Dois meses atrás, mais ou menos, lí e comentei outro livro de Sebald, "Vertigem". Contei que o descobri numa muito entusiástica coluna de Marcelo Coelho em que ele dizia ser o autor alemão " o único grande autor da atualidade ". Com este segundo livro que leio, "Austerlitz", descubro, afinal, o porquê de tão grande conceito. Sebald é gigantesco. Em tempos de formigas que escrevem sobre seu diminuto umbigo, Sebald alça vôo e encara de frente o cosmos da existência. Ele é o autor central dos últimos trinta anos, talvez quarenta. Pode ser colocado ao lado de Thomas Mann ou de T.S. Eliot como antena de seu tempo, autor de uma preciosa radiografia de nossa alma.
O livro tem fotos que ampliam a narrativa e não tem nenhum parágrafo. Um homem, Austerlitz, conta ao autor, em encontros esparçados, em Paris, em Londres, em Praga, sua história, a história de sua família, a história da Europa, a nossa história ocidental. Pois sutilmente percebemos que Austerlitz é a consciência européia, a alma do ocidente. E assim, cada paisagem encontrada, cada nome citado, cada viagem feita é uma epopéia, uma odisséia, uma guerra e uma paz. Tudo vai se encaixando como um vitral : Napoleão, Aldous Huxley, Evelyn Waugh, O País de Gales, a feiúra belga, o colonialismo, Fred Astaire, Bergman, Alain Resnais, os mochileiros, Balzac, cemitérios, museus, estações de trem, metrô, judaísmo, memória, tempo, morte, mariposas, escadas, bibliotecas, guerras e mais guerras... Na narração não existe tempo. Sebald não crê no tempo. Para ele, passado, presente e futuro estão todos vivos aqui, agora, e para sempre.
Não pense que o livro cheira a lição de história. A narrativa é muito íntima, pessoal, discreta. Você precisa pescar os significados maiores, interagir com o autor, trabalhar e se tornar ativo. Se você nada souber sobre a história ( não é vergonha, você é apenas uma vítima, diz o livro ), mesmo assim Sebald o impressionará. Seu estilo, uma espécie de Proust da era insensível, é hipnótico, possui uma voz de sonho, de delírio e de pesadelo. Sebald consegue unir Proust à Kafka, Mann à Joyce. Um mestre. Austerlitz é um labirinto.
Toda a peregrinação sem rumo de Austerlitz ( ele é um mochileiro ) se revela uma cega busca pela memória. Austerlitz tem sintomas. Ansiedade e uma sensação de não existir, vaga e cada vez mais insistente. Existem lapsos em sua mente, coisas que ele não quer encarar. Austerlitz luta contra sua memória. Austerlitz quer esquecer. Ele quer não-ser.
Mas o seu legado lhe assombra em fotos, em quase-recordações, em revelações. E ele persevera. Precisa remendar sua alma, unir o que foi rompido, olhar as chagas para poder superá-las. Austerlitz precisa existir. Nós vamos com ele. Árdua jornada. O livro é um poço.
A Europa que nos é mostrada é casa de horror. Gente em constante mudança, desenraizada, sem identidade, com suas paisagens virtuais, sua Novaiorquisação, seu histérico pavor de tudo o que é real. Pois os europeus vivem, ainda e para sempre, a loucura da segunda-guerra, o gueto em que se tornou o continente, confinados em hiper-funcionais zoos, com sua racionalidade falível, fugindo de tudo que lhes desperte a memória, fugindo e se imbecilizando, se acovardando mais e mais, sendo vaquinhas em fazendinhas alemãs, sendo anti-literatos em Paris, sendo mortos-vivos em Praga, sendo fantasmas em Gales. Mariposas secas. A Europa é um quadro de borboletas secas.
Sebald é católico. Não é mais um autor judeu nos recordando o holocausto. Ele vê esse crime, um crime que define tudo o que somos e seremos, não como vítima direta, mas como alguém que paga pelo erro cometido. O homem chegou a um nível tão hediondo de maldade pura, produziu um pesadelo tão perfeito, tão racionalmente bem feito, revelou-se possuidor de um instinto tão destruidor e sádico, que nunca mais poderemos olhar para nosso ser com a inocência que havia até antes dessa trágica noite. Somos, todos nós, espectros que nasceram nesse mundo assombrado. Não podemos olhar para trás. O medo nos paralisa. Derrubamos tudo o que é passado. Fazemos de novo. Negamos e interiorizamos. Neurotizamos e transformamos em sintoma. Fugimos da terapia.
Negando 1939, matamos 1900, 1870, todo o passado. A bela Europa se vai. Para não encarar o trauma, perversamente, matamos tudo de melhor também. Austerlitz esqueceu ser judeu. Esqueceu ter nascido em Praga. Esqueceu seu pai verdadeiro. Austerlitz anda de mochila, sem rumo, mundo afora. Nada constrói, nada deixará, seus passos não se gravam no solo. Austerlitz ao não rememorar deixa de existir. A Europa é uma sombra. E nós, ocidentais, nos guiamos por fumaça. Tudo que nos encanta é ilusão. Nossos passos não ecoam. Ninguém lembrará desta geração. Nossa época será vergonha do futuro. Treva medieval. Sebald descreve a arquitetura européia com detalhes que nos fazem tremer. Seu olhar pode dissecar tudo. O amor nesse mundo é apenas um consolo. Tornou-se um ambulatório. Amamos para esquecer quem somos. Tudo neste mundo é esquecimento. O amor que foi fonte de coragem tornou-se usina de covardia. Quem ama deseja nada sentir. Viver no colinho quente. Entregar sua vida a outro. Deixar de ser.
Sebald morreu em 2001, acidente de carro. Um homem com tal mente ter encontrado a morte na estrada é de uma assustadora coerência. Foi um quase-gênio. Num mundo que detesta toda originalidade ser um quase é o máximo a que se pode chegar. O futuro esquecerá nossa medíocre arquitetura, nossa futil música e nossos livros umbigos. Mas se lembrará de Sebald e deste livro. Seu nome sobreviverá.
buster keaton e fred astaire, anjos em tela de prata
Creio que foi Roger Ebbert quem fez a comparação entre Chaplin e Keaton. Enquanto Chaplin ( que é genialmente humano ) pede todo o tempo nosso afeto, Buster Keaton simplesmente trabalha. O vagabundo de Chaplin nos chantageia. Ele sofre e se encolhe, e é alguém que poderia ser um carrapato em nossa consciência. Keaton nunca nos chantageia. Não sentimos pena e jamais choramos por ele. Buster nunca desiste. Seu "cara de pedra" luta pelo amor, luta pela vida e trabalha arduamente por seu objetivo.
Todos os seus filmes mostram um homem construindo seu destino. Ele começa o filme numa situação X, e o encerra em situação nova, obtida por esforço e uma fé ingênua na vida. Buster Keaton, ao contrário do muito pessimista Chaplin, é um otimista nato. Seu rosto jamais sorrí, mas sua alma é feliz.
Seus filmes sobrevivem então, porque atrás de seu maravilhoso ritmo circense, atrás da bela presença atlética de um ator de carisma imenso ( houve ator mais fotogênico ? ), persiste o testemunho de um herói, de um lutador, de um teimoso. Assistir seus filmes é observar um anjo, real e possível, em ação.
Amar Buster Keaton É AMAR O QUE EXISTE DE MELHOR NO SER HUMANO.
Como acontece, em outro universo, com Fred Astaire.
Astaire tinha tudo para não ser uma estrela. Era feio, envelhecido precocemente, pouco sensual e com um jeito meio snob de ser. Mas exatamente por ser tão fora dos padrões, tão etéreo, ele se fez uma imagem irreal. Fred Astaire é ficção. Ele e seus filmes são fantasias tão distantes da vida crua e sólida como o são os sonhos e os delírios de amor.
Os cenários são sempre brancos. Paredes, móveis, tapetes, tudo é branco e prata. Os personagens dormem em cetim e seda, passam o dia com champagne, caviar e limousines. O único objetivo é seduzir ou ser seduzido. E todos falam como brilhantes autores de comédias de situação dos anos 30. É um mundo sem dor, sem dinheiro, sem tempo e sem mágoa. Mas nos seduz, por ser o mundo em que vivem nossos sonhos mais persistentes, nossos desejos atemporais.
Não nos vemos em Fred. Mas adoramos observar aquele ser inefável falar, cantar e dançar. Quando ele dança, voa. Quando canta, ensina. Astaire ensina um refinamento de sentimentos possível, ele ensina um modo de se viver com prazer sem hedonismo futil. Fred Astaire dá lições de filosofia sem jamais afetar intelectualidade. E é outro anjo. De inocente sedução.
Quando Wenders fez em 1987 ASAS DO DESEJO, ele usou Columbo, o personagem de tv de Peter Falk, como símbolo de um anjo contemporâneo e possível. Pois Buster Keaton e Fred Astaire ( e também Audrey Hepburn, mas Spielberg a fez "anja" em Always de 1991 ), seriam anjos de verdade. Ambos não parecem deste mundo. Parece que jamais existiram, que não tiveram biografia, que não morreram. Imaginar Keaton mau e vaidoso ou Astaire vingativo e mesquinho é impossível. São afáveis como bons pensamentos e possuem um segredo que se foi com suas vidas.
Assistir seus bons filmes ( e são dezenas ) é entender até onde o homem pode alcançar. Não compreendê-los é como perder um sentido, é como ser cego para aquilo que é melhor. Vive-se menos sem esses alados seres de prata.
Uma nova geração, gente de 18, 19 anos, os cultua.
Nem tudo está perdido.... Viva !
Todos os seus filmes mostram um homem construindo seu destino. Ele começa o filme numa situação X, e o encerra em situação nova, obtida por esforço e uma fé ingênua na vida. Buster Keaton, ao contrário do muito pessimista Chaplin, é um otimista nato. Seu rosto jamais sorrí, mas sua alma é feliz.
Seus filmes sobrevivem então, porque atrás de seu maravilhoso ritmo circense, atrás da bela presença atlética de um ator de carisma imenso ( houve ator mais fotogênico ? ), persiste o testemunho de um herói, de um lutador, de um teimoso. Assistir seus filmes é observar um anjo, real e possível, em ação.
Amar Buster Keaton É AMAR O QUE EXISTE DE MELHOR NO SER HUMANO.
Como acontece, em outro universo, com Fred Astaire.
Astaire tinha tudo para não ser uma estrela. Era feio, envelhecido precocemente, pouco sensual e com um jeito meio snob de ser. Mas exatamente por ser tão fora dos padrões, tão etéreo, ele se fez uma imagem irreal. Fred Astaire é ficção. Ele e seus filmes são fantasias tão distantes da vida crua e sólida como o são os sonhos e os delírios de amor.
Os cenários são sempre brancos. Paredes, móveis, tapetes, tudo é branco e prata. Os personagens dormem em cetim e seda, passam o dia com champagne, caviar e limousines. O único objetivo é seduzir ou ser seduzido. E todos falam como brilhantes autores de comédias de situação dos anos 30. É um mundo sem dor, sem dinheiro, sem tempo e sem mágoa. Mas nos seduz, por ser o mundo em que vivem nossos sonhos mais persistentes, nossos desejos atemporais.
Não nos vemos em Fred. Mas adoramos observar aquele ser inefável falar, cantar e dançar. Quando ele dança, voa. Quando canta, ensina. Astaire ensina um refinamento de sentimentos possível, ele ensina um modo de se viver com prazer sem hedonismo futil. Fred Astaire dá lições de filosofia sem jamais afetar intelectualidade. E é outro anjo. De inocente sedução.
Quando Wenders fez em 1987 ASAS DO DESEJO, ele usou Columbo, o personagem de tv de Peter Falk, como símbolo de um anjo contemporâneo e possível. Pois Buster Keaton e Fred Astaire ( e também Audrey Hepburn, mas Spielberg a fez "anja" em Always de 1991 ), seriam anjos de verdade. Ambos não parecem deste mundo. Parece que jamais existiram, que não tiveram biografia, que não morreram. Imaginar Keaton mau e vaidoso ou Astaire vingativo e mesquinho é impossível. São afáveis como bons pensamentos e possuem um segredo que se foi com suas vidas.
Assistir seus bons filmes ( e são dezenas ) é entender até onde o homem pode alcançar. Não compreendê-los é como perder um sentido, é como ser cego para aquilo que é melhor. Vive-se menos sem esses alados seres de prata.
Uma nova geração, gente de 18, 19 anos, os cultua.
Nem tudo está perdido.... Viva !
BRAZILYA, ALEMANHA E A RAZÃO
Lendo um livro de Peter Gay sobre Mozart ( Peter é o cara que escreveu a melhor bio sobre Freud. ), descubro que a Alemanha que conhecemos não é a Alemanha de verdade. É virtual. Até o fim do século XIX, Alemão eram os habitantes de lugares como Munique e Frankfurt, e que Praga e Viena eram parte desse germanismo. Ser desse mundo era ser parte da terra do romantismo, da filosofia e da música. O caráter alemão era aquilo que hoje entendemos como grego-clássico, uma incessante busca por beleza e por conhecimento. Era um mundo de muito otimismo, de alegria exaltada e de romance. Cafés, cervejarias, montanhas, rios azuis, bailes e poemas. Esse universo é que nos deu Goethe, Bach, Beethoven, Mozart, Schiller, Kant, Novalis e Wagner. Quando surgem Freud, Nietzsche e Rilke esse país já está agonizante. Como ?
A unificação da Alemanha, a união da Baviera, da Saxônia, de Weimar e de todos os seus estados foi feita sob a liderança de Bismarck e com dinheiro da indústria pesada. A Alemanha nasce para ser líder, nasce em modelo Prussiano, e a Prussia, estado de competição, de disciplina, estado militar, sufoca e mata as outras Alemanhas, nações que nós jamais conhecemos. ( E sob sua influência a alegre Viena e a sensual Praga se afogaram em burocracia e preconceito. ) O estado Prussiano só poderia desembocar em duas guerras e numa esquizofrênica divisão.
Falo isso para dizer que Brasília é a Prússia do Brasil. Nestes dias de Sarney e Renan, Lula e Collor, vejo na tv aquele corredor que percorre o congresso nacional. É um túnel arredondado, feio, labiríntico, Stalinista. Lembra um bunker, um metrô, um esconderijo anti-povo. Herr Niemeyer criou uma pequena Prussia árida, onde todo seu concreto lembra opressão, retidão de uma marcha rumo ao futuro, a um futuro prussiano. Nada em Brasilya lembra o Brasil. Nada de carioca, de baiano, de mineiro ou de bandeirante. Nada. Brazilya tem a retidão da ordem unida, do uniforme, do inumano, do nada absoluto. E o país, pobre Weimar, se entristece nesse bunker subterrâneo. O Brasil morreu. Hoje é Brazilya.
Gosto de me dizer iluminista. E sou. Foram eles que me forjaram. Mas ao matarem a ingenuidade da religião e colocarem a razão em seu lugar, jamais imaginaram que a razão se mostrasse tão incompetente para dar ao homem aquilo que a religião sempre deu : paz.
Acreditaram na ciência e apesar de se chamarem pessimistas em tudo, foram de cego otimismo em sua fé científica. Pensaram que a razão fosse naturalmente justa, pacífica e democrática. A Alemanha é o estado da razão. Brazilya é uma cidade construida racionalmente. Ela nada tem de barroca, romantica ou rococó. Assim como a Alemanha matou a romantica Munique e a gótica Mannheim.
Hoje sabemos que o desencanto da razão começa com a crueldade da revolução industrial, passa pela primeira guerra com seus aviões e bombas científicas ( e gases tóxicos ) e deságua nos campos de concentração onde se matava racionalmente e se planejava um mundo de super-homens forjados por ciência e filosofia. O auge da criação científica ainda é a bomba atômica. Como confiar na ciência ?
Você consegue, com sinceridade, me dizer que confia na engenharia genética ? Será que não veremos a extinção de seres humanos indesejados ? O fim de pessoas com " defeito " e portanto, o fim da diversidade ? Quem definirá o que é normal, saudável, padrão ? Realmente vale a pena não ter mais nada de natural em troca de brinquedinhos eletrônicos e maquininhas engraçadinhas ? Vencemos a varíola. Adquirimos medo como nunca houve, e doses cavalares de tédio. Valeu a pena transformar todo campo em caminho asfaltado e toda cidade em estacionamento ? O que lhe é mais agradável : o berço onde você abriu os olhos, com suas cores e tecidos macios, ou o moderno prédio da nova estação do metrô, com seu prussiano concreto e o árido frio de toda estação ?
Nós vimos a mais racional forma de administrar uma nação ruir ( o comunismo ). E assistimos coisas anti-racionais como terrorismo, racismo e vicios vicejarem. Porque ? Onde aconteceu o erro ? O iluminismo nos livrou da inquisição, da bruxaria e do charlatanismo, mas abriu caminho para o medo, o tédio e o absurdo. Pois o mundo, basta saber algo de história para perceber, nunca esteve tão apavorado ( daí o consumismo, as distrações, os desesperos ), tão entediado ( voce adquire hoje aquilo que amanhã não te interessa mais ) e tão confuso ( você faz um imenso esforço para não pensar, não sentir e ser sempre jovem. Pra quê ? ). Assustado por saber, pela primeira vez, que toda pergunta respondida traz mais duas sem resposta; entediado por já ter visto tudo na tela da tv aos 11 anos de idade, por se tornar competitivo aos 7 e começar a temer o tempo aos 13. Entediado por não encontrar mistério em nada, pois tudo foi dissecado pelo cientista, por não conseguir criar nada de seu, pois tudo que seria seu tem um preço, e entediado por ver tudo numa vitrine e imaginar que nada mais existe fora dessa vitrine. Confuso por não enxergar a armadilha. Condicionado a não perceber mais as grades que o cercam. Amando o zoo onde foi posto. Pensando que viver é comer e ter , e que o mundo e a história se restringem a sua jaula e seu pátio de exercícios.
Sabemos que a razão errou. Que este computador onde escrevo é quase nada. Que meu celular não me fez melhor ou mais feliz. Que o novo Mercedez me dará a satisfação de ter um novo Mercedez, e que todas as outras insatisfações continuarão insatisfeitas. Que todo desenvolvimento científico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano. Que continuamos matando, roubando, mentindo, destruindo, e pior, nos iludindo. Mais que antes. E que ainda tememos a morte, o tempo e a solidão.
Mas o irônico é que somos a razão. Não podemos mais ser de outro modo. Indagaremos sempre, desejaremos sempre, estaremos insatisfeitos eternamente. Ingenuidade só se perde uma vez, e quando a perdemos, definitivamente em 1945, nos jogamos à ciência, único consolo ainda possível. Sem perceber que o defloramento de 1945 fora causado pela própria ciência.
Jamais voltaremos a valsar em Viena. A cidade é hoje antro de racismo hipócrita. Jamais teremos uma capital entre sambistas e igrejas barrocas. O Rio se tornou capital da futilidade hedonista. Jamais escutaremos Beethoven como nosso igual. O mestre era um homem natural, hoje eu sou um pré-coisa. Oh ! Admirável mundo novo onde tudo é possível e nada nos faz satisfeitos! Onde tudo acontece e nada nos importa ! Onde todos são alegres e ninguém conhece a felicidade ! Enjoy it !
A unificação da Alemanha, a união da Baviera, da Saxônia, de Weimar e de todos os seus estados foi feita sob a liderança de Bismarck e com dinheiro da indústria pesada. A Alemanha nasce para ser líder, nasce em modelo Prussiano, e a Prussia, estado de competição, de disciplina, estado militar, sufoca e mata as outras Alemanhas, nações que nós jamais conhecemos. ( E sob sua influência a alegre Viena e a sensual Praga se afogaram em burocracia e preconceito. ) O estado Prussiano só poderia desembocar em duas guerras e numa esquizofrênica divisão.
Falo isso para dizer que Brasília é a Prússia do Brasil. Nestes dias de Sarney e Renan, Lula e Collor, vejo na tv aquele corredor que percorre o congresso nacional. É um túnel arredondado, feio, labiríntico, Stalinista. Lembra um bunker, um metrô, um esconderijo anti-povo. Herr Niemeyer criou uma pequena Prussia árida, onde todo seu concreto lembra opressão, retidão de uma marcha rumo ao futuro, a um futuro prussiano. Nada em Brasilya lembra o Brasil. Nada de carioca, de baiano, de mineiro ou de bandeirante. Nada. Brazilya tem a retidão da ordem unida, do uniforme, do inumano, do nada absoluto. E o país, pobre Weimar, se entristece nesse bunker subterrâneo. O Brasil morreu. Hoje é Brazilya.
Gosto de me dizer iluminista. E sou. Foram eles que me forjaram. Mas ao matarem a ingenuidade da religião e colocarem a razão em seu lugar, jamais imaginaram que a razão se mostrasse tão incompetente para dar ao homem aquilo que a religião sempre deu : paz.
Acreditaram na ciência e apesar de se chamarem pessimistas em tudo, foram de cego otimismo em sua fé científica. Pensaram que a razão fosse naturalmente justa, pacífica e democrática. A Alemanha é o estado da razão. Brazilya é uma cidade construida racionalmente. Ela nada tem de barroca, romantica ou rococó. Assim como a Alemanha matou a romantica Munique e a gótica Mannheim.
Hoje sabemos que o desencanto da razão começa com a crueldade da revolução industrial, passa pela primeira guerra com seus aviões e bombas científicas ( e gases tóxicos ) e deságua nos campos de concentração onde se matava racionalmente e se planejava um mundo de super-homens forjados por ciência e filosofia. O auge da criação científica ainda é a bomba atômica. Como confiar na ciência ?
Você consegue, com sinceridade, me dizer que confia na engenharia genética ? Será que não veremos a extinção de seres humanos indesejados ? O fim de pessoas com " defeito " e portanto, o fim da diversidade ? Quem definirá o que é normal, saudável, padrão ? Realmente vale a pena não ter mais nada de natural em troca de brinquedinhos eletrônicos e maquininhas engraçadinhas ? Vencemos a varíola. Adquirimos medo como nunca houve, e doses cavalares de tédio. Valeu a pena transformar todo campo em caminho asfaltado e toda cidade em estacionamento ? O que lhe é mais agradável : o berço onde você abriu os olhos, com suas cores e tecidos macios, ou o moderno prédio da nova estação do metrô, com seu prussiano concreto e o árido frio de toda estação ?
Nós vimos a mais racional forma de administrar uma nação ruir ( o comunismo ). E assistimos coisas anti-racionais como terrorismo, racismo e vicios vicejarem. Porque ? Onde aconteceu o erro ? O iluminismo nos livrou da inquisição, da bruxaria e do charlatanismo, mas abriu caminho para o medo, o tédio e o absurdo. Pois o mundo, basta saber algo de história para perceber, nunca esteve tão apavorado ( daí o consumismo, as distrações, os desesperos ), tão entediado ( voce adquire hoje aquilo que amanhã não te interessa mais ) e tão confuso ( você faz um imenso esforço para não pensar, não sentir e ser sempre jovem. Pra quê ? ). Assustado por saber, pela primeira vez, que toda pergunta respondida traz mais duas sem resposta; entediado por já ter visto tudo na tela da tv aos 11 anos de idade, por se tornar competitivo aos 7 e começar a temer o tempo aos 13. Entediado por não encontrar mistério em nada, pois tudo foi dissecado pelo cientista, por não conseguir criar nada de seu, pois tudo que seria seu tem um preço, e entediado por ver tudo numa vitrine e imaginar que nada mais existe fora dessa vitrine. Confuso por não enxergar a armadilha. Condicionado a não perceber mais as grades que o cercam. Amando o zoo onde foi posto. Pensando que viver é comer e ter , e que o mundo e a história se restringem a sua jaula e seu pátio de exercícios.
Sabemos que a razão errou. Que este computador onde escrevo é quase nada. Que meu celular não me fez melhor ou mais feliz. Que o novo Mercedez me dará a satisfação de ter um novo Mercedez, e que todas as outras insatisfações continuarão insatisfeitas. Que todo desenvolvimento científico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano. Que continuamos matando, roubando, mentindo, destruindo, e pior, nos iludindo. Mais que antes. E que ainda tememos a morte, o tempo e a solidão.
Mas o irônico é que somos a razão. Não podemos mais ser de outro modo. Indagaremos sempre, desejaremos sempre, estaremos insatisfeitos eternamente. Ingenuidade só se perde uma vez, e quando a perdemos, definitivamente em 1945, nos jogamos à ciência, único consolo ainda possível. Sem perceber que o defloramento de 1945 fora causado pela própria ciência.
Jamais voltaremos a valsar em Viena. A cidade é hoje antro de racismo hipócrita. Jamais teremos uma capital entre sambistas e igrejas barrocas. O Rio se tornou capital da futilidade hedonista. Jamais escutaremos Beethoven como nosso igual. O mestre era um homem natural, hoje eu sou um pré-coisa. Oh ! Admirável mundo novo onde tudo é possível e nada nos faz satisfeitos! Onde tudo acontece e nada nos importa ! Onde todos são alegres e ninguém conhece a felicidade ! Enjoy it !
WYLER/GROUCHO MARX/AVANT-GARDE/RAY
INFÂMIA de William Wyler com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine
Numa escola feminina, aluna acusa as sócias da tal escola, de terem um caso gay. Está feita a tragédia. Filme levado com bela discrição e grandes atuações. Mais um acerto desse venerável Wyler, o mais premiado diretor do cinema americano. Voce se envolve, torce e fica chocado com seu final absolutamente pessimista. nota 7.
ANDREI RUBLEV de Andrei Tarkovski
Não consigo assistir Tarkovski. Percebo sua originalidade, sua nobreza e seu realismo. Mas me irrito com sua lentidão, me perco em seus devaneios, adormeço com sua frieza. Nota 1.
ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA de Roberto Farias com Roberto Carlos, Reginaldo Farias, José Lewgoy
Há uma cena em que vamos dentro de um helicóptero em vôo rasante pelo Rio de 1967. É de doer : que bela cidade ela foi ! Quase sem favelas, muito verde e um trânsito ainda civilizado. Quanto ao filme : é um Help tupiniquim. Um Roberto, muito jovem e cheio de alegre ingenuidade, vive aventuras moderninhas em ritmo de nouvelle vague. Suas roupas são fascinantes e Reginaldo está hilário como o diretor de cinema doido. A trilha é uma brasa, mora! Tem desde "Eu sou terrível " até "Negro Gato". Roberto era um tipo de bom menino com roupas bacanas. Funciona, o filme é o retrato de um país que não existe mais : jovem e inocente. nota 6.
APARAJITO de Satijajit Ray
Segunda parte da vida de Apu. Ray, com dinheiro de amigos e de imóveis, criou o cinema indiano realista. As 3 partes da vida de Apu dignificam o cinema. Aqui vemos Apu adolescente, indo para a cidade grande e se tornando bom aluno. Mas o foco é sua relação com a mãe : dolorosa. O filme é menos emocionante que "O mundo de Apu", mas ainda assim é fascinante e hipnótico. Ray foi um grande poeta e suas histórias têm o encanto de fábulas. Nota 8.
UTAMARO E SUAS CINCO MULHERES de Kenji Mizoguchi
Dos três gigantes do cinema japonês, Mizoguchi é o mais nipônico. É fascinado por sexo e morte, e tudo em sua obra exibe cuidado plástico e tradição. Porém ele se perde neste confuso e inconvincente drama sobre erotismo, arte e mentira. O roteiro é mal desenvolvido e a ambição está acima da realisação. O mais fraco Mizoguchi. Nota 4.
A AVENTURA de Michelangelo Antonioni com Monica Vitti e Lea Massari
Excelente filme para quem sofre de insônia. Após 30 minutos é impossível não se adormecer. O filme tem o pior dos defeitos : fala do tédio da burguesia. E nos entedia. Nota Zero.
OS 4 PRIMEIROS FILMES DOS IRMÃOS MARX : THE COCOANUTS, OS GÊNIOS DA PELOTA, OS 4 BATUTAS e OS GALHOFEIROS. Diretores : Victor Hermann, Norman Z. McLeod e Robert Florey. Com Groucho, Harpo, Chico e Zeppo. Mais Lilian Roth e Margaret Dumont.
Uma das alegrias da vida é poder assistir os filmes dos irmãos Marx. Não é cinema, como WC Fields não o é. É mais que isso. Assistimos seus filmes como se neles encontrássemos um segredo : são uma religião. Por isso que com eles não há meio termo, ou se ama, ou nada se entende. Não existe o mais ou menos, não existe a meia fé. E minha fé é grouchoharpochicoana. Graças ao vaudeville. Seus filmes não têm história, não têm evolução. Assistimos para comungar com sua felicidade. Pois o mistério dos irmãos é esse, eles exibem uma profunda felicidade. Amar os irmãos Marx não é sinal de inteligência ou de bom gosto. É sinal de saudável espirito brincalhão. São um topo inatingível de descompromisso com tudo, de criatividade anti- correta, de brilho hedonista. Groucho fala o que pensa e o que ninguém entende, Harpo anda pela vida como um cachorro no cio e Chico é o mal-humor feliz. E nós, crentes na Marxilandia do espírito anarquista, sorrimos gratificados com o fato do cinema nos ter dado tal clarividencia. Para o mundo dos Irmãos, a vida é uma bosta e para viver bem é preciso nada se levar a sério. Os quatro primeiros filmes, da fase da liberal Paramount, são meus favoritos por serem os mais toscos. Na Metro eles ficariam um pouco presos. E palmas para Margaret Dumont, a vítima perfeita de Groucho, e atenção para Lilian Roth, símbolo belíssimo e sapeca das estrelinhas dos anos 30. Nota Um milhão quatrocentos e setenta e oito mil e sete.
A ARCA RUSSA de Alexander Sokurov
Crítica abaixo. Dizer mais o que ? Um diamante, uma porcelana de Sévres, um quarteto de Haydn, um conto de Voltaire. O filme brilha e é uma obra-prima dos anos 90. Nota Dez.
ELMER GANTRY de Richard Brooks com Burt Lancaster e Jean Simmons
O filme ataca um dos calcanhares de Aquiles da América : a religião. Deu o Oscar de ator à Burt e ele brilha como um malandro que se torna pastor. Nos irritamos com sua falsidade, mas ao mesmo tempo, nos apaixonamos pelo seu carisma. Burt lhe dá várias facetas, o que faz de seu desempenho exercício fascinante. Mas a direção de Brooks é crispada, séria demais, veemente em excesso, pesada. O prazer em se ver o filme se esvai na direção dura de Brooks. Nota 5.
HANGMAN'S HOUSE de John Ford
Filme pseudo irlandês, da fase muda de Ford. Tem belo trabalho de fotografia e se assiste com belo interesse. Mas está longe das obras-primas do mestre maior. Nota 6.
LES AMANTS de Louis Malle com Jeanne Moreau e Alain Cuny.
E Malle continua sua obra sobre a culpa. A não-culpa, no caso. Uma chatíssima burguesa entediada tem um amante. Diverte-se com ele como quem compra um novo casaco. Mas o marido, esteta chato, convida o amante e a amiga da esposa a passarem um fim de semana na mansão do casal. No caminho a esposa infiel conhece jovem e arruma um novo amante. Nada de culpa e nada de drama. Malle é um grande diretor : mostra o tédio e jamais nos entedia. O filme flui lindamente e tem uma fotografia em p/b brilhante ( de Henri Decae ). Moreau, atriz que não me agrada, está aqui sensual e muito bem. O filme arrisca em seu final : o apaixonar-se dos dois tem todos os hiper clichês de uma nova paixão. Sentimos enjôo. Mas funciona, vemos toda a tolice do se apaixonar por tédio. As cenas são plasticamente belíssimas, mas o que eles dizem é chocantemente tolo. O filme se faz comédia estratosférica. Malle sabia tudo. Nota 7.
PAL JOEY de George Sidney com Frank Sinatra, Kim Novak e Rita Hayworth
O azar de Kim Novak foi seu contrato com a Columbia. Ela era muito mais do que o studio acreditava. De qualquer modo ela esteve em dois anos em Vertigo e em Pic Nic. E neste Pal Joey, onde ela rouba o filme. Linda e vulnerável. Sinatra é um cantorzinho mulherengo fracassado, que tem sua grande chance ao conquistar viúva rica ( Rita muito abatida ). O filme tem na trilha "My funny Valentine", "The lady is a trammp" e "Bewitch", todas de Rogers e Hart. Precisa mais ? São três das maiores canções já escritas. Mas o filme sofre de um roteiro pouco inspirado, bobo. Melhora quando Kim aparece mais e Sinatra se humaniza. Em tempo : no filme Frank conquista toda mulher que deseja. Sua teoria é : trate a mulher sempre como ela não espera. A bonita como se fosse feia, a feia como bonita; a deusa como vagabunda, a vagabunda como deusa; a séria como palhaça e a palhaça com seriedade. Isso é puro Sinatra ! Nota 6.
A PARTIDA de Yojiro Takita
Fuja deste chatíssimo exemplo de filme vazio e sem porque. Deve agradar ao tipo de público bonzinho. Mas é exemplo do vazio absoluto de idéias e de projetos do atual cinema japonês. Chato pacas!!!!! nota zero.
A FRONTEIRA DA ALVORADA de Philippe Garrel com Louis Garrel e Laura Smet
O diretor, séculos atrás, foi namorado de Nico. Este filme recorda isso. Tem os piores tiques moderninhos dos anos 70 levados aos xoxos anos 2000. O filme é uma imensa crise existencial que só pode interessar a quem a vive e nunca a nós que a assistimos. Exemplo de filme masoquista. nota zero.
AVANT-GARDE
Houve um momento na história do cinema em que ele precisou se definir. Ou se assumia literatura, ou se fazia arte plástica. Venceu a literatura, e o cinema que hoje conhecemos tem história. Tem enredo, personagens e narrativa pessoal. Esta coleção de dvds, mostra a vertente derrotada, a turma que via no cinema algo próximo a fotografia e a pintura, imagens, puras imagens em movimento. Se alí fosse percebido algum sentido literário seria por mero acidente. ( Aliás, uma pintura pode contar uma história. Mas não é o principal. O que define a pintura é sua realidade como imagem, como puro visual. E isso lhe justifica, lhe basta. )
O que vemos nestes videos são curtas de artistas que filmaram imagens em movimento. Alguns são completamente aleatórios, outros possuem enredo, mas todos têm o fascínio da imagem solta, livre, sensual. Se os video-clips tivessem alma seriam assim. ( E a gente nota que todo diretor de clips assistiu e estudou estes filmes ! ). Que filmes são estes ?
Man Ray é o que mais me tocou. São quatro curtas desse irriquieto fotógrafo americano, que viveu a boemia francesa como poucos. A ESTRELA DO MAR é uma das maiores obra-primas que já assisti. São cenas de um prazer imenso, de absurda sensualidade, onde toda imagem é uma nova surpresa. Mas os outros três mantém o mesmo nivel : maravilhosamente surreal. Mas há mais. Hans Richter com cenas de força e de ritmo vertiginoso, Charles Cheeler e suas tomadas de Manhattan baseadas em Whitman, BALLET MECANIQUE de Léger, famosíssimo curta que merece a fama que tem, há ainda a obra-prima de Germaine Dullac LE COQUILLE ET LE CLERGYMAN, filme encantador como sonho e como viagem de ópio, BRUMES D'AUTONNE de Dimitri Kirsanoff, com imagens de melancolia obsedante. E esse burlesco CHATEAU DE DÉ de Man Ray, que é um monumento ao nada. Todos são fantásticos, como continentes perdidos, um mundo cinematográfico abandonado, porém é mundo vivo, moderno, instigante e transgressor. Conhecer estes filmes é ver aquilo que esta arte poderia ter sido, aquilo que em seu inconsciente ela quer ser : livre. Impossível dar nota a tal monumento. Assita e se surpreenda.
Numa escola feminina, aluna acusa as sócias da tal escola, de terem um caso gay. Está feita a tragédia. Filme levado com bela discrição e grandes atuações. Mais um acerto desse venerável Wyler, o mais premiado diretor do cinema americano. Voce se envolve, torce e fica chocado com seu final absolutamente pessimista. nota 7.
ANDREI RUBLEV de Andrei Tarkovski
Não consigo assistir Tarkovski. Percebo sua originalidade, sua nobreza e seu realismo. Mas me irrito com sua lentidão, me perco em seus devaneios, adormeço com sua frieza. Nota 1.
ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA de Roberto Farias com Roberto Carlos, Reginaldo Farias, José Lewgoy
Há uma cena em que vamos dentro de um helicóptero em vôo rasante pelo Rio de 1967. É de doer : que bela cidade ela foi ! Quase sem favelas, muito verde e um trânsito ainda civilizado. Quanto ao filme : é um Help tupiniquim. Um Roberto, muito jovem e cheio de alegre ingenuidade, vive aventuras moderninhas em ritmo de nouvelle vague. Suas roupas são fascinantes e Reginaldo está hilário como o diretor de cinema doido. A trilha é uma brasa, mora! Tem desde "Eu sou terrível " até "Negro Gato". Roberto era um tipo de bom menino com roupas bacanas. Funciona, o filme é o retrato de um país que não existe mais : jovem e inocente. nota 6.
APARAJITO de Satijajit Ray
Segunda parte da vida de Apu. Ray, com dinheiro de amigos e de imóveis, criou o cinema indiano realista. As 3 partes da vida de Apu dignificam o cinema. Aqui vemos Apu adolescente, indo para a cidade grande e se tornando bom aluno. Mas o foco é sua relação com a mãe : dolorosa. O filme é menos emocionante que "O mundo de Apu", mas ainda assim é fascinante e hipnótico. Ray foi um grande poeta e suas histórias têm o encanto de fábulas. Nota 8.
UTAMARO E SUAS CINCO MULHERES de Kenji Mizoguchi
Dos três gigantes do cinema japonês, Mizoguchi é o mais nipônico. É fascinado por sexo e morte, e tudo em sua obra exibe cuidado plástico e tradição. Porém ele se perde neste confuso e inconvincente drama sobre erotismo, arte e mentira. O roteiro é mal desenvolvido e a ambição está acima da realisação. O mais fraco Mizoguchi. Nota 4.
A AVENTURA de Michelangelo Antonioni com Monica Vitti e Lea Massari
Excelente filme para quem sofre de insônia. Após 30 minutos é impossível não se adormecer. O filme tem o pior dos defeitos : fala do tédio da burguesia. E nos entedia. Nota Zero.
OS 4 PRIMEIROS FILMES DOS IRMÃOS MARX : THE COCOANUTS, OS GÊNIOS DA PELOTA, OS 4 BATUTAS e OS GALHOFEIROS. Diretores : Victor Hermann, Norman Z. McLeod e Robert Florey. Com Groucho, Harpo, Chico e Zeppo. Mais Lilian Roth e Margaret Dumont.
Uma das alegrias da vida é poder assistir os filmes dos irmãos Marx. Não é cinema, como WC Fields não o é. É mais que isso. Assistimos seus filmes como se neles encontrássemos um segredo : são uma religião. Por isso que com eles não há meio termo, ou se ama, ou nada se entende. Não existe o mais ou menos, não existe a meia fé. E minha fé é grouchoharpochicoana. Graças ao vaudeville. Seus filmes não têm história, não têm evolução. Assistimos para comungar com sua felicidade. Pois o mistério dos irmãos é esse, eles exibem uma profunda felicidade. Amar os irmãos Marx não é sinal de inteligência ou de bom gosto. É sinal de saudável espirito brincalhão. São um topo inatingível de descompromisso com tudo, de criatividade anti- correta, de brilho hedonista. Groucho fala o que pensa e o que ninguém entende, Harpo anda pela vida como um cachorro no cio e Chico é o mal-humor feliz. E nós, crentes na Marxilandia do espírito anarquista, sorrimos gratificados com o fato do cinema nos ter dado tal clarividencia. Para o mundo dos Irmãos, a vida é uma bosta e para viver bem é preciso nada se levar a sério. Os quatro primeiros filmes, da fase da liberal Paramount, são meus favoritos por serem os mais toscos. Na Metro eles ficariam um pouco presos. E palmas para Margaret Dumont, a vítima perfeita de Groucho, e atenção para Lilian Roth, símbolo belíssimo e sapeca das estrelinhas dos anos 30. Nota Um milhão quatrocentos e setenta e oito mil e sete.
A ARCA RUSSA de Alexander Sokurov
Crítica abaixo. Dizer mais o que ? Um diamante, uma porcelana de Sévres, um quarteto de Haydn, um conto de Voltaire. O filme brilha e é uma obra-prima dos anos 90. Nota Dez.
ELMER GANTRY de Richard Brooks com Burt Lancaster e Jean Simmons
O filme ataca um dos calcanhares de Aquiles da América : a religião. Deu o Oscar de ator à Burt e ele brilha como um malandro que se torna pastor. Nos irritamos com sua falsidade, mas ao mesmo tempo, nos apaixonamos pelo seu carisma. Burt lhe dá várias facetas, o que faz de seu desempenho exercício fascinante. Mas a direção de Brooks é crispada, séria demais, veemente em excesso, pesada. O prazer em se ver o filme se esvai na direção dura de Brooks. Nota 5.
HANGMAN'S HOUSE de John Ford
Filme pseudo irlandês, da fase muda de Ford. Tem belo trabalho de fotografia e se assiste com belo interesse. Mas está longe das obras-primas do mestre maior. Nota 6.
LES AMANTS de Louis Malle com Jeanne Moreau e Alain Cuny.
E Malle continua sua obra sobre a culpa. A não-culpa, no caso. Uma chatíssima burguesa entediada tem um amante. Diverte-se com ele como quem compra um novo casaco. Mas o marido, esteta chato, convida o amante e a amiga da esposa a passarem um fim de semana na mansão do casal. No caminho a esposa infiel conhece jovem e arruma um novo amante. Nada de culpa e nada de drama. Malle é um grande diretor : mostra o tédio e jamais nos entedia. O filme flui lindamente e tem uma fotografia em p/b brilhante ( de Henri Decae ). Moreau, atriz que não me agrada, está aqui sensual e muito bem. O filme arrisca em seu final : o apaixonar-se dos dois tem todos os hiper clichês de uma nova paixão. Sentimos enjôo. Mas funciona, vemos toda a tolice do se apaixonar por tédio. As cenas são plasticamente belíssimas, mas o que eles dizem é chocantemente tolo. O filme se faz comédia estratosférica. Malle sabia tudo. Nota 7.
PAL JOEY de George Sidney com Frank Sinatra, Kim Novak e Rita Hayworth
O azar de Kim Novak foi seu contrato com a Columbia. Ela era muito mais do que o studio acreditava. De qualquer modo ela esteve em dois anos em Vertigo e em Pic Nic. E neste Pal Joey, onde ela rouba o filme. Linda e vulnerável. Sinatra é um cantorzinho mulherengo fracassado, que tem sua grande chance ao conquistar viúva rica ( Rita muito abatida ). O filme tem na trilha "My funny Valentine", "The lady is a trammp" e "Bewitch", todas de Rogers e Hart. Precisa mais ? São três das maiores canções já escritas. Mas o filme sofre de um roteiro pouco inspirado, bobo. Melhora quando Kim aparece mais e Sinatra se humaniza. Em tempo : no filme Frank conquista toda mulher que deseja. Sua teoria é : trate a mulher sempre como ela não espera. A bonita como se fosse feia, a feia como bonita; a deusa como vagabunda, a vagabunda como deusa; a séria como palhaça e a palhaça com seriedade. Isso é puro Sinatra ! Nota 6.
A PARTIDA de Yojiro Takita
Fuja deste chatíssimo exemplo de filme vazio e sem porque. Deve agradar ao tipo de público bonzinho. Mas é exemplo do vazio absoluto de idéias e de projetos do atual cinema japonês. Chato pacas!!!!! nota zero.
A FRONTEIRA DA ALVORADA de Philippe Garrel com Louis Garrel e Laura Smet
O diretor, séculos atrás, foi namorado de Nico. Este filme recorda isso. Tem os piores tiques moderninhos dos anos 70 levados aos xoxos anos 2000. O filme é uma imensa crise existencial que só pode interessar a quem a vive e nunca a nós que a assistimos. Exemplo de filme masoquista. nota zero.
AVANT-GARDE
Houve um momento na história do cinema em que ele precisou se definir. Ou se assumia literatura, ou se fazia arte plástica. Venceu a literatura, e o cinema que hoje conhecemos tem história. Tem enredo, personagens e narrativa pessoal. Esta coleção de dvds, mostra a vertente derrotada, a turma que via no cinema algo próximo a fotografia e a pintura, imagens, puras imagens em movimento. Se alí fosse percebido algum sentido literário seria por mero acidente. ( Aliás, uma pintura pode contar uma história. Mas não é o principal. O que define a pintura é sua realidade como imagem, como puro visual. E isso lhe justifica, lhe basta. )
O que vemos nestes videos são curtas de artistas que filmaram imagens em movimento. Alguns são completamente aleatórios, outros possuem enredo, mas todos têm o fascínio da imagem solta, livre, sensual. Se os video-clips tivessem alma seriam assim. ( E a gente nota que todo diretor de clips assistiu e estudou estes filmes ! ). Que filmes são estes ?
Man Ray é o que mais me tocou. São quatro curtas desse irriquieto fotógrafo americano, que viveu a boemia francesa como poucos. A ESTRELA DO MAR é uma das maiores obra-primas que já assisti. São cenas de um prazer imenso, de absurda sensualidade, onde toda imagem é uma nova surpresa. Mas os outros três mantém o mesmo nivel : maravilhosamente surreal. Mas há mais. Hans Richter com cenas de força e de ritmo vertiginoso, Charles Cheeler e suas tomadas de Manhattan baseadas em Whitman, BALLET MECANIQUE de Léger, famosíssimo curta que merece a fama que tem, há ainda a obra-prima de Germaine Dullac LE COQUILLE ET LE CLERGYMAN, filme encantador como sonho e como viagem de ópio, BRUMES D'AUTONNE de Dimitri Kirsanoff, com imagens de melancolia obsedante. E esse burlesco CHATEAU DE DÉ de Man Ray, que é um monumento ao nada. Todos são fantásticos, como continentes perdidos, um mundo cinematográfico abandonado, porém é mundo vivo, moderno, instigante e transgressor. Conhecer estes filmes é ver aquilo que esta arte poderia ter sido, aquilo que em seu inconsciente ela quer ser : livre. Impossível dar nota a tal monumento. Assita e se surpreenda.
A ARCA RUSSA- ALEXANDER SOKUROV
Impressionante. Este filme com nenhum outro se parece. Consegue um milagre feito de técnica e de inspiração : ter quase duas horas de duração e não precisar de um só corte !
Sim, o filme é feito em uma única tomada ! A câmera é ligada e tudo é filmado em tempo real e contínuo. Todos os atores têm de estar no lugar certo, tudo deve funcionar ou todo o trabalho se perderá. Mas, o que faz o encanto deste lindo filme, é que isso, que poderia ser mero exibicionismo, existe em função da filosofia da obra : ao falar sobre St. Petersburgo e sobre o apogeu da história russa e européia, o filme precisa deslizar, como se fosse música, como se pudesse valsar.
A câmera são os olhos de alguém de 1992. Ele acorda ou morre e vaga por corredores. Não sabe onde está. Pessoas fantasiadas passam por ele e um francês da era Napoleônica lhe serve de guia. Os dois conversam e passeiam pelo museu Hermitage, em Petersburgo. Nesse passeio, vemos os salões do museu, suas obras-primas e personagens da história russa, que passam por nós como fantasmas. O russo, desperto da vida, ou desperto de um pesadelo ? Segue o francês, racionalista snob, que comenta sobre os altos brilhos da europa e os brilhos, poucos, da vida russa. E nós, sem perceber, vamos juntos, meio hipnotizados, meio fascinados, um pouco perdidos, um pouco assustados.
Se voce souber alguma coisa de história seu prazer será imenso. Se nada souber, sua fascinação será garantida pelo clima onírico do filme e pela gigantesca beleza das imagens. Raras vezes um filme foi mais belo. E raras vezes foi mais melancólico. Explico.
Tudo aquilo que vemos, e mais que vemos testemunhamos, é o apogeu irrecuperável de um tipo de civilização. A era da aristocracia. Um mundo em que tudo era dirigido para o que fosse elegante- racional- equilibrado. É o apogeu e o fim de um mundo dirigido para o melhor e não para o senso comum. O que define essa civilização é o excepcional, jamais o geral. A revolução francesa matou esse mundo. Para sempre.
O filme mostra a corte de Catarina e de Pedro. A tentativa de Petersburgo em se tornar Paris. A arquitetura é desconcertante. Tanta beleza chega a alucinar. Nossa era de bancos e hotéis é uma favela de concreto e de vidro vulgar, se comparada a época do mármore, do cristal e da prata. O centro da cidade era a igreja e o palácio, hoje é a finança- impessoal como um banqueiro. Mas para Sokurov a coisa é pior. A beleza de Petersburgo é obscurecida não só pelo final da era aristocrática. Vem a guerra. As várias guerras, o milhão de mortos na segunda guerra ( meu Deus ! Um milhão de mortos em uma batalha !!!!! ). E vem a escuridão da ditadura bolchevique. Em que o passado é apagado ( me lembro da frase de Kundera : a memória é a luta contra a ditadura. O poder é esquecimento.... ). Petersburgo muda de nome, muda de espírito, é aviltada.
Em 1992, um russo desperta. Tenta unir o fio da história, recordar e refazer. Impossível. A Rússia é o que ?
Para mim, o filme chega a doer. Ele mostra o máximo de "eden", de paraíso, que consigo conceber. ( Como o final do 2001 de Kubrick ? ). O século XVIII é o auge da nossa jornada, o auge da filosofia, da música, da literatura, da pintura, do salto da ciência. Topo da polidez, do controle sobre a paixão, do riso, do flerte. Tem o negror da miséria também. Mas é aqui que o povo se ergue para subverter essa tirania. O século é o século da virada, do pleno poder e da completa decadência. O filme mostra isso em imagens sem cortes e nos dá, ao final, um baile que nos recorda "O Leopardo", a obra-prima de Visconti sobre a beleza profanada. Nesse baile, onde cada gesto e todo olhar é definição de filosofia, o europeu-cicerone se solta e se diverte. E percebemos, nós, seres da taba deste século desumano, que toda aquela rigidez formal; liberta, não oprime. Nos toques, passos e modos da mazurca, observamos a etiqueta do contato social, da união de casais, da genealogia do amor. Os modos são dados para que voce se guie por eles e seja livre em seus limites. O campo de ação é delimitado, mas o segredo lhe é revelado. Hoje somos livres. Sem uma estrada nos perdemos na falta de direção. Nossa dança entre sexos é feita de embriaguês e de zumbis pulando para o escuro. Voltamos a Neanderthal.
Quando o russo e o francês se separam ( quem seria ele ? Stendhal ? ). .. o russo diz : "- Adeus Europa ! " Essa frase toca nossa medula. Porque ? Ora, falemos a verdade, fazem sessenta anos que a Europa respira por aparelhos. Sua morte começa com a primeira guerra e é total após 1939. Tudo o que ela nos tem a oferecer é passado. Restos de gênios mortos, ruínas de São Petersburgo, testemunhos de nobres europeus extintos. A Europa vive de fútil lembranças de luxos superficiais que envergonhariam o verdadeiro europeu : aquele que criou o que entendemos por civilização.
Este filme é inesgotável.
Sim, o filme é feito em uma única tomada ! A câmera é ligada e tudo é filmado em tempo real e contínuo. Todos os atores têm de estar no lugar certo, tudo deve funcionar ou todo o trabalho se perderá. Mas, o que faz o encanto deste lindo filme, é que isso, que poderia ser mero exibicionismo, existe em função da filosofia da obra : ao falar sobre St. Petersburgo e sobre o apogeu da história russa e européia, o filme precisa deslizar, como se fosse música, como se pudesse valsar.
A câmera são os olhos de alguém de 1992. Ele acorda ou morre e vaga por corredores. Não sabe onde está. Pessoas fantasiadas passam por ele e um francês da era Napoleônica lhe serve de guia. Os dois conversam e passeiam pelo museu Hermitage, em Petersburgo. Nesse passeio, vemos os salões do museu, suas obras-primas e personagens da história russa, que passam por nós como fantasmas. O russo, desperto da vida, ou desperto de um pesadelo ? Segue o francês, racionalista snob, que comenta sobre os altos brilhos da europa e os brilhos, poucos, da vida russa. E nós, sem perceber, vamos juntos, meio hipnotizados, meio fascinados, um pouco perdidos, um pouco assustados.
Se voce souber alguma coisa de história seu prazer será imenso. Se nada souber, sua fascinação será garantida pelo clima onírico do filme e pela gigantesca beleza das imagens. Raras vezes um filme foi mais belo. E raras vezes foi mais melancólico. Explico.
Tudo aquilo que vemos, e mais que vemos testemunhamos, é o apogeu irrecuperável de um tipo de civilização. A era da aristocracia. Um mundo em que tudo era dirigido para o que fosse elegante- racional- equilibrado. É o apogeu e o fim de um mundo dirigido para o melhor e não para o senso comum. O que define essa civilização é o excepcional, jamais o geral. A revolução francesa matou esse mundo. Para sempre.
O filme mostra a corte de Catarina e de Pedro. A tentativa de Petersburgo em se tornar Paris. A arquitetura é desconcertante. Tanta beleza chega a alucinar. Nossa era de bancos e hotéis é uma favela de concreto e de vidro vulgar, se comparada a época do mármore, do cristal e da prata. O centro da cidade era a igreja e o palácio, hoje é a finança- impessoal como um banqueiro. Mas para Sokurov a coisa é pior. A beleza de Petersburgo é obscurecida não só pelo final da era aristocrática. Vem a guerra. As várias guerras, o milhão de mortos na segunda guerra ( meu Deus ! Um milhão de mortos em uma batalha !!!!! ). E vem a escuridão da ditadura bolchevique. Em que o passado é apagado ( me lembro da frase de Kundera : a memória é a luta contra a ditadura. O poder é esquecimento.... ). Petersburgo muda de nome, muda de espírito, é aviltada.
Em 1992, um russo desperta. Tenta unir o fio da história, recordar e refazer. Impossível. A Rússia é o que ?
Para mim, o filme chega a doer. Ele mostra o máximo de "eden", de paraíso, que consigo conceber. ( Como o final do 2001 de Kubrick ? ). O século XVIII é o auge da nossa jornada, o auge da filosofia, da música, da literatura, da pintura, do salto da ciência. Topo da polidez, do controle sobre a paixão, do riso, do flerte. Tem o negror da miséria também. Mas é aqui que o povo se ergue para subverter essa tirania. O século é o século da virada, do pleno poder e da completa decadência. O filme mostra isso em imagens sem cortes e nos dá, ao final, um baile que nos recorda "O Leopardo", a obra-prima de Visconti sobre a beleza profanada. Nesse baile, onde cada gesto e todo olhar é definição de filosofia, o europeu-cicerone se solta e se diverte. E percebemos, nós, seres da taba deste século desumano, que toda aquela rigidez formal; liberta, não oprime. Nos toques, passos e modos da mazurca, observamos a etiqueta do contato social, da união de casais, da genealogia do amor. Os modos são dados para que voce se guie por eles e seja livre em seus limites. O campo de ação é delimitado, mas o segredo lhe é revelado. Hoje somos livres. Sem uma estrada nos perdemos na falta de direção. Nossa dança entre sexos é feita de embriaguês e de zumbis pulando para o escuro. Voltamos a Neanderthal.
Quando o russo e o francês se separam ( quem seria ele ? Stendhal ? ). .. o russo diz : "- Adeus Europa ! " Essa frase toca nossa medula. Porque ? Ora, falemos a verdade, fazem sessenta anos que a Europa respira por aparelhos. Sua morte começa com a primeira guerra e é total após 1939. Tudo o que ela nos tem a oferecer é passado. Restos de gênios mortos, ruínas de São Petersburgo, testemunhos de nobres europeus extintos. A Europa vive de fútil lembranças de luxos superficiais que envergonhariam o verdadeiro europeu : aquele que criou o que entendemos por civilização.
Este filme é inesgotável.
UMA NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL- OTTO MARIA CARPEAUX
De Caepeaux o que se pode dizer ? Foi um emigrante do intelectualmente riquíssimo leste europeu, se tornando no Brasil um dos melhores jornalistas da melhor fase de nosso jornalismo cultural. Publicou uma completa "História da Literatura Mundial" em 3 volumes e este livro recém relido. E que é fascinante !
Ele não tem pudor em se derramar em elogios àquilo que adora. Otto toma partido e se compromete todo o tempo. Fala abertamente daquilo que para ele está morto e daquilo que é eterno enquanto o homem for digno de atenção. Sua cultura é completa. Situa cada mestre em seu momento histórico, dando uma pincelada em sua vida e em seu meio social. Faz aquilo que todo grande crítico deve fazer : nos faz ansiar por escutar aquilo que é descrito. É impossível ler seu texto sobre Haydn sem correr para o escutar.
Carpeaux avisa no inìcio que a obra é sobre a música do ocidente. Portanto não há nada sobre India ou Israel. E que é sobre música viva. Não se fala sobre Grécia ou Roma, e mesmo a música medieval se inicia com o canto gregoriano. Otto nos faz conhecer a música da renascença, o barroco, a época da razão e o excesso do romantismo. Chega ao século vinte, com os modernismos suicidas e a música eletrônica e eletro-acústica.
Bach é chamado de mestre da música pura, a música que não fala de nenhuma imagem ou de nenhuma narrativa. É música abstrata, espiritual. Bach, um homem do tempo em que ser músico não era ser "artista", era antes de tudo, ser um artesão. Compunha-se por um fim e ao se tocar a música ela era descartada. Mozart é o eterno adolescente ? Não. Ele foi antes de tudo um boêmio, um bruxo, um quase inacreditável bem dotado, que compunha com imensa facilidade. E Beethoven, centro de tudo aquilo que conhecemos por música ( inclusive a popular ). É com ele que nasce a consciência da genialidade. O artista compõe o que deseja, expressa o seu ser e se apresenta para quem pagar para o assistir. Beethoven é, com Shakespeare e Michelangelo, o homem que define o máximo a que o ser pode almejar. Dentre seus fãs, gente como Tolstoi, Thomas Mann, Stendhal, Kundera, Huxley, Proust. Quer mais ou está bom ?
Mas Carpeaux não fica só nesses titãs. Haydn recebe a chama de ser o verdadeiro inventor da sinfonia. Monteverde o de ser o inventor do que conhecemos como música. Coloca-se Schumann, Schubert, Wagner, Debussy nas alturas, e se rebaixa Mendelssohn, Vivaldi e Liszt. Ele narra toda a beleza refinada da era clássica, em que os sentimentos deviam ser disfarçados, controlados, refinados. Era de Rameau, Couperin, Scarlatti. E fala de seu oposto, a era romântica, em que tudo deveria ser exposto, sentimentos e vícios, exageros. Tempo de Berlioz, Tchaikovski e Chopin. As breves bios de Liszt ( imenso sucesso, amores às dúzias, ajuda a compositores jovens, conversão a religião, abandono da vida mundana ) e de Schumann ( jornalismo cultural, casamento feliz e final no hospicio ) são maravilhosas ! Como eram intensos esses românticos !!!!
Fica a pena de que não exista nada parecido sobre a música pop. A crítica popular é sempre dogmática : se o escriba adora uma corrente ele ignora o resto. Otto é enciclopédico. Tudo ele ama e em tudo conhece seu defeito.
Mas o melhor é que ele escreve simples e escreve bem. Sua obra é feita de prazer. Escrevendo sobre a mais etérea das artes, ele compõe frases feitas de harmonia, ritmo e melodia. Um mestre.
Ele não tem pudor em se derramar em elogios àquilo que adora. Otto toma partido e se compromete todo o tempo. Fala abertamente daquilo que para ele está morto e daquilo que é eterno enquanto o homem for digno de atenção. Sua cultura é completa. Situa cada mestre em seu momento histórico, dando uma pincelada em sua vida e em seu meio social. Faz aquilo que todo grande crítico deve fazer : nos faz ansiar por escutar aquilo que é descrito. É impossível ler seu texto sobre Haydn sem correr para o escutar.
Carpeaux avisa no inìcio que a obra é sobre a música do ocidente. Portanto não há nada sobre India ou Israel. E que é sobre música viva. Não se fala sobre Grécia ou Roma, e mesmo a música medieval se inicia com o canto gregoriano. Otto nos faz conhecer a música da renascença, o barroco, a época da razão e o excesso do romantismo. Chega ao século vinte, com os modernismos suicidas e a música eletrônica e eletro-acústica.
Bach é chamado de mestre da música pura, a música que não fala de nenhuma imagem ou de nenhuma narrativa. É música abstrata, espiritual. Bach, um homem do tempo em que ser músico não era ser "artista", era antes de tudo, ser um artesão. Compunha-se por um fim e ao se tocar a música ela era descartada. Mozart é o eterno adolescente ? Não. Ele foi antes de tudo um boêmio, um bruxo, um quase inacreditável bem dotado, que compunha com imensa facilidade. E Beethoven, centro de tudo aquilo que conhecemos por música ( inclusive a popular ). É com ele que nasce a consciência da genialidade. O artista compõe o que deseja, expressa o seu ser e se apresenta para quem pagar para o assistir. Beethoven é, com Shakespeare e Michelangelo, o homem que define o máximo a que o ser pode almejar. Dentre seus fãs, gente como Tolstoi, Thomas Mann, Stendhal, Kundera, Huxley, Proust. Quer mais ou está bom ?
Mas Carpeaux não fica só nesses titãs. Haydn recebe a chama de ser o verdadeiro inventor da sinfonia. Monteverde o de ser o inventor do que conhecemos como música. Coloca-se Schumann, Schubert, Wagner, Debussy nas alturas, e se rebaixa Mendelssohn, Vivaldi e Liszt. Ele narra toda a beleza refinada da era clássica, em que os sentimentos deviam ser disfarçados, controlados, refinados. Era de Rameau, Couperin, Scarlatti. E fala de seu oposto, a era romântica, em que tudo deveria ser exposto, sentimentos e vícios, exageros. Tempo de Berlioz, Tchaikovski e Chopin. As breves bios de Liszt ( imenso sucesso, amores às dúzias, ajuda a compositores jovens, conversão a religião, abandono da vida mundana ) e de Schumann ( jornalismo cultural, casamento feliz e final no hospicio ) são maravilhosas ! Como eram intensos esses românticos !!!!
Fica a pena de que não exista nada parecido sobre a música pop. A crítica popular é sempre dogmática : se o escriba adora uma corrente ele ignora o resto. Otto é enciclopédico. Tudo ele ama e em tudo conhece seu defeito.
Mas o melhor é que ele escreve simples e escreve bem. Sua obra é feita de prazer. Escrevendo sobre a mais etérea das artes, ele compõe frases feitas de harmonia, ritmo e melodia. Um mestre.
VÁRIOS RIOS
Eu estive entre os dois rios e caminhei entre tamareiras. O som do vento nas folhas e o som da água que corria era tudo aquilo que eu queria. Vaguei no horizonte que jamais tinha um fim e morei no centro do círculo onde tudo que acontecia acontecia para mim.
E nós adorávamos o sol e temíamos a noite porque as feras rugiam e nos farejavam. A terra era mãe onde amávamos a vida sem saber. A liberdade não fora inventada, mas nós nos criávamos. A chuva me alucinava e os raios vinham dos braços do pai. Meus primos e eu e nós olhávamos./
Eu descí para outro rio e lá ouvia música de flautas e de tambores e notei que em mim existia outro. Mergulhei na água azul no fim dourado da tarde e pude ver a imagem de nosso corpo. Perdido na mata entre macacos senti o horror de se perder entre a vida e a alegria de se esquecer da vida. Nossas cinzas repousam no rio./
Quando subi cruzei outros dois rios e conheci a neve. Tranquei-me entre toras e fechei meus olhos. Sonhei com a volta do sol e com o gosto do vinho. Olhando para o fogo fiz perguntas que pergunto ainda hoje. Nós somos essas perguntas. Os lobos batiam à porta e nós cantávamos. Quando os pingentes de gelo começaram a derreter eu descobri a palavra gratidão./
Ao cruzar outro rio vislumbrei meu primeiro mar. Foi olhando o mar que em mim nasceu a idéia de eternidade. O mar se move e sempre é o mesmo. Caí apaixonado pelo cheiro salgado, caí extasiado pelo som que é o som da vida, e caí enfeitiçado pelas cores de seu ritmo. Atendi seu apelo e me fui mar adentro./
Quando vi seus rochedos pensei ter encontrado o inferno. Mas ao pisar em seu verde sem fim eu entendi o que seria viver dentro da liberdade. Meus pensamentos voaram como insetos e criei a idéia de fadas para entender esse encanto. O vento era frio mas tudo falava comigo. Meus dias eram de água e de luz e as noites de canção ao redor do fogo. Servi ao senhor da terra e senti o açoite e a fome. A terra verde tornou-se rubra. A liberdade, perdida, agora é desejo./
Cruzando um mar que é rio chegamos à terra escura. E cruzando outro rio notei que tudo era pedra e areia. Criei cabras e pastoreando deixei que o círculo se refizesse. O sol rodava ou eu rodava ? Confundi-me com as cabras e pensei onde estaria nossa diferença. Foram séculos entre animais e na solidão correta das pedras e das oliveiras. Vagando por primos e por estrangeiros, nós sabíamos os segredos do chão e do ar. E a chuva sempre nos redimia./
Conheci a religião dos mártires. Como antes conhecí a da natureza. Segui seus preceitos. E entendi que na submissão mora um tipo de liberdade. Mas o vento da tarde parecia carregar parte de mim para longe. E eu falava com os anjos sobre isso./
Mais dois rios foram cruzados. No primeiro eu vi a guerra. E lá matei e fui trucidado. Fui eu quem violou a moça de negro e fui eu quem teve a cabeça decepada. O rio turvo de sangue e meu rosto crispado de emoção. Ao cruzar mais um rio esquecemos de tudo e eis eu bisavô entre as uvas./
Podar as vinhas e sonhar com a boa estação. Pisar o fruto e viver no perfume dos tonéis e das bagas. Beber o vinho que nasceu do sol e da terra. Entender o sangue. Quantas festas para o verão ? Onde conheci amores risonhos e onde pulei em louvor a vinha. Os natais ao pé do lume onde a comida era melhor e o vinho se oferecia. A aldeia se iluminava e minhas mãos eram frias. Eu dormia escutando a respiração dos bichos que viviam ao lado. E amanhecia com galos. A escada rangia e a água do rio era fonte de brinquedos e de roupa branca. Meu prazer era casar os outros e nisso eu vivia./
Então ao lado do bom rio eu cortava a pedra. Ia bem cedo rumo a pedreira e media a rocha e cortava certo, no ângulo exato. Tomava goles de vinho verde que deixava na água para resfriar. Meu burrico comigo, suávamos subindo e descendo até a casa que eu fazia. Eu fazia casas de pedra. Amava suas fachadas avarandadas onde se avistava o sol entre montanhas. Amava a adega fria onde as pessoas se esqueciam do verão. Eu destruía minhas mãos e sorria com a casa que nascia. Fui parteiro de famílias./
Então cruzei um oceano e em navio cheguei a outro rio. Morei em quarto cercado de córregos e andei entre ruas de sombra e salas de cinema. Eu amava os cowboys e os soldados. E percorria ao longo do rio a trilha do meu dia. Ecos de passos na madrugada, futebol com primos nos domingos e o amor num banco de jardim. Nós amávamos as meninas./
Eu agora hoje, vim no tempo do fim dos rios. No começo de sua morte, quando eles se tornaram refugos. Sou esse rio e todos os outros rios, vários rios, que viram e me deram uma vida. E sou a água que veio de longe e vai para além. Os passos todos eram meus e sendo meus eram nossos. E estarei no final do último dos rios e me sentarei chorando sua morte. Nascemos sentados ao rio. Partiremos ao seu leito seco.
E nós adorávamos o sol e temíamos a noite porque as feras rugiam e nos farejavam. A terra era mãe onde amávamos a vida sem saber. A liberdade não fora inventada, mas nós nos criávamos. A chuva me alucinava e os raios vinham dos braços do pai. Meus primos e eu e nós olhávamos./
Eu descí para outro rio e lá ouvia música de flautas e de tambores e notei que em mim existia outro. Mergulhei na água azul no fim dourado da tarde e pude ver a imagem de nosso corpo. Perdido na mata entre macacos senti o horror de se perder entre a vida e a alegria de se esquecer da vida. Nossas cinzas repousam no rio./
Quando subi cruzei outros dois rios e conheci a neve. Tranquei-me entre toras e fechei meus olhos. Sonhei com a volta do sol e com o gosto do vinho. Olhando para o fogo fiz perguntas que pergunto ainda hoje. Nós somos essas perguntas. Os lobos batiam à porta e nós cantávamos. Quando os pingentes de gelo começaram a derreter eu descobri a palavra gratidão./
Ao cruzar outro rio vislumbrei meu primeiro mar. Foi olhando o mar que em mim nasceu a idéia de eternidade. O mar se move e sempre é o mesmo. Caí apaixonado pelo cheiro salgado, caí extasiado pelo som que é o som da vida, e caí enfeitiçado pelas cores de seu ritmo. Atendi seu apelo e me fui mar adentro./
Quando vi seus rochedos pensei ter encontrado o inferno. Mas ao pisar em seu verde sem fim eu entendi o que seria viver dentro da liberdade. Meus pensamentos voaram como insetos e criei a idéia de fadas para entender esse encanto. O vento era frio mas tudo falava comigo. Meus dias eram de água e de luz e as noites de canção ao redor do fogo. Servi ao senhor da terra e senti o açoite e a fome. A terra verde tornou-se rubra. A liberdade, perdida, agora é desejo./
Cruzando um mar que é rio chegamos à terra escura. E cruzando outro rio notei que tudo era pedra e areia. Criei cabras e pastoreando deixei que o círculo se refizesse. O sol rodava ou eu rodava ? Confundi-me com as cabras e pensei onde estaria nossa diferença. Foram séculos entre animais e na solidão correta das pedras e das oliveiras. Vagando por primos e por estrangeiros, nós sabíamos os segredos do chão e do ar. E a chuva sempre nos redimia./
Conheci a religião dos mártires. Como antes conhecí a da natureza. Segui seus preceitos. E entendi que na submissão mora um tipo de liberdade. Mas o vento da tarde parecia carregar parte de mim para longe. E eu falava com os anjos sobre isso./
Mais dois rios foram cruzados. No primeiro eu vi a guerra. E lá matei e fui trucidado. Fui eu quem violou a moça de negro e fui eu quem teve a cabeça decepada. O rio turvo de sangue e meu rosto crispado de emoção. Ao cruzar mais um rio esquecemos de tudo e eis eu bisavô entre as uvas./
Podar as vinhas e sonhar com a boa estação. Pisar o fruto e viver no perfume dos tonéis e das bagas. Beber o vinho que nasceu do sol e da terra. Entender o sangue. Quantas festas para o verão ? Onde conheci amores risonhos e onde pulei em louvor a vinha. Os natais ao pé do lume onde a comida era melhor e o vinho se oferecia. A aldeia se iluminava e minhas mãos eram frias. Eu dormia escutando a respiração dos bichos que viviam ao lado. E amanhecia com galos. A escada rangia e a água do rio era fonte de brinquedos e de roupa branca. Meu prazer era casar os outros e nisso eu vivia./
Então ao lado do bom rio eu cortava a pedra. Ia bem cedo rumo a pedreira e media a rocha e cortava certo, no ângulo exato. Tomava goles de vinho verde que deixava na água para resfriar. Meu burrico comigo, suávamos subindo e descendo até a casa que eu fazia. Eu fazia casas de pedra. Amava suas fachadas avarandadas onde se avistava o sol entre montanhas. Amava a adega fria onde as pessoas se esqueciam do verão. Eu destruía minhas mãos e sorria com a casa que nascia. Fui parteiro de famílias./
Então cruzei um oceano e em navio cheguei a outro rio. Morei em quarto cercado de córregos e andei entre ruas de sombra e salas de cinema. Eu amava os cowboys e os soldados. E percorria ao longo do rio a trilha do meu dia. Ecos de passos na madrugada, futebol com primos nos domingos e o amor num banco de jardim. Nós amávamos as meninas./
Eu agora hoje, vim no tempo do fim dos rios. No começo de sua morte, quando eles se tornaram refugos. Sou esse rio e todos os outros rios, vários rios, que viram e me deram uma vida. E sou a água que veio de longe e vai para além. Os passos todos eram meus e sendo meus eram nossos. E estarei no final do último dos rios e me sentarei chorando sua morte. Nascemos sentados ao rio. Partiremos ao seu leito seco.
SOBRE O LIVRO DE GILBERTO SAFRA
Ora, jamais existiu período histórico tão preso a linha reta. A redondeza do tempo kósmico, onde tudo sempre se repete ( dia/noite, chuva/sol, verão/inverno, morte e nascimento ) é o tempo do primitivo, do selvagem, da natureza. Esse Eden foi perdido e é extinto.
Nosso é o tempo da linha reta, que Safra chama de tempo histórico. Tempo onde o ontem é morto e o futuro é eterno desejo. Nesse tempo o futuro é infinito e somos todos jogados para a frente, marchando em nossas baias no trote acelerado. Tempo da ciência onde a transcendência é não só impossível como indesejada. O homem reduzido a ser biológico, número catalogado em classe e série, comprador compulsivo de ilusões moderninhas e de medicamentos consoladores. Nessa reta, nesse trilho, a ruptura se torna inviável, pois para pular da linha há que se cair no vazio. É como se fora do trilho nada mais houvesse. Kafka.
Mas há. Há o gesto criativo que cria seu próprio tempo, seu próprio universo, seu instante efêmero porém absoluto. Ele rompe com o círculo do kosmos : pois nada tem de natural; e rompe com a reta, pois não é parte do tempo contado e catalogado.
Esse tempo explica o porque de me sentir tão GRANDE quando leio Shakespeare. Nunca existiu o tempo de Shakespeare, ele jamais foi contemporâneo. Em 1600 ele já era fora da reta, ele não é do passado, nega o hoje e não anuncia o futuro. Ele vive e reina em seu mundo extra-mundo. Mas ele existe por e para nós. Shakespeare criou por necessidade íntima, mas visando ao universo humano : ele é um homem maior. O pleno. A criação pura.
O mesmo sinto diante de Beethoven, Michelangelo, Cézanne ou Eliot. A gigantesca força extra-universo do homem. O dom de criar tempo e mundo própio. O transcender o efêmero.
O mundo do círculo natural não toma conhecimento desse gigantismo. Para esse mundo eles não existem. Possuem uma linguagem indecifrável e herética. E para o mundo da reta, mundo que precisa ser medido e vendido e que toma o valor de tudo por sua função, nesse mundo eles precisam ser vulgarizados, transformados em ponto de reta, precisam ser domados. Explica-se então o gênio, disseca-se o processo e vende-se o segredo. Transforma-se um mito em parte do trilho.
Mas em sua gigantesca luz ele resiste. Vive fora do tempo e fora do que é explicável. Transcende.
Todo gesto criativo é tentativa de sair de seu meio, de se erguer sobre seu tempo, de escapar do destino. Para quem vivia no círculo natural seria domar a natureza, explicar os deuses, subjugar o fado; para nós, pontos em reta, escapar do passado e do futuro, habitar o atemporal, visitar a terra dos gigantes, conhecer a transcendencia. Ser poeta. E o mundo nunca desprezou tanto o poeta e jamais necessitou tanto deles.
Mas cuidado : tudo pode ser vendido ! E vender rebeldia, vender o anti-"mundo atual", vender a ovelha negra é idéia amada por comerciantes de falsas idéias. O poeta verdadeiro se comunica com gente, não com grupos de mercado, escreve para uma pessoa, e nunca para um público. Pois não existe o público. O que existe é o eu e o voce.
Há um texto de Hannah Arendt no livro, que diz que todo ato criativo é rompimento com o que o cerca. É surgimento do inesperado. Como fazer isso num mundo onde o inesperado é cobrado ?
.........
Não me interesso mais pela música pop feita hoje porque ela não tenta mais sair do tempo. Assumiu descaradamente sua contemporaniedade descartável. Ela propõe ser retrato do hoje e sómente do hoje-agora. Ela se equilibra na linha reta e me causa enjôo. Os poucos que tentam sair disso e transcender acabam revisitando transcendências do passado. Não criam um novo mundo extra-tempo, visitam o universo de outro, o já criado. Estão irremediavelmente presos.
Quando assisto ( por exemplo, APARIJITO de Satiajit Ray, que vi ontem ), um grande filme, percebo que em suas imagens existe um tempo que é só dele. O filme não fala de um momento específico. No ano em que foi produzido ele não era " de agora" , e hoje, 40, 50 anos depois, continua sendo fora de tempo. A criatividade desse tipo de obra cria seu universo, seu momento, sua vida. Ele existe como coisa nunca moderna e nunca passada, nunca de hoje e jamais ultrapassada. Ela é o gesto de criação eterno.
Kurosawa é isso. Bergman é isso. FACE A FACE ou MORANGOS SILVESTRES ou PERSONNA não são de tempo algum. As questões que levantam e o modo como se comunica conosco são de um tempo extra-tempo. Negam o passado, negam o agora e negam o futuro. Criam seu tempo. Quando Bergman é menos gigantesco ele se torna contemporâneo, moderno, preso, frouxo. Basta comparar o Fellini de CABIRIA ou AMARCORD com o de A DOCE VIDA ou ROMA : os dois primeiros criam seu tempo, os dois últimos são do agora.
Adoro Godard, mas reconheço que sua força era a força do momento, do moderno, do contemporâneo. Ele, como Antonioni ou Cassavetes, jamais criou seu tempo. Retratou criticamente a linha, mas não conseguiu transcender. Hoje, adoro Joel Coen, Almodovar, Eastwood, Tarantino mas sei que não há neles um novo universo. Seus filmes, maravilhosos, são frutos do agora, e serão velhos com o passar do tempo. Deliciosos, porém presos. Tim Burton tenta desesperadamente transcender. Terá conseguido ? Ainda não. Ele é alienado do agora, mas isso não significa criar. Negar o momento é ato de desespero, criar um mundo atemporal é genialidade.
Belo livro que trata de tudo que me interessa : tempo, criação e morte.
Mais comentários abaixo.
Nosso é o tempo da linha reta, que Safra chama de tempo histórico. Tempo onde o ontem é morto e o futuro é eterno desejo. Nesse tempo o futuro é infinito e somos todos jogados para a frente, marchando em nossas baias no trote acelerado. Tempo da ciência onde a transcendência é não só impossível como indesejada. O homem reduzido a ser biológico, número catalogado em classe e série, comprador compulsivo de ilusões moderninhas e de medicamentos consoladores. Nessa reta, nesse trilho, a ruptura se torna inviável, pois para pular da linha há que se cair no vazio. É como se fora do trilho nada mais houvesse. Kafka.
Mas há. Há o gesto criativo que cria seu próprio tempo, seu próprio universo, seu instante efêmero porém absoluto. Ele rompe com o círculo do kosmos : pois nada tem de natural; e rompe com a reta, pois não é parte do tempo contado e catalogado.
Esse tempo explica o porque de me sentir tão GRANDE quando leio Shakespeare. Nunca existiu o tempo de Shakespeare, ele jamais foi contemporâneo. Em 1600 ele já era fora da reta, ele não é do passado, nega o hoje e não anuncia o futuro. Ele vive e reina em seu mundo extra-mundo. Mas ele existe por e para nós. Shakespeare criou por necessidade íntima, mas visando ao universo humano : ele é um homem maior. O pleno. A criação pura.
O mesmo sinto diante de Beethoven, Michelangelo, Cézanne ou Eliot. A gigantesca força extra-universo do homem. O dom de criar tempo e mundo própio. O transcender o efêmero.
O mundo do círculo natural não toma conhecimento desse gigantismo. Para esse mundo eles não existem. Possuem uma linguagem indecifrável e herética. E para o mundo da reta, mundo que precisa ser medido e vendido e que toma o valor de tudo por sua função, nesse mundo eles precisam ser vulgarizados, transformados em ponto de reta, precisam ser domados. Explica-se então o gênio, disseca-se o processo e vende-se o segredo. Transforma-se um mito em parte do trilho.
Mas em sua gigantesca luz ele resiste. Vive fora do tempo e fora do que é explicável. Transcende.
Todo gesto criativo é tentativa de sair de seu meio, de se erguer sobre seu tempo, de escapar do destino. Para quem vivia no círculo natural seria domar a natureza, explicar os deuses, subjugar o fado; para nós, pontos em reta, escapar do passado e do futuro, habitar o atemporal, visitar a terra dos gigantes, conhecer a transcendencia. Ser poeta. E o mundo nunca desprezou tanto o poeta e jamais necessitou tanto deles.
Mas cuidado : tudo pode ser vendido ! E vender rebeldia, vender o anti-"mundo atual", vender a ovelha negra é idéia amada por comerciantes de falsas idéias. O poeta verdadeiro se comunica com gente, não com grupos de mercado, escreve para uma pessoa, e nunca para um público. Pois não existe o público. O que existe é o eu e o voce.
Há um texto de Hannah Arendt no livro, que diz que todo ato criativo é rompimento com o que o cerca. É surgimento do inesperado. Como fazer isso num mundo onde o inesperado é cobrado ?
.........
Não me interesso mais pela música pop feita hoje porque ela não tenta mais sair do tempo. Assumiu descaradamente sua contemporaniedade descartável. Ela propõe ser retrato do hoje e sómente do hoje-agora. Ela se equilibra na linha reta e me causa enjôo. Os poucos que tentam sair disso e transcender acabam revisitando transcendências do passado. Não criam um novo mundo extra-tempo, visitam o universo de outro, o já criado. Estão irremediavelmente presos.
Quando assisto ( por exemplo, APARIJITO de Satiajit Ray, que vi ontem ), um grande filme, percebo que em suas imagens existe um tempo que é só dele. O filme não fala de um momento específico. No ano em que foi produzido ele não era " de agora" , e hoje, 40, 50 anos depois, continua sendo fora de tempo. A criatividade desse tipo de obra cria seu universo, seu momento, sua vida. Ele existe como coisa nunca moderna e nunca passada, nunca de hoje e jamais ultrapassada. Ela é o gesto de criação eterno.
Kurosawa é isso. Bergman é isso. FACE A FACE ou MORANGOS SILVESTRES ou PERSONNA não são de tempo algum. As questões que levantam e o modo como se comunica conosco são de um tempo extra-tempo. Negam o passado, negam o agora e negam o futuro. Criam seu tempo. Quando Bergman é menos gigantesco ele se torna contemporâneo, moderno, preso, frouxo. Basta comparar o Fellini de CABIRIA ou AMARCORD com o de A DOCE VIDA ou ROMA : os dois primeiros criam seu tempo, os dois últimos são do agora.
Adoro Godard, mas reconheço que sua força era a força do momento, do moderno, do contemporâneo. Ele, como Antonioni ou Cassavetes, jamais criou seu tempo. Retratou criticamente a linha, mas não conseguiu transcender. Hoje, adoro Joel Coen, Almodovar, Eastwood, Tarantino mas sei que não há neles um novo universo. Seus filmes, maravilhosos, são frutos do agora, e serão velhos com o passar do tempo. Deliciosos, porém presos. Tim Burton tenta desesperadamente transcender. Terá conseguido ? Ainda não. Ele é alienado do agora, mas isso não significa criar. Negar o momento é ato de desespero, criar um mundo atemporal é genialidade.
Belo livro que trata de tudo que me interessa : tempo, criação e morte.
Mais comentários abaixo.
A PO-ÉTICA CONTEMPORÂNEA- GILBERTO SAFRA
Ando pelas ruas fotografando. Fotografo casas antigas, ruínas, ruas congeladas no tempo, árvores. Estou a procura de alguma coisa.
Depois, a noite, andando pelas ruas desta cidade, sinto uma constante saudade do escuro. Esta cidade não tem mais lugares escuros. Me cai nas mãos um livro que fala o que eu sempre soube. Mas não falo, pois quem pode ouvir ?
No mundo de Bach, de Spinoza ou de Shakespeare, existem sentimentos de dor. Tristeza, desespero, falta de coragem, coração partido, decepção. Mas até a geração romântica, é desconhecido do homem o sentimento de vazio, e é só no final do século dezenove que nasce o desespero existencial, o sentimento de absurdo da própia vida. Porque ?
O livro de Safra verbaliza isso. É com a revolução industrial que se começa a destruição do ambiente, da praça, da floresta, da sua face. Como dizia Whitman, voce é seu companheiro, voce é sua rua, voce é sua casa. O progresso derruba tudo isso. Voce é o que ? Com a revolução, alemães e ingleses primeiro, assistiram a transformação de toda referência. Seus locais sagrados não eram mais seus, sequer existiam. Eles criaram o romantismo como grito de protesto contra a futilidade dos novos tempos, a mecanização da vida. No final do século xix, o grito se torna gemido, contra a coisificação do homem. Neste inicio de milênio, apenas aceitamos docilmente como fato único : somos máscara sobre máscara.
A máscara sofre o desespero de não poder sentir. De não existir. Da total virtualidade. Quando meu pai morreu fui uma face. Sofrimento puro, completo, sem disfarce ou modelo. Eu era eu-mesmo. Um sofrimento terrível, porém saudável, verdadeiro, inteiro. Eu me sentia construir. O sofrimento da máscara não constrói nada. Nem destrói. É inexistente.
Eu estive nos dois mundos, posso testemunhar.
Minha infância foi a abençoada infância da aldeia. Todo habitante sabia quem eu era, de onde eu vinha, do que eu gostava. Cada pedrinha no chão, cada árvore e cada córrego tinha um nome para mim. Tudo possuía sua história, seu nascimento e seu fim. A noite era escura e assustadora, com sapos e ratos e toda manhã parecia um novo momento de descoberta. E mais importante : as coisas não pareciam ser transitórias, eram para sempre.
A ruptura desse idílio veio com a mudança de casa. Todas as histórias foram abandonadas e as ruas que eu via não falavam comigo. Nesse novo árido mundo, eu precisei criar dentro de mim pontos de apoio, modelos e moldes para seguir, para poder ser e existir. Foi uma armadilha, e esquecí tudo o que eu era e tudo o que eu precisava ter. Deixei de ser ruas, árvores e gente que vivia comigo; me tornei o que eu quisesse, virtualmente potente, mas eternamente eu. Criei máscaras. Vazios.
Então voce pensa se tornar aquele cara que voce admira. Um ator, um personagem de filme, um rock star. Voce se torna a máscara de uma máscara que já nasceu como máscara de outra máscara. Quando essa coisa fantasiosa cai, o que voce percebe é que voce é um estranho para voce mesmo. Nasce um terrível horror : um sentimento sem nome, sem história, sem verdade, sem porque : o completo vazio. Voce não sofre por alguma coisa. Apenas sofre por não ter pelo que viver ou sofrer. Virtualmente.
A única referência de futuras gerações : imagens coloridas sem passado, raiz ou verdade. O que será delas ?
O livro fala mais. ( E é uma pena ele falar tanto de Dostoievski e passar ao largo de Tolstoi ).
O que é o sexo hoje ? Existe nele uma narrativa, um encontro de duas almas, um reencontro com a verdade ? Isso não está no livro, mas eu vejo cada vez mais que sexo é a única chance que ainda resta ao homem, de se tentar fazer alguma coisa puramente instintiva, animal, não racional. O que é uma bobagem ! Na maioria dos casos, suas transas são puramente racionais, tanto em escolhas como em ocasiões.
A sensação geral é : negamos nossas origens ( quando as temos ). Seguimos modelos que nos vendem ( mesmo os anti-modelos ). Vestimos máscaras sobre máscaras, falamos bobagens sobre bobagens. Viajamos para lugares que não escolhemos. Namoramos pessoas que nada têm a ver com nosso interior, negamos tudo em nós que não seja moderno, eficiente, bacana; nos obrigamos a vestir armaduras de vazio. Que vida é essa ?????
Voce tem amigos incapazes de fazer algo que não seja alguma coisa "divertida" vista em um bilhão de filmes ou séries de tv. Bebem, gritam, dão pulinhos alegrinhos e agarram a gostosa tipo série de tv ( desculpe a repetição, mas é assim ). Eles simplesmente são incapazes de escutar ou de parar de fazer alguma coisa. Ficam ligados, funcionam como maquininha. Têm uma função : são divertidos, bro !
Voce corre o caminho de Santiago. Mas nunca foi católico. Vai a Amsterdan, mas nada sabe de Rembrandt e nunca foi bem louco. Aluga um studio em Paris. Para tentar se sentir meio artista. E anda por Roma. Sem sentir nada da beleza ou da magia do lugar. Voce vai porque vai. E adora... Como adora Londres por ser moderna, Praga por ser romântica e Berlin por ser dramática. Voce ama o que pedem pra voce amar.
Ouve superficialmente o que foi criado para ser ouvido superficialmente. Assiste filmes que são a cópia da cópia da cópia da cópia. Luzes de máscaras em cenários falsos com personagens feitos de papel de jornal. Nada de vivo, nada de verdadeiro, nada de real. Mas ok. Voce pagou 25 reais e quase sentiu uma emoção. Uma mísera emoção. É tudo o que voce pede : uma mísera emoção. Inteira, redonda, envolvente, e que dure.
Trouxa ! Tudo na arte de hoje é conceitual. Nada de emoção. O que se procura é a sensação. A tv é uma sensação ( sinto que foi bom, sinto que foi válido, sinto que é engraçado, sinto vontade de rir, sinto vontade de chorar ). A arte verdadeira é emocional, pois lida com a raiz, a origem, a face. ( É trágico, é cômico, é patético, é maravilhoso, é péssimo... ).
Se o homem é sua cidade e seus companheiros ( é o que o livro diz ), que homem é esse com uma cidade em eterna mudança, e com companheiros ausentes ou virtuais ? Que homem é esse com rostos amigos em telas ( acredite, são imagens sempre falsas ), com vozes distantes em celulares que tocam a toda hora mas que nunca abraçam. O que há de humano em se passar por ruas que hoje são diferentes de ontem. Voce acaba tendo de se adaptar. E se torna tão fantasiado quanto a foto da tela do orkut, tão frio quanto a mensagem gracinha no celular, tão esperto quanto o personagem da série de tv e tão mutável quanto as ruas derrubadas e reconstruídas sempre. Anônimamente mais um. Sempre alegre e nunca feliz. Sempre moderninho e nunca eterno. Fazendo, não sendo.
Mas um dia ( e eu passei por isso ), voce perde a máscara. Cai. E tudo parece ser para voce aquilo que sempre foi e nunca esteve tão percebido : nada. Todas as suas referencias se vão. Pois elas nunca foram de verdade. Caem as certezas. Que certezas ? Voce se vê estrangeiro dentro de voce mesmo. Isso é ser moderno : um estrangeiro dentro de um vazio.
Daí voce procura se reconstruir. Vai atrás das pegadas, ver onde a coisa se rompeu. Procura os restos da aldeia, que são os vivos restos de voce mesmo, começa a assistir filmes que tenham algo de real, de vivo e que mesmo em sua mais louca fantasia, tenham a fantasia sonhada pela mente humana, e não planejada pelo grupo de marketing. Voce procura a face irretocada da vida, ou ao menos a máscara primordial.
E uma noite, ao olhar o espelho do banheiro, espelho que sempre lhe falou de vaidade ou de raiva; ao olhar esse espelho, voce não mais verá um rock star ou o ator com quem voce se parece. No espelho voce não mais verá o cabelo fashion ou o sorriso safo. Nesse espelho estará defronte a voce um homem. Homem que voce viu na aldeia, anos atrás. Homem que cheirava bem, que parecia de verdade, que era um mundo em sí. Voce se assustará em ver no espelho esse homem. E notará que ele sempre esteve alí. Obscurecido por máscaras.
Em voce verá seu pai. E isso eu chamo de a verdade. Triste e feliz, real.
Depois, a noite, andando pelas ruas desta cidade, sinto uma constante saudade do escuro. Esta cidade não tem mais lugares escuros. Me cai nas mãos um livro que fala o que eu sempre soube. Mas não falo, pois quem pode ouvir ?
No mundo de Bach, de Spinoza ou de Shakespeare, existem sentimentos de dor. Tristeza, desespero, falta de coragem, coração partido, decepção. Mas até a geração romântica, é desconhecido do homem o sentimento de vazio, e é só no final do século dezenove que nasce o desespero existencial, o sentimento de absurdo da própia vida. Porque ?
O livro de Safra verbaliza isso. É com a revolução industrial que se começa a destruição do ambiente, da praça, da floresta, da sua face. Como dizia Whitman, voce é seu companheiro, voce é sua rua, voce é sua casa. O progresso derruba tudo isso. Voce é o que ? Com a revolução, alemães e ingleses primeiro, assistiram a transformação de toda referência. Seus locais sagrados não eram mais seus, sequer existiam. Eles criaram o romantismo como grito de protesto contra a futilidade dos novos tempos, a mecanização da vida. No final do século xix, o grito se torna gemido, contra a coisificação do homem. Neste inicio de milênio, apenas aceitamos docilmente como fato único : somos máscara sobre máscara.
A máscara sofre o desespero de não poder sentir. De não existir. Da total virtualidade. Quando meu pai morreu fui uma face. Sofrimento puro, completo, sem disfarce ou modelo. Eu era eu-mesmo. Um sofrimento terrível, porém saudável, verdadeiro, inteiro. Eu me sentia construir. O sofrimento da máscara não constrói nada. Nem destrói. É inexistente.
Eu estive nos dois mundos, posso testemunhar.
Minha infância foi a abençoada infância da aldeia. Todo habitante sabia quem eu era, de onde eu vinha, do que eu gostava. Cada pedrinha no chão, cada árvore e cada córrego tinha um nome para mim. Tudo possuía sua história, seu nascimento e seu fim. A noite era escura e assustadora, com sapos e ratos e toda manhã parecia um novo momento de descoberta. E mais importante : as coisas não pareciam ser transitórias, eram para sempre.
A ruptura desse idílio veio com a mudança de casa. Todas as histórias foram abandonadas e as ruas que eu via não falavam comigo. Nesse novo árido mundo, eu precisei criar dentro de mim pontos de apoio, modelos e moldes para seguir, para poder ser e existir. Foi uma armadilha, e esquecí tudo o que eu era e tudo o que eu precisava ter. Deixei de ser ruas, árvores e gente que vivia comigo; me tornei o que eu quisesse, virtualmente potente, mas eternamente eu. Criei máscaras. Vazios.
Então voce pensa se tornar aquele cara que voce admira. Um ator, um personagem de filme, um rock star. Voce se torna a máscara de uma máscara que já nasceu como máscara de outra máscara. Quando essa coisa fantasiosa cai, o que voce percebe é que voce é um estranho para voce mesmo. Nasce um terrível horror : um sentimento sem nome, sem história, sem verdade, sem porque : o completo vazio. Voce não sofre por alguma coisa. Apenas sofre por não ter pelo que viver ou sofrer. Virtualmente.
A única referência de futuras gerações : imagens coloridas sem passado, raiz ou verdade. O que será delas ?
O livro fala mais. ( E é uma pena ele falar tanto de Dostoievski e passar ao largo de Tolstoi ).
O que é o sexo hoje ? Existe nele uma narrativa, um encontro de duas almas, um reencontro com a verdade ? Isso não está no livro, mas eu vejo cada vez mais que sexo é a única chance que ainda resta ao homem, de se tentar fazer alguma coisa puramente instintiva, animal, não racional. O que é uma bobagem ! Na maioria dos casos, suas transas são puramente racionais, tanto em escolhas como em ocasiões.
A sensação geral é : negamos nossas origens ( quando as temos ). Seguimos modelos que nos vendem ( mesmo os anti-modelos ). Vestimos máscaras sobre máscaras, falamos bobagens sobre bobagens. Viajamos para lugares que não escolhemos. Namoramos pessoas que nada têm a ver com nosso interior, negamos tudo em nós que não seja moderno, eficiente, bacana; nos obrigamos a vestir armaduras de vazio. Que vida é essa ?????
Voce tem amigos incapazes de fazer algo que não seja alguma coisa "divertida" vista em um bilhão de filmes ou séries de tv. Bebem, gritam, dão pulinhos alegrinhos e agarram a gostosa tipo série de tv ( desculpe a repetição, mas é assim ). Eles simplesmente são incapazes de escutar ou de parar de fazer alguma coisa. Ficam ligados, funcionam como maquininha. Têm uma função : são divertidos, bro !
Voce corre o caminho de Santiago. Mas nunca foi católico. Vai a Amsterdan, mas nada sabe de Rembrandt e nunca foi bem louco. Aluga um studio em Paris. Para tentar se sentir meio artista. E anda por Roma. Sem sentir nada da beleza ou da magia do lugar. Voce vai porque vai. E adora... Como adora Londres por ser moderna, Praga por ser romântica e Berlin por ser dramática. Voce ama o que pedem pra voce amar.
Ouve superficialmente o que foi criado para ser ouvido superficialmente. Assiste filmes que são a cópia da cópia da cópia da cópia. Luzes de máscaras em cenários falsos com personagens feitos de papel de jornal. Nada de vivo, nada de verdadeiro, nada de real. Mas ok. Voce pagou 25 reais e quase sentiu uma emoção. Uma mísera emoção. É tudo o que voce pede : uma mísera emoção. Inteira, redonda, envolvente, e que dure.
Trouxa ! Tudo na arte de hoje é conceitual. Nada de emoção. O que se procura é a sensação. A tv é uma sensação ( sinto que foi bom, sinto que foi válido, sinto que é engraçado, sinto vontade de rir, sinto vontade de chorar ). A arte verdadeira é emocional, pois lida com a raiz, a origem, a face. ( É trágico, é cômico, é patético, é maravilhoso, é péssimo... ).
Se o homem é sua cidade e seus companheiros ( é o que o livro diz ), que homem é esse com uma cidade em eterna mudança, e com companheiros ausentes ou virtuais ? Que homem é esse com rostos amigos em telas ( acredite, são imagens sempre falsas ), com vozes distantes em celulares que tocam a toda hora mas que nunca abraçam. O que há de humano em se passar por ruas que hoje são diferentes de ontem. Voce acaba tendo de se adaptar. E se torna tão fantasiado quanto a foto da tela do orkut, tão frio quanto a mensagem gracinha no celular, tão esperto quanto o personagem da série de tv e tão mutável quanto as ruas derrubadas e reconstruídas sempre. Anônimamente mais um. Sempre alegre e nunca feliz. Sempre moderninho e nunca eterno. Fazendo, não sendo.
Mas um dia ( e eu passei por isso ), voce perde a máscara. Cai. E tudo parece ser para voce aquilo que sempre foi e nunca esteve tão percebido : nada. Todas as suas referencias se vão. Pois elas nunca foram de verdade. Caem as certezas. Que certezas ? Voce se vê estrangeiro dentro de voce mesmo. Isso é ser moderno : um estrangeiro dentro de um vazio.
Daí voce procura se reconstruir. Vai atrás das pegadas, ver onde a coisa se rompeu. Procura os restos da aldeia, que são os vivos restos de voce mesmo, começa a assistir filmes que tenham algo de real, de vivo e que mesmo em sua mais louca fantasia, tenham a fantasia sonhada pela mente humana, e não planejada pelo grupo de marketing. Voce procura a face irretocada da vida, ou ao menos a máscara primordial.
E uma noite, ao olhar o espelho do banheiro, espelho que sempre lhe falou de vaidade ou de raiva; ao olhar esse espelho, voce não mais verá um rock star ou o ator com quem voce se parece. No espelho voce não mais verá o cabelo fashion ou o sorriso safo. Nesse espelho estará defronte a voce um homem. Homem que voce viu na aldeia, anos atrás. Homem que cheirava bem, que parecia de verdade, que era um mundo em sí. Voce se assustará em ver no espelho esse homem. E notará que ele sempre esteve alí. Obscurecido por máscaras.
Em voce verá seu pai. E isso eu chamo de a verdade. Triste e feliz, real.
ALTMAN/CORNEAU/JOHN WAYNE/ERA DO GELO
SIM SENHOR de Peyton Reed com Jim Carrey e Zooey Deschanel
Volto a falar deste filme para dizer algo assustador : o quanto um filme pode ser ruim. Um cara ( um Carrey apático em seu medíocre papel ), fala não para a vida. Após palestra ( dada por Terence Stamp ), começa a dizer sim a tudo. Fosse menos cretino, o filme o envolveria em confusões sexuais, confusões com patrões e com os amigos. Mas não. Para o roteirista, dizer sim é pagar bebidas aos amigos, pagar cursos e comprar coisas. Para se falar sim é preciso ter cartão de crédito dourado. Retrato de um tempo onde diversão é encher a cara e pagar algo de novo. O romance com a mocinha é inconvincente : ela canta em banda de rock tipo anos 80 mas é a imagem da caretice. E que amigos são esses ? Em todo o filme não dizem duas frases diferentes ! Um horror ! sem nota.
A ERA DO GELO 3 de Carlos Saldanha
Uma deliciosa comédia com personagens bem delineados, belo visual e que não tenta vender nada. É lógico que não procuramos arte aqui, mas ele faz algo que os filmes pop de hoje não sabem mais nos dar : uma alegre diversão que não nos agride, não nos chama de idiotas. nota 5.
MAC CABE & MRS. MILLER de Robert Altman com Warren Beatty e Julie Christie
O que primeiro salta aos olhos é a foto de Vilmos Zgismond. O filme é de uma plasticidade melancólica e gelada. Passa-se na fronteira EUA/ Canadá e estamos em 1890. Um cara otimista monta bordel em vila mineira. Ele tem bom coração e tudo que deseja é alguém que lhe dê afeto. Assistimos o que lhe acontece. O filme é difícil : lento. Talvez seja o mais triste filme americano já feito ( Pauline Kael o chama de " o mais triste e belo dos filmes " e Roger Ebbert de " um filme perfeito " ). Eu o assisti com dois sentimentos : quase irritado por sua lentidão, mas, ao final, apaixonado por sua magnífica beleza. O final, numa nevasca, é talvez o mais melancólico já visto. Tem uma beleza aterradora. Não tem trilha sonora : é pontuado por lindíssimas baladas desesperançadas de Leonard Cohen. É uma obra-prima da inocência poluída, da esperança destroçada, da solidão sem fim. Uma obra-prima de cinema ousado, sem nenhuma concessão, heróico. Nota DEZ.
IF... de Lindsay Anderson com Malcolm MacDowell
Um perfeito retrato da rebeldia e do desamparo adolescente. Eles tentam ser diferentes e não conseguem, tentam ser livres e não sabem o que é a liberdade. O que fazem então ? Destroem. Surrealista, cheio de significados e fácil de se assistir, é um filme manifesto, um poema à ira, um filme de ação. nota 9.
WEEK-END de Godard com Mireille Darc, Jean Yanne e Leaud
Não pode ser analisado a luz da razão. Ele vai contra tudo e todos. Do dinheiro ao sexo, de burgueses aos grupos extremistas, sobra pra todo mundo. Sem nota, pois um zero seria absurdo e um dez impossível.
NUNCA AOS DOMINGOS de Jules Dassin com Melina Mercouri
Um americano vai à Grécia atrás de respostas. Ele quer saber onde a Grécia errou. Lá, conhece uma prostituta que é a personificação da alegria grega. Mas ele tenta lhe dar cultura, filosofia, e a estraga. No fim, a alegria vence. Dassin foi um ótimo diretor. Na América fez alguns dos melhores policiais da história. Perseguido pelo MacCarthismo, teve na Europa uma segunda e excelente carreira. Aqui ele encontra a estrela grega Melina, com quem se casaria. Ela lutaria contra a ditadura grega e terminaria ministra da república livre de seu país. O filme, comédia bela e despretensiosa, encanta por sua alegria genuína e a bela paisagem grega. nota 7.
A TRÁGICA FARSA de Mark Robson com Humphrey Bogart e Rod Steiger
Último filme de Bogey. Fala do submundo do box. Um lutador tipo Maguila, inocente e manipulado, vence lutas arranjadas até um quase título. Bogey é o jornalista que manipula essa verdade falsa. Um derrotado. O filme é ok. nota 5.
MALPETIUS de Harry Kummel com Mathieu Carriere e Orson Welles.
Pretensioso e chato. Algo sobre deuses e mitos. Uma bomba! nota Zero!!!
TRUE GRIT de Henry Hathaway com John Wayne e Kim Darby
O filme que deu o oscar à Wayne ( vencendo maravilhosos Dustin Hoffman e Jon Voigt em Perdidos na Noite ). Ele está comovente como um justiceiro bêbado e amargo que ajuda mocinha a vingar a morte do pai. Belas paisagens, ação na medida exata, algum humor e o carisma do mito da aventura. Muito satisfatório. nota 7.
NO VELHO CHICAGO de Henry King com Tyrone Power, Don Ameche e Alice Faye
A primeira hora é um melô envelhecido sobre família irlandesa que enriquece na Chicago de 1870. Mas a meia hora final é um primor. Um incendio que devasta a cidade. Efeitos especiais que ainda impressionam e um senso de suspense e movimento soberbos. Os figurantes, centenas, estão maravilhosamente bem dirigidos e fotografados. Fogo, água e multidões se movendo sem cessar. Vale o filme. nota 6.
TODAS AS MANHÃS DO MUNDO de Alain Corneau com Jean-Pierre Marielle e Gerard Depardieu
A vida do músico Saint-Colombe ( que nunca ouví falar ) narrada por Marin Marais, seu aluno bem sucedido. O filme é tudo aquilo que Amadeus não pode ser : místico, reverente, artístico. Talvez por a arte de Mozart ser terrena, comunicativa e leve. O ambiente é o do Jansenismo do século xviii. O filme tem uma austeridade rígida, fria, severa. Marielle brilha. Vemos e sentimos sua dor. O filme quase faz um milagre : ele chega perto de nos comunicar o segredo da música. Há um diálogo final entre Marielle e Depardieu que é absoluto sublime. O aluno tenta obter o segredo do mestre. Nós o obtemos. O filme é também um manifesto de um mundo perdido : mundo em que se criava e se vivia para Deus, para a eternidade, para o atemporal. Corneau venceu 8 césares em 1991. Mereceu todos. Eis um corajoso e original ! nota 8.
COWBOY de Delmer Daves com Glenn Ford e Jack Lemmon
Nesta história de um atendente de hotel que quer ser cowboy temos tudo aquilo que pedimos : ação, emoção e boas atuações. Entramos na vida de bois, cavalos, índios, espaço aberto, poeira. A violência é constante e para sobreviver é preciso ser individualista e frio. Jack dá show, mas Ford, ator subestimado, impressiona mais. Seu cowboy é a imagem da vida na estrada. Belíssimo. Nota 8.
Volto a falar deste filme para dizer algo assustador : o quanto um filme pode ser ruim. Um cara ( um Carrey apático em seu medíocre papel ), fala não para a vida. Após palestra ( dada por Terence Stamp ), começa a dizer sim a tudo. Fosse menos cretino, o filme o envolveria em confusões sexuais, confusões com patrões e com os amigos. Mas não. Para o roteirista, dizer sim é pagar bebidas aos amigos, pagar cursos e comprar coisas. Para se falar sim é preciso ter cartão de crédito dourado. Retrato de um tempo onde diversão é encher a cara e pagar algo de novo. O romance com a mocinha é inconvincente : ela canta em banda de rock tipo anos 80 mas é a imagem da caretice. E que amigos são esses ? Em todo o filme não dizem duas frases diferentes ! Um horror ! sem nota.
A ERA DO GELO 3 de Carlos Saldanha
Uma deliciosa comédia com personagens bem delineados, belo visual e que não tenta vender nada. É lógico que não procuramos arte aqui, mas ele faz algo que os filmes pop de hoje não sabem mais nos dar : uma alegre diversão que não nos agride, não nos chama de idiotas. nota 5.
MAC CABE & MRS. MILLER de Robert Altman com Warren Beatty e Julie Christie
O que primeiro salta aos olhos é a foto de Vilmos Zgismond. O filme é de uma plasticidade melancólica e gelada. Passa-se na fronteira EUA/ Canadá e estamos em 1890. Um cara otimista monta bordel em vila mineira. Ele tem bom coração e tudo que deseja é alguém que lhe dê afeto. Assistimos o que lhe acontece. O filme é difícil : lento. Talvez seja o mais triste filme americano já feito ( Pauline Kael o chama de " o mais triste e belo dos filmes " e Roger Ebbert de " um filme perfeito " ). Eu o assisti com dois sentimentos : quase irritado por sua lentidão, mas, ao final, apaixonado por sua magnífica beleza. O final, numa nevasca, é talvez o mais melancólico já visto. Tem uma beleza aterradora. Não tem trilha sonora : é pontuado por lindíssimas baladas desesperançadas de Leonard Cohen. É uma obra-prima da inocência poluída, da esperança destroçada, da solidão sem fim. Uma obra-prima de cinema ousado, sem nenhuma concessão, heróico. Nota DEZ.
IF... de Lindsay Anderson com Malcolm MacDowell
Um perfeito retrato da rebeldia e do desamparo adolescente. Eles tentam ser diferentes e não conseguem, tentam ser livres e não sabem o que é a liberdade. O que fazem então ? Destroem. Surrealista, cheio de significados e fácil de se assistir, é um filme manifesto, um poema à ira, um filme de ação. nota 9.
WEEK-END de Godard com Mireille Darc, Jean Yanne e Leaud
Não pode ser analisado a luz da razão. Ele vai contra tudo e todos. Do dinheiro ao sexo, de burgueses aos grupos extremistas, sobra pra todo mundo. Sem nota, pois um zero seria absurdo e um dez impossível.
NUNCA AOS DOMINGOS de Jules Dassin com Melina Mercouri
Um americano vai à Grécia atrás de respostas. Ele quer saber onde a Grécia errou. Lá, conhece uma prostituta que é a personificação da alegria grega. Mas ele tenta lhe dar cultura, filosofia, e a estraga. No fim, a alegria vence. Dassin foi um ótimo diretor. Na América fez alguns dos melhores policiais da história. Perseguido pelo MacCarthismo, teve na Europa uma segunda e excelente carreira. Aqui ele encontra a estrela grega Melina, com quem se casaria. Ela lutaria contra a ditadura grega e terminaria ministra da república livre de seu país. O filme, comédia bela e despretensiosa, encanta por sua alegria genuína e a bela paisagem grega. nota 7.
A TRÁGICA FARSA de Mark Robson com Humphrey Bogart e Rod Steiger
Último filme de Bogey. Fala do submundo do box. Um lutador tipo Maguila, inocente e manipulado, vence lutas arranjadas até um quase título. Bogey é o jornalista que manipula essa verdade falsa. Um derrotado. O filme é ok. nota 5.
MALPETIUS de Harry Kummel com Mathieu Carriere e Orson Welles.
Pretensioso e chato. Algo sobre deuses e mitos. Uma bomba! nota Zero!!!
TRUE GRIT de Henry Hathaway com John Wayne e Kim Darby
O filme que deu o oscar à Wayne ( vencendo maravilhosos Dustin Hoffman e Jon Voigt em Perdidos na Noite ). Ele está comovente como um justiceiro bêbado e amargo que ajuda mocinha a vingar a morte do pai. Belas paisagens, ação na medida exata, algum humor e o carisma do mito da aventura. Muito satisfatório. nota 7.
NO VELHO CHICAGO de Henry King com Tyrone Power, Don Ameche e Alice Faye
A primeira hora é um melô envelhecido sobre família irlandesa que enriquece na Chicago de 1870. Mas a meia hora final é um primor. Um incendio que devasta a cidade. Efeitos especiais que ainda impressionam e um senso de suspense e movimento soberbos. Os figurantes, centenas, estão maravilhosamente bem dirigidos e fotografados. Fogo, água e multidões se movendo sem cessar. Vale o filme. nota 6.
TODAS AS MANHÃS DO MUNDO de Alain Corneau com Jean-Pierre Marielle e Gerard Depardieu
A vida do músico Saint-Colombe ( que nunca ouví falar ) narrada por Marin Marais, seu aluno bem sucedido. O filme é tudo aquilo que Amadeus não pode ser : místico, reverente, artístico. Talvez por a arte de Mozart ser terrena, comunicativa e leve. O ambiente é o do Jansenismo do século xviii. O filme tem uma austeridade rígida, fria, severa. Marielle brilha. Vemos e sentimos sua dor. O filme quase faz um milagre : ele chega perto de nos comunicar o segredo da música. Há um diálogo final entre Marielle e Depardieu que é absoluto sublime. O aluno tenta obter o segredo do mestre. Nós o obtemos. O filme é também um manifesto de um mundo perdido : mundo em que se criava e se vivia para Deus, para a eternidade, para o atemporal. Corneau venceu 8 césares em 1991. Mereceu todos. Eis um corajoso e original ! nota 8.
COWBOY de Delmer Daves com Glenn Ford e Jack Lemmon
Nesta história de um atendente de hotel que quer ser cowboy temos tudo aquilo que pedimos : ação, emoção e boas atuações. Entramos na vida de bois, cavalos, índios, espaço aberto, poeira. A violência é constante e para sobreviver é preciso ser individualista e frio. Jack dá show, mas Ford, ator subestimado, impressiona mais. Seu cowboy é a imagem da vida na estrada. Belíssimo. Nota 8.
CANDIDO OU O OTIMISMO- VOLTAIRE
Foi aos 14 anos, numa madrugada, que lí este conto pela primeira vez. Termino hoje, tanto tempo depois, de o reler pela terceira vez. E continuo sentindo um prazer imenso em reencontrar Candido, Pangloss, Martinho, Cunegundes, Paquette e tanta gente mais. Ao contrário de livros que nos decepcionam numa segunda leitura, Candido permanece com o mesmo brilho, o mesmo encanto, dando tanto para quem o encontra.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...
Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...
Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.
da melancolia, da deprê, do trabalho...
A tristeza já foi chamada de melancolia. Hoje é depressão. Deprê é a tristeza sem poesia. Melancolia é uma nuvem de solidão. O melancólico sofre por perceber ser o mundo errado. O deprimido sofre por acreditar na alegria de todos e ele, pobre ser, não conseguir participar dessa ilusória festa geral. O melancólico critica a vida, o deprê se critica.
A melancolia é produtiva. Na pior das hipóteses nos dá chatos pretensiosos. A deprê não produz nada, é o vazio da fertilidade. Creia : nenhum verdadeiro deprimido torna-se artista. No máximo, ele é um orfão profissional. O melancólico constrói mundos alternativos. Feitos de lágrimas, saudades e rancor. Os dois são vistos como perdedores. O deprimido acredita ser um derrotado, o melancólico tem orgulho de sua derrota, para ele, quanto mais distante deste mundo, melhor. O deprê ansia por ser aceito. Consome. Consolos para uma tristeza que não se cura. Consome remédios, terapias, livros de auto-ajuda, filmes bacaninhas, canções que acalmam. Consome bebida, cigarro, festas sem sentido, baladas frustrantes, roupas novas que nunca usa, viagens sem aventura e aventuras sem viagens. E se entrega ao vazio da impotência. Da infertilidade.
O melancólico, com sua alma velha e romântica, desconfia de toda ciência. Pode até usar remédios, mas usa-os errado. Vai a terapia para desafiar a própria terapia. Cria sua crença. Se entrega a livros de poesia, de simbolismo místico. Viaja nas notas de canções que ninguém escuta, são só dele, e se alguém mais as ouvir, o melancólico melancolicamente deixa de apreciá-las. Os seus filmes são filmes sobre os sonhadores, os fora de lugar, os fora do tempo. Ele foge de baladas e de festas, foge de tudo que lhe pareça comum, banal, vulgar. A melancolia é incurável por ser amada pelo triste. Ele mantém esse doloroso orgulho. A potência de gerar desesperança.
A melancolia só é possível no mundo da arte e da religião. Tristeza que se espelha no santo e no poeta. A depressão é filha da ciência e da indústria. Tristeza que se espelha na funcionalidade e na utilidade. A pergunta do primeiro é : Porque o mundo é tão sem sentido ? O segundo pergunta : Porque eu sou assim ? O melancólico olha e sofre. O deprimido não olha, fecha-se em seu umbigo.
Aldous Huxley aqui no Brasil, em 1960, disse numa palestra que o mundo caminhava para a imagem exata do inferno dos hindús. Nos Upanishads, eles descrevem o inferno como o reino do desejo sem possibilidade de saciedade. Você quer, obtém, e continua desejando. O deprimido é o ex-desejante. Ele acredita que o erro foi dele. Crê nesse inferno. O melancólico culpa o mundo. Percebe a armadilha, mas fica sofrendo por ela existir.
O que pergunto é : Para quem você vive ? Seu trabalho é mero desejo de consumir, ou você trabalha por alguém ou para algum tipo de ideal ? Existe algum sentido em sua dor, ou sua dor é mera disfunção de um tipo de erro de fabricação ? Você crê na alegria do mundo ou procura a felicidade ? Percebe a diferença entre o alegre, sempre ligado, sorrindo, histéricamente falante, cheio de planos e truques; e o feliz, satisfeito, portanto, estável.
O mundo, hoje, ama o alegre e desencoraja o feliz. O alegre é otimista, mas ele precisa de coisas para continuar feliz. Ele se move, compra, agita. O feliz é realista. Ele sabe que sua felicidade independe do exterior. Ele vive. O alegre depende de fazer, o feliz precisa de paz.
O melancólico é velho como um campo devastado pela guerra, um coração partido pelo fim das coisas, uma alma aterrada pela imensa frieza do cosmos e dos deuses. O deprimido é moderno como um computador mal programado, uma metrópole devastada pela solidão, um medicamento que vicia, alma aterrada pela propaganda falsa e tendenciosa.
Com meus Bergmans, meus Vigo, meu Yeats e meu MORRO DOS VENTOS UIVANTES, vocês sabem qual meu partido. E eu amo esse partido... como o amo...
A melancolia é produtiva. Na pior das hipóteses nos dá chatos pretensiosos. A deprê não produz nada, é o vazio da fertilidade. Creia : nenhum verdadeiro deprimido torna-se artista. No máximo, ele é um orfão profissional. O melancólico constrói mundos alternativos. Feitos de lágrimas, saudades e rancor. Os dois são vistos como perdedores. O deprimido acredita ser um derrotado, o melancólico tem orgulho de sua derrota, para ele, quanto mais distante deste mundo, melhor. O deprê ansia por ser aceito. Consome. Consolos para uma tristeza que não se cura. Consome remédios, terapias, livros de auto-ajuda, filmes bacaninhas, canções que acalmam. Consome bebida, cigarro, festas sem sentido, baladas frustrantes, roupas novas que nunca usa, viagens sem aventura e aventuras sem viagens. E se entrega ao vazio da impotência. Da infertilidade.
O melancólico, com sua alma velha e romântica, desconfia de toda ciência. Pode até usar remédios, mas usa-os errado. Vai a terapia para desafiar a própria terapia. Cria sua crença. Se entrega a livros de poesia, de simbolismo místico. Viaja nas notas de canções que ninguém escuta, são só dele, e se alguém mais as ouvir, o melancólico melancolicamente deixa de apreciá-las. Os seus filmes são filmes sobre os sonhadores, os fora de lugar, os fora do tempo. Ele foge de baladas e de festas, foge de tudo que lhe pareça comum, banal, vulgar. A melancolia é incurável por ser amada pelo triste. Ele mantém esse doloroso orgulho. A potência de gerar desesperança.
A melancolia só é possível no mundo da arte e da religião. Tristeza que se espelha no santo e no poeta. A depressão é filha da ciência e da indústria. Tristeza que se espelha na funcionalidade e na utilidade. A pergunta do primeiro é : Porque o mundo é tão sem sentido ? O segundo pergunta : Porque eu sou assim ? O melancólico olha e sofre. O deprimido não olha, fecha-se em seu umbigo.
Aldous Huxley aqui no Brasil, em 1960, disse numa palestra que o mundo caminhava para a imagem exata do inferno dos hindús. Nos Upanishads, eles descrevem o inferno como o reino do desejo sem possibilidade de saciedade. Você quer, obtém, e continua desejando. O deprimido é o ex-desejante. Ele acredita que o erro foi dele. Crê nesse inferno. O melancólico culpa o mundo. Percebe a armadilha, mas fica sofrendo por ela existir.
O que pergunto é : Para quem você vive ? Seu trabalho é mero desejo de consumir, ou você trabalha por alguém ou para algum tipo de ideal ? Existe algum sentido em sua dor, ou sua dor é mera disfunção de um tipo de erro de fabricação ? Você crê na alegria do mundo ou procura a felicidade ? Percebe a diferença entre o alegre, sempre ligado, sorrindo, histéricamente falante, cheio de planos e truques; e o feliz, satisfeito, portanto, estável.
O mundo, hoje, ama o alegre e desencoraja o feliz. O alegre é otimista, mas ele precisa de coisas para continuar feliz. Ele se move, compra, agita. O feliz é realista. Ele sabe que sua felicidade independe do exterior. Ele vive. O alegre depende de fazer, o feliz precisa de paz.
O melancólico é velho como um campo devastado pela guerra, um coração partido pelo fim das coisas, uma alma aterrada pela imensa frieza do cosmos e dos deuses. O deprimido é moderno como um computador mal programado, uma metrópole devastada pela solidão, um medicamento que vicia, alma aterrada pela propaganda falsa e tendenciosa.
Com meus Bergmans, meus Vigo, meu Yeats e meu MORRO DOS VENTOS UIVANTES, vocês sabem qual meu partido. E eu amo esse partido... como o amo...
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