O JOGO NA TERAPIA

Não é fácil viver em meio ao jogo de interesses que é a vida. Interesses afetivos, financeiros, desejos de segurança, de pertencimento. Somos mamíferos, precisamos do outro para existir. Dentro desse jogo, aprendemos desde muito cedo, a usar uma estratégia, e essa estratégia pode ser chamada de máscara. A máscara é aquilo que somos na presença de um outro, do público. Ela é tão cômoda, tão ajustada que acreditamos sermos apenas ela e nada mais. --------------- Aprendemos, observando, a agradar papai. A ter dele aquilo que desejamos. Ou de mamãe. Mas podemos também, por decepção, aprender a evitar papai. A se manter livre dele. Usaremos uma estratégia e provavelmente a levaremos vida afora. -------------------- Seremos o CARA ENGRAÇADO. Ou então o CARA QUE AGRADA-SEDUZ. Poderemos fazer o AMIGO ÚTIL ou o DOIDO. O que importa é que assim que recebemos um ganho com essa estratégia nos acomodamos nela e não mais iremos a largar. Em pouco tempo passamos a crer que somos uma estratégia e não um conjunto imenso de possibilidades. ---------------- Na minha adolescência ser rebelde era ter como estratégia, ou máscara, o SER ROQUEIRO. Cabelo comprido, jeans, cigarro, moto ou prancha de surf. A partir daí havia todo um jogo bem definido. Por ser do Rock, eu era deste modo e não daquele. Hoje esse rebelde usa cabelo azul e tem sexo indefinido. A consequência é a mesma: ele adotará um código rígido e se sair desse código irá perder o GRUPO, deixará de ter um papel "seguro" naquele palco. ----------------------- Acabamos reféns de nosso hábito. Como autômatos bem programados, paramos de reagir naturalmente e agimos automáticamente. Dentro do papel habitual. Para ser amigo de João devo continuar sendo o que sempre fui. --------------- Quando eu tinha 24 anos precisei ir à terapia pois meu papel na vida havia sido rasgado. Eu não queria mais aquela estratégia. Lembro que meu terapeuta me disse algumas vezes : " voce não precisa ser o paciente mais interessante do mundo". Por que ele dizia isso? Eu não entendia então. Hoje sei que eu criara uma estratégia: ser interessante sendo um neurótico complexo e bem esquisito. Era mais um papel e ele logo percebeu. ------------------ No espaço da terapia voce não precisa de um papel e a terapia funciona quando isso ocorre. Se voce é no jogo do mundo um ser charmoso, lá voce pode dispensar esse charme. Se voce é o engraçado simpático, não há porque ser dentro daquela sala de terapia. Voce pode e deve ser um nada de nada, para então começar a ser, talvez, voce mesmo. --------------- Mas por que isso acontece na terapia? -------------- Explico. Voce joga na vida para não perder o que possui e vir a ter o que precisa ( ou acha precisar ). Então, sem notar, voce segue um caminho fixo. Com Isabela sempre serei o amigo compreensivo porque sei que com ela "funciona". Desse modo não vou perder Isabela. Com minha sala de curos de história sou um intelectual satírico, pois sei que eles adoram isso e assim eu os "conquistei". Se eu não for assim, se eu mudar, posso OS PERDER. Ou seja, perder meu lugar seguro. --------------- Com o terapeuta não. Por mais chato, tolo, agressivo, inutil, inconsequente que eu seja, daqui a uma semana ele estará lá, na mesma sala, do mesmo modo, com a mesma disposição. Claro que eu o pago para isso, e o ato de pagar faz deste jogo um jogo limpo. É por dinheiro, mas por saber que ele não irá faltar eu me libero. Não preciso o seduzir. Eu o pago. ----------------- Lentamente vou me acostumando a esse novo jogo, onde eu não tenho obrigação nenhuma, apenas a de pagar, e assim não necessito ser o que sempre fui. Posso ser outro, talvez, com o tempo, me torne EU MESMO.