OS VIVOS E OS MORTOS- JOYCE E HUSTON

No começo da estrada a coisa veio como golpe de vento frio em meu rosto. Melhor, um tapa e uma palavra dura : - Acorda !
Após esse acordar eu olhei para todos os rostos e não mais pude vê-los em sua fantasia falível.
A vida me revelou sua jóia. Pedra gelada que queima as mãos de quem a acaricia.
Você vive e vê um milhão de finais...e aquilo que não parte, afundando em saúde e beleza, desfaz-se lento e macilento, na triste morte de coisas esquecidas.
Dia a dia a vida entrega-se aos finais. Se tudo é finito o que tem valor ?
No começo da estrada essa neve cai sobre minha cabeça e clareia a visão de meu futuro, se tudo parte e fenece, o que faz a vida valer ?
Melhor ser então o que morre logo, com ombros altos e brilho na face a se deixar roer pelas dores das manias e os ritos da senilidade. Pois não existe amor velho.
Se os outros soubessem... é impossível ambicionar perante a ruína e é grotesco pensar em glória ao se saber onde todas as glórias vão.
Livros e música e tudo o que permanece é a Lua que faz silêncio e o negro vazio do céu.
Meu amor permanece por ter sido morto jovem. Permanece como um cantor e como sua canção. Amor que não conheceu a secura de rugas e a tolice de papadas.
E desde aquele vento frio estourando em meu rosto nada tem valor perante a Lua.
Suas alegres conversas são rolhas voando e caindo no lixo. Esta festa tem a duração de um ronco. Mas o canto daquele amor falido, esse nos acompanha até o vazio.
Toda a rua tem sua morte e em todo dia há mortos esquecidos. Nada será amanhã belo como agora, a não ser o amor falecido...

Escrevo isto após assistir " os vivos e os mortos" de Huston e após reler "the dead" de Joyce.
Em meio ao tolo bla bla bla de uma noite, nasce a lembrança de uma paixão morta.
E nada vivo tem o peso desse amor falecido.
Conto e filme, tanta coisa e só isso.
Conto, tudo.
Filme, lindo.
Joyce também percebeu cedo que só a morte importa.
Huston desde sempre só flertou com ela. Esperou-a para fazer seu filme mais pessoal.
É só isso.
A Lua fria e o vazio do céu. E alguém que também percebeu...

CRAZY HEARTS/ VIRTUDE SELVAGEM/ HUSTON/ MASTROIANNI

PERGUNTE AO PÓ de Robert Towne com Colin Farrel, Salma Hayeck e Donald Sutherland
Muito fã de Fante sentiu vendo este filme o que senti vendo Alice de Tim Burton e o Sherlock. Espero que agora compreendam minha aversão. Se é pra ser tão infiel a obra original, porque não criar uma ficção completamente nova ? Muito simples : é mais fácil usar a griffe já estabelecida. Burton fazendo Alice causa um hype que não causaria Burton criando uma nova história. Towne, que foi grande roteirista ( Chinatown ) dirige sem qualquer tesão. O filme é banal. Mas ainda poderia se salvar se o ator fosse menos ruim. Bandini clama por um Montgomery Clift, um frágil/agressivo. O que temos é Farrel. Repare que ele interpreta como cartoon. Parece que sua fonte são as "ricas" expressões faciais do Spirit ou de Clark Kent. Existe algum filme com Hayek que valha a pena ? Acho que só os de Robert Rodriguez. Nota Zero.
CRIME EM PARIS de Henri Georges Clouzot com Bernard Blier e Suzy Delair
Que maravilha!!!! Totalmente restaurado, a fotografia em p/b cintila. É, óbvio, sobre um assassinato. Sabemos quem é o culpado, mas a polícia irá descobrir ? O policial é atuação soberba ! Aliás todo o elenco brilha. E é de surpreender o liberalismo do cinema frances da época. O policial tem filho negro adotado, há uma paixão lésbica e os tiras são todos sádicos. Isso num filme de 1947 !!!! Os críticos da nouvelle-vague odiavam Clouzot. Truffaut dizia ser ele o símbolo do cinema velho. Depois, quando passou a dirigir, François se arrependeu dessa opinião. Clouzot sabia tudo. Seus filmes, espécies de Hitchcocks mais falados, são sensacionais. O Salário do Medo é uma obra-prima e este não fica tão longe. Sujo, cheio de sombras, atemporal. Nota 8.
O MÉDICO E O CHARLATÃO de Mario Monicelli com Vittorio de Sica e Marcello Mastroianni
Jovem médico chega a aldeia do sul da Itália, lugar com 50 anos de atraso. Lá, ele sofre apuros para convencer o povo a largar o charlatão-curandeiro que os atende. Comédia de Monicelli. Alguém sabia fazer melhor ? Mastroianni faz o típico papel do começo de sua carreira : o bonitão tolo. Não fosse Fellini, que lhe deu outra estrada em Dolce Vita, ele seria desperdiçado para sempre nesse tipo de papel. Vittorio rouba o filme, o charlatão é criação de gênio, mentiroso, charmoso, frio, inteligente. "- Trouxeram sua fé ? Trouxeram sua crença ? Trouxeram seu amor à Deus ? Trouxeram 20 mil liras ? " O filme se passa na típica aldeia pobre dos filmes italianos da época, é um paraíso de gente cômica e mulheres bonitas. Um prazer. Nota 7.
CRAZY HEART de Scott Cooper com Jeff Bridges, Maggie Gyllenhall, Robert Duvall e Colin Farrel
O filme é apenas Bridges. Não é sua melhor atuação ( o Vendedor de Ilusões é seu grande papel ) mas lhe deu o oscar. Demorou. O filme não é nada parecido com o de Mickey Rourke, quem disse isso não viu este filme. As músicas são boas ( T Bone Burnette ) mas podiam não ter essa maldita mixagem anos 80, a bateria soando muito alta e tudo parecendo limpo e sem erro. Quanto ao filme, que fiz força para gostar, é uma banal história sobre alcoolismo e estrada. Com paisagens de western ele consegue ser chato. Fico pensando em como filmes como este e Up in the Air ou Guerra ao Terror conseguem tanto destaque. Não são ruins, são comuns. Nunca foi tão fácil conseguir chamar a atenção com tão poucas idéias. Desse jeito, Clint e Resnais vão filmar pra sempre.... Nota 3.
O SENHOR DA GUERRA de Franklyn Schaffner com Charlton Heston e Richard Boone
Muito reprisado na velha Record dos anos 80. A história, cheia de pseudo-exotismo, fala de nobre que toma posse de castelo miserável na Normandia em 1100. É sempre bom ver a idade média retratada sem muita produção, mas o filme se leva a sério demais. O texto, raso, tenta ser Shakespeare. Não dá ! Heston e Schaffner melhorariam muito dois anos depois com o excelente Planeta dos Macacos. Este é nota 4.
VIRTUDE SELVAGEM de Clarence Brown com Gregory Peck, Jane Wyman e Claude Jarman
Technicolor....eu cheguei a ver o technicolor no cinema. Minha mãe me levou para ver Cantando na Chuva ( uma reprise em 1975 ) e pirei com aqueles azuis e verdes. Mas um dia se criou outro sistema de cor, o Eastmancolor da Kodak, ( nos anos 60 ), sistema muito mais barato e o Technicolor deixou de ser utilizado. A diferença é que o Technicolor é muito mais brilhante, artificial, operístico. As cores gritam e ainda me lembro do assombro que era ver cores mais coloridas e vibrantes que as da vida "real". Estranho...com o technicolor a sensação era a mesma de se ter miopia e colocar óculos : voce olhava a tela e via a vida focada e colorida pela primeira vez. O eastman é como é, as cores da rua, mas o technicolor eram as cores do sonho...
Dito isto, este é um clássico do cinema technicolor. Foto de Charles Rosher premiada. É um filme museu. O mundo que ele exibe está completamente extinto. Acompanhamos a saga de um menino nas matas da Florida. O filme exibe sua transformação em adulto, seu rito de passagem. O filme é piegas, o menino ama tanto o pai que chega a dar enjôo, o bosque é belo ao excesso...e com tudo isso, o filme é maravilhoso. Se voce ainda tiver salvação, não for cínico terminal, irá penetrar naquele cotidiano de caça ao urso, refeições fartas, enchentes, colheitas e socos. Irá perceber que neste filme existe alguma coisa que perdemos, coisa que só se perde uma vez : inocência. Passe por cima do excesso de " hey pa " do garoto e mergulhe sem medo na emoção simplória deste filme sobre natureza, e principalmente, sobre a dor de se largar a infancia. O final, quando o menino "perdoa" os pais é perfeito. Ele é obrigado a ser homem, finge aceitar isso, mas na última tomada vemos que ele sonha com a infãncia, será sempre só.
O pai, aliás, repete isso várias vezes : crescer é ser só.
O filme tem ainda uma das mais belas cenas de infãncia do cinema : o garoto correndo pela floresta com bando de gamos. A simplicidade extrema falando tanto...
Foi imenso sucesso de público e crítica, premiado, e tem Peck, muito jovem, ensaiando seu mítico Attichus Finch, papel que lhe daria a eternidade no futuro.
Bem, é um filme piegas, simples e povão; mas macacos me mordam, como consegue ser tão bom ? Nota DEZ.
OS VIVOS E OS MORTOS de John Huston com Anjelica Huston e Donal MacCann
Em 1987, sabendo que ia morrer ( quem não vai ? ) Huston, usando máscara de oxigênio e em cadeira de rodas, dirigiu esta adaptação de um conto de James Joyce ( The Dead, talvez o melhor conto que já lí ). Fala de uma reunião de Natal em Dublin. Músicas, comidas, bebidas, danças e festa. E também inseguranças, dúvidas, ódios, dores e um segredo revelado. É só isso. A maestria de Joyce foi a de fazer com que uma sala e meia dúzia de pessoas comuns consigam nos fazer ver a transcendencia da vida. Huston quase chega lá. Seria impossível chegar.
Que belo caminho !!! Do Falcão Maltês até aqui.... O filme, que é só conversa e dois cenários, prende a atenção dos que conseguem ainda escutar palavras. Os atores estão ótimos e as cenas finais explodem em poesia triste. Huston se despede da vida falando de um amor que sobrevive a morte. De um falecido que continua a modificar a vida. Que belo Adeus......nota Dez.

CATOLICISMO

Se eu acreditasse em Deus eu seria católico. Explico.
È claro que não gosto do passado intolerante da igreja. A hipocrisia, inquisição etc. Mas quero falar de hoje, de agora, e penso que não há melhor antídoto para as loucuras do tempo presente que uma dose de catolicismo na veia.
Americanos odeiam católicos. Católicos não acreditam em escolha. E o poder escolher é a base da religião americana. Um americano crê que ele pode ser o que deseja. Pode seguir qualquer seita cristã, pode fazer de sí o que sua vontade conseguir. A tradição religiosa da Europa é oposta a isso. Sua família tem uma religião e voce faz parte dela. Se voce rompe com isso, um preço é pago. Americanos odeiam pensar em preço. É esse modo de pensar ( somos aquilo que queremos) que faz com que a psicanálise seja tão mal entendida nos EUA .
Mas não pense que este é um texto anti-USA. Comunas pensam em religião como ópio. Uma tolice. Religião não é ópio, não é só política, ela é parte do ser-homem, do existir. Negando ou aceitando, todos fazemos parte de uma sociedade religiosa.
Na Alemanha, na Inglaterra, na Suiça e na América, desde sempre é de bom-tom detestar padres. Pessoas cultas sabem que em conventos e em seminários impera o sexo. Para esses sábios nórdicos, sexo é sempre uma doença. Lí a pouco que nos EUA sexo continua a ser uma perversão. Não é parte da vida, é show de taras, de neuroses, de sofrimento ( vide Madonna e agora os rappers e Gagas... sexo como loja pornô ). Católicos são mais sensuais porque para eles sexo é tentação do mal, um delicioso pecado. "Estou gosando! Perdoai-me !!!! " contra " Fuck me !!! I'm sick !!!!"
Perseguem-se católicos. Só judeus são mais perseguidos. Padres são pedófilos ( como se professores, médicos e técnicos esportivos não fossem ), Roma é mentirosa ( tudo que envolve política é ), toda freira é lésbica, todo padre é gay. Para o mundo não católico, preso no supermercado do goso imediato e do tudo-posso, abrir mão de sexo é não só mentira, é impossível. Será ?
Tendemos a hiper-valorizar nossos remédios. A adorar aquilo que nos consola. Para o sem sentido mundo moderno, sexo é viver. Quem ouse negar isso é falso, ou pior, só pode ser pervertido. É inadmissível que alguém abra mão daquilo que te parece tudo.
Católicos também incomodam pela mania de falar em morte, ressurreição, pecado, proibições. Para o mundo século XXI tudo pode, desde que seja sua verdade sincera. Ser voce mesmo, não se deixar doutrinar, isso é ser livre. Livre do que e para que ? Não interessa. O pensamento infantil mágico, o pensamento de que se eu quiser eu tenho, é o pensamento mais anti-católico possível. No catolicismo, Deus é juiz, ele decide e escolhe, somos peças de um tabuleiro.
Admiro muito quem nasce católico e se mantém firme em sua fé. As seduções fáceis são muitas. Crer em "preço a pagar", pedir perdão a Deus, saber que não somos donos da vida e da verdade.... me parece um modo de pensar e viver muito são para tempos doentes. Além do que há algo de familiar, de confortável em tudo isso.
Respeitar pai, não roubar ou matar, não dar falso testemunho, não cobiçar a mulher do próximo.... o mundo precisa desses "nãos" para funcionar, o homem precisa desse pai para ser feliz.
Volto a dizer, se eu acreditasse em Deus não teria dúvida em ser católico.
Nascí católico. Vejo a vida como um católico a vê ( a saga de um Cristo expiando culpas ) sinto o amor como um católico ( a mulher como santa/puta, o amor como sofrer no paraíso ) faço as perguntas católicas ( o que é certo ? como perdoar ? como encontrar a luz ? ) mas me falta a fé, e sem fé me falta tudo.
Jamais faria como certos seres, que envergonhados de crer num Deus tão "vulgar", pegam sua fé e a jogam no supermercado de igrejas, achando que basta querer para se tornar budista, umbandista, kardecista ou sufista. Passam a vida usando religiões como remédio, budismo para nervosismo, kardecismo´para o medo de morrer, outra para ganhar dinheiro.
Voce nasce numa religião e mesmo a negando será sempre um ex-católico ou um ex-judeu.
Uma bela religião essa de São Pedro, incompreendida, usada para fins errados, aviltada e odiada por todos que se sentem culpados, mas é a raiz do mundo latino.
Sou um ex- católico. Não odeio ou combato católicos. Não caio nessa lei de mercado.
Mas lí Nietzsche, Voltaire, Darwin....

PARA QUE SERVE A PINTURA ?

Indo ao MASP. Ausente. Pensando em tudo que dá pra pensar. Andando. Apressado. Olhando e ignorando a gente que passa e as coisas que vão.
Diante de Chagall.
Olhar um quadro ( gravura ) é sempre estranho. Primeiro voce sente um frio na mente. Nenhuma emoção. Seu cérebro está condicionado a só enxergar imagens em movimento ( estamos virando bichos ), e diante de voce há uma imagem estática. A primeira vontade é a de andar, fazer um travelling pelas imagens, para que assim elas se movam.
Mas voce permanece. Continua olhando. Sem emoção nenhuma. Sem analisar. Olha e olha. Então voce começa a perceber que tudo alí é redondo, que não existe solidão nas imagens e que há uma imensa inocência naquilo tudo. Voce anda e vai às imagens coloridas. Animais, gente, aldeias, peixes, galos. Chagall é o último artista feliz. Note : ele não resolve fazer arte feliz ( como o fez Matisse ). Ele é feliz. Nosso mundo, 2010, é de Picasso e Braque, Chagall é a mensagem do que perdemos. Sinto ser irrecuperável.
Uma imagem vermelha. Lágrimas em meus olhos. Alí vejo o que eu poderia ter sido.
Uma imagem em verde. Canção em meu mais profundo. Eu vivi aquilo. Um eu que me veio de meu avô. Ele sabe toda aquela canção.
Mas é pra isso que serve a pintura ? Não. Ainda não.
Saio da sala de Chagall. Quero ver os holandeses.
Todo aquele que ama pintura começa pelo sensacional. Dali ou Bosch ou Van Gogh. Depois voce começa a entender Klee, Picasso e Kandinski. Mas ao final, voce percebe que o momento maior esteve sempre em Velasquez, Rembrandt e Caravaggio. É como ler. Primeiro Heminguay ou Hesse, depois Dostoievski e Kafka, e no fim, Cervantes mais Tolstoi.
Eis Rembrandt................
Chagall é um poeta maravilhoso. Mas aqui está um deus ! O dono de um segredo perdido. Se Chagall fala a meu coração, se ele canta em minha alma, Rembrandt é a própria criação. O quadro é um ato de divinização.
Mas é para isso que serve a pintura ? Será ?
Tem um gigantesco Van Eyck por perto. Um retrato. Milhões de fotos digitais tiradas no desespero de eternizar alguma coisa.... E aqui, um plácido retrato a óleo. Eterno. As duas mil poses que voce faz para as lentes mostram menos de seu ser que esta única pose deste modelo. Ele vive e está completo aqui. Seus retratos digitais são histéricos. Macaco fazendo pose. Neste óleo mora uma alma. Lânguida.
Saio do MASP e pego um bus.
Entra uma menina linda. Seus olhos sorriem e refletem a luz do sol forte. O nariz tem uma leve curvinha para cima e percebo que há uma pinta no pescoço. Ela se senta ao meu lado e usa uma correntinha no pulso. Na rua passam arbustos verdes por onde a luz passa filtrada. Minha ansiedade se foi, estou estranhamente calmo.
Quando chego em casa abraço meu cão e almoço olhando as maritacas brincarem na mangueira. O verde de suas penas e o verde das folhas. Meu cão está feliz.
Eu aprecio.
Entendí.

MIKE NICHOLS/ MOULIN ROUGE/ O SEGUNDO ROSTO/ ALEC GUINESS

QUINTETO DA MORTE de Alexander MacKendrick com Alec Guiness, Peter Sellers e Herbert Lom
Os irmãos Coen refilmaram este filme usando Tom Hanks. Foi um fiasco ! Este é o original. A velhinha é deliciosa. È dela esta comédia muito inglesa em que grupo de ladrões se enrola para eliminar sua senhoria. O filme não é a genialidade que eu esperava. Sua fama é exagerada. Mas tem um show de todo o elenco e um roteiro que vai num crescendo até seu impagável fim. Not 7.
INOCENTE SELVAGEM de Nicholas Ray com Anthony Quinn, Yoko Tani e Peter O'Toole.
Assiti este filme vinte anos atrás, na tv Manchete, de madrugada. Na época o considerei genial. Mostrando como o gosto muda ( no meu caso, com o dvd aumentei muito minha exigência ) revendo-o agora fiquei abestado com sua tolice. Tudo é constrangedor. Quinn faz um esquimó ( o filme é história sobre cotidiano esquimó ) muito mexicano e toda a trama é pobre e previsível. Uma besteira. Nota 1.
ARDIL 22 de Mike Nichols com Alan Arkin, Anthony Perkins, Martin Sheen, Jon Voight, Orson Welles, Art Garfunkel.
Primeiro foi um best-seller com conteúdo, de Joseph Heller. Uma impiedosa sátira à guerra e as corporações. O livro previa a transformação da guerra em negócio privado. O filme, super-produção, num tempo em que se faziam super-produções de "arte", foi gigantesco fracasso de público e de crítica. Por dois motivos : o principal, ele teve o azar de ser lançado com MASH, que é muito melhor e muito diferente. Segundo, é um filme hiper azedo. Tudo nele é desesperança, as cenas são muito cruéis e ele caminha para um final negro e vazio. Mas é um grande filme. Tem uma das mais fantásticas fotografias da história ( de David Watkins ) toda feita às 14 horas ( sim meus caros, podia-se dar ao luxo de filmar toda a película às 14 horas de cada dia ) o que fez do filme um pesadelo "onde todo dia é 14 horas do mesmo dia ". Os atores começam interpretando como em farsa, depois vão se transformando em realistas e terminam num estilo quase documental. Nunca se filmaram aviões tão potentes, pilotos tão perdidos, lideranças tão maldosas. Cenas fortes se sucedem e ele, sem música, sem extras ( parte do clima de pesadelo é obtido pelo quartel sem extras, vazio, só com oficiais ) vai pegando seu interesse, sua atenção. É um filme invulgar, muito ambicioso, corajoso e louco. Atenção aos extras do dvd. Mike Nichols e Steven Soderbergh comentam todo o filme, cena a cena. Soderbergh, fã da fita, confessa já ter visto incontáveis vezes este gigantesco paquiderme, cheio de erros, e com acertos magníficos. Ardil 22 é belíssimo !!!! Nota 9.
CRAZY de Jean Marc Valée
Escreví crítica abaixo. É um filme que me derrubou visceralmente. Mostra com bela sinceridade a fase mais cruel da vida : a adolescência. Voce se apaixona por toda aquela família, principalmente os pais. Filme canadense, com colorida estética anos glitter. Nota 9.
MOULIN ROUGE de John Huston com José Ferrer e Zsa Zsa Gabor
Oswald Morris cria bela fotografia. O filme se parece com tela de Toulouse-Lautrec. E é o que acompanhamos, a vida de Henri de Toulouse-Lautrec. Belos cenários, belas roupas, belas cores. Péssimo roteiro. Huston dirigiu o filme sem interesse ( na maioria de seus filmes ele pouco se interessava ). É um enfadonho e raso novelão sobre um deficiente físico. Nota 2.
O SEGUNDO ROSTO de John Frankenheimer com Rock Hudson
Que bela geração essa americana de 55/65. Lumet, Nichols, Arthur Penn, Peckimpah, Mulligan, Roy Hill, Schaffner, Pollack, Cassavettes e este viril Frankenheimer. Este filme, que tem uma fotografia em p/b do mestre James Wong Howe, fotografia de um modernismo ainda não igualado, é o mais asfixiante pesadelo que já assisti filmado. Conta a história de uma empresa que faz "renascimentos". Voce paga uma quantia e tem seu rosto redesenhado, sua voz remodelada, e novo nome, profissão, endereço, biografia. Todo seu passado é jogado fora e voce recomeça do zero. Mas o filme mostra isso, hoje um sonho mais desejado que em 1966, época do filme, como um pesadelo kafkiano. Nada faz sentido, a vida se torna vazia e sem objetivo, tudo se esvai. Rock Hudson, em atuação perfeita, se rebela e tenta voltar atrás. È impossível, ele pertence à corporação. Seu grito na cena final é momento de horror cósmico. Trata-se de um filme desagradável, corajoso, viril sem respiro. E tem uma cena de cerimônia dionisíaca com pré-hippies muito boa. Nota 8.
REVELAÇÕES de Robert Benton com Anthony Hopkins, Nicole Kidman, Ed Harris, Gary Sinise
O texto é baseado em Philip Roth. O elenco é excelente ( com excessão de Nicole. E houve época em que se achava ser ela grande atriz.....) mas o filme, dirigido pelo flácido e molenga Benton, é uma bomba. Pensar que este diretor já foi roteirista de gênio. E ainda possui um Oscar de direção por Kramer versus Kramer.... Boas idéias são todas desperdiçadas e o filme tem alguns momentos de inacreditável ruindade. Nada convence. E ainda é cheio daquele jeito meio deprê e escuro de filminho de arte anos 2000, diálogos ditos baixinho, momentos de silêncio, violência em surdina... dá um tempo!!!!!!! Que saco! Nota Zero!!!!!

RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM - JAMES JOYCE

O pai. Acompanhar esse pai às tabernas. Ele é um bom aluno. Escola de jesuítas. Padres. O catolicismo irlandês. Jesus e Maria. Ele e ele.
Stephen Dedalus. Dedalus fala com Dedalus. No mundo infantil de Stephen só existem padres e ele mesmo. E a injustiça. Os castigos dados pelos padres.
Cada parte do livro ( pequeno volume ) é uma etapa da vida de Stephen. Para onde ele caminha ? Descobre o sexo com uma puta. A culpa. Um dos mais tortuosos capítulos já escritos : Dedalus cai do céu. Ele cai, desaba, mergulha na vida. Adeus à igreja, adeus a inocência. A consciencia culpada luta com o corpo desejante. Santos e Jesus. A escrita é um labirinto.
Stephen adora andar pelas ruas. Caminha e caminha. Para onde ele vai ?
Já crescido, um jovem. Discute teoria estética, discute a Irlanda. Um poço de rancor, de ira mansa, um caminho de solidão.
O livro é isso : da infãncia ao despertar de um jovem. Ele nunca posa de vítima, Dedalus sofre mas assume. Escolhe partir. Sem família e sem Irlanda. Nada de amigos. Todos os outros personagens do livro são fantasmas. No mundo de Stephen existe apenas Stephen. O livro é luxuriantemente moderno. O corpo começa a falar.
Não é fácil esse caminho. Nem mesmo para o leitor. O livro fala e fala e fala. A igreja ocupa o centro. Ícones e vestes de sacerdotes. E as ruas sujas. O texto é tortura tortuosa. Voltas e caminhos. E jóias entre as vielas escuras e podres.
" Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida ! Um anjo selvagem lhe tinha aparecido.... " Esse é o caminho de Dedalus. Mas há mais :
Ele percebe que toda arte que nos dá repulsa ou que nos atrai não é válida. A arte superior SUSPENDE a vida. Não causa nem repulsa e nem atração. Olhamos suspensos. Paramos. Tudo o que nos pega pelo sentido da atração ou da repulsa é pornográfico. Explícito. O prazer estético se encontra na SUSPENÇÃO. O momento onde não existe nem atração e nem repulsa, nem prazer e nem dor, onde não há tempo. Voce enxerga com a alma, não com o corpo.
É esta a mais bela e perfeita definição do que seja arte que já lí. Não fosse por mais, o livro valeria por ela.
Deve ter sido duro ser Joyce. Ele não baixa a guarda nunca. Não amolece, não agrada, jamais deixa de fazer o que quer fazer. Ele tem o rigor e a fé do jesuíta. Crê no seu destino, crê em sua mente e nunca se corrompe. James Joyce era meio santo. Este duro, crispado, irado livro é um atestado de fé. A fé de Stephen Dedalus em James Joyce.

MAL DO SÉCULO

Um cara bem sucedido. Descreva esse cara...... excelente saúde, físico perfeito, jovem, sorridente. Vários amigos, vários amores, sempre fazendo coisas legais. Antenado às novidades, rápido e ágil, cheio de poder. Engraçado, acabamos de mirar uma máquina. Funcional, revisada, último tipo, leve e rápida, belo design. É a descrição de um carro ou um celular.
Depressão. Um homem jamais conseguirá ser máquina.
Um cara invejável. Pele sem mancha ou ruga. Magro´porém forte. Sangue sem colesterol. Taxas corretas de açúcar. Não fuma ou bebe. Alongado e concentrado. Sem gastrite e sem prisão de ventre. Oito horas de sono. Verduras e legumes. Muita água. Dentes brancos.
Depressão. Um homem jamais é apenas seu corpo.
Coragem. Honestidade. Honra. Inteligência. Lealdade. Fé. E poder também. Esses eram os valores pelos quais a humanidade sempre se pautou. Ser um bom filho, um bom pai, um bom cidadão e um bom cristão. Objetivos hipócritas, porém, humanos. Qualidades INTERIORES.
Hoje. Fotos tiradas às centenas. Para provar ao mundo o quanto sou vivo, o quanto sou bacana, o quanto sou feliz. Não mais existo perante Deus e cidade, existo apenas em seu olho. Me coloco em imagens de tela, em vozes distantes, tento existir. Veja : eu sou isto que voce é.
Ontem. Eu existo pelo meu nome. Sou Silva, filho de Silvas. Sou brasileiro, sou paulista. Mais, sou filho de Deus. Existo visto por Deus. Sou continuação de meu pai.
Diz minha gurú ( Maria Rita Kehl ) citando Winnicott : a vida só pode ser agora se houver uma narrativa. O passado carregado para o futuro. Pois o futuro nunca existe, é apenas uma idéia, e o presente torna-se passado no momento em que surge. Apenas o passado nos dá o CONFORTO da segurança.
Máquinas não têm passado. Ela é somente um presente. O corpo não tem futuro. Será a morte. Sendo máquina e corpo vivemos sem passado e sem futuro. Um hoje que é nada.
Mal deste século : DEPRESSÃO.
Não quero e não posso ser máquina. Não sou apenas um corpo. Páro. O deprimido renega a máquina, ele deixa de funcionar. O deprimido nega o corpo, ele sente dor e medo. Ele quer ser humano.
Mal do século XIX : histeria e esquizofrenia. Não sou amado por Deus. Não tenho família ou país. Estou fora do coração do mundo. Não consigo crer ou seguir as regras. Quero ser livre.
Hoje o mundo é o doente do século XIX. Não cremos, não pertencemos, não temos regras. Somos livres. Herdamos a saudade de ser humano.
Onde meu lar ? Todo o tempo nos vigiamos. Ser máquina de ponta, ter corpo funcional. Dá pra crer que não era assim ? Que ninguém se preocupava em parecer jovem, parecer alegre, ter dentes brilhantes ? É inacreditável, mas a pressão já foi bem menor.
Máquinas são revisadas. Precisam fazer aquilo para que foram feitas.
Pensamos que a vida é uma doença. Funcionar é saúde. Quem funciona é máquina, humanos vivem. Viver é envelhecer, perder, chorar, ter medo, ficar doente e morrer. Viver é falir. A vida não " funciona", ela é. Remédios e virtualidades para esquecer de viver. Curar a vida.
Sem envelhecer nada cresce. Sem o vazio da perda não existe ganho do novo. Sem choro não se toma decisão. Sem o medo a vida nada vale. Sem doença não existe a interdependencia. Sem a morte inexiste a criatividade. Se viver é anti-funcional, curar a vida é não viver. Quarto limpo e vazio onde nada acontece.
O deprimido grita por acontecimentos. Sua vida acontece. Ela desaba.
Mesmo eu, ser saudade, que ora pela idade média, que ama os simbolistas decadentes, eu, homem-passado, homem vitoriano, sou miserávelmente um humano século XXI. Apressado, afobado, estressado. Tentando se curar da vida e se deprimindo. Me comparando a máquina ( e sempre perdendo na comparação ) e querendo ser um corpo ( todo o segredo da vida TEM de estar na química e na biologia !!!! ). Um filho do século, procurando os rastros de seus passos e nunca os encontrando. Vazio como o quarto limpo.
O homem hoje pergunta : O que quero ? O que tenho ?
As perguntas sempre foram : O que sou ? De onde venho ?
O deprimido ainda pergunta quem é. Ele sabe que já perdeu.

C.R.A.Z.Y. - JEAN-MARC VALÉE

O cinema é sempre a última das artes. Tudo o que acontece antes em pintura, música ou literatura, aporta uma ou duas décadas mais tarde nas telas. Só a partir de 2000 é que a geração que cresceu/nasceu no ambiente glitter/punk dos anos 70 começa a dar suas cartas. Esse tipo de filme Bowieano, que tem como representantes Todd Haynes, Stephan Elliot e Alexander Payne, traz agora este deslumbrante, obrigatório, raro, magnífico : CRAZY.
Valée dirigiu em 2010 o ótimo YOUNG VICTORIA, e pouco antes nos deu este CRAZY, filme muito pessoal e uma jóia rara. Vamos ao roteiro.
Acompanhamos a história de uma família canadense. Católicos ( o filme é cheio de belas e engraçadas cenas na igreja ) e francófila. Essa "saga" começa em 1960, com o nascimento do quarto filho homem. O pai, fã de Aznavour e de Patsy Cline, e os irmãos, um intelectual, um rebelde e outro que é esportista. E nosso herói, Zac, que talvez seja gay. Que talvez seja um tipo de santo. Ou ainda apenas um cara tentando existir. Assistimos seus aniversários ( ele nasce em 25 de dezembro ), seu crescimento, sua camaradagem com o pai. A infância dele é comédia, mas o filme se torna drama na segunda etapa. Em belo corte, eis Zac adolescente, começando a descrer da igreja ( há uma cena belíssima ao som de Sympathy for the devil na missa ) descobrindo maconha e com o quarto, lógico, cheio de fotos de David Bowie. Fico pensando o que David deve pensar dessa dúzia de tributos que o cinema lhe tem prestado neste século XXI. Ziggy era mesmo um cara do futuro...
Zac começa a ter dúvidas sexuais e a barra se torna muito pesada. Brigas com o pai, com os irmãos, isolamento na escola, rompimento com a igreja. Mas, aí vem a habilidade do filme, ele jamais pesa, jamais se torna dramalhão, o filme prefere brilhar, ser imparcial, mas jamais frio. Ele flui. Nunca tenta ser arte, opta por contar sua história. E atenção : apesar da belíssima cena com a música Space Oddity, não é nunca um filme de rock.
Na terceira parte Zac vira punk e nesse começo de anos 80 a coisa pesa ( e os 80 foram muuuuuito pesados ). O filme, então, se torna magistral. Mergulha no drama sem medo e toca profundamente qualquer um que se recorde do que é ser adolescente. Confusão, violência e decepções. Confesso que desde PEIXE GRANDE um filme não me derrubava tão profundamente. Tudo está alí. Toda a merda de se escolher tudo de ruim. Todas as opções de Zac são erradas. Mas não só dele : pai, irmãos, amigos, todos erram sem parar. E nenhum tem qualquer culpa. Menos a mãe. E essa é uma das coisas mais belas do filme. A mãe, sem ser modelo de heroína, é sim o símbolo dessa coisa dolorosa chamada maternidade.
Mas é, e voce só percebe isso ao final, o pai o grande personagem desta obra tão bonita. É ele quem nos derruba. Percebemos a solidão patética, a bobice sem jeito desse ser que sempre se obriga a ser modelo e nada entende ou consegue salvar. Os minutos finais, que luto para não revelar, são hinos à reconciliação e a paternidade. É um filme vasto.
Coisa idiota se tornou o cinema. Se fala tanto ( às vezes merecidamente ) em Clint, Kar Wai, Almodovar, Guerra ao Terror, Van Sant, Coen e etc. E filmes como este passam em branco. Cada vez mais se destaca apenas o que já nasce eleito para ser destaque. O que já vem com griffe. Morreu o boca à boca, e dessa forma os azarões não vingam. Este filme é infinitamente superior a qualquer concorrente a Oscar deste ano ou do ano passado. Quem o viu ?
Jean-Marc Valée tem talento imenso. Espero demorar para ser corrompido por alguma adaptação quadrinhesca. CRAZY dignifica a arte.

ESQUIMÓ

Esquimós nunca falam eu. É estranho pensar, na língua deles não existe a palavra eu e consequentemente, meu. O " eu quero " se torna " ele Tony quer ", o " meu desejo " é dito " o desejo daquele Tony ".
Nosso mundo é língua/palavra. Como pensa quem não se vê como ser único e sim como ele ? É provável que olhem a vida e vejam nela parte de sí. Não um " eu e aquilo ", mas um " ele é aquilo ".
Os esquimós crêem que Deus é um urso. O mundo foi criado pelo urso e para o urso. O urso é o eu. O homem é o homem, ele- o homem.
Nesse modo de pensar, nada é de ninguém. Eles não são donos de nada, inclusive de suas esposas e filhos. As mulheres podem se divertir com vizinhos e os amigos podem pedí-las emprestadas. Os filhos são criados pelo iglú onde moram.
Daí voce pode pensar : - E daí ? O que um esquimó criou de útil ?
E eu te digo : - Já notou que a necessidade de criar, de progredir, só nasce na falta de alguma coisa ? Só cria quem precisa, quem sente uma necessidade.
Quem sabe o esquimó não esteja pleno ? ( Até alguém o convencer de que ele precisa de um Samsung prateado ).
Os esquimós fazem sexo às gargalhadas. Eles transam rindo. Isso revela muita coisa....
Mas se o urso é Deus, como pode um homem-esquimó matar um urso ?
Lí em algum lugar que a tragédia do homem urbano é matar animais inconscientemente. Voce devora hamburgers e bifes sem saber o que são. Voce não sabe, mas sua alma sente isso.
Os esquimós criaram um belo modo de sublimar essa culpa ( e onde eles vivem, ou voce mata ou é morto ), eles têm a certeza de que TODO ANIMAL MORRE ALEGREMENTE. O esquimó não caça o bicho, ele é que resolve se dar em sacrifício feliz.
Se o urso-deus criou o mundo, nada mais natural que ele se dar como alimento para seus filhos, sua criação.
Em nosso mundo não há nada que chegue perto de tão bela justificativa para a morte. Nós comemos hamburger porque é bom e os animais que se fodam.
Fico pensando em quantas possibilidades de vida e de entendimento da vida nossa mente comporta. Quantos deuses podem ser criados e quantas palavras não poderiam ter deixado de existir ou novas combinações não poderiam fazer novo sentido.
Um mundo sem o conceito de " eu sou " é um mundo completamente alheio a nosso entendimento.
" Ele é Tony " significa em última instância a sábia constatação de que a vida não é nossa, de que ser Tony é ser um papel fora de nós-mesmos e de que a alma interior, único eu-válido, é parte, e não indivíduo, de um grande bicho universal.
Ver um urso perdido em gelo, à deriva, é ver a perdição de um deus.

PARA OS QUE AMAM DEMAIS...SIREN - ROXY MUSIC

Um carro tem seu motor ligado e parte acelerado. Esse é o primeiro som do primeiro disco que escutei do Roxy. Todos os seis primeiros discos deles são sublimes, de qual falar ? Falo do quinto, que foi meu primeiro. Tem Jerry Hall na capa, vestida de sereia. Ferry a namorava na época. Casal glamour. Mas ela foi à um show dos Stones e Jagger a fisgou. Foram então quatro anos negros para mr. Ferry. E um longo casamento entre Hall e Mick....
O disco.
Love is the drug. O Roxy cria com Bowie, e quase ao mesmo tempo, a dance-music branca. Isso é love is the drug. O baixo de John Wetton domina a faixa. Ela é como seda. Um cadillac negro rodando de madrugada. Música deslizante, mas que não é retrato do que virá. Love is the drug é a risonha descoberta do amor. Mas para Ferry, o amor sempre dói e já nasce saudade.
End of the line. É um piano tocado só pra voce. E a voz.....a voz de Bryan....é o próprio ato de amar. Bryan canta com voz de fado português, de canção celta, de Chet e Piaf...de corações aviltados. Ouvir end of the line é como navio partindo pra lugar algum, é um lenço ao ar. Canção que traduz a paixão em seu final, a morte da vida, e uma beleza inatingível. Uma pausa para o piano no meio da canção...quando a voz de Ferry volta voce chora. End of the line são lágrimas sem fim e sem motivo. Meu paraíso final e´aqui. Se eu pudesse eu viveria para sempre neste end of the line. O final da jornada : o piano e sons de fundo. A beleza nos consola. Só a beleza salva. End é a beleza. Aos 14 anos resolvi ser fiel a End of the line. Cumpri.
Sentimental fool. Começa como loucura terminal. A guitarra de Phil Manzanera toca agudos e desafinamentos. A banda entra então redimindo essa folia esquizo. Quando a voz desaba é uma melodia de amor apaixonado. Que se traveste no hino dos tolos. Sim, bobos de amor. Pagando o pato. Mas creia, a música vira outra coisa, se torna uma queixa, uma descrição de musas, um caminhar a cadafalso. Todo o disco é bela dor de amor. O Roxy só pensa em termos de beleza.
Whirlwind. É a típica canção do primeiro Roxy. Cinemática confusão de imagens glamourosas. Caleidoscópio e carrossel. Uma festa exagerada de musicalidade e de fogos no céu. O brilho no olho da amada amante. Um espoucar de rolhas e cascata de espuma champagnolante. O solo de Phil é soberbo e a música é toda soberba. O Roxy é para muito poucos.
She sells. Tardes de sol com vento e a lembrança detalhada de tudo o que ela falou. Quando ela cruza meu olhar o céu é já. A canção é pop assumidaço ! Quem dança ? Termina em mais um hino. Este celebra a alegria doce. Este chora a tristeza orgulhosa. Porque toda beleza é dor ? Porque toda alegria é sarcasmo ? O Roxy cria a alegria dolorida e a beleza sarcástica.
Could it happen to me ? Aqui o céu se revela. Medievais sopros e a voz divaga. Ferry é o cavaleiro que volta ferido. Quando descobri o quanto a arte pode ser beleza eterna. Foi aqui. Foi aqui que nasceu tudo ! Tão simples e absurda. Os erros que cometi jamais seriam perdoados e meu futuro estaria em seu inicio, dormindo. Aqui.
Both ends burning. Tocou as três da tarde de um maio de 1976 na rádio Difusora. Fazia sol. A gente não esquece. Foi a primeira vez que escutei o tal de Roxy Music. Dois meses depois eu comprei este disco. Por causa de Both ends burning. Em 2010 eu ainda estou burning!!! 34 anos !!!!!!!! Ela ainda é cristal sobre veludo negro. O synth de Eddie Jobson sibila como vento em morros uivantes. Ainda canto alto fazendo backing para mr. Cool. Em 1976 eu parei meu jogo de botão para escutar a canção no Motorola vermelho e branco. Imaginei um amor perfeito só meu. Continuo burning.
Nightingale. Sempre amei janelas que dão para quintais. E sempre parei para escutar pássaros. Eis a janela e a ave : nightingale. Paul Thompson domina com doida bateria. Pequena canção assobiante ? Não. Há algo de oriental aqui. Uma tapeçaria é o disco. Aqui tece-se a lã do prazer. Andy Mackay toca oboe. O arranjo é a Arábia do delírio. Mas é amor. A voz com violinos é o êxtase. Voamos sobre todos os rouxinóis. Keats !!!!!!!!!! Única certeza da vida : Vale sim a pena viver !!!!
Just another High. O final. Desde seu primeiro acorde : céu. Ferry anjo e ajoelhado, reza ao amor. Não há maior hino a fé no amor. Um crazy guy. Crer no amor. Crer no céu. Crer no calor da paixão. E chorar. Permanecer no hello e no goodbye.... o solo é aceno de conhecimento. Bryan aos 25 anos no auge da poesia. Mergulhando no abismo do futuro fanado. Nada é certo e tudo é claro aqui. Just another high é o próprio amor. Oh como é bom ver voce.... just another crazy guy...... uma menina eterna e um cara doido desde sempre........
Siren é sim canto de sereias perdendo todo marinheiro de ondas vazias. Disco hino, disco guia, memória e estrela cadente. Siren é milagroso.

PARA SOLITÁRIOS E SONHADORES DESMAIADOS

O que mais me espanta nos caras de 11/16 anos de minha escola é seu pavor pelo vazio. Para eles o nada é impossível. Não conhecem o silêncio, estão sempre ouvindo algum som ou alguma conversa. Acordam e compulsivamente se conectam à sua rede. Rede aliás é lugar de peixe preso ou de dormir à sombra... nome que revela muito : ser capturado e adormecer.
Essa galerinha sabe tanto e nada absorve porque abominam a concentração. É impossível para eles fazer coisa nenhuma, parar e pensar, alimentar uma ilusão. Se mexem sem parar. Falam, ligam o celular, aumentam o volume, beijam e beijam e ficam, se conectam, e fazem tudo para não ficar um só minuto solitários. São estações de um gigantesco circuito.
Faço parte disso.
Leio muito menos do que lia. Me concentro mal. Escrevo pior e ouço música enquanto faço coisas. Chego em casa e ligo a tv, o computador, o rádio. Janto de frente para a tela. Menos tempo com meus cães. E usufruo menos de meus filmes. Pego de meu mar de vazio em rede de aço. Mais um.
Mas eu conheci o outro lado. Eu ficava no sitio do meu pai e dava pra crer, firmemente, estar na Rússia em 1880. Eu li Poe a luz de lampião e ficava um mês sem tv, telefone ou música. Era sol e bichos, água e livros, conversas no escuro e chuva com lama. O mundo podia explodir, meus contatos podiam morrer, eu não saberia. Era um tipo de lua de mel comigo mesmo. Dormir ouvindo meu pensamento.
Mesmo em casa não havia esse apelo magnético pela rede. Tardes inteiras sem nada pra fazer, tardes em que o tempo parava, longas e sem sol, em que eu me deitava no chão e ficava olhando o teto da sala. Tardes flanando pelas ruas que eu amo tanto, escutando a água correndo pela sarjeta, o vento nas folhas, vozes de crianças jogando taco, cães que latem. Tardes de sentar na calçada e ficar olhando as pessoas que passam e o sol se deitar. Um absoluto vazio na mente, um nada fazer e nada pensar. A felicidade.
A tv era lenta. Sem controle remoto eu me desligava quando vinham os comerciais. Ela ficava ligada e eu ficava distante. O ato de colocar um vinil para tocar convidava a ouvi-lo inteiro, dava preguiça de pular faixas e colocar outro disco. Tudo tinha de ser feito inteiro. Não existima botões para pular tudo. Voce não podia editar o tempo. Então, relaxava e pensava...
Agora eu chego a assistir quatro canais ao mesmo tempo e a escutar cinco cds em meia hora. Leio três livros ao mesmo tempo ( quando ruins ). E sinto ao final que não assisti coisa nenhuma, não escutei nenhuma música e não li algo que me lembre. Travo contato com um milhão de coisas e nada me penetra. Estou na rede.
Meu sonho é desligar tudo e voltar a pensar. Mas é sonho de fumante e de alcoólatra : adiado. A sedução do vicio é grande, mesmo sabendo que meu tempo é acelerado e gasto no desejo de se ter mais tempo. Tudo que é moderno nos promete mais rapidez para termos mais tempo para ser gasto em mais rapidez. O canal é mudado com um clic do sofá. Mais eficiência. De que vale se a tarde passa voando e dela nada recordo ?
Amontoados em rede, os peixes se debatem e não podem ir para lugar algum. Todos estão juntos nessa, ninguém está só. A vastidão do mar ficou pra trás. Nosso destino é a lata.

A SEGUNDA BANDA MAIS IMITADA ESTÁ DE VOLTA

E o Roxy Music, cansado de ver tanta banda "jovem" tentar ser roxy e morrer na praia, fará nesse verão europeu uma tour pelos festivais. Bom. Os babys johnssons que nunca ouviram irão pensar que os roxys estão copiando alguma nova bandinha de Londres... Mal sabem que Ferry ( o luxuoso ) e cia são roxy desde 1971 ! Naquele tempo hippie eles já eram chic.
Misturam rock com baladas com art com barulhinhos com humor e com muita poesia. Neguinho gostar de Suede, Radiohead, Franz, e que tais e ignorar roxy é tão idiota quanto gostar de futebol e ignorar a copa do mundo.
Eles voltam com todos menos Eno. Pois é, nada é perfeito. Acho que Eno não quer mais palco. Eno... o cara que produziu de Devo à U2, passando por Bowie e Talking Heads. O cara que criou o pop atual. Porque antes de tudo ele foi Roxy !
Não é ruim ver o Roxy aos 60 anos. O som deles não fica ridículo se tocado por vovôs. Sinatra, entende ? Se voce estiver na Europa e tiver um minimo de gosto. leve sua champagne, suas rosas vermelhas e sua almofada. Faça um brinde ao Roxy, jogue flores ao palco e se ajoelhe na almofada. O Roxy é para ser venerado.

O MILAGRE DE ANNIE SULLIVAN/ OPERAÇÃO FRANÇA/ EDUCAÇÃO/ O CORCEL NEGRO

O MILAGRE DE ANNIE SULLIVAN de Arthur Penn com Anne Bancroft e Patty Duke
Eu resistí muito a assistir este filme. Sabia sobre a peça na qual foi baseado. A história real de Helen Keller, menina surda-muda e cega, que com a ajuda de Annie Sullivan se torna não só "um ser-humano" como uma intelectual. Eu imaginava uma chatice melosa e edificante. Nunca é.
Já nos letreiros de abertura vemos que o clima é outro : seco. Mas não é só isso. O filme, com brilhante fotografia de Ernest Caparras e trilha perfeita de Laurence Rosenthal, é dirigido com soberba garra pelo então jovem Arthur Penn, que faria cinco anos depois BONNIE E CLYDE.
Helen nasce em rica família do sul, século XIX. É mimada por pai e mãe e é esse o maior empecilho que Annie deverá vencer, disciplinar a criança. A própria Annie é uma ex-cega, interna de orfanato, extremamente sofrida. O encontro de Annie e Helen, uma desafiando a outra, brigando e vencendo, é das coisas mais poderosas já vistas em palco ou tela.
Veja a cena em que Annie ensina Helen a usar o garfo. São oito minutos, em edição de gênio, em que Bancroft e Duke se engalfinham em feroz luta física. As atrizes chegam ao limite. Nós chegamos ao limite de nossa empolgação. O filme, ele próprio um milagre, jamais chantageia, jamais lacrimeja, chega até a fazer rir, é obra de inspiração.
Perfeição : Cenas da memória de Sullivan, pesadelos granulados, desfocados, de arte suprema. O confronto com o pai de Helen, embate entre duas atuações perfeitas, e acima de tudo o trabalho de Bancroft e de Duke. Se alguém disser se tratar de as duas maiores atuações da história do cinema não estará longe da verdade.
Anne Bancroft levou o Oscar por este filme. Bateu Kate Hepburn, Bette Davis e Geraldine Page nesse ano muito forte. No futuro seria a miss Robinson de A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM. Atriz de teatro ( considerada na Broadway a top ) casada com Mel Brooks ( que belo casal !!!! ) nunca quiz ser a star que poderia ter sido. Seu desempenho é coisa de pura genialidade. Uma mulher fortíssima e cheia de dor, de uma teimosia de rocha e na maravilhosa cena final ( um "I LOVE " jamais foi dito com tal emoção ! ) digna de uma feiticeira. Voce jamais deixará de amar Anne Bancroft após esta atuação.
Patty Duke também ganhou seu Oscar nesse filme. O que pode ser dito é que ela enfrenta Bancroft e não é vencida. Papel difícil ( sem voz e sem olhar ) nos comovemos mas não sentimos pena. E isso é nobre : nunca sentimos pena de Keller. Torcemos, mas não sentimos pena. Patty tornou-se a queridinha da América com esse papel. Mas na sequencia veio a era Hippie e Patty se perdeu na loucura da época. O que está aqui gravado para a eternidade prova sua gigantesca magnitude. O encontro das duas, a briga sem trégua, faz com que a tela exploda.
O tema do filme é vital. Professores e psicólogos ( e pais ) se identificarão de forma visceral. Trata de educação. Mas vai fundo. Toca no que significa ser um humano. E mostra que ser humano é nomear as coisas. A batalha : como fazer alguém que nunca enxergou ou escutou entender uma palavra ? Despertar o cérebro, como ? Sullivan primeiro a domestica, treina suas respostas à sinais. Keller aprende, como um cão, que tal sinal significa um bolo e tal sinal significa mãe. Mas isso é treino, reação automática. Na mente de Keller ainda não há o conceito abstrato, a descoberta de que TUDO tem seu nome. Essa iluminação se dá no final do filme, numa das cenas mais lindas e críveis do cinema. Helen Keller entende que nomear não é reagir a um sinal, que tudo é um nome PARA ELA, que as coisas existem e que ela existe !
Não descreverei essa cena. É de uma simplicidade e de uma beleza exemplar. Marca sua vida e sua consciência do que seja viver. Engrandece a arte do cinema.
Este filme, titanico, incrivelmente baseado em fato real, é milagre de precisão, de honestidade e de humanismo.
Porque não se fazem mais filmes como este ? A resposta é simples : porque não existe mais gente como Penn, Bancroft e Duke.
Ah sim, o filme perdeu os prêmios de filme e direção para LAWRENCE DA ARÁBIA. Preciso rever o filme de David Lean. Nota.... como dar um número a tal jóia de humanidade pura ? I LOVE HELEN.

A MARSELHESA de Jean Renoir
De todos os grandes nomes amados por cinéfilos ( Dreyer, Ozu, Bresson, Murnau ) nenhum é mais decepcionante que Renoir. Ele tem bons filmes, mas está longe da profundidade de Dreyer ou da beleza de Murnau. Nota 2.

O CORCEL NEGRO de Carroll Ballard com Mickey Rooney, Kelly Reno e Teri Garr
Plásticamente é uma obra-prima. Beleza e ritmo, poesia simples e nada pretensiosa. Um imenso prazer assistir este filme muito infantil e muito vital. O comentei abaixo. Leia. Nota Dez.

EDUCAÇÃO de Lone Scherig com Carey Mulligan, Peter Sarsgard e Alfred Molina
A elegancia abunda. 1960 é época de suprema beleza. Roupas e modos nos trazem testemunho do que perdemos com o vale tudo de maio de 68. Colocar um cara de bermudas e tênis ou uma menina de havaianas e short naquelas cenas seria o equivalente a tocar pagode na capela Sistina.
O filme mostra menina boa aluna se apaixonar por espertalhão mais velho. Há um problema de roteiro. Tudo o que acontece é óbvio demais. E, sinal dos nossos tempos, não podemos ver sequer um beijo entre os dois ! Sexo hoje só em filmes "chocantes".
A atuação de Carey é ok e de Peter é menos que isso. Molina dá um show como o pai. A cena em que ele tenta consolar a filha é gigantesca. Único momento em que o filme toca o sublime. No mais é um bonito passatempo que até termina bem com sua defesa ( conservadora mas verdadeira ) da educação.
Tem gente que pergunta o porque de naquela época a França ter uma força cultural tão grande e hoje ser tão pequena. Simples resposta : a educação era melhor. Não era técnica, era humanista. Não se formava um bom profissional, se formava um homem culto. Um país que sempre amou a arte, a narrativa e a discussão era centro de atração.
O filme é nota 6.

ESTA MULHER É PROIBIDA de Sidney Pollack com Natalie Wood, Robert Redford e Mary Badham
Texto menor de Tennessee Willians. Natalie é bonita, mas está péssima no filme. Ela faz uma vulgar sedutora de homens ( transa com toda a cidade ) aliciada pela mãe cafetina. Redford, correto como sempre, faz o "despedidor de funcionários " que se encanta por ela. Como o texto é de Willians esperamos o trágico. Pollack o suaviza. O filme é todo errado. Tenta escapar da tragédia, fica num edulcorado novelão. De bom a fotografia do gênio James Wong Howe e a atuação da estranha Mary Badham como a irmã mais nova que se aliena. Nota 6.

OPERAÇÃO FRANÇA de William Friedkin com Gene Hackman, Roy Scheider e Fernando Rey
Eis o grande ganhador do Oscar de 1971. Friedkin, antes de Coppolla e Scorsese foi o cara da turma jovem que venceu. E também foi o primeiro a pirar. Este filme policial é soberbo. Em cada fotograma percebemos a vaidade e arrogância jovem de seu diretor. Tudo é cheio de toques ousados, de invenções, de violência e de confiança.
A história trata de dois policiais em busca de drogas. Gene Hackman que ganhou seu primeiro Oscar aqui, faz Popeye Doyle de forma suja, feia, maníaca. É um herói muito desagradável. Funciona. Se tornou um personagem mítico. O filme, com trilha sonora dura e estridente, tem sangue, perseguições pela cidade imunda, cãmera na mão e inquieta, cenas que parecem de documentário. Inaugura o moderno cinema policial americano. Bebe em Jean-Pierre Melville.
Há uma longa perseguição pelo metrô que é ápice de técnica. Ironia do filme : ele inaugura também o domínio da técnica pura sobre a inspiração. O filme é frio. Mecanismo que funciona excelentemente, mas é um mecanismo. Não pensa.
Mas é forte, viril, e tem o frescor de ser o primeiro, o descobridor. Vemos nele o futuro do cinema. Futuro que é o nosso agora. New York nunca foi tão feia. Nota DEZ.

SERVIDÃO HUMANA - W. SOMERSET MAUGHAM

O assunto de Maugham é sempre o do homem tentando nascer. A busca pela liberdade, pelo conhecimento e pela paz. E a trajetória é sempre nessa ordem : escapar do meio, encontrar um sentido, obter o equilíbrio. Escrevendo sobre isso, o inglês Maugham se tornou um dos dois ou três mais populares escritores do século XX. Ele é o melhor autor classe B de seu tempo. ( Tempo de belos autores B : Simenon, Agatha Christie, Conan Doyle, Saint-Exupery, Chandler, Henry Miller... ).
Philip é um inglês tímido e com um pé torto. É adotado por pastor e sofre bastante na escola. Larga os estudos e vai à Paris, estudar pintura. Se apaixona por moça muito vulgar. O livro não segue o rumo esperado. Philip não tem talento e a moça o despreza. Lemos sobre a dor de amar e ser enganado. Burramente ele despreza quem o ama de verdade e segue, de forma humilhante, o rastro dessa moça infame.
Derrotado, ele volta e se torna médico. O livro tem seu momento de luz ( onde Maugham faz uma vulgarização da iluminação de Lievin em ANA KARENINA ). É quando Philip vê que a vida é completamente destituída de sentido. Nascer, trabalhar e morrer. Isso é tudo. Os mais fracos se agarram com desespero num sentido que é dado por sua própria imaginação. Vista friamente, não há mérito em se viver de modo X ou Y. Tudo dá na mesma.
Ao pensar isso a vida de Philip muda. Ele se torna livre. Ser bem sucedido ou não, ser feliz ou não, tanto faz. O resultado é idêntico : nenhum. Ele não é mais obrigado a nada. Não deve mais à vida ser feliz ou ser um vencedor.
É lógico que Maugham banaliza uma filosofia tão preciosa. Mas é um prazer ver um autor tão best-seller, que vendia tanto, lido por meninos, donas de casa e estudantes, advogar o pessimismo vitalista e não, como hoje, prometer sentidos mágicos à existência. Um anti-Paulo Coelho.
Mais profunda é a descoberta por Philip de que a arte é uma parte muito pequena da vida. Que a vida está pouco se importando com novidades, belezas e refinamentos. A fome e a dor é que importam. O maior interesse é sobreviver.
Ao fim, o sentido que Philip encontra é o conforto. A paz possível, a de se ter um trabalho útil, uma esposa amiga e saudável e um canto iluminado para se morar. O céu de Philip está a beira-mar, médico de pescadores, nos braços de uma jovem loura bonitinha. Como não há sentido nesse acidente chamado vida, cabe a nós fazer da vida algo de livre e digno.
O livro diz que nada é mais nobre que abrir mão de alguma coisa para o bem de outro. É o que Philip aprende. Duramente e árduamente. E fim.

O CORCEL NEGRO- OBRA-PRIMA DA ARTE PURA

O CORCEL NEGRO é filme de Carroll Ballard (assistente de Lucas em Star Wars ) e tem Melissa Mathison ( de ET ) no roteiro. Trata da história de um menino e seu cavalo. Primeiro numa ilha deserta e depois em casa. É um filme quase mudo. Imagem, movimento e música. A música, belíssima e cheia de variedade, é do pai de Coppolla, Carmine. A fotografia é de um dos dez melhores diretores de fotografia da história, Caleb Deschanel ( sim menino, pai de Zooey ). O filme é uma obra-prima, produzido por Francis Coppolla e epitáfio do cinema dos anos 70.
Foi sucesso. Hoje seria ? Cheio de ação, mas com longos momentos de vazio, onde apenas a beleza importa. O menino ( Kelly Reno, comovente, sua cena com a mãe, quando fala do pai, é antológica ) e o cavalo ( o animal mais belo que já tive o assombro de ver numa tela ). A areia, o mar, rochas, vento, o céu. O filme atinge alturas que só a poesia pode. Nada acontece, tudo interessa. O segredo deste filme é sua simplicidade.
Filmes cheios de meandros. Arte complexa ou arte simples e pura. Adoro o jogo intelectual de Cidadão KANE ou de ORFEU. Mas O CORCEL NEGRO é da estirpe de O ATALANTE, o fio puro, limpo, simples, o dizer tudo em silêncio, revelar sem contar. Magia. Este filme é de inspiração mágica.
Depois o menino e o cavalo voltam à civilização e tememos que o filme se vulgarize. Não. O silêncio ainda manda. E surge Mickey Rooney, em simpatia e gênio de atuação. O cavalo permanece como irresistível força da natureza e o menino como chave para seu mundo. Eu poderia filosofar longamente sobre tudo o que cada cena simboliza. Mas estragaria o símbolo maior : sua simplicidade.
Feito hoje ele seria visto como aberração. Teriam posto uma piadinha aqui, uma menina lá, acelerado o ritmo e talvez uns toques de "arte" acolá. A simplicidade seria profanada. O cavalo seria humanizado. Sua tremenda rebeldia seria atenuada.
O CORCEL NEGRO é obra-prima por ser monumento de vento e luz, feito da respiração acelerada do cavalo negro, da noite de seu olho febril e das sardas do menino em momento abençoado. É o testamento saudável de uma geração perdida. O que ficou de testamento daquele cinema doido que nos deu Taxi Driver e Carrie. Em 1979, enquanto Coppolla perdia tudo com Apocalypse Now, O CORCEL NEGRO adentrava a década yuppie com lembrança do que poderia ter sido, do que valia mais : Pureza.
O cinema foi criado para ser assim. Todo o resto é literatura.

RILKE, POEMAS SELECIONADOS EM TRADUÇÃO DE JOSÉ PAULO PAES

Mulheres amaram Rilke. Baronesas, intelectuais, condessas e prostitutas. Ele amou a todas, não se prendeu a nenhuma. Talvez a fascinante Lou Salomé tenha sido a dor maior. Mas Rainer-Maria Rilke logo percebeu o que era a vida.
Dois sentimentos norteiam a poesia do alemão nascido em Praga. O mais importante é a sensação de que nunca nos abrimos. Ele notou que por toda nossa vida estamos sempre detrás de nossos pensamentos. O homem não se integra a vida. Jamais nos é dado o prazer de simplesmente estar-aqui-agora. Nosso cérebro nos coloca sempre no além-depois-antes. Talvez tenhamos um vislumbre desse estar aberto no primeiro momento do amor. Quando descobrimos o estar-aqui com o amor. Mas esse momento se perde em minutos, quando nasce o medo e a posse. Os animais, para Rilke, por desconhecerem o tempo e a finitude, vivem nesse eterno agora. Conhecem e são abertos à vida. Nós, além de racionais, mamíferos, ainda vivemos a sensação de nascer como expulsão, ser tirado do útero/paraíso. Sensação que é desconhecida das aves, que nascem sem expulsão, antes como libertação. Se ser parido é ato de saída, sair do ovo é nascer e permanecer na mãe, o fora-exterior.
O segundo pensamento que permeia a obra de Rilke é a finitude. Viver é perder. A vida é eterno movimento, e esse movimento nos leva a constantes e inevitáveis finais. Viver bem é saber se separar, ir embora, desapegar-se. É por isso que Rilke, apesar de amado, cultiva uma solidão olímpica. Estar só é a condição real da vida. Todo o resto é passageiro. Somos reais apenas na solidão e é nela que podemos ser realmente felizes, pois nessa condição independemos do tempo.
Rilke.
Foi o primeiro poeta que lí na vida. Numa má tradução ( esta de agora é brilhante. Tem ritmo, leveza, cor ). Odiei Rilke. Achei-o triste, mórbido, fraco. Adolescente, ainda tinha plena fé na ilusão do eterno. Não sabia que a única coisa imutável da vida é a própria mutabilidade.
Hoje ele continua me dando melancolia. Mas a esse cinza se uniu o colorido de sua beleza assustadora. Pois agora compreendo seus anjos terríveis. E sei que viver é dizer adeus. Pai, amores vários, amigos às pencas, cães, lugares, casas, crenças, ídolos... todos partem, é inevitável. Eu mesmo escapo de mim-mesmo.
Amei muito. e creio que tenha sido amado. Irei amar mais e continuo sendo procurado. Mas, estranhamente, apesar de momentos de absoluta alegria, de completa satisfação que vivi com esses amores, sou obrigado a dizer que os momentos mais plenos de minha vida foram vividos em completa solidão. Um tipo de entrega ao agora, de total imersão na vida-fora-de mim, que é impossível a dois.
Rilke viveu a procura dessa entrega. O grande amor de sua vida foi a vida exterior. O tentar olhar sem julgar, sentir sem pesar, andar sem planejar. Ele foi um caçador de epifanias, de momentos de duende, de anjos.
Em nosso mundo, blindado e cada vez mais planejado, entender Rilke é tentativa de sanidade. Sua terrível beleza é sopro de aniquilação em nossa consciência.

TÍMIDOS QUE AMAM SUA MEIGUICE AFASTEM-SE : LED ZEPPELIN II NA ÁREA !

Um tipo de " Hummmm...." e o riff.
Nada de sutileza. Os 4 cavaleiros do apocalipse entram fazendo barulho. O riff é um machado afiado de aço indestrutível. Machadadas que penetram seu ouvido e descem para o sexo. Quando a voz chega ela surpreende. Plant não quer amor. Quer penetração. O som da bateria derruba de vez a barreira. Estamos então no reino da explicitude máxima. O cérebro nada comanda. O som vai inteiro em dose brutal para o sangue. Esquenta, ferve e jorra. A pausa é a admiração. O corpo nú da música/musa estirado sem pudor. Looooooooooooooveeeeeee..... e a bateria ribomba em raios. Meninos de pele rosadinha, fugí ! Este país é para Homens!
Então muda-se a faixa e teme-se : impossível não haver queda! A broxada é inevitável ! Mas não. O contra-baixo se insinua. O clima é de fumaça de cigarro e de decote profundo. A voz enrola-se pela vida. E o solo é mistura de espírito e carne suada. Mas é o baixo com sua sinuosidade sexy que hipnotiza. O disco é da época de Abbey Road, Santana e Tommy. Não parece. Este disco estava e está no não tempo. A época do desejo.
E tudo se escancara. Vem sinfonia de baixo e de guitarra. Crispação. É aquela canção que tem um grande Hey! Um blues feito de semem. Um enxame de abelhas enlouquecidas atrás de abelhas meladas. A música é vasta.
Surge então o único momento introspectivo. Uma cascata de guitarras e um vocal de leão sem juba. Doce. Existem ecos de corações aflitos. Mas essa aflição é enfrentada com valentia. O final é nuvem obstruindo o sol. Tudo aqui é mais.
Mas renasce o tesão. O disco é potente e é sobre a potência jupiteriana. È além de dionisio. O vocal aqui é arrogancia olímpica. Plant está nas nuvens jogando raios em nós. Tudo se interrompe para que Page discurse. Sua guitarra feita de gelo quente, de aço vivo, corta novamente. E nasce o milagre : uma união do sublime com a violência. Ao final do solo, quando voltam baixo e bateria, ouvimos um dos breves momentos em que música é testemunho de transcendência. O que dizer ? Poucos segundos que justificam uma lenda. O homem precisa morrer para ser lenda. O Led já nasce lendário.
O Pop perfeito. Mas é pop que dá socos e grita. É pop com cojones. O disco é um hino a virilidade. Nada mais anti-2010 que isto. Nada tem a ver com agora. Mas eu sei, ele será sempre a esperança do amanhã.
A próxima faixa traz a melhor das linhas de baixo. Não me canso de ouvir. São 30 anos de amor. Eu e este som. Ramble on. Me esmaga e me faz rir. Feliz. O timbre de Page em todo disco é contemporâneo. É timbre de 1969 e de 2069. Timbre de Mick Ronson, Mick Jones e Jack White. Ramble on. O amor é esta canção. O gozo é exatamente assim.
E agora é um bando de mamutes que trotam derrubando árvores e cercas. Bonham foi esse mamute. Suas baquetas e suas mãos. Soltam raios. A primeira vez que ouví.... eu e meu irmão piramos. Começamos a pular sobre a cama, a socar os travesseiros, enlouquecemos.
Faixa final.
Uma boca : Baaaaaaaabeeeeeeeee!!!!!!!!!!! Baaaaaaaaaaabeeeeeeeeeeee!!!!!!!!!! Os quadris dela foram feitos para o olhar dele. Quanto de tesão um homem pode suportar ? Porque às vezes o desejo é tanto que faz explodir. Baaaaaaaaabeeeeeeeeee!!!!!!!!!!! E explode! Sinfonicamente as guitarras ( um milhão delas ) arrebentam cabacinhos. Toda a banda desvirgina. É quase um estupro. Com dois sorrisos.
A promessa do primeiro riff foi cumprida. Milagre : a ereção se manteve até quando foi preciso. O mais potente dos discos. Sem romance, sem sutileza, sem símbolos. O Led sempre jogou limpo : É isto o que somos. Nada mais e nada menos - Os Melhores.
Led Zeppelin II é a prova.

SINDICATO DE LADRÕES/ PASOLINI/ ALDRICH/ VERHOEVEN/ SCOLA

O ÚLTIMO PÔR-DO-SOL de Robert Aldrich com Kirk Douglas, Rock Hudson, Dorothy Malone

Western perfeito. Kirk é o bandido, Rock o herói. Os dois conduzem gado do México à América. Com eles vai família. O filme com roteiro de Dalton Trumbo não pára. Surpreende a todo instante. Você pensa que tal coisa irá suceder, mas não, vem a virada. Uma diversão de nível superior em que todo o elenco brilha. Divirta-se ! Tem um duelo final que é coisa de gênio. Nota 9.

RIO BRAVO de Howard Hawks com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickinson, Rick Nelson e Walter Brennan

Voce ama ou detesta. Apaixona-se pelo elenco ou o ignora. Se o ignorar, bem, azar o seu ! O filme é profunda lição de vida. Para quem souber ver. Como toda obra superior, não esfrega em nossa cara seu brilho. Convida-nos a observar, nada impõe. Nota DEZ.

O OUTRO HOMEM de Carol Reed com James Mason, Claire Bloom e Hildegarde Neff

A Inglaterra produziu 3 grandes diretores clássicos : David Lean, Carol Reed e Michael Powell. Hitchcock não conta, é do universo. Powell é meu favorito. Lean é o melhor sucedido e Reed fica no meio termo. Este filme de espiões foi feito nas ruínas de Berlin antes do muro. As imagens são belíssimas ( existe terrível beleza nas ruínas ). É um filme de fotografia linda e de atuações perfeitas. Mas algo no roteiro falha : há um romance dispensável. Nota 6.

A BATALHA DO RIO DA PRATA de Michael Powell

E aqui está um de meus diretores favoritos em filme fraco. Odeio toda forma de patriotismo. Mesmo se justificado, como aqui. E mesmo quando Powell, em plena segunda-guerra, dá um retrato humano dos alemães. O capitão alemão tem honra, caráter e até joga limpo. O filme conta a primeira batalha naval da guerra, no Uruguai, em 1939. Mas tem jeito de propaganda, o que o faz hiper-datado. Nota 4.

LEVADA DA BRECA de Howard Hawks com Cary Grant e Kate Hepburn

A melhor comédia da história do cinema. Tem roteiro perfeito, atores de gênio, ritmo constante e alegria sem culpa. Um milagre de época de grandes comédias ( os anos 30 foram tempo dos Irmãos Marx, Chaplin, W C Fields, Myrna Loy, William Powell, Clair, Joe E. Brown, Harold Lloyd, Rosalind Russell e etc vasto e risonho ). Nota MIL.

UM BOM ANO de Ridley Scott com Russell Crowe, Albert Finney e Marion Cotillard
Belas paisagens. Engraçado... eu lí o livro de Peter Mayle e ele não tinha esse clima tão vulgar ! Faltou comida e vinho neste filme ! Sobraram bobagens. O personagem de Crowe é muito antipático. Nota 3.

SIDEWAYS de Alexander Payne com Paul Giamati, Thomas Haden Church e Virginia Madsen
Payne é muito bom diretor. O filme é gostosa diversão. Mas é estranho... esperávamos mais de Payne, de Giamati, de Church e de Madsen... cadê eles ? Problema central do cinema atual : faltam carreiras consistentes. Talvez faltem oportunidades. Filma-se pouco e quando o cara erra é o fim. Aqui todos acertaram, mas, cadê eles ???? Nota 6.

SINDICATO DE LADRÕES de Elia Kazan com Marlon Brando, Karl Malden, Eva Marie Saint, Lee J Cobb e Rod Steiger
No Oscar deste ano se citou Karl Malden e Budd Schulberg como mortos de 2009. Malden brilha ( como sempre ) neste filme que tem um dos melhores elencos da história. Budd fez o roteiro, que é básicamente uma defesa da deduragem. A trilha sonora de Leonard Bernstein enfatiza com genialidade a aridez deste filme áspero. Raros são tão pouco simpáticos. Ele é todo cinza ( foto do soberbo Boris Kauffman ), frio, macho, sem um mínimo sinal de alegria. Kazan defende a sí-mesmo, ele que havia dedurado os "comunas" no MacCarthismo. Marlon Brando tem atuação de gênio. Faz um bronco que se humaniza pelo amor. É convincente todo o tempo. Nas mãos de Sean Penn ou de De Niro este personagem seria apenas um bandidinho. Com Brando ele nos comove. A cena no táxi é considerada por todo ator americano ( principalmente os mais rebeldes ) o momento máximo da arte de interpretar. É usada como prova de admissão no Actors Studio. Dá pra ver a sombra de Pacino, Cage e etc nela. Eles construíram toda sua carreira estudando estes 4 minutos. O filme é dos maiores. Mas não dá o menor prazer. Você o admira, jamais ama-o. Nota 8.

LOUCA PAIXÃO de Paul Verhoeven com Rutger Hauer e Monique VandeVen
Os Holandeses consideram este o melhor filme já feito por lá. Não é. CHUVA, de Ivens, com apenas 20 minutos bate-o de longe. Mas é um filme invulgar. Mostra, na Holanda dos anos 70, ou seja, num lugar onde a liberdade vai ao limite, a paixão de um casal. Paixão que começa como sexo casual, evolui para a paixão dela por ele, e depois, dele por ela. Há o rompimento e um tipo de retorno dolorido. O filme é cheio de nudez, sexo, escatologia e paixão. Tudo vai sempre fundo e Hauer tem uma atuação corajosa. Monique comove. Ela é linda e ousadíssima. Como sempre falo, o mundo pirou nos anos 70 e este filme mostra isso. Verhoeven emigraria para a América, onde faria Robocop e Tropas Estelares. Nota 7.

NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO de Ettore Scola com Vittório Gassman, Nino Manfredi e Stefania Sandrelli
Os barbudinhos da Vila Madalena que me desculpem, mas este filme ( que tem uma das piores trilhas sonoras da história ) é um pé no saco. O cinema italiano dos anos 70 perde todo o apelo que conquistara nos anos 40/50/60 ao se empobrecer. O que era um belo humanismo se transforma em esquerdismo primário. Dá pena ver aquela geração brilhante mergulhar na lábia malandra dos comunas italianos. O filme é tão simplório que chega ao ridículo de mostrar todo direitista como gordo, velho e beiçudo. Por favor !!!!! Eles querem mudar o mundo, na marra, e nunca percebem que o problema não é o mundo, é o homem. O homem é instintivamente capitalista. Ele quer segurança e segurança se obtém no acúmulo. O homem quer ser superior ao vizinho, superior em alguma coisa, força, dinheiro ou inteligência ( e todos os personagens não percebem que passam todo o filme desejando liderar ). É um filme tão velho quanto uma opereta de Nelson Eddy. Nota 1.

O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS de Pier Paolo Pasolini
Existem diretores que reconheço serem excelentes, mas dos quais não consigo gostar. Buñuel é um deles. Sei que ele é genial. Mas não consigo me animar com seus filmes. Pasolini é outro. Vejo nele tudo que admiro : coragem, sinceridade, força. Mas ele nunca me enfeitiça. Aqui ele despe Cristo de emoção e o que temos são momentos secos de atos de fé. O evangelho sem poesia, objetivo. Nada há de ofensivo, Pasolini respeita Jesus como revolucionário, mas o filme torna-se frio, distante, sem porquê. De soberbo ele tem sua trilha sonora. Gospel e blues de raiz, isso sim, um emocionante milagre. Nota 5.

LEVADA DA BRECA - HOWARD HAWKS e CARY GRANT/ KATE HEPBURN

Existem filmes que criam todo um novo mundo. Desenham um modo de se fazer um filme e passam a ser massivamente copiados. Existem pessoas que fertilizam.
Hawks criou dois tipos de comédia. Em 1934, com a ajuda de John Barrymore, criou a comédia de diálogos loucos. Aquele tipo de texto em que os atores metralham milhares de palavras por minuto, normalmente se agredindo. Para esse tipo de humor é necessário um ator que saiba falar, e que possa ser agressivo sem se tornar ofensivo. Tudo deve ser leve e ácido. O filme era chamado TWENTIETH CENTURY.
Em 1938 Hawks cria mais um tipo de comédia. A comédia baseada no encontro de um cara muito careta com uma moça muito doida. Eis LEVADA DA BRECA. Mas para criar esta, que é a mais genial das comédias, Howard precisou de dois atores de imenso talento : Cary e Kate. E creia, ver os dois juntos é um prazer insuperável.
Se voce é um tenro menino, acostumado ao humor pós-SATURDAY NIGHT LIVE, acostumado então a humor baseado em imitações e citações, bem, voce não irá gostar nada de LEVADA DA BRECA. Pois aqui temos humor baseado em gente engraçada e não em agressivas sátiras. Nada há neste filme que possa ser chamado de agressivo. O filme é feliz. Ficamos felizes enquanto o assistimos. Adoramos Cary e Kate. Nos apaixonamos pelos dois. E assistimos estupefatos ao nascimento de todos os clichês da comédia romântica. Porém, feitos antes, feitos com mais inteligência, mais talento e com dois atores de puro gênio.
Cary Grant criou dois tipos de humorista. Este, que é o tipo "cientista-nerd" e em JEJUM DE AMOR, também de Hawks, o espertalhão-safado. Depois dessas duas criações, hordas de atores passaram a imitar esses dois tipos. Mas foi Cary quem os inventou. Kate, melhor e maior atriz da história do cinema, diverte-se à larga, nesta que é sua primeira comédia pastelão. A gente se apaixona por ela. Sua maluquice anárquica, seu risinho de "sininhos", suas quedas e correrias. Escrevo isto e já sinto vontade de assistir o filme mais uma vez....
A história é fantástica, inverossímil, pura bobagem, como toda comédia deve ser. Trata de um cientista que num jogo de golfe se envolve sem querer com herdeira maluquinha que é dona de um leopardo. O resto é bola de neve. O filme nunca se interrompe, é doideira atrás de doideira, palhaçada sobre palhaçada, voce pensa que nada mais há para acontecer e lá vem mais uma volta de carrossel. Mas nada é forçado : em sua excentricidade, tudo acontece de forma natural. O roteiro de Dudley Nichols ( autor de vários westerns ) e de Hagar Wilde é de ouro. Arquétipo de comédias futuras.
Repare no modo como Kate interage com Cary na festa onde ela rasga o vestido. Repare em como voce reage ao filme. Voce não irá gargalhar ou mesmo rir. Hoje nossa reação a este filme é o sorriso. Um sorriso que fica por duas horas grudado no rosto e uma alegre leveza que se tatua no peito ao ver os dois juntos. Brigando, discutindo, ele fugindo dela, caindo e finalmente a rendição ( dele ). Comédia que nos dá um presente raro : felicidade.
Críticos já disseram que o filme tem um lado sério. Em meio a toda aquela palhaçada existe a representação do modo como toda história de amor se revela. Perda de certezas, perda de controle, resistências, entrega. Atração de opostos que se destroem para renascer depois.
Howard Hawks, Cary Grant e minha amada Kate Hepburn. Como agradecer à eles ? Os agradecimentos já foram feitos. Tanta gente, em 2010, tempo que nada tem a ver com LEVADA DA BRECA, ainda amar este pedaço de paraíso. Essa é a maior homenagem que um artista pode querer.
E ser tantas vezes imitado!!!!
Adendo :
Quem já escreveu ( ou tentou) comédia, sabe como é fácil fazer o humor tipo "Todo mundo em Pânico", "Borat" ou "American Pie". É um humor todo baseado em imitações, exageros ( voce pega qualquer situação e leva até o limite físico ) e preconceitos ( fazer rir do diferente é sempre fácil ). É um humor formatado na piada de bar e na raiva adolescente.
Quem já tentou escrever comédia sabe como é duro criar um tipo engraçado cem por cento original. Não baseado em ninguém, e cômico pelo que é, não pelo que faz. Humor verbal e de situação, nunca de gozação ou desconstrução.
LEVADA DA BRECA, minha mais querida comédia do meu mais amado diretor e de meu mais admirado ator e de minha mais adorada atriz, é monumento exemplar. Ficará viva enquanto o homem existir.

RIO BRAVO-ONDE COMEÇA O INFERNO- HOWARD HAWKS

Filme favorito de Inácio Araújo e um dos top ten de Tarantino.
Hawks amava as pessoas. Sua câmera observa-as, deixa-as respirar. O tema central do filme é trapaceado : esse tema é apenas uma desculpa para se mostrar pessoas interagindo. E de tudo que apaixona Hawks, nada o interessa mais que a amizade masculina. É o mestre da amizade.
O tema deste western é : bandido está preso. Um xerife é ajudado por velho aleijado e alcoólatra. A missão : manter o bandido preso. A dificuldade : o irmão do bandido manda dúzias de pistoleiros para o libertar.
Mas o filme não é sobre essa aventura. É sobre a relação entre o xerife e o alcoólatra. Uma velha amizade em crise. Esse é o coração do filme. E é isso que interessa Hawks.
A câmera nunca tem pressa. Muita gente reclama que um dos maiores problemas dos filmes de hoje é que eles têm um só objetivo e ignoram todo o resto. Empobrecem a vida. Explico :
O excelente filme de Kathryn Bigelow fala de um grupo que desarma bombas no Iraque. E mesmo sendo um filme acima da média, ele trata sómente disso. A linha de narração jamais se desvia. Ele promete falar disso, e apenas disso ele fala. 99 por cento dos filmes hoje, mesmo os ditos de arte, são assim. Não existe dispersão, divagação, mudança de tom.
Hawks divaga. Súbito o filme é sobre alcoolismo. Sobre o flerte de Wayne e Angie Dickinson. Sobre um jovem cowboy. Comédia tola sobre velhote esquentado. E ainda envereda por diálogos relaxados sobre coisa nenhuma. ( Não é a toa que Tarantino o adora ). E o mais importante é : o filme nunca tem pressa, se demora, observa, deixa os atores atuarem.
John Wayne faz o seu melhor. Símbolo de virilidade. Feio, corajoso, nada vaidoso. Parece que todo lugar é seu lugar, mas ao mesmo tempo ele é profundamente individualista. Um pai. Dean Martin, que rouba o filme, está soberbo como o alcoólatra. Tudo nele é patético. A relação entre os dois é seca, cheia de nuances, absorvente. O filme é todo dos atores. Nada de paisagens, nada de truques de câmera ( é incrível como Hawks nunca faz questão de se exibir ).
E há o eterno romance de Howard Hawks. Seus filmes sempre trazem o encontro de um solteiro-durão e de uma mulher-aventureira. É ela quem seduz. É ela quem tem a coragem de tentar. E ele se deixa seduzir. Hawks não tem pudor nenhum em se auto-plagiar. ´Vários de seus filmes repetem cenas de sedução. Inclusive no nome da mulher : Feathers.
Howard Hawks foi piloto de automobilismo e um apaixonado por aventuras. Se tornou cineasta por acidente ( todos os grandes que fundaram o cinema americano se fizeram cineastas sem querer. Arrumaram algum emprego no meio e foram construindo uma carreira sem levar o cinema muito à sério. Isso se traduz em filmes leves, nada duros, easy going.... ) Ele dirigia sem pressão, falava baixo no set, jamais brigava, fazia piadas.
É o diretor que irá menos impressionar àqueles que começam agora a conhecer o bom cinema. Ele é discreto e nada "artístico". Mas depois de anos de falsos profetas, novidades antigas e fazedores de arte tediosa, voce começa a perceber o brilho de Howard. Começa a perceber como seu estilo é estranho, um estilo tão natural que parece ser fácil, mas que é terrivelmente individual. Voce percebe que Howard Hawks é o diretor dos diretores, o que mais tem a ensinar a todos que fazem filmes, e aquele que traduz o sentido de se fazer cinema : observar a vida.
Clint Eastwood é um dos que mais tem procurado ser Hawks. Ás vezes ele quase chega lá.
Ser Howard Hawks deve ter sido uma delícia. Mas não é para amadores. O homem foi um gigante. Nos ensina em seus filmes a como ser honesto, viril, como suportar a pressão estóicamente, a ficar frio, a saber viver.
Hawks foi o mais adulto e o mais sábio dos diretores. Perto dele, todos os outros se parecem com adolescentes histéricos.

VINCENTE MINELLI/ GUERRA AO TERROR/ MAX OPHULS/ GEORGE CLOONEY

GUERRA AO TERROR de Kathryn Bigelow com Jeremy Renner
Estéticamente é um filme miserável. Usa e abusa de câmera tremida e é todo closes. Feito para tela pequena, para o nosso mundo de dvd. Mas mesmo assim é um excelente filme. Howard Hawks disse que para se fazer um grande filme bastam duas grandes cenas e nenhuma cena ruim. Este filme tem duas grandes cenas, mas tem uma muito ruim. O tiroteio no deserto é sua melhor cena. E o iraquiano amarrado em bombas é a outra. De péssima, a cena dos socos. Está longe de ser um filme profundo. O fato de merecer, sim, o Oscar de melhor filme, mostra onde estamos. Ele é superficialmente excelente. Ficamos absorvidos, vendo todo aquele som e fúria sem significado. Mas como em Tarantino, assistimos a talento puro sem assunto. Um adendo : Assim como nos anos 50 o tema válido era a normalidade ( o que é normal, o que é doentio ) e nos 60 era a busca por sí-mesmo ( quem eu sou e o que posso ser ), hoje o único tema relevante é a violência. Falar da violência é tocar no centro de nossa vida. Todos os outros temas são pouco urgentes. Para quem quiser saber, o grande tema dos 70 foi a paranóia, dos 80 foi o poder e nos 90 a dispersão da vida. Guerra ao Terror é retrato perfeito nosso : a guerra como guerra, sem heroísmo, sem vilões, sem política, sem porquê. Apenas um modo de se viver. De se viver intensamente. Como a droga. Nota 8.
NA TEIA DO DESTINO de Max Ophuls com Joan Bennet e James Mason
Para quem não sabe : Ophuls foi um diretor austríaco que emigrou para a Amércia durante a segunda guerra. Seu estilo é fluido, sensual, estético. Não foi feliz nos EUA e voltou para a Europa nos anos 50 onde também teve problemas com produtores. Tipo de diretor que poderia e deveria ter feito muito mais. Aqui, em clima noir, conta-se a história de mãe que protege a filha de chantagista que viu ela matar seu ex-namorado. Mason é um dos chantagistas que se apaixona pela mãe e paga por isso. O filme é simples, envolvente, bonito e magníficamente bem interpretado. James Mason, inglês com carreira nos dois continentes, era perfeito para esse tipo de papel, o de homem fragilizado. Um filme que representa outra era, o tempo dos filmes objetivos, curtos, diretos e profissionais. Nota 7.
A ÁRVORE DOS ENFORCADOS de Delmer Daves com Gary Cooper, Karl Malden e Maria Schell
Médico chega a cidade mineira. Começa a clinicar e se envolve com moça vítima de assalto. Ele é um homem estranho, bondoso e muito cruel ao mesmo tempo. Eis básicamente a sinopse do filme. Mas ele é bem mais. Coisas acontecem sem parar e tanto quanto o papel de Cooper, todo o filme parece meio doentio, torto, quase neurótico. Malden tem maravilhoso papel, um mineiro mentiroso que tenta violentar a moça. Gary Cooper é Gary Cooper, o maior ladrão de cenas de Hollywood, ficamos olhando pra ele sempre à espera do que ele vai fazer. O protótipo do que é ser astro. Daves foi com Mann e Boeticher, um dos últimos grandes diretores de westerns. 7.
O DIABO FEITO MULHER de Fritz Lang com Marlene Dietrich e Mel Ferrer
Ruim. Lang faz aqui um western todo errado. Se parece com uma sátira que não deu certo. Tenta ser leve e esperto, é apenas desagradável. Lang quando acerta é genial, mas quando erra é odiável. Este é puro ódio. Nota zero.
AMOR NA TARDE de Eric Rhomer
Quem não gosta de Rhomer acha que todos os seus filmes são iguais. Não são. Alguns são encantadores. Outros são menos que nada. Neste tudo é nada. Porque ? Muito simples. Como em Rhomer nada é artifício, tudo depende de nosso afeto pelos personagens. Aqui não se cria esse afeto. Olhamos aqueles caras falando e não queremos saber quem eles são ou o que têm a dizer. O filme naufraga. Nota 1.
AMOR SEM ESCALAS de Jason Reitman com George Clooney
Comentei este filme? Acho que só falei dele por alto. Bem... é o mais vazio dos filmes. Os personagens fazem coisas, mas o roteiro é incapaz de nos dizer quem eles são. Quando o filme se encerra continuamos não tendo a mínima idéia do que aconteceu. Porque na verdade nada aconteceu. Todos os personagens não têm razão de ser. E nem a irrazão do niilismo eles possuem. A menina deixa de ser dura e profissional sem qualquer explicação. Clooney se derrete porque ? Nada nos convence de nada. Para aceitar o que acontece precisamos desligar todo senso crítico, o que é lamentável. Pois o tema, se melhor escrito e dirigido com mais fibra, renderia um ótimo filme. Como está ele é xoxo, superficial e falso. Aliás, sua única verdade é seu conservadorismo. Sua mensagem explícita é : a família é o paraíso. Fora dela a vida não tem razão. É uma mensagem tão antiga que chega a ser vitoriana. É pré-Freud. Reitman, que produziu o filme com seu papai, Ivan Reitman, é o rei do cinema para meninos. Filmes fofos e sensíveis, isentos de qualquer raiva ou violência. Ah... e tem a trilha sonora ! Músicas de violão de vozes chorosas. São tão meladas que o CROSBY, STILLS E NASH perto delas é punk puro. Um horror !!!!! Mas há algo de bom neste melô, é George Clooney. Esse ator que destoa dos outros ( não tem músculos e tem cabelos brancos, sabe se vestir e fala com clareza ) aperfeiçoa aqui seu modo Cary Grant de atuar. Consegue passar alguma vida real neste filme tão castrado. No final chega a ser comovente sua vontade de dar profundidade a roteiro tosco. Ele é o filme. PS ; o filme me fez perceber que não estou fora deste mundo. O personagem de Clooney retrata superficialmente a minha condição espiritual : no ar. Uma pena este tema ter caído em mãos tão puerís..... nota 5 ( por Clooney, apenas )
ASSIM ESTAVA ESCRITO de Vincente Minelli com Kirk Douglas, Lana Turner, Gloria Grahame e Dick Powell
Voce quer saber o que é um roteiro perfeito ? Veja este filme. Uma mistura deliciosa de emoção e fantasia descabelada, de bons diálogos e ação corrida, drama e charme sem pudor. E com bons atores e um diretor esbanjando gosto. Que mais voce quer ? A história : Kirk é filho de falido produtor de cinema. O filme conta como ele reergueu essa companhia usando pessoas e roubando idéias. Quando o filme começa ( ele é em flash-back ) ele já faliu novamente e o que vemos são 3 de seus ex-colaboradores rememorando sua vida. Um diretor, uma atriz e um escritor. O filme cita deliciosamente a vida real. Lana Turner tem fixação pelo pai, estrela alcoólatra. É óbvio que esse pai é John Barrymore. Há ainda personagens que lembram William Wyler, King Vidor, Ava Gardner, Ramon Novarro, Billy Wilder e vasto etc. Tudo combinado de modo tão hábil que chega a nos causar um perene sorriso de prazer e cumplicidade. Kirk faz o tipo de papel em que é insuperável, o canalha. E Lana faz a alcoólatra ninfo em que se esmerou. Aliás o filme brinca com pólvora, tanto Lana como Gloria não eram fáceis. Lana, hiper estrela da Metro, envolveu-se em escândalo. Sua filha namorou o gangster de quem ela própria era amante. Tudo terminou em assassinato ( a filha matou o amante da mãe ) e Gloria era casada com o homossexual Nicholas Ray, amante de James Dean ( ele, não ela ). Gloria se separou de Ray e descobriu-se que ela tinha dúzias de casos, com homens e mulheres e até com um filho adotivo. Que elenco !!!!! O próprio Minelli era casado com Judy Garland, que morria de solidão, pois Minelli era outro caso de gay tentando mudar de vida e não conseguindo. Ela mergulharia nos remédios e ele continuaria colecionando porcelana. E fazendo filmes tão geniais como este e mais UM AMERICANO EM PARIS, O PIRATA, A RODA DA FORTUNA e mais alguns etcs... Assista este filme malicioso, fantasioso, adorável e divertidíssimo. Aprenda como se faz um filme sólido. Nota 8.

GOETHE - POESIAS SELECIONADAS

Goethe, como diz Harold Bloom, saiu de moda. Nosso tempo de homens-formigas tende a se incomodar com o gigantismo do poeta alemão. É uma pena, mas esperemos pela volta dos gigantes.
Tudo em Goethe é imenso. Sua vida foi longa ( 83 anos ) tendo vivido o classicismo, o romantismo e o pós-romantismo. Se interessou por tudo : química, física, teatro, política, poesia, música e falava dúzias de línguas. Nasceu em lar culto e feliz. Amou várias mulheres, de várias nações, de variadas idades. Foi grande sedutor e se tornou famoso em vida. Talvez tenha sido o mais amado homem de seu tempo.
E apesar de sua atemporalidade, de seu gênio que transcende estilo, Goethe é filho de seu meio. É retrato acabado do mais conturbado período europeu. É homem que une o universo da aristocracia com o folclore do homem comum de tempos industriais. Ele seria impossível hoje, pois Goethe ocupa espaço, é vaidoso, egocêntrico, vasto como um planeta, exagerado e arrogante, e também estranhamente bondoso. Vem da fábrica de heróis que foi a Europa entre 1770/1820, a era de Napoleão, Beethoven, Kant, Mozart, Byron, Shelley, Schubert, Hugo e tantos mais. A primeira geração industrial, a primeira geração de jornais, de revistas, de excursões. Goethe é o rosto titânico desse tempo.
Seu mundo é o do amor. Tudo é amor para ele. Está distante de nós em sua total ausência de cinismo. Ele não teme o sentimento. Ama o sol, a flor, a manhã e também se deixa conquistar pela lua e pela madrugada. Seduz mulheres e as descarta : seu compromisso é com seu ego. Mas sofre de remorsos. Sua obra é sinfonia de sentimentos. Mas o principal : Goethe, assim como Whitman, nos enche de júbilo. Lemos Goethe para sentir alegria e coragem. A diferença de Whitman reside na diferença entre Alemanha e América. O americano é mais democrático. Canta o povo. Goethe é aristocrático. Canta o coração e a alma. O tom é o mesmo : Adiante todos ! Rumo à vida !!!
E Goethe viveu muito, como viveu.... é exemplo de vida bem vivida. E sua obra tenta nos ensinar isso. Como viver de verdade. Como deixar o espírito livre. Voar.
Não pense que Goethe é dificil. Seu vocabulário é popular. O que ele tem de dificil é seu meio, seu mundo, tão distante do nosso. Goethe é total. Um artista. Não há nada de tímido nele. Nenhuma neurose. É corajoso e íntegro. Imenso.
Fica bem ao lado de Cervantes, Dante e Shakespeare. Dos deuses das letras. Dos milagres.
Ler Goethe é recordar aquilo que importa. O que vale a pena. O que é bom. Ele é necessário.

GREGOS E OS JOVENS ( palestra no café filosófico )

Como seria o grego que produziu esta obra ? Possuidor de mente jovem, onde, ele sabia, todas as possibilidades se apresentavam. Tudo por descobrir, tudo para ser feito, cada recanto intocado. Virgindade.
Teria ele a certeza absoluta da eternidade. Os deuses assistiam seu trabalho, os deuses velavam seu sono, a solidão lhe era inimaginável. Que mãos foram essas que modelaram essa face ? O que lhe passava na mente ao trabalho ? Mente jovem onde não existia a idéia de genialidade, onde não havia nenhum código a guardar e onde nada lhe distraía daquilo que importa. Jovem homem que vivia sem matar o tempo. Ele pensava na cabra fugida, na guerra iminente, nos deuses contentes, no próximo festival e na peça de Sófocles. Ele vivia todo o tempo no mundo jovem, puro, real. Cada momento lhe era como um abrir de olhos. Nascia.
E que rosto é esse com suas barbas viris, seu olhar implacável e seu cabelo que trai feminilidade ? Que homem é esse que não tem idade, não é jovem e longe está de ser um velho. Pleno de harmonia, cheio de energia, como se descobrisse tudo num suspiro. Novo para sempre.
Grego que fez esta obra imorredoura, nem o amor o distraía, nem as seduções de uma tela, nem mesmo um rádio. Olhava a vida todo o tempo, rio, deuses, lutas, praça pública, sexo, tudo inteiro e novo, ele estava lá sempre, no agora e no aqui, sem passado e sem medo do futuro, sempre e completamente : já.
Teria ele consciência do quanto era feliz ? Possuir a liberdade de campos sem dono, crer em sacrifícios e amar Atenas... e ser abençoado por Afrodite, por Zeus e por Apolo...
Depois.....
Todo momento do ocidente, desde então, seja renascença, seja romantismo, a revolução americana e francesa, e até maio de 68, todo momento onde o mundo tenta voltar a ser jovem, onde se fala em liberdade, recomeço, quebra de hábitos, harmonia, todo momento que vale à pena, é sempre uma tentativa, cada vez mais cansada, de se reviver o homem puro da Grécia ancestral. Unir Apolo e Dionisio.
Estamos velhos. Somos velhos. Com muletas. Precisamos de muletas para tudo. Um carro para viajar, drogas para suportar a vida, drogas para poder se divertir e até para sentir desejo. Precisamos de muletas. Telas para conseguir ver a vida, fotos e vídeos para poder recordar, vitaminas para se sentir forte, plásticas para tentar ser belo. Fugimos da realidade com nossas muletas porque temos a certeza de que O MUNDO ESTÁ EM AGONIA. Desde a revolução industrial, quando assistimos o fim de um tipo de mundo ( lento, sem stress, familiar, natural ) temos essa assombração de que todo o mundo está terminando. Toda nossa arte, desde então, toda nossa forma de vida e de fé, se tornou fatalista, niilista, e principalmente, se fez negação da vida real, do aqui e agora. Meninos assustados, vivem no futuro inexistente, ou no passado, idealizado. São todos românticos sem a coragem do real romantismo.
Nosso mundo está velho. As crianças estão nascendo já anciãs. Cheias de cuidados, horários e medos. Os garotos já crescem com o cinismo da desesperança, sem ingenuidade. Nascem deflorados, não conhecem a vigindade. E são dócilmente conduzidos pelas muletas de distrações senís, reanimadores e relaxantes, aparelhinhos que os confortam enquanto esperam pelo fim. Pois nunca se temeu tanto a morte. Filmes e games com braços decepados e cérebros explodidos são desesperada tentativa de banalizar a morte. A morte não é assim. É deixar de ser. É silenciosa, muda, asfixiante e invencível. Sua telinha não poderá torná-la virtual. Mas bem que voce tenta.
Tudo isso é sintoma de velhice.
Querer sempre o novo ( desde que se pareça com o que já se conhece ). Ter cara e corpo de adolescente. Não crer em coisas originais. Esquecer coisas desagradáveis. Achar que se sabe tudo. Zombar do idealismo. Descrer de política. Temer o futuro. Se apoiar com desespero em novas fés e soluções pseudo-científicas. Precisar todo o tempo de consolos e de cuidados. Idealizar a adolescencia é sintoma de velhice !
Mas aquele grego....
Vivendo ao lado daquele mar, onde ele tinha certeza viver um monstro. Pensando ter visto um deus voar entre as nuvens. Com um bosque só dele. E podendo fazer as primeiras perguntas, novas e vitais : Quem sou eu ? De onde vim ? Para onde vou ? Porque a semente se torna árvore e não um animal ? E tantas outras mais...
Tendo apenas uma cama, uma cadeira e seu prato. Nada temendo perder, nada sendo uma âncora. Sendo seu lar sua cidade, sua família seu co-cidadão, o sentido de sua vida seus deuses, e seu destino estando escrito. Onde o stress ? Onde o nada ? Vazio......
É claro que logo surgiriam gregos niilistas, gregos amargos, gregos materialistas. Mas é um EXERCÍCIO DE RACIOCÍNIO, não um niilismo de alma, um materialismo visceral. Eles estavam muito longe do viver-virtualmente.
Fica a obra. A nos lembrar de nossa infância. Do verde primeiro olhar. Uma mensagem de alegria, feita sem pretensão, quase por brincadeira, com pensamento leve, sensações reais e em meio a sol e ar de primeira primavera.
Todo grego, cada um deles, vestindo sua simples toga e indo à praça discutir o destino da cidade, foi absolutamente feliz. A felicidade de se descobrir a vida. A alegria de nascer.

PROMETEU ACORRENTADO - ÉSQUILO

Ésquilo escreveu 2500 anos atrás sobre o que somos hoje. Pois nosso mundo é mundo onde Prometeu manda. Ele venceu.
A peça narra, em magnífico e insuperável texto, a saga do titã que rouba o fogo dos deuses e o oferece a todos os humanos. Com esse fogo, a civilização nasce, o homem adquire algo de divino, a luz, o calor, o brilho do intelecto. Prometeu nos cria. Mas os deuses se vingam, e Prometeu, agora amarrado em rocha marinha, receberá toda a eternidade, a visita de um abutre, que lhe comerá o fígado. Fígado que se regenerá toda manhã, para que o castigo jamais se encerre. Prometeu somos todos nós.
Falar dos gregos. O que? Somos seus filhos. Pensamos como eles. Nossas perguntas são as que eles formularam e entendemos a vida da maneira como aqueles pastores do Mediterrâneo nos ensinaram. O que entendemos por belo veio deles ( bela é a harmonia. ) E o teatro, a ode, o conceito de heroísmo e de cidadania vem de lá. Mas acima de tudo, nos legaram essa sede pelo conhecimento, a sede mais cruel do mundo do ocidente. Queremos saber tudo.
Interessante notar que este herói, o maior de todos, é um ladrão. Ele não cria o fogo, rouba-o. Engana os deuses, não os teme, os desafia. Prometeu é orgulhoso e sofre a dor de sua coragem. O herói está SOLITÁRIO, no oceano, sofrendo a dor de ser comido vivo. Ele ilumina a vida dos mortais, mas perde, dia a dia, um pedaço de seu órgão animal ( o fígado representa as emoções, a bilis ). Órgão que jamais será extinto. Prometeu sofrerá para sempre.
A história do progresso é a história do caminhar rumo à solidão. Todo passo adiante nos afasta do convívio entre humanos e nos aproxima da cela. Abandonamos o mundo de portas abertas e da praça pública e corremos para o quarto funcional. Casas gregas não tinham portas ( como tabas indígenas ). O homem de ontem nascia e morria em público. Comer solitário era uma vergonha. Para se sentir vivo, voce precisava estar presente perante a comunidade. Suas crenças eram crenças em grupo : a nação, a família, a religião.
Prometeu ainda vive em meio aos deuses. Ele faz o que faz pelo homem, pelo grupo. Mas ele já não respeita esses deuses e se aliena do grupo. Preso e castigado. O preço do saber : isolamento e diminuição de seu lado "biliar".
Cubículos para comer, quartos espelhados para "amar", aparelhinhos isolantes para andar pelas ruas sem ouvir ou ver nada, amizades sem contato, famílias desfeitas, igrejas vazias, política desprezada. Festas onde voce fica com alguém e nunca conhece alguém. Amores desfeitos por um emprego ou por falta de tempo. Ginástica com aparelhos, fé individual, drogas que dão um barato solitário, tv no quarto, carro fechado e climatizado, medo e mais medo. Voce crê no que ? Voce daria a vida por alguma coisa ou por alguém ? Sua vida tem um valor ?
Chegaremos ao tempo super moderno em que fotografaremos nossa namorada para olhá-la e nos masturbarmos em casa. É uma era de prazer solitário à dois. Por mais que tenhamos prolongado a vida ( para que mesmo ? ) nada compensa o vazio de não se crer em nada. O que voce crê ser cem por cento infalível ? Voce tem absoluta certeza de que o homem caminha para o bem ? Valeu a pena roubar o fogo ?
Na verdade a questão não é se valeu a pena. Nós tínhamos de roubar a luz. O que Prometeu nos ensina é que não há escolha. Nosso caminho é este, não existe outro possível. Destruir mitos, esvaziar esperanças e utopias, caminhar rumo ao rochedo. Nosso fado. Nietzsche amava esta peça sobre todas as outras. Ela fala de potência, de coragem, do super-homem. Prometeu jamais se arrepende, jamais sente piedade de sí-mesmo. Ele cumpriu. Eis tudo.
As pessoas pensam que viver intensamente é sair muito, viajar, beber e comer. Viver intensamente é iluminar. Dar luz às trevas. Conhecer. Não ir e fotografar, transar e catalogar. Conhecer. Esse é o tal do Carpe Diem. Mais um dia, mais um conhecimento adquirido. Tornar-se Prometeu. Criar. Bíblia de meu universo, PROMETEU é a certidão de nascimento do que vivemos desde sempre e para sempre. Ésquilo foi uma antena.