MY FAIR LADY - ELEGÂNCIA E PARAÍSO

Primeiro são as flores. Closes de flores em variadas formas e cores. Durante um minuto e meio é tudo o que vemos : flores. Estão jogadas as cartas : o filme trata de estética, a estética da visão e a estética da língua. Mas é também a estética do amor e do cinema em sí. Vêm os créditos do filme : Jack Warner produziu pessoalmente, o que significa muito. Audrey Hepburn significa perfeição. Audrey fez algum filme ruim ? Rex Harrison, que Paulo Francis tanto amava, significa civilidade em grau absoluto. A Warner queria Cary Grant, mas foi o próprio Cary, com sua elegância de sempre, quem disse ser um crime tirar Rex do filme. Rex Harrison era o professor Higgins da Broadway, e ele é Higgins. Temos ainda Stanley Holloway, que significa humor em alto grau e Wilfrid Hyde-White, que é simpatia suprema. Mas há mais. Hermes Pan cuidou da coreografia, e apesar de não haver dança propriamente, todos se movem com graça e leveza. Harry Stradling fotografou, esse mestre dos diretores de fotografia, e há no filme um brilho colorido que remete a conforto e solidez. Mas vem mais : Alan Jay Lerner escreveu o roteiro e fez as letras, adaptando Bernard Shaw. Foi este filme que me ensinou que em musicais as músicas não são "pausas", elas são o centro da obra, são elas que revelam a alma do personagem. Este filme tem as melhores letras, diálogos deliciosos e uma leveza de sonho. As melodias são de Frederick Lowe e os arranjos de André Previn. Todas as músicas desta obra são perfeitas. Todas são inesquecíveis, ele é o musical para quem não gosta de musical. Se após My Fair Lady voce continuar a detestar musiciais, bem... seu caso é perdido. Cecil Beaton cuidou do visual geral. Beaton foi o Oscar Wilde dos fotógrafos, o luxo dos luxos, o nome chave do esteticismo, o dandy supremo. O que mais este filme pode ter ? George Cukor na direção, o que quer dizer gosto e tato. Após tantos diamantes, eis que ele começa.
Um cenário que é Londres, talvez em 1910. Cenário que foi feito de verdade, com suas colunas, pedras e ruas. Vemos roupas elegantes, cartolas, calhambeques, carruagens, jóias, rostos asseados. É a tal era vitoriana. Estamos no mundo da elegancia e dos bons modos. Chove então, e se abrem guarda-chuvas. Observe, nada de importante aconteceu, mas seu senso estético já está desperto. Surge Audrey, suja e com voz deplorável. Ela é uma florista de rua. Com a fala das ruas de Londres. Surgem Higgins e Pickering ( nomes adoráveis ). Um é linguista, o outro é um coronel culto. Higgins diz que a língua é tudo, e o filme é ode de amor à língua inglesa. E vem a primeira canção.
Paulo Francis em belo artigo dizia que Rex Harrison, em Londres, colocou a audiência abaixo na estréia teatral de MY FAIR LADY quando abriu a boca para cantar. Rex era péssimo cantor, então criou um tipo de "fala cantante" que é simplesmente genial. E dificílima de ser imitada. Nesta primeira canção ele fala da língua inglesa. A letra de Lerner é coisa de gênio. Rimas e ritmo, tudo flui, apesar da complexidade das palavras. Estamos capturados : o filme triunfa.
Eliza Doolittle é Audrey. O mundo queria que fosse Julie Andrews, a estrela da versão teatral. A Warner, sem Cary Grant, dessa vez bateu pé : precisamos de uma estrela das telas : Audrey. Pois Audrey está como sempre : adorávelmente adorável. Na rua ela canta sobre a alegria que seria ter uma poltrona macia e um chocolate quente. Nos ajoelhamos. Que música linda ! Ela nos transmite uma beleza que chega a doer, a beleza da esperança. O filme cresce muito. O que já era excelente fica ainda melhor.
Uma cena de poesia suprema é aquela em que amanhece nas ruas de Londres. A cidade de Dickens e de Thackeray nunca foi tão bela. Eis o pai de Eliza, um malandro bêbado chamado Alfred Doolittle. Criação genial de Holloway. Ele canta na rua, unido aos pobres maltrapilhos. Fala de sorte, de futuro. Sorrimos. O filme é de uma alegria encantadora. O mundo de MY FAIR LADY é um tipo de paraíso estético. Entramos então no santuário de Higgins, sua casa.
Um esbanjamento. Observe as janelas. Vidros azuis e amarelos, desenhos em cristal fino. Veja o imenso tapete persa no chão. As maçanetas de cobre polido, as luminárias belgas. Madeiras que cheiram a verniz em todo canto e imensos sofás de couro. O banheiro com seus azulejos pintados um por um, à mão. O padrão do papel de parede. É o ambiente de luxo masculino vitoriano. Ambiente que pede charutos, um Porto, um volume de Conrad. Não queremos sair de lá. Rex e Wilfrid moram alí. São dignos daquilo tudo. Mas a "mulher" surge e a paz se vai.
Antes de Eliza irromper na casa como sujo furacão, Higgins canta. O hino supremo dos solteiros. Jamais ouvi tantos bons argumentos sobre a vida de solteiro. Obra-prima masculina. O filme sobe ainda mais : ele é também sobre a guerra dos sexos. Me surpreendo : letras de canções podem ser tão ricas ? Alan Jay Lerner é um gênio !
Pois bem. Os dois amigos apostam. Higgins fará de Eliza uma Lady. Em seis meses. A levará a festa da embaixada, onde todos serão enganados. Estará provado que voce é o modo como fala. Higgins passa a ensinar Eliza a falar corretamente. Eliza sofre, se submete, e de súbito, no momento mais feliz de um filme cheio de momentos felizes, ela acerta : the rain in Spain... Os três dançam. A música é sublime. Um dos maiores momentos da história da sétima arte : Rex, Audrey e Wilfrid cantando e pulando. A vida pode ser perfeita. Mas o amor complica tudo....
Ela se apaixona. E canta a canção mais conhecida do filme. Impossível saber qual a melhor. Não há uma que não seja perfeita. As letras sempre são fascinantes e a melodia inesquecível. A peça/filme é momento único. Vem então a primeira prova de Eliza : as corridas em Ascott.
Essa cena em Ascott é das coisas mais belas já filmadas. E artificiais. Um desfile afetado de roupas elegantes, mulheres em fantasias divinas onde Audrey/Eliza entra como fada. O diálogo que ela trava com os lords e ladys é comédia perfeita. E o final da cena é soberbo. O filme, que se iniciara lindo continua em seu crescendo. Ele sobe todo o tempo.
Vem então o baile. Nessa cena o filme se arrisca. Não ouvimos nada do que se diz. Ficamos como distantes espectadores. Danças, poses, silêncios, exibicionismos. Eliza triunfa ! O filme se aquieta em planície alta. Cessa seu crescimento. Em duas horas de incessante êxtase ele interrompe-se. MY FAIR LADY. agora, é drama.
O filme fala então de tragédia séria : Eliza adquiriu cultura, mas o que fazer com ela ? Seu passeio pela praça onde trabalhava antes é dramático. Não faz mais parte daquilo, mas faz parte do quê ? Ela é uma Lady, mas não nasceu Lady e não tem dinheiro. Reencontra o pai, que em frenética cena de pub celebra sua despedida de solteiro. O filme continua maravilhoso, mas agora ele é doído. Higgins é incapaz de entender Eliza. Ele é masculinidade pura. Ela é só feminilidade. Não se tocam.
Mas um precisa do outro. Rex Harrison se supera em cena onde ele confessa ter se acostumado com sua presença. Sem ela a casa é vazia. Mas Eliza o repele. Ela foi pisada demais. Rex volta para casa só. E vem o final, que é de uma falta de romantismo chocante, mas que é puro Bernard Shaw. Após três horas de projeção o que queremos é mais. Pena ter acabado...
MY FAIR LADY ganhou oito Oscars em 1964. Cukor, Rex, Warner... todos levaram seus prêmios. Menos Audrey, que nem indicada foi ( injustiça. Ela está sublime. ) Foi imenso sucesso ( o que depõe a favor dos frequentadores de cinema da época. ) Foi o filme que me fez entender musicais. O assisto todo ano desde então, sempre próximo ao Natal. Ele é um presente que me dou. A alegria de rever MY FAIR LADY é a mesma de reencontrar uma festa querida. Brilhos e cores amadas, vozes amigas, canções de sonho. Nenhum filme me é mais "precioso". MY FAIR LADY é como jóia de família, foto de infância, coração de amigo : não tem preço. Ele dignifica o cinema popular, enobrece a profissão de ator, faz de uma sala um salão. É ouro puro.
MY FAIR LADY é soberbo !!!!!