo quando ele procura ser "vida real" , mantém sempre o espírito de sonho, de atemporalidade e de vida inconsciente ( pois não é nosso inconsciente atemporal ? ). Não tendo nada a ver com a crueza do mundo real, ele fala diretamente com o que há de mais profundo em nós. Seu reino é a alma do homem. Se voce perdeu, ou jamais teve, acesso a esse seu universo, esqueça o cinema dessa época. Não é para voce.
Para se usufruir do privilégio desse mundo, é preciso relaxar. Esqueça a adrenalina do cinema atual ou a "arte" dos anos 50/60. O cinema da golden age é paisagem e vinho raro, aprecia-se, ama-se, aprende-se.
É absolutamente classe AA. Espiritos mal educados jamais conseguirão compreender seu valor.
Tudo nele é luxo. E luxo de verdade ( luxo que remete a mármore e seda, e não a aço e fibra sintética ) não excita, acalma. Mesmo seus dramas policiais, suas denúncias sociais, possuem esse aspecto de luxo, de segredo para poucos, de nascimento de um sonho. E ele deve ser amado, nunca admirado, porque admiração pressupõe razão e amor fala ao instinto. Instintivamente amamos aqueles filmes porque eles parecem ter sido feitos com naturalidade, sem forçar, ao sabor do vento. Os rostos que lá vemos são os patriarcas e matriarcas da arte das telas, e seus cenários possuem a tênue irrealidade da vida imaginada, desejada, sonhada.
Aprendia-se a ser homem com Gary Cooper e como se abordar uma mulher com Clarck Gable. Henry Fonda demonstrava o que significava ser nobre e Errol Flynn a ser leve. Cary Grant dava aulas de elegância enquanto William Powell mostrava como ser charmoso e feliz no casamento. James Cagney mostrava aos durões como ser mais durões e Humphrey Bogart instituia o cool. Groucho Marx ensinava a ironia e o nonsense e Spencer Tracy o machismo tranquilo. Em todos esses atores, ensinados a ser estrelas pelos fortíssimos estúdios e produtores de pedra, havia a total ausência de carnalidade, de fedor, de neurose ou de fraqueza. E sobre todos eles, vivia o mais irreal dos astros : Fred Astaire.
O mundo que criou Astaire é o mundo que não conhecia a bomba atômica, a poluição, a droga e o campo de concentração. Astaire nasceu quando ainda se podia viver na completa ignorância da maldade e do crime. Viena ainda não havia sido esquecida.
Em quarenta anos de carreira nada em Fred Astaire é menos que perfeito. Ele esteve em muitos filmes ruins, mas em cena, ele sempre foi Astaire e isso era um tipo de mensagem vinda não se sabe de onde, a nos dizer : Hey, os homens poderiam ter sido assim ! Perfeitos. O nascimento de um novo Fred Astaire é tão impossível quanto o nascimento de outro Shakespeare. O mundo que o criou está completamente passado.
Mas nossa alma, nosso inconsciente ou o que seja, que não reconhece tempo ou distância, continua sendo atingido, embalado, hipnotizado pela cadência musical dos filmes desse período. É uma espécie de religião ( os poucos amantes desses filmes se comportam como se fossem fiéis a um tipo de deus/ deuses ). Os filmes desse tempo jamais voltarão a ser POP, mas serão para sempre MITICOS.
E é maravilhoso para mim voltar a ver esses filmes. Após duas semanas de filmes dos anos 2000 ( alguns excelentes, muitos ruins, mas todos febris, neuróticos, nervosos, sem transcendência ), é uma felicidade, inimaginável para os não iniciados, reencontrar esses ícones, reencontrar o rumo, a poesia, o sentido, a paz. Assito ontem a FOLLOW THE FLEET, que nem é um Astaire dos melhores, e me vejo sorrindo todo o tempo, vendo o mundo como coisa maior, mágica, sublime. Reencontro os rostos de Ginger Rogers e de Randolph Scott e revejo linhas de poesia em forma de cinema.
Quando Fred pega Ginger e canta dançando LET'S FACE THE MUSIC AND DANCE, todo o segredo da vida é exposto. Tudo fica claro, nitido, simples e melhor, fácil. Eu merecia isso em ano que começa.
Se um dia existiram santos sobre a terra, Fred Astaire foi um deles. O bem que ele faz é milagre.