OLIVIER/ VISCONTI/ RAY/ RENOIR/ CLAUDIA/ HUXLEY/ STAMP

ORGULHO E PRECONCEITO de Robert Z. Leonard com Greer Garson, Laurence Olivier, Maureen O'Sullivan e Edmund Gwenn
Olivier compõe um excelente Mr.Darcy. Sua mistura de timidez com altivez atinge a medida certa. O roteiro deste belo exemplo de produção MGM, ou seja, muito luxo, é de Aldous Huxley. Sim jovens, houve um tempo em que gente como Huxley, Faulkner e Hecht trabalhavam para Hollywood. O roteiro consegue condensar o romance de Austen em duas movimentadas horas. Não senti falta de nenhuma cena. Há uma versão recente deste livro igualmente boa. Nota 8.
VAGAS ESTRELAS DA URSA de Luchino Visconti com Claudia Cardinale, Jean Sorel e Michael Craig
Logo após o soberbo O Leopardo, Visconti fez este pesado drama sobre casal de irmãos que tem relação dúbia ( incesto? ). Claudia, estranhamente feia, é uma recém casada que leva o marido inglês a mansão onde ela e irmão cresceram. O irmão, meio doido, logo tenta voltar aos tempos de contato íntimo com a irmã. O filme não flui. Visconti tenta se renovar, pega alguns tiques da nouvelle-vague e se perde. O visual é estranho, às vezes se parece com tv. A questão é: quem se interessa por personagens tão vazios? Nota 4.
MORTE EM VENEZA de Luchino Visconti com Dirk Bogarde
Dificil falar desse filme. Porque? Por ser um dos mais esquizos filmes já feitos. E também por ser exemplo de um tipo de filme velho, morto, mumificado. Vamos aos porques. Ele é esquizo por ser ao mesmo tempo ruim e excelente. Excelente são as roupas de Piero Tosi, figurinista mais famoso do mundo. Um desfile de detalhes, cores, requinte, soberba. Excelente são os cenários e a fotografia de Pasqualino de Santis. Veneza no explendor. A produção reformou e restaurou um hotel de verdade para filmar o luxo de 1911. Excelente a trilha sonora de Mahler, de tristeza cósmica. Então a gente fica meio hipnotizado ( se voce for um esteta ) admirando o visual e escutando a trilha sonora. Mas por outro lado, o filme em si é risivel. Discussões filosóficas sobre arte, pedantes e redundantes; movimentos de câmera irritantes e atores conduzidos como zumbis empaturrados. O efebo é anódino e Bogarde interpreta Thomas Mann como um entediado burguês. Detalhe: é um filme com som à Jacques Tati: diálogos que não se ouvem e muito som ambiente, o que ressalta seu caráter visual, de turismo em Veneza. Não é um filme, é uma coleção de souvenirs de uma viagem de um velho. Fofocas: Visconti era tão perfeccionista, que na obra-prima O Leopardo, ele atrasou a filmagem em horas para que em cena as champagnes estivessem na temperatura exata. E observe em como Dirk Bogarde tem o rosto de Johnny Depp!!!!!!! Nota 5.
BILLY BUDD de Peter Ustinov com Terence Stamp, Peter Ustinov, Robert Ryan, Melvyn Douglas e Paul Rogers
Navios ao mar. Preto e branco fantástico de Robert Krasker. Um marujo ingênuo é recrutado para a guerra. No navio ele se verá em conflito com o mal nada ingênuo. Stamp faz um retrato preciso, seu marujo é exemplo do bem e do bronco, é tolo e é angelical. O filme jamais filosofa por nós. Ryan é o mal, e o mal vence. Uma aula de cinema. Nossa mente fica completamente ligada ao filme, ele diverte e faz pensar. O final é digno de grandes filmes, exato. Nota 9.
O ATALHO de Kelly Richardt com Michelle Willians, Bruce Greenwood e Paul Dano
Western de arte. Argh!!! Para mostar três meninas cruzando um riacho são gastos vários minutos. Há quem confunda arte com fazer sofrer. É o pensamento do jeca: se voce quer arte, sofra de tédio. Imagens escuras, múrmurios, ação lentíssima, pseudo-profundo. Um porre!!!! Pra que fazer isso? Nota ZEEEEEEERO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A SALA DE MÚSICA de Satyajit Ray
Um nobre empobrecido. Um palácio sujo. Um rio vasto. E muita música. Com poucos elementos Ray faz um imenso filme. É cheio de falhas. Algumas cenas são excessivas e outras chegam perto da caricatura. Mas perto do valor de seu todo é uma obra de poesia cósmica e original. Cinema atemporal, belo e sincero. Nota 9.
O SEGREDO DO PÂNTANO de Jean Renoir com Dana Andrews, Walter Huston, Anne Baxter, Walter Brennan, Ward Bond
Pântanos. Belas imagens da água e lodo. Um jovem atrás de seu cão conhece condenado que lá se esconde. A história corre através dessa relação e da relação do jovem com seu pai e com sua vila. Renoir fugiu da França nazista e fez alguns filmes americanos. São bons filmes, mas não procure o estilo Renoir neles. São impessoais. Nota 6.

ARNALDO JABOR

Muito bom o texto dele no Estadão de ontem. Ele chorou com o filme de Woody Allen, na hora em que Cole Porter canta ao piano. OK. Voce menino inteligentinho antenadinho, voce pode dizer: eis um filme comum que pegou o pessoal do passado, o tipo "homem inteligentão desligado"... eu sei que voce prefere os filmes de "arte" feitos calculadamente para impressionar gente como voce ( A REDE SOCIAL, CISNE NEGRO, MELANCOLIA ), aqueles produtos de filosofia fácil, que ditem aquilo que voce já sabe e sente, com o visual que voce conhece e um certo climinha tristinho e escurinho... Mas o que Jabor diz, e eu digo, é que não há nada que vá te fazer chorar quando voce tiver 70 anos. Talvez apenas o seu umbigo em horas de terapia. Por não saber nada sobre cinema voce cai fácil na colonização desses dois únicos tipos de filme que voce entende: o filme tristinho e o filme pop fofinho.
O que voce não pode saber, e jamais saberá, é que existe uma coisa chamada paixão e é sobre isso que Jabor fala. Paixão pelo povo de 1920 em Paris, pelos intelectuais ferinos e elegantes da New York dos anos 30. E pelo cinema sem moda e sem cálculo. Cinema que não é pro seu narizinho sensível e bonitinho.
Amava-se Tarkovski como quem ama o Corinthians. E era-se anti-Bunuel como quem é anti-Gaviões. Questão de paixão baby. Eu chorava ao PENSAR em ir aos bares onde Heminguay, Cocteau, Man Ray ou Capa estiveram ( e chorei ). Sabe o que eu ganhei com essa paixão? Cor, sangue, faro e muito espírito. E é o que eu procuro e não acho no cinema de agora: paixão viva. Tarantino sempre demonstra essa paixão viva. Tem mais uns cinco ou seis que também têm isso. Mas eles não conseguem fazer um movimento. Pior, para voces, ó seres inteligentinhos, eles são apenas pop. Afinal, não falam do "sentido da vida". Surpresa pra voce baby: seus falsos gurus falam o que voce quer ouvir. Nada de novo no front.
Como paixão o cinema morreu a vinte anos pelo menos. A reverência que cheguei a ver no fim dos anos 70 ( que era demonstrada pelo fato de que filmes eram aplaudidos e seus letreiros de encerramento acompanhados até o fim ), se encerrou. Recordo aplausos em "cena aberta" para Annie Hall e Z de Costa-Gavras. E discussões acaloradas sobre Rede de Intrigas e Lenny ( na sala de cinema, entre estranhos ). Parece que quem ia ao cinema era mais vivo.
Hoje o fime de arte é um tipo de cantiga de deprimidos que embalam bonecos mortos em seu colinho flácido. Nada têm a dizer e nada despertam de novo. Porque voce pode com seu pensamento inteligentinho estar pensando: Esse cara é saudosista! Mas o que voce não consegue perceber é que o que desejo ( pasmem! Eu ainda desejo algo que não me é oferecido para ser desejado!!!!! ), é exatamente o novo, a surpresa, o inesperado.
Belo texto Jabor!!!!!

A SALA DE MÚSICA- SATYAJIT RAY, UM DIRETOR COMO NENHUM OUTRO

Índia. A vastidão sem fim de um rio. Um horizonte que não termina. Um palácio a beira desse rio. Decadente, sujo, úmido. No terraço vive um velho que foi rico, e seus serviçais. Esse homem não desce aos outros andares faz muito tempo. Em flash-back saberemos o porque.
Ray criou o cinema de arte na India. Antes dele só havia Bollywood. Nascido rico, Ray usou o que tinha e o que não tinha para fazer seu primeiro filme. Este é o segundo, feito em meio a trilogia de Apu. No caos da falta de recursos, Ray fazia a direção, produção, cenários, figurinos e ainda ajudava na fotografia e na música. O milagre é que seus filmes são plasticamente maravilhosos, amplos, abertos, e também são lentos, sujos, cruéis até, mas sempre belos. Chega a emocionar vermos um tipo de vida, um tipo de cinema tão diferente do Ocidente. O tempo é outro, os sets são outros, a língua ( deliciosa ) é exótica, os rostos são estranhos. Mas há em seu cinema o mesmo espírito do cinema de Mizoguchi: nobreza. Ray ama seus personagens, mais que isso, ele nos faz sentir esse amor, mais ainda, ele nos faz sentir a dor do tempo que se vai, das mortes inevitáveis ( sempre há uma morte em seus filmes ), dos erros e dos vicios.
O erro aqui é o orgulho. O nobre decadente perderá tudo por seu orgulho, por se sentir obrigado a ser superior sempre, por acreditar em seu sangue, por vaidade sem fim. E por seu amor a música. O filme é cheio de cenas de música, todas lindíssimas, porque ele insiste em fazer saraus para e pela música. Gasta o dinheiro que já não tem com músicos e festas para seus amigos. E no ápice do filme, já no tempo presente, ele dá a última festa e o que vemos é uma execução perfeita. Música indiana ( Ustad Vilayat Khan ) que empolga, e dança que beira o sublime. Atenção às mãos da dançarina, é nas mãos que vive a arte da dança hindú. Toda a melodia é traduzida em movimentos que voam e falam.
O nobre fica extasiado, e parte numa última cavalgada, rumo ao fim. Bêbado.
Difícil fazer justiça ao cinema de Ray. Ele não deixou herdeiros ( ou todo o cinema do terceiro mundo o é? ). Seus filmes devem ser vistos em tranquilidade. Nada têm de filosóficos ou religiosos. São belas observações, isentas, sobre a vida da India de seu tempo. E se há uma moral em sua obra é apenas esta: a vida passa como dor, mas existe um momento em que ela vale a pena e se explica. Cada um de seus filmes mostrou esse momento. Um nobre.

DÁ PRA CRER NISSO???? Ô SE DÁ !!!!!!

Dá uma olhada no vídeo daí de baixo. 50 anos de pop em cinco minutos de inspiração profética. É um momento de um filme de 1941, uma comédia clássica. Do começo ao fim, do r and b ao rap, do rock ao disco tá tudo mostrado nesses cinco minutos.... Conclusão? Caraca!!!! Como a América foi fértil um dia!!!!!

POR ONDE VOCÊ ANDOU, ROBERT? - HANS MAGNUS ENZENSBERGER

É um autor que frequenta sempre os postulantes a vencedor do Nobel. Poeta, ensaísta, crítico, romancista. Aqui, em tom de literatura juvenil mas na verdade com implicações adultas, ele conta a saga de Robert, um adolescente alemão de classe média, que sem saber como, acaba por viajar por sete locais e sete épocas diferentes. Ele se vê na Sibéria dos anos 50, na Austrália de 1946 e por aí vai.... Fantasia? Sim, da melhor safra, e penso em como eu adoraria ter lido este livro aos 16 anos ( Mas quando eu tinha 16 este livro não havia sido escrito! )
Aventura. Como é bom ler um livro de ação bem escrita. Coisas acontecem, crimes, fugas, guerras, quase amores... E Enzensberger consegue algo muito raro: nos sentimos nos lugares onde a ação se passa. Quase podemos sentir o cheiro da Estrasburgo do século XVII ou ver a ordem e o asseio da Amsterdam de 1617. Mas nada há de romantico aqui. Robert percebe a pobreza de cada cidade vista, a falta de bens que lhe são tão comuns hoje, a falta de comida. Enzensberger nunca glorifica o passado, ele sabe que cada um só pode viver em seu tempo. Quem vier amanhã também nos achará limitados.
Dificil saber se a intenção do autor foi "quântica". Há um flerte com a noção de que todo tempo é aqui/neste lugar/agora. Que os ontem acontecem indefinidamente para todo o sempre. Que o futuro e o passado moram em todo presente. Mas ele não aprofunda nada disso, apenas sugere, felizmente!
Precisamos de mais autores como Hans Magnus. Que escrevam com gosto e não com sofrimento. Que parecem sorrir de prazer ao criar e que não nos obriguem a sentir pena de seu dom. Aqui temos um muito bom livro, que diverte, absorve e toca nos tais "temas sérios". O que mais voce quer? Não temos mais um Henry James ou um Joseph Conrad. Um Enzensberger está de bom tamanho.

BILLY BUDD, O MAL ENCONTRA A INOCÊNCIA

Acaba de ser lançado o dvd do filme de Peter Ustinov, Billy Budd. A Veja também o comenta nesta semana. O que dizer? Se ando pegando no pé de certos filmes que nada têm a dizer e se fingem de filosofia, este, aparente aventura marítima, é arte absoluta, arte que diverte também, mas que faz pensar, pensar bem. O livro original é de Hermann Melville e Ustinov, ator que aqui se faz diretor, se mostra a altura do que a história lhe exige.
Em fins do século XVIII, a marinha inglesa, em guerra, recrutava a força qualquer marinheiro civil inglês que fosse pego. O ambiente no navio mercanto "RIGHTS OF MEN" é de camaradagem, mas o navio de guerra 'AVENGER" recruta a força Billy Budd e o que vemos é como esse marujo muito jovem se vira em seu novo trabalho.
Billy é orfão, ignorante, bronco, um rapaz sem nenhuma cultura. Mas ele tem algumas coisas que o ajudam: é bonito, acredita na vida e em sua inocência persevera em teimosa obstinação. Billy crê em seu mundo. Acredita que a verdade prevalece, que o bem traz o bem e que todos gostam de quem for um bom camarada. Esse Budd é feito pelo iniciante Terence Stamp, e Stamp está a altura de Billy Budd. Ele jamais se torna um anjinho piegas, nunca faz humor. O marujo do bem é um tolo, um iletrado, e Stamp nunca nos deixa esquecer disso. Mais, ele o faz sempre sorridente, e nesse sorriso vemos algo de "quase maligno" em Budd.
Voce já deve ter visto Terence Stamp em algum filme atual. Ele se tornou uma estrela nos anos 60, mas na loucura da época se perdeu por todos os anos 70, retornando a vida nos 80/90. Foi Priscilla, a Rainha do Deserto que o recolocou no mercado. Se na juventude seu rosto transparecia inocência, hoje é o rosto da maldade. É um dos vilões mais usados. Voltando ao filme....
No navio, Billy entra em atrito com o encarregado da disciplina, papel feito de forma magnífica pelo sempre marcante Robert Ryan. Se Billy crê no bem, Ryan é o mal. Ele tem êxtases em cada chicotada dada em cada marujo ( o chicote era norma na marinha inglesa de então. Foi norma no Brasil até o século XX ), e passa a sofrer intensamente com a bondade de Billy Budd. Os diálogos entre os dois são maravilhosos, Billy levando o bem adiante em lógica natural absoluta e Ryan usando o mal como escudo onde se protege de seu desencanto. O filme não freudianiza nada, não evangeliza nada, não faz poesia, ele conta a história, dá chance a 8 atores soberbos e se encerra em final afiado, cruel, incômodo.
Obrigatório. É um filme para todo adulto que goste de filmes.

CLINT/ PAUL NEWMAN/ MARLON BRANDO/ FRED ASTAIRE/ RITA/ POWELL

SUPER 8 de JJ Abrams
Simpático filme de um sub-spielberg. Uma repórter ( não lembro o nome ) ao escrever de Abrams falou dos caras vindos da tv e que não deram muito certo. Ela esqueceu do principal, James L. Brooks, um diretor vindo da tv ( Mary Tyler Moore, Taxi, Os Simpsons ) e que ganhou Oscar de direção ( Melhor é Impossível ). Este filme, leve, bem levado, efeitos sem exageros, é uma competente diversão de fim de tarde. Um alivio. Nota 7.
A MARCA DA FORCA de Ted Post com Clint Eastwood
Em 1968, retornando de seu auto-exilio italiano, Clint faz este western. É sobre um vaqueiro que é enforcado e sobrevive a isso. Ele se torna delegado e parte à vingança. Há algo de Dirty Harry aqui, mas falta ritmo ao filme, falta direção. Sinto em dizer, é chato. Nota 3.
REBELDIA INDOMÁVEL de Stuart Rosenberg com Paul Newman, George Kennedy, Dennis Hopper, Harry Dean Stanton
Kennedy levou Oscar de coadjuvante e o filme foi sucesso de público em 1967. Newman é um cara que cumpre pena de dois anos por danificar parquimetros. Na prisão rural, ele se torna uma lenda por seu jeito safado-cool de ser e por suas fugas que nunca dão em nada. Filme pop de primeira. Se voce o assistir como aventura ficará satisfeito, mas se pensar sobre suas cenas verá uma parábola sobre Jesus Cristo. Tudo com humor, drama e uma atuação maravilhosa de Paul Newman. Um ator sempre adorável. Assista que vale muuuuuito a pena. Nota 8.
ZORRO, THE GAY BLADE de Peter Medak com George Hamilton e Lauren Hutton
Em 1978 foi considerado o pior filme do ano. Hoje é cult. Zorro tem um irmão gay. Quando ele se machuca, o gay assume seu posto. Chanchada simpática, mas muito menos engraçada do que se desejaria. Motivo: o irmão gay aparece pouco. Hamilton faz os dois. Foi considerado o pior ator do mundo na época. Nem tanto, o afetado com suas roupas de cores fortes é boa criação à Mel Brooks. Nota 3.
OS QUE CHEGAM COM A NOITE de Michael Winner com Marlon Brando e Stephanie Beacham
Em seu grande ano ( 1972 ), Brando fez 3 filmes: O Chefão, O Último Tango e este gótico inglês. O roteiro conta o que teria acontecido na mansão de Os Inocentes antes do filme de Jack Clayton. Ou seja, é um prólogo a Henry James e seu A Outra Volta do Parafuso ( que no cinema é o clássico Os Inocentes ). Brando é um brutal e infantil trabalhador rural. Ele é amigo dos filhos do patrão, um casal de crianças que o tem como ídolo. Os dois começam a imitar Brando em tudo, principalmente em sexo, pois eles espionam Brando em suas cenas de sexo sádico com a professora dos dois. O filme tem um belo clima soturno e filmes passados no campo pantanoso inglês são sempre interessantes. Mas tem mais, uma excelente trilha sonora de Jerry Fielding e uma atuação magistral de Brando. Enorme, cruel, sensual, simpático e ruim, tudo o que ele faz é violento, estúpido, errado. Ele faz crescer muito o filme com seus olhares tortos, as mãos de animal e a voz que é um sussurro primitivo. O roteiro tem momentos de quase tolice, mas Brando salva tudo por estar quase sempre em cena. Winner era considerado um diretor enganador em seu tempo ( anos 60/80 ), mas este filme está longe de ser ruim. Boa diversão para madrugadas de insonia. Nota 7 ( por Brando ).
O DIA DEPOIS DE AMANHÃ de Roland Emmerich com Dennis Quaid e Jake Gyllenhal
Todos conhecem esse filme. Posso jogar nele a filosofia de Pascal: imaginação. Usamos nossa imaginação para acreditar estar vendo um belo filme de ação. Mas o que vemos na realidade é um filme sem imaginação, sem suspense algum, sem alma. Neve, gelo, e o prazer doentio de se ver o planeta morrer. Os efeitos são ok, apesar dos lobos ridiculos. Quaid foi um dos atores mais interessantes nos anos 80 e envelheceu muito bem. Ainda tem aquele ar de malandro boa gente. Já o tal Jake é a cara dos anos 2000: um nerd inofensivo com olhos de mangá. Nota 4.
BONITA COMO NUNCA de William A. Seiter com Fred Astaire e Rita Hayworth
Uma menina que atende na 2001 conversou comigo quando comprei este dvd. Ela fala como pode existir gente que gosta de cinema e não assiste os clássicos. Falo que essas não são pessoas que gostam de cinema, são pessoas que gostam de ir ao cinema ou de ver dvd, o que é muito diferente de gostar de cinema. Ela descobriu os filmes clássicos através dos musicais, o que é uma coincidência, pois eu também tomei contato com a velha Hollywood via musicais. Aqui temos o gênio de Astaire na Buenos Aires made in California. Lá, ele se envolve com filha de rico argentino que não quer que eles se casem. Mas ela, Rita, o ama.... Como em quase todo musical, a história é um quase nada, mero acessório para as canções e danças e também as frases espertas dos diálogos. Não é um dos grandes musicais, mas é tão bom olhar para Fred, ele nos dá uma alegria tão leve, tão prazerosa é sua visão... assim como a beleza de Rita, no momento em que ela começava a ser estrela. Agradável, alegre, é aquele mundo do musical em que a gente pensa: Ok, nada a ver com a vida real, mas e daí? Viva a ilusão!!!!! Nota 7.
UM DE NOSSOS AVIÕES NÃO REGRESSOU de Michael Powell
Feito em plena segunda-guerra, fala de um avião que é atingido pelos nazis ao voltar de um bombardeio em Dusseldorf ( foi bombardear a fábrica da Mercedes ). Caem na Holanda, e o filme mostra seu retorno a Inglaterra ajudado pela resistência holandesa. Um elogio ao povo holandês, e os nazis não são pintados como demônios. Powell fez várias obras-primas, mas este filme, de certo modo propaganda de guerra, não é dos maiores. A volta acontece de forma fácil demais, sem grandes perigos, simples. Nota 6.

O FILÓSOFO MAIS FORA DE MODA: PASCAL

Termino então Os Pensamentos de Pascal. E se na primeira parte ele pouco se ocupa explicitamente de religião, todas as 150 páginas seguintes têm a questão cristã por assunto. E em meio a elas um pensamento que me assombra ( por sua clareza exemplar ): Ateus pedem uma prova da existência de Deus. A resposta de Pascal é a mais engenhosa que já li: César ou Xerxes se mostraram em todo seu poder e magnificência. Todos então foram obrigados a submeter-se a eles: bons e maus, ricos e pobres, falsos e sinceros. Se Deus, ou melhor, se Jesus viesse a Terra e se mostrasse em todo seu poder, quem o seguiria? Todos, seduzidos por sua força, por seu poder, por sua garantia de proteção. Mas, do modo como as coisas se dão, sómente os que possuem fé, os bons, os não-egoístas, os humildes podem aceitar a existência de um Ser que só existe em seu coração. Seguir alguém que é poder visivel e é presença que obscurece nada prova, amar alguém que não se mostra e é busca no infinito, isso prova muito.
Com esse pensamento não se dá por encerrado o debate, debate que Pascal reconhece ser necessário sempre, mas se dá uma lógica perfeita, uma aposta numa possibilidade que vai além do existe porque eu creio, ou o não existe porque nunca o vi. Nas páginas em que Pascal fala sobre a necessidade da crença ( os que não creem são alegres e sempre infelizes, os crentes são tristes porém felizes ), há algo de muito claro, muito certo e ao mesmo tempo terrível. Jesus veio ao mundo para se sacrificar. É fato. E aí há algo que esquecemos: ele poderia ser um super-herói, ou um poeta bardo, ou um filósofo. Mas não, foi um pobre traído pelos amigos, solitário. Porque? Jesus simbolizaria nossa sina rumo a perfeição. As suas adversidades são as nossas mesmas e sua morte na cruz é a morte de nosso eu. Sim, pois a frase mais chocante em Pascal, e que ele repete várias vezes é de que é preciso ODIAR A SÍ-MESMO. Odiar o eu. Qual a lógica nisso? Se voce odeia seu eu voce deixa de se guiar pelo seu desejo, e se voce deixa de se guiar por seu desejo voce deixa de temer a morte, pois teme a morte quem não aceita o fim dos sentidos, dos desejos, do eu. O ego é a fonte de todo o mal do ser e do mundo. Tudo aquilo que vem do ego é sempre ódio ao outro e vaidade sem fim. O que o eu quer é ser atendido, adulado, e preservado. Jesus é o anti-ego, a submissão ao outro, a doçura e o sacrificio sem vaidade, anônimo. Para Pascal, é impossível ser feliz com amor ao eu.
Mas há mais, muito mais....
No homem existem apenas duas fomes válidas: a fome de espírito e a fome por justiça. Todas as demais sendo empobrecedoras e anti-humanas, fomes de animais. A imaginação tolhendo toda a compreensão da vida. Imaginamos o que o outro é, o que ele quer dizer, o que devemos sentir, o que somos e o que não somos, o que a vida significa, e assim jamais vemos a realidade.
Pascal, filho de seu tempo, tem um pensamento que me é detestável. O de que por não falarem e não criarem alternativas de comportamento, os animais são máquinas que comem e dormem, seres sem sentimentos, sem alma. Descartes dizia o mesmo. O excesso de racionalismo leva sempre a isso, por não serem racionais os animais seriam objetos que se movem. Felizmente esse é um pensamento cada dia mais morto ( o que prova por outro lado que pensamentos menos racionais e mais abstratos nos dominam agora ).
No homem haveria uma luta sem fim entre paixão e razão. Jamais se deve optar por uma das duas, deve-se fazê-las escravas de si. Ser o senhor da razão e o dono da paixão, pois razão sem freio torna-se egoismo e paixão se faz vicio.
Pascal usa um belo argumento para ilustrar a crise do homem ( sim, se fala da crise do homem desde essa era, aliás essa crise nasce na geração de Pascal e Espinosa ): o cego que um dia viu o mundo tem saudade da visão, um paralítico que um dia correu sente falta de andar, mas alguém que já nasceu cego ou entrevado não pode ter saudade do que nunca conheceu. Pois bem, se o homem sofre dessa nostalgia de tempos melhores, se ele sente que sua vida poderia ser maior e melhor, é porque um dia ele assim o foi. Não inventamos essa saudade do nada, ela é recordação verdadeira, nostalgia de algo de real que foi perdido. Saudade de uma felicidade que houve e foi quase esquecida. Saudade da fé verdadeira, fé sem dúvida, sem crise, sem pudor. Saudade de Deus.
Tudo em nós tende para nós mesmos, queremos ser amados. Isso é injusto. Devemos tender para fora, amar. Nascemos portanto maus e depravados. Eis outro pensamento pouco "simpático" de Pascal. E é maravilhoso ver o pensamento de um homem que nunca se preocupou em ser simpático ou róseo, um homem da religião verdadeira, e não da igreja auto-ajuda-veja-como-somos-todos-inocentes. Pascal pede que nos ajoelhemos, que joguemos a vaidade ao lixo, que amemos a Deus mesmo não tendo garantia nenhuma de sua existência, que sejamos para fora de nós e nunca dentro do eu.
Mais ao fim, Pascal faz uma leitura da religião judaica que deve irritar muito aos judeus. Ele não a condena, mas diz que o judaísmo teve como única missão a de ser o berço do cristianismo. Que tudo no velho testamento é anúncio de Jesus, preparação para sua vinda, e que os atos dos judeus tinham de ser como foram no teatro da vida humana. Anunciar o Cristo, não crer que Jesus fosse esse Cristo, condená-lo, ignorá-lo e crucificá-lo. Esse o caminho a ser refeito por todo cristão, de hoje para todo o sempre. Se Jesus viesse como rei ( que era o que os judeus esperavam, um novo Davi ), ele seria um usurpador, um exemplo impossível de ser seguido, um ditador.
Pascal..... será que passei quase meio século enganado?
Aliás, em mundo de eus inflados e exibidos, de desejos atendidos, de sorrisos infelizes, existe filósofo mais fora de moda e mais necessário?

BLAISE PASCAL, TUDO É IMAGINAÇÃO

O século XVII é considerado o século da grande revolução espiritual. O racionalismo se torna centro da mente humana. A partir de então, para se saber algo sobre qualquer coisa, são necessárias duas operações da razão: dividir a coisa a ser conhecida em partes mensuráveis, e estabelecer um método ordenável para a explicar. Todo o universo passa a ser então uma questão de peso, tamanho e distância, toda a experiência uma questão de método e o que não se enquadrar nesses requisitos básicos será ignorado.
Blaise Pascal nasce nesse ambiente. Mais que isso, ele nasce na França, em familia de posses, único filho homem de pai erudito. E é esse pai que logo percebe a precocidade do filho. Aos 7 anos ele já resolve problemas de matemática e lê a obra de Euclides. ( Voce já notou que é a partir desses anos 1600 que a matemática passa a ser a rainha do conhecimento ). Pascal se torna geômetra, e cria a primeira máquina de calcular da história. É ele o homem que primeiro caminhou na direção do que seria o computador. Pois bem. A partir dos 30 anos a vida de Pascal dá uma guinada. Ele se torna jansenista. Se voce já viu algum filme de Bresson sabe um pouco do que seja o jansenismo. Não? Direi.
O jansenismo é uma corrente cristã francesa que prega o absoluto despojamento. Não é como o franciscanismo, nada há de mendicante. O que se faz nele é um rigor absoluto, a certeza inabalável de que tudo o que vem do corpo é impuro e que todo o prazer deve ser evitado. Assim, qualquer espécie de experiência prazerosa precisa ser purgada. O catolicismo romano logo passou a perseguir os jansenistas que viam no catolicismo vaidade e luxo.
Mas não se assuste, a filosofia de Pascal não é pregação. Falarei aqui do inicio de seu mais lido livro, Os Pensamentos. Para Pascal, vivemos em ilusão. Tudo o que pensamos, falamos, sentimos é tingido pela fantasia. O homem é incapaz de viver na realidade. Jamais falamos o que pensamos, na verdade mal sabemos o que pensamos. Nossa mente funciona sempre na apreensão do futuro e nas certezas do passado. O presente nos é desconhecido. Futuro que não existe e nunca será como pensado, e passado que é valorizado de forma fantasiosa. Para Pascal, a vida é movimento, jamais somos o mesmo dois dias seguidos. Nossos amigos mudam, as coisas mudam. Nada é igual a nada, não existem dois dias iguais, não existem dois seres iguais. Mas somos incapazes de apreender essa transformação incessante, não conseguimos ver a exuberância da vida e então ignoramos as coisas. Cremos que todo bago de uva é igual a seu vizinho, queremos crer que todo cão é como outro cão, sentimos segurança crendo que todo homem é igual. Mas nosso coração intui que não é assim.
Pascal no inicio fala também sobre as distrações. O homem é incapaz de ficar quieto em seu quarto. Vem daí toda a dor de viver. Porque? Porque precisamos de distrações, não suportamos viver em nós-mesmos, olhar para dentro e saber que tudo é abismo. Nossa vida tem apenas uma certeza, a morte. As distrações nos livram, futilmente, dessa certeza. É por isso que trabalhamos, jogamos, flertamos, viajamos. Pascal diz: dê à um jogador o prêmio do jogo e voce verá um homem infeliz. Dê uma lebre ao caçador de lebres e voce verá um caçador entediado. O homem é infeliz por "sonhar com o repouso e só poder viver em movimento". Toda sociedade que endeusa as distrações é infeliz. A distração é a medida da dor.
E a vaidade é parte desse todo. Vaidade é tudo. Filosofamos para que alguém nos admire, amamos no intuito de sermos admirados e invejados por vivermos nosso amor. Exibimos nossas dores como um tipo de troféu de nobreza. E cometemos a maior das vaidades: posamos de corajoso e realista ao bradar que a vida é dura e que a morte é certa. Não há maior vaidade que a de se dizer que Deus não existe e que tudo é um nada. A vaidade da pseudo-coragem. ( Bergman? Nietzsche? ). Mas esse mesmo realista que se gaba de sua coragem isenta de consolos, é o mesmo ser assustado que necessita de jogos, bebidas e sexo para se distrair. Estar em solidão consigo mesmo lhe é insuportável.
Animais vivem o aqui e agora, na realidade do movimento, do presente. A razão do homem lhe impede qualquer contato com o agora e o repouso vazio.
Pensador que escreve bem, Pascal tem suas diferenças com Montaigne ( Pascal o considera um vaidoso que fala apenas de si-mesmo e é incapaz de parar e pensar sózinho ) e com Descartes ( que seria um ordenador racional assustado ). Nada há de místico em Pascal, ele pensa em ordem e não em maravilhamento, mas critica a cegueira e o medo no homem.
Esse é o começo de seu admirável e canônico livro. Já é um dos meus favoritos.

ELEGIAS AMOROSAS= JOHN DONNE

John Donne é poeta central em toda a história das letras inglesas. E viveu nos áureos tempos da virada, o momento em que o poderio inglês se afirma nos mares e a nação se enche de orgulho e de fé no futuro. Nesse mundo, em que o racionalismo-otimista se expande por todos os cantos, Donne começa escrevendo poesia erótica, amorosa, e vive esse universo sensual sobre o qual escreve. Na parte final de sua vida Donne se faz religioso, Deus passa a ser seu tema. Por favor, não pense que ele foi um libertino arrependido. A religião entra na vida de Donne como natural desenvolvimento de sua história. Em seus poemas de juventude já notamos que existe nele a fome da experiência. É como se após desvendar todos os recantos da carne, ele comungasse com os mistérios da alma.
E aqui está uma edição portuguesa, tradução excelente de Helena Barbas. Poesia feliz, exultante, poesia do êxtase. O poeta convence sua amada a se dar, prega a inconstância, mundo onde ninguém é de ninguém. A musicalidade impera, cada poema é um tipo de canção erudita. Imagens sobre imagens, pele e pelo, curvas e geografias carnais, teses de liberdade, sínteses de sedução.
"As mulheres são para os homens, não para mim ou para você", este o tema da elegia 3, Changes, elegia que demonstra a volubilidade das mulheres, a mudança constante da vida. Pois deixar de mudar é ser lago imundo, quando somos rios. Ricos.
E Donne reclama depois da mulher a quem ele tudo ensinou e que agora se vai ( Donne é humano, a vida é mudança, mas ele quer que ela fique um pouco mais ), ela se vai, sábia, dar a outros o que ele lhe deu. Na elegia 9 ele faz o elogio do Outono e com ele das mulheres outonais. Uma aula de imagens que correm em constante velocidade, sonoridades que hipnotizam, sensualidade sem fim. E vem a elegia 11, Bracelete, talvez a minha favorita. Ele lamenta a jóia dada a sua amada, ouro que revelou ao pai da moça o amor secreto dos dois. Donne faz comparações entre os metais e o amor, divaga nos meandros de seu sentimento, flui entre suas sensações.
Na elegia 15 ele cospe em postulações a infidelidade da mulher. Elas mentem, todo o tempo, a mentira é condição de ser mulher. John Donne se faz agressivo, virulento, ferino, maldoso. Mas isso não impede, antes realça o fato de ser um poema cheio de gênio, de som e de fúria, vivo para sempre. No 19 ele vai para a cama com ela, e na cama é desvendado todo o segredo do claro corpo da amada. Amada que nunca é "amada" à moda romântica, é desejo carnal, volúpia, sagrada volúpia. "Deixa que minhas mãos se percam atrás na frente entre".
Não citarei mais frases de Donne. Impossível escolher. Procurem ler este poeta metafísico, carnal, vermelho de sangue e azul de anjos. John Donne é além do tempo.

REBELDIA INDOMÁVEL, ONDE ESTÁ DEUS? ( QUANDO FILMES POP SÃO MAIS QUE FILMES DE "ARTE" )

Uma das coisas mais ridículas em certos "diretores de filmes de arte" é o fato de que muitos deles nada têm a dizer. Tudo o que eles fazem é mostrar o óbvio como se fosse novidade. Seus filmes, sempre lentos, solenes e vazios, são peças onde pessoas ansiosas por "sentido" podem pendurar todo tipo de interpretação. Na verdade esses filmes apenas são "sensações", imagens captadas que em seu vácuo pretensioso são como comerciais do próprio "autor".
Mas veja este filme. Um sucesso em 1967, é sobre um desajustado que é pego e vai pra prisão. Nada de muito cruel nessa prisão, o filme não é sobre denúncia social. Na verdade, em sua primeira parte ele é quase uma comédia. Pois bem, nessa prisão ele logo desafia o líder dos prisioneiros. Voce pensa: Ah! Captei! Eis o tema do filme! Mas não! O herói perde uma luta desse "vilão" e para sua surpresa eles se tornam amigos. Juntos, vencem jogos de azar e ganham uma aposta com os outros presos: o herói engole 50 ovos em uma hora. Mas é ao final dessa cena que voce percebe qual o tema do filme ( e esse tema é surpreendente ), o tema é Deus.
Ao vencer a aposta e ser celebrado por todos, ele é deixado sobre uma mesa, só, braços abertos e pés cruzados, exausto, como um Cristo. Acidente de filmagem? Intenção? O filme começa a unir seus pontos, é diversão pop, e é arte, arte natural, arte americana.
O herói ( Cool Hand Luke ) começa a fugir do presídio. Foge por impulso, sem planos, sem chance de conseguir escapar. É sempre recapturado, é sempre festejado pelos outros presos, e acaba por tentar mais uma vez. Há um momento crucial: quando após ser surrado, ele volta a cela. Festejado pelos colegas, ele diz: "Parem de fugir em mim. Quando voces farão igual?" O sentido se revela: os outros vivem por ele. Assistem seus feitos, sentem-se vingados, mas não movem um dedo para o ajudar ou tentar acompanhar. Adoram-no. Passivamente.
O filme seria ótimo se fosse só isso. Mas como foi produzido em 67, é um filme ateu. O herói diz não crer em Deus e é daí que vem seu sentido mais terrível. Se os outros presos têm a ele como consolo, esse Cristo do vazio nada tem. Na última cena ele desafia Deus a lhe ajudar e nenhuma resposta vem. O filme joga-nos na cara essa questão: Cristo teria percebido que ninguém havia para o ajudar?
Após sua morte seu amigo divulga sua lenda. Vemos toda sua saga ser aumentada, colorida, mitificada. Luke será o modelo dos presos. Mas será sempre só.
Paul Newman faz Luke. Seus olhos azuis de criança das ruas nunca foram melhores. A cena em que ele sabe da morte da mãe e toca um banjo é cruciante. Stuart Rosenberg dirigiu. É mais um dos vários diretores da época destruídos pela doideira geral. O filme fez dinheiro, teve elogios, mas ao contrário de Bonnie e Clyde ou A Primeira Noite de Um Homem, este Rebeldia Indomável está meio esquecido. Vale muito a pena. É um belo exemplo de arte em cinema popular.

À SOMBRA DO VULCÃO- MALCOLM LOWRY, O INFERNO MEXICANO

Este livro é um tipo de objeto de estima de escritores "machos" e críticos modernos. E é fácil saber porque. Ele é, além de bom pra cacete, um tipo de "livro de Heminguay" levado ao extremo. Na história dos últimos momentos em vida de um alcoólatra radical, temos um mergulho na prosa infernal que Heminguay ensaiou e nunca realizou.
Lowry era uma promessa imensa. Seu vicio jamais deixou que ele fosse até onde deveria ir. Não se matou aos 27. Chegou aos 48. Deu tempo de escrever quatro livros. Este é seu clássico. É um dos top do século XX. E virou filme de John Huston ( em 1984, com Albert Finney ). Bunuel pensou em filmá-lo. Sentiu onde pisamos?
Malcolm Lowry nasceu na Inglaterra. Foi marinheiro no Oriente, estivador. Se meteu em brigas, em tiroteios e usufruiu de amizades com escritores snobs. Foi guitarrista de jazz, morou na França, nos EUA e no México. Se isolou em cabanas de madeira no Canadá com sua esposa. E bebeu, bebeu muito, até se matar no interior da Inglaterra, em 1957. Um escritor de talento verdadeiro. Este livro prova isso.
E como é dificil de acompanhar essa saga do consul inglês que engole liquidos vários ( whisky, vodka, mescalina, aniz, estricnina, xarope, cerveja. ), tudo isso numa vila mexicana, no dia de finados, sob calor dos infernos e observado por vulcões imensos. A ex-esposa vai visitá-lo, ele pensa em reconciliação, mas a impotência, física e afetiva, o impede de realisar o amor.
Já foi dito que este é o único livro que nos faz viver dentro de um viciado. É fato, ler estas páginas é sentir o inferno. Ele pensa e fala, muito. As frases se atropelam, se repetem, são brilhantes, depois são tolas, estancam, voltam a se repetir, trazem humor, desespero, inesperadas conexões e mais repetições. Para ele é insuportável ver um copo vazio, a beleza está numa garrafa sobre um balcão. Ele mostra a poesia de um bar ao amanhecer, a beleza de uma bêbada solitária. Tem ilusões, acredita que cerveja é vitamina, que whisky lhe fortalece. Tenta atingir o equilíbrio da dose exata, de conseguir ficar são, bebendo.
Fui dono de bar e conheci as figuras. Reconheço alguns. Aquele cara educado, que chegava às 6 da manhã, trêmulo, que não conseguia acender um cigarro, e que ao beber se tornava um homem equilibrado para depois afundar em frases repetitivas e numa placidez de lago ao verão. O olhar de cachorro sem dono ao pedir uma dose, e a alegria ao ver o copo cheio. O livro mostra tudo isso. Assim como a vergonha não assumida, as tentativas de não se ver como viciado, o amor a toda bebida e uma estranha visão abrangente. O cônsul vê tudo, sente as conexões da vida. Ele super-sente, super-reage, super-entende. Ele parece vivo demais, intenso demais, consciente demais, e se anestesia.
O México, terra de sombras, de música incessante, de borrachos, de festa aos mortos, é o cenário. Um imenso bar gótico. E as linhas do romance correm, imagens sem fim, cores e frases ditas pela metade, sentimentos que nascem e se apagam, uma inteligencia que agoniza.
É um dos infernos mais infernais já escritos. Ler sua prosa é afundar um pouco.

SUPER 8, FILME DE JJ ABRAMS, TEMPO SEM HISTERIA

A minha geração é geração que adora lembrar sua adolescência. E como eles agora são os diretores que podem escolher temas, abundam filmes que se passam no periodo entre 1976/1979. Recordo de um dos primeiros, Dazed and Confused de Richard Linklater e depois temos Velvet Goldmine, Boogie Nights, Quase Famosos, Tempestade de Gelo, Crazy, The Runaways, o excelente Reis de Dogtown e mais um monte que me esqueço agora. Nas entrevistas Abrams tem dito que sente falta daquele estilo de vida, do modo como se filmava, da estética dos filmes daquele tempo. A saudade deve ser imensa, porque ao contrário dos filmes acima citados, não existe um motivo para se situar este filme em 1979. Apenas a nostalgia.
Uma das maiores experiências que já tive numa sala de cinema foi a de ter visto Contatos Imediatos em seu tempo. Toda a platéia teen entrava em êxtase. A saída da sala era como um tipo de saída de tenda de xamã. Sabíamos que nunca mais o cinema seria o mesmo. Nós tomávamos o poder. Nada mais de cinema politico ou de vida adulta. As telas seriam dos teens e nós mostrávamos que tínhamos filosofia, visão, arrojo. Para o bem ou para o mal. JJ Abrams também estava numa sala escura naquele ano. Este filme é todo o tempo sua homenagem a Contatos Imediatos, mas também a O Vencedor e a todos os filmes baratos de horror. É um filme tosco de 1979. O fato de hoje esse tipo de filme ser levado a sério mostra o que somos.
Nas entrevistas Spielberg diz ter alertado Abrams que sem Truffaut e Jean Vigo, o cinema americano moderno não existiria. Quem viu O Atalante e A Idade da Inocencia sabe o que isso quer dizer. Em seus melhores momentos, este filme tem o espirito leve de Truffaut. Nos seus momentos ruins, ele é apenas mais um filme de catástrofe. Felizmente ele é um bom filme. Um filme realmente bom.
Apesar de suas concessões. Na estética de 1979, um filme exibia ação após mostrar os seus personagens. Aqui se mostra o personagem em meio a ação. O que faz com que certas falas beirem o ridiculo. Mas Abrams persiste, e sua sinceridade, o fato de ele amar o que faz aqui, acaba por salvar o todo. Se tudo parece tolo, bem, a mensagem é tão bacana que acabamos por engolir a coisa inteira. Não deixa de ser engraçado, como disse alguém, que filmes que eram tratados como cinema pipoca ( Tubarão, Contatos, Blade Runner, Alien ) sejam hoje "cinema sério". Super 8 é lançado como se fosse cinema sério. Não é. Em tempo de cinema sério hiper-chato, felizmente este filme se assume popular. Mas ele tem algo a mais: estilo.
A ação é feita pelos personagens. Não vemos coisas explodindo, o que vemos são pessoas se movendo em meio a explosão. Tudo acontece ao redor de gente. Abrams pegou o melhor dos filmes de 1979: o ator está sempre em primeiro plano. Dessa forma, o que mais lembramos não é o monstro, ou as armas do exército, ou a cidade em chamas. Lembramos dos meninos em fuga, da população em pânico e da menina confusa. Os efeitos não são a estrela. O filme é sobre gente.
Porque 1979? Bem.... além da nostalgia, talvez naquele tempo sem celulares e e mail, onde a vida só podia ocorrer na rua, Abrams tenha tido o espaço poético para não ser histérico. O filme é de ação sem fim, mas a histeria não está presente. O mundo mostrado aqui nada tem a ver com o mundo de Transformers ou de Velozes e Furiosos. Não há o histerismo da máquina em disparada. O ritmo é da pelicula. Biológico. Acelerado, mas sempre humano.
Os ex-adolescentes ( alguém conseguiu ser ex? ) adoram 1979 porque foi tempo de começos mundiais. Todo adolescente se sente "em começo", mas o segredo de 1979 é que o mundo parecia "começar". Começo do punk e da música eletrônica, começo do rap. Inicio do skate e do surf como esporte profissional, começo da moda de esportes radicais. Inicio de tvs a cabo, do clip e dos video games. Foi o começo do blockbuster e do filme feito em casa. Dos zines mimeografados, dos albuns de luxo de HQ. E foi também o começo do fim. O fim das ideologias, da inocência pré-aids e do rock como música anti-sistema. Grande tempo para se ter 15 anos.
No mais há no filme um leve pedido de desculpas da América ao mundo. É quando é dito ao alien: "Alguns de nós são bons". Tenho a certeza de que, quando a América deixar de carregar o peso de ser a policia do mundo, teremos uma nova nostalgia mundial: a saudade da hegemonia americana. O filme é bom. E 1979 foi um grande ano.

KUROSAWA/ CLINT/ DE PALMA/ ELIA KAZAN/ BRANDO/ LOACH/ OLIVIER/ MANKIEWICZ

O ÚLTIMO VÔO de Karim Dridi com Marion Cotillard e Guillaume Canet
Chato... é sobre mulher que procura marido perdido em deserto africano. Soldado da legião estrangeira vai a ajudar. Ela pilota avião. Podia ser uma boa aventura. Mas não há interesse, ritmo, suspense, nada. E a personagem de Marion é rasa como de resto são todos os diálogos. Um pé no saco. O filme é de 2010 e acho que não passou aqui. Nota ZERO.
SUGATA SANCHIRO de Akira Kurosawa
Eis o primeiro filme do mestre. Feito em 1943, antes da bomba, vemos o Japão ainda de tamancos e kimono, de muita gente e paredes de papel. O roteiro fala de mestre de Judô ( uma nova arte ) que desafia os mestres de Jiu Jitsu ( a arte tradicional ). Curto e simples, é um belo filme. Nota 6.
O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS de Don Siegel com Clint Eastwood
Um soldado Yankee ferido, se abriga em escola feminina no sul rebelde. Ele seduz cada uma das alunas, mas o ciúmes das meninas e a vaidade do soldado faz com que tudo caia em violência e horror. O filme tem um belo clima gótico e realmente sentimos que ele caiu numa cilada, que será castrado. Mas ao mesmo tempo falta mais ousadia a Siegel. Nota 5.
HI, MOM de Brian de Palma com Robert de Niro e Gerrit Graham
Auge da contracultura. De Niro é um cara que filma as janelas vizinhas para fazer um filme pornô. Mas depois o filme explode em faíscas: ele participa de uma peça: Seja Negro Baby! A peça é aquele tipo de espetáculo cruel em voga naqueles tempos irregrados. O público é atacado, humilhado, e agradece por isso. É o segundo filme de Brian de Palma. Mal feito, tonto, sem rumo, solto, tolo. E mesmo assim, fascinante. Um adendo: o que se pode hoje em Londres? E em Madrid? E na Grécia? Grana. Emprego. O que se pedia em 1970? Um mundo novo. Liberdade absoluta, paz e socialismo. Algo recuou. Nota 5.
O VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR de Rolf de Heer com Richard Dreyfuss e Hugo Weaving
Que bom ator que é Dreyfuss!!! Aqui ele faz um latino americano e realmente, sem nenhuma caricatura, ele se torna um latino americano do Amazonas! Richard Dreyfuss foi uma estrela nos anos 70 ( Tubarão, Contatos Imediatos ), mas ele foi sempre tão cool que jamais ligou muito para sua fama. Ainda é grande, muito grande.... Este bom filme ( e que não passou aqui ), fala de onça que mata pessoas na Amazônia. Dreyfuss é um homem velho que sempre viveu isolado, amigo dos índios e que lê livros banais de amor. Ele e alguns amigos ( e Hugo nunca esteve tão bem ) vão à caça. O filme é lento, respeitoso, nada new age. Uma bela surpresa! Nota 6.
UM BONDE CHAMADO DESEJO de Elia Kazan com Vivien Leigh, Marlon Brando, Karl Malden e Kim Hunter
Eis o gênio em ação. Brando cria o ator de hoje no fim dos anos 40. Sua atuação é tão violenta e sensual que causa espanto. Mas Vivien também está genial como a delicada Blanche Dubois, a falida dama que vai morar com a irmã em New Orleans e afunda na sordidez. Veja o modo como Brando repete o tal "código napoleonico", observe a riquesa dos cenários, os olhares patéticos de Leigh. Os diálogos de Tennessee Willians são poesia de primeira. E temos Kazan, o homem que entendia o significado da tal "crise familiar". É um filme para ser visto e estudado. Nota 9.
CINCO DEDOS de Joseph L. Mankiewicz com James Mason e Danielle Darrieux
Durante a segunda-guerra, mordomo da embaixada inglesa vende segredos militares aos nazistas. Tudo ocorre na neutra Ankara. E o filme sabe usar o clima turco. Mas tem mais: sabe criar suspense, sabe tirar proveito do rosto de James Mason ( e poucos atores sabem fazer canalhas tão bem ). Há uma frase que nos toca. O espião diz que vende segredos apenas pelo dinheiro. Seu sonho é fugir para o Rio. Diz ter visto uma vez, de um navio, um homem de smoking branco, fumando um cigarro em varanda sobre o mar, no Rio. Para ele, aquele era o homem mais feliz do mundo. Ele quer ser como ele. Não consegue. Ou quase. Mas o filme faz o que promete, é diversão de primeira classe. Nota 8.
MEU NOME É JOE de Ken Loach com Peter Mullan
Este fez sucesso em Cannes e deu prêmio de ator a Peter. Passa-se em Glasgow. Ele é um frequentador dos AA. Treina time de futebol e vive do seguro desemprego. Enamora-se de médica e tenta ajudar amigo envolvido com drogas. Loach é um homem a moda antiga. Ele se preocupa com o mundo real. Seus filmes falam do que acontece de verdade, ele não divaga. Uma informação: nos anos 60 havia uma corrente de criticos que odiavam Bergman. Diziam que seus filmes só podiam interessar a burgueses bem de vida com problemas existenciais recorrentes do tédio de se ter a barriga cheia. Que a vida real não era aquela. O tempo mostrou que aquela também era a vida real. Mesmo que de suecos ricos. Mas o que me incomoda hoje é que não se mostra mais a vida de gente pobre e normal. Sempre que se mostra um pobre ele é um traficante, um tarado serial ou uma prostituta. Parece que todo pobre americano é personagem de comédia ou louco perigoso. E todo pobre britânico seria um cara de filme de gangster. Isso não acontece com Ken Loach. Ele ainda crê na humanidade individual de cada personagem. Joe é rico em emoções, é comovente sem ser piegas e enfrenta o mundo da droga sem jamais parecer um personagem de cinema. O filme, verdadeiro e poético ao mesmo tempo, é obrigatório para quem perdeu a crença na força do cinema. Eu tenho a certeza de que é para filmes como este que ele foi criado pelos Lumiere. Um detalhe: o time de futebol joga com as camisas da Alemanha de 74. Assim, rimos aos ver o grosso do time correr com a camisa 5 de Beckembauer e o gordão com Muller às costas. Depois eles roubam uniformes e cometem aquilo que o técnico rival chama de "sacrilégio". Jogam com as sagradas camisas do Brasil de 1970. Pelé e Rivellino são citados. Escoceses pobres respeitam e idolatram a amarela camisa dos "deuses"da bola. Me parece que isso nos ensina algo. Nota 9.
O DIVÓRCIO DE LADY X de Tim Whelan com Laurence Olivier, Merle Oberon e Ralph Richardson
Fog em Londres. Fog tão forte que a cidade pára. Um casal que não se conhece fica em mesmo quarto para passar o fog. Ela se apaixona por ele, ele pensa que ela é casada.... Vemos uma comédia dos anos 30 para obter 3 coisas: alegria, calma e bem estar. Pessoas bonitas e bem vestidas em locais luxuosos esbanjando dinheiro e bons modos, dizendo frases alegres e espertas e sendo todo o tempo adoráveis. Este filme tem tudo isso. E ainda nos dá o prazer de ver Olivier fazendo Cary Grant e Ralph Richardson em seu jeito levemente louco de ser. Ver filmes como este é como tomar champagne gelada em noite de luar a beira-mar. Felizmente eles existem. Nota 7.

PAI

O pai nasce em nós como um deus em vida de crente. Ele é o mundo todo. É aquela insondável figura que conhece todo segredo, que vem lá de fora, e que fala com a voz de quem sabe. O meu tinha cheiro de Aqua Velva e bigode fininho de Erroll Flynn. Chegava em casa com a noite, adentrava fazendo barulho e suas mãos tinham moedas para meus doces. Ele era imensamente forte, viril, e à vontade. Consertava coisas: o motor da bomba do poço, o exaustor da cozinha, a porta de mola, a fechadura da sala, meus brinquedos. Criava canários e curiós e estava sempre assobiando. Nas manhãs de domingo escutava rádio na cama, alto. Bandas marciais. E lia um infindável jornal. Pouco abraçava e pouco elogiava. Era um tímido. E sempre sentiu ciúmes de cada amigo que eu encontrava. Ele mágicamente resolvia problemas. Contas eram pagas, remédios comprados. Trazia surpresas: a maior foi uma tartaruga em caixa de papelão. Da padaria vinha sempre um bolo, brioches, frango assado. Seus bolsos tinham sempre chaves, maços de dinheiro e um pente. Roncava alto, dava broncas cruéis, era um mundo em si.
Mas o pai, que foi um deus, é aquele que se torna um nada quando na puberdade nos tornamos ateus. Baixamos esse homem à Terra porque não admitimos, cheios de hormônios, que alguém possa ser maior que nós. Ainda mais um velho! E tudo o que ele é passa a nos causar repulsa: os pássaros, o ronco, a voz alta, as músicas, as camisas listradas, a padaria e o bigode. Todos os seus filmes favoritos se tornam os mais detestados e o cheiro de Aqua Velva uma lembrança a ser apagada. O tamanho da queda é proporcional ao tamanho do deus. Trocamos o pai pelo mundo.
Vem a tragédia então: O deus morre e o mundo se faz vazio. Os olhos que te olhavam se fecham. A voz que te assombrava é calada. Voce não é mais "um filho". O silêncio vence.
Hoje é dia deles. De quem fez voce. De quem te deu a vida. De seu deus pessoal.
Passei toda a vida brigando com ele. E sei que se ele estivesse vivo, continuaríamos a brigar sem parar. Porque eu queria que ele me desse algo que ele jamais poderia dar. Amor absoluto. Dar esse amor o anularia, faria com que ele deixasse de ser pai. Minha raiva por ele tinha o tamanho exato de minha mágoa. E a ironia da vida se faz dia a dia; cada vez me pareço mais com ele. A mesma voz, o mesmo modo de andar, expressões que repito, conceitos que agora eu sigo. Em fotos me assusto com meu olhar que é o dele. Me assusto? Ou me orgulho?
Ah meu pai.... a mágica da vida é que nada sabemos sobre ela. Tudo o que eu tinha certeza não foi o certo. E agora aqui estou, vendo seus velhos faroestes, sentado em sua poltrona e assinando seu nome em cada linha que escrevo. O sangue é uma coisa séria.

PETER E WENDY- JAMES M. BARRIE, UMA OBRA-PRIMA

James Barrie nasceu em 1860. Aos sete anos sofreu um trauma: a morte do irmão David, aos treze, e a consequente tristeza da mãe. Barrie se tornaria muito famoso com uma peça: Peter Pan, que estreou em 1908. Ele viria a falecer em 1937, após um casamento infeliz e uma vida de sucesso literário. PETER E WENDY é a adpatação em prosa da peça PETER PAN, feita pelo próprio Barrie. É, sem a menor dúvida, uma obra-prima. Superlativa em termos de criação, invenção, estilo e profundidade. É ainda um testemunho do que foi a infância no século XX, e do que ela não é no século XXI.
O livro começa já em alto nonsense. Nana é a babá, e ela é uma cadela. O pai só pensa em ações e dividendos e a mãe se anula em seu amor materno. Wendy, John e Michael são os filhos e numa noite, Peter Pan invade o quarto e os leva para a Terra do Nunca. Esqueça o desenho Disney, o filme de Spielberg ou o drama sobre Barrie com Johnny Depp ( todos são bons, mas nenhum o é como aqui ), esta novela tem tons de maravilhamento, de sombras e de dor que nenhum dos veículos nomeados acima pode tocar.
Algumas falas são estupendas, e quando Peter diz: "Morrer deve ser uma maravilhosa aventura!" o livro se torna gigantesco. Raros autores conseguem espelhar a vida de forma tão profunda e tão simples. James Barrie vai se aprofundando em arquétipos sobre arquétipos, e tudo parece incrivelmente natural.
Peter não tem memória. Ele se esquece. E tudo o que ele vê é a si-mesmo. Ele se ama, se gaba e crê em sua invenção. Peter cria seu mundo todo o tempo. E a contagem de dias e meses não existe. Cada dia é uma dia encadeado no dia anterior. E cada um desses dias será igual ao anterior e ao mesmo tempo totalmente novo. Peter se move em vôo porque crê poder voar. Assim como tem contato com as fadas porque deseja ter. O mundo onde ele vive é criação sua e quem lá vive deve segui-lo e adorá-lo. E todos amam Peter Pan. Barrie não tem pudor em dizer isso: a juventude é a única sedução. Ser jovem é tudo o que importa. Envelhecer é a morte. Peter Pan atrai por ser o espirito da eterna juventude, e sendo sempre criança, ele é alegre, ágil, vivo, criativo, irriquieto e desmemoriado. Ele faz coisas, não pensa coisas, ele age por impulso, nunca planeja, ele não agrada, é agradado, ele não ama, se ama.
Wendy é a mulher, e mulheres amam Peter. Elas amam seu jeito infantil que promete fragilidade. E se surpreendem com sua força e coragem. Peter tira-as da vida tola e maçante, leva-as ao mundo da não-regra, mas tudo o que ele deseja é que ela seja SUA MÃE. Peter não tem mãe, ele nem sabe o que é uma mãe, mas ele sente precisar de uma. Ela cuida de sua casa, conta histórias e remenda suas roupas. Sininho é uma fada. Ela depende de Peter. Sem sua fé ela não pode existir. É ciumenta e vingativa. Temos aí as duas mulheres que atraem Peter, a mãe e a irmã.
Com ele vivem os Meninos Perdidos. São filhos que se perderam dos pais. Peter é seu lider, seu chefe, seu ídolo. Mas o que eles realmente querem é um lar. Têm uma vaga ideia do que seja isso.
E surge Gancho. Uma criação genial, o CAPITÃO GANCHO é vitima de uma terrível melancolia. No tic-tac do jacaré que o segue há a consciência terrível do tempo que passa e da morte que virá o comer. Gancho odeia Peter porque Peter não se preocupa com nada. Peter zomba de tudo. Gancho é preocupado com etiqueta, com bons modos e ao pensar ter vencido Peter tem seu momento shakespeareano: sente o vazio da vitória. Dois breves momentos revelam um horror subjacente a história: Wendy sente atração por Gancho, e Peter sente-se como ele ao matá-lo. Gancho é o Peter Pan que cresceu.
Wendy volta a casa e reencontra os pais. Esse reencontro é feito com maravilhosa delicadeza por Barrie. E me comove o momento em que Peter olha esse reencontro pela janela e sente que aquilo não é para ele. Peter não tem casa, lar, pais. Ele voa.
Peter visitará Wendy todo verão. Mas seu tempo não se conta e ele desaparece por vários verões. Reencontra Wendy velha, que se envergonha. Ele mal percebe que ela envelheceu, só tem olhos para si. A filha de Wendy se encanta por Peter e parte com ele. A neta irá com ele também e por todo o sempre assim será...
John se torna um homem de guarda-chuva e pasta, Michael um juiz soberbo. O dom de voar e a Terra do Nunca um vago brilho esquecido.... Será?
O livro tem tantas frases belíssimas que sinto a tentação de ficar citando e citando. Não o farei. Leiam. É lançamento recente da LPM, fácil de achar e barato. O que desejo dizer é que não sei se as crianças de agora ainda são Peter Pan. Temo que não. Elas caem logo no mundo real e são engolidas pelo tic tac do jacaré. Gancho as vence e seduz com rapidez. Porque Peter não tem horário, não segue normas, cria seu mundo e sua história, corre, voa, pula e briga. Dança e canta todo o tempo e ignora todo o mundo, menos o seu desejo. Medo? Apenas um: crescer. Observe, ele não teme morrer, ele teme crescer. Crescer seria ficar em casa, obedecer, se adaptar, deixar de voar. Peter Pan tem um limite, não pode amar de verdade. Amor seria submissão. Ele é livre.
Eu diria que hoje todo homem pensa e tenta ser Peter Pan. Mas as crianças deixaram ele e Sininho para trás. Quanto as mulheres.... elas sempre são e serão as Wendys, aventureiras que nunca se esquecem da hora do remédio, da hora de dormir e do momento de voltar pra casa.
Puxa! É um livro triste pra caramba!!!!!! Mas eu amo esse Peter Pan!!!! É a melhor parte de mim, a única que me faz feliz. E quando fecho os olhos e me sinto contente é sempre ele que me faz voar e me leva por aí. Ah! Viver, Morrer, Matar ou Perder....tudo é uma imensa aventura!!!!

GENIALIDADE É UMA ESTRADA QUE SE ABRE

Uma das piores coisas que o mundo- supermercado fez, foi transformar certas palavras em absoluto vazio. Guru é uma. Reinvenção é outra. E "genial" é uma das mais vulgarizadas. Do jogador de dezoito anos ao cozinheiro de restaurante espanhol, gênio é questão de empolgação. Claro que não quero impedir ninguém de chamar seu cabelereiro de genial ou de bradar por aí que o Seu Chico faz um beirute de gênio. Mas em arte são tantos gênios que a coisa se torna até ridicula.
Para os mais rigorosos, gênio só pode ser aquele que abre novos caminhos. Ele é o grande fertilizador, o que surge do nada e faz com que uma multidão de grandes talentos flutue sob sua influência. Em gênio verdadeiro há a história em todo o seu resumo. Ele absorve todo o passado, e o devolve renovado, insuspeito. O gênio faz com que olhemos para trás vendo beleza onde pensávamos nada haver. E principalmente, faz brotar todo um novo universo.
Rigorosamente então, cada arte tem um único gênio. O homem que fez com que aquela arte se tornasse aquilo que até hoje conhecemos. Shakespeare é o caso mais exaltado. O teatro como o pensamos nasce com ele. Shakespeare absorve todo o passado, assombra seu tempo e fertiliza tudo o que o tocou. Trancado em vida de mistérios, alegre como um sátiro e ao mesmo tempo sombrio como um maldito, ele é o centro e o criador, simboliza um sempre-nascer e estranhamente ele é o futuro que sempre nos aguarda.
Na música há uma briga entre Bach e Beethoven. Se Bach é o homem que organiza e harmoniza o que entendemos até hoje por "música ocidental", é Beethoven quem se faz "músico artista". É com Beethoven que nasce o criador comprometido apenas com si-mesmo, o artista livre, ambicioso como um deus, louco e ousado, incansável. Para mim, é ele o gênio da música.
Na poesia Dante é o gênio inevitável. Tudo o que entendemos por "vida poética", por "busca pela inspiração", por musa, simbologia e musicalidade está em Dante. Cada poeta esbarra na imensa presença desse irado cantor de vingança. De sua irradiação brota toda a poesia que conhecemos. Ele eleva o poeta de menestrel a fazedor de mundos.
Na pintura a coisa se complica. Giotto, Leonardo, Velazques e Rembrandt brigam pela honra. Não me meto nessa briga, o próprio hábito de se chamar arte de coisa genial começa na pintura. Adoro todos os quatro e leio críticos que colocam cada um deles no patamar mais alto. Me parece que Giotto foi o criador, Leonardo o insaciável, Velazques o melhor dotado e Rembrandt o inventor do pintor como hoje o conhecemos.
A prosa é caso a parte. Não há na prosa um titã central. Nada que se compare a Shakespeare, Dante ou Beethoven. Porque? Há algo de operário na prosa, de trabalho de formiga, de lento construir. Como todo artista, o autor de prosa é também um egocentrico, mas ele não pode ter a cara dionisíaca do grande músico ou do poeta maldito. Seu trabalho é mais racional, menos tempestuoso. E assim, a história da prosa é feita de monstros que rugem alto, de florestas de talento, mas não de uma explosão criadora. O maior candidato a gênio central seria Cervantes, mas mesmo ele não é universo fertilizador e inventor de novas formas como o são Giotto ou Bach. De qualquer modo, O Quixote é molde e norte de todo romancista de brilho.
Chegamos então as sub-artes, e com elas vem o cinema. Ora, se na prosa já há essa dificuldade de se encontrar o centro criador, imagine uma arte tão fugaz e recente como o cinema. Mas podemos tentar vislumbrar esse gênio.
Todo gênio surge como recomeço. Se pensamos que para se ser gênio é preciso ser "muito antigo", não entendemos nada. Quando Shakespeare surge, o teatro já possuia 2000 anos de história, o mesmo com a poesia, pintura e música. O que eles fazem é criar um tipo de ponto zero. Assim, é como se o teatro começasse com Shakespeare, a música com Bach ( ponto para Bach sobre Beethoven ) e a pintura com Giotto. Quem dá essa sensação de ser o ponto zero do cinema? Murnau? Lang? Ford? Pode ser, mas é necessário ainda que ele seja um fertilizador, alguém que trouxe consigo toda uma leva de novos talentos, de gente refazendo tudo. Godard? Rosselini? Ele precisa ser um deus de potência feliz e um demonio de sombria danação, um individualista. Bunuel? Bergman? Fellini? Mas acima de tudo, ele tem de destruir o passado e fazer nascer um mundo novo. Quem mais chega perto de TODAS essas características é Orson Welles. Se o cinema criou um gênio verdadeiro, esse foi Orson.
Com tudo isso eu explico o porque de ter dito que se o rock possui um gênio esse cara só poderia ser Bob Dylan. Mito, individualista, fertilizador, criador de um novo marco zero. Sem ele o rock teria seguido o destino que se lhe afigurava: yeah yeah yeah. Pop para adolescentes caipiras. Irresistivelmente dançante, maravilhosamente impetuoso. Eternamente alienado. Mas Dylan cria um mundo novo, ele traz RELEVÂNCIA ao rock, ambição, respeito intelectual, raiva e muita inquietação. Pega todo o passado e o engole. O que ele cospe é o que entendemos por "artista do rock", um cara de óculos escuros ligado em cinema, livros e drogas. O rock, como o jazz, não tem gênios. Eles não têm tempo para os criar. Mas se os houvesse, Dylan seria o gênio do rock. Sem ele, todos os caras que voce poderia contrapor ( Lennon, Lou Reed, Leonard Cohen, Bowie, Patti Smith.... ) , não teriam existido.
Afinal, todo gênio tem de saber "como é estar por si-mesmo/ like a rolling stone"...

A INOCÊNCIA DO PADRE BROWN- G.K. CHESTERTON

Os contos policiais de Padre Brown foram enorme sucesso na Inglaterra dos começos do século XX. Chesterton, polemista refinado, tornou-se umas das estrelas da época ( e que belas estrelas: Noel Coward, HG Wells, Churchill, Russell, Shaw ). Os contos, curtos, primam pela forma de dedução lógica utilizada pelo Padre ( sim, ele é um padre católico inglês ). Uma série de pistas que são unidas e de onde se tira seu sentido. Mas, ao contrário de Sherlock Holmes, as pistas são nos dadas desde o inicio, Chesterton não endeusa seu personagem, ele é um modesto. Perto dele, Holmes é um tipo de James Bond vitoriano.
Todos os 12 contos são deliciosos. Levemente góticos, tangem todas as formas de tragédia humana. E causa um delicioso prazer observar que em alguns casos, Brown obtém a confissão e o arrependimento do criminoso, deixando-o em seguida livre para viver. Chesterton, defensor da ortodoxia católica, jamais deixa de usar exemplos de virtude cristã em suas histórias. Padre Brown compreende racionalmente os criminosos e é daí que tira suas conclusões. O autor também não perde a chance de mostrar o perigo de religiões exotéricas, de crendices pseudo-racionais e de ateus vazios. Nada de carola há nos contos. O Padre jamais prega ou moraliza, mas seu pensamento, sutil, está sempre em voga.
Ficaram famosos nos anos 30 as transmissões da BBC, em que Chesterton discutia ateísmo com Bertrand Russell, socialismo com Bernard Shaw e materialismo com Wells. A forma calma e ponderada de Chesterton, calma típica de Padre Brown, levava sempre o antagonista ao desânimo. Bons tempos do rádio.
Fácil de achar em banca, este livro é indicado para aqueles dias/noites de tédio, em que tudo que voce quer é um livro que divirta e instrua, passe o tempo em prazer calmo e instigante. Vale cada minuto gasto.

UM PLANETA CHAMADO ADOLESCÊNCIA

Eu tinha dezesseis anos quando numa varanda em Santos tive essa conversa deprê com uma prima de minha mãe....
Que nada fazia sentido porque tudo acabava em morte e cinzas. Para que viver se o fim era certo? Qual a utilidade de um livro, pra que escrever, se tudo vira passado? Falamos mais: que Deus era um consolo de fracos, que o capitalismo era canibalismo e que o socialismo era a igreja de ateus. E em meio a tanta coisa óbvia, infantil, digo que a dor era de verdade. Éramos incapazes de ver qualquer coisa que fosse mais que nossa imensa dor. Nos achando clarividentes, víamos apenas um espelho. Pois não percebíamos que o mundo era triste porque éramos tristes. Nós dois. Mas o mundo estava além de nós.
Mas eu pensava como um romântico melancólico de 16 anos.
Com o tempo passei a usar a melancolia como estilo de sedução. Mas não suspeitava que a melancolia era a parte de um todo. Pensava ser ela o todo. E via tristeza em tudo: o mar era triste, a noite era fúnebre, as mulheres eram vítimas e os bichos eram sombras. A melancolia virou depressão e a dor se tornou um eu. Único.
Quando encontrei uma muleta, tudo mudou radicalmente. A razão ocupou o lugar da dor.
Ora, se um simples comprimido fazia com que toda a minha visão da vida se modificasse, então a vida era questão de quimica. Somos um composto de reações quimicas e de evolução genética, cuidar do balanceamento quimico e compreender a evolução é entender a vida. Um macaco que deixou de estar confortável em seu planeta: somos isso. Amor é desejo de procriar disfarçado e enobrecido pelo cristianismo, guerra é uma lei geral de sobrevivência, arte é ilusão de covardes, e a religião é o grande besteirol da vida. A euforia pela ilusão da resposta é sempre ridicula, eu o fui. Converse com qualquer pessoa que pense ter respostas, seja um sociólogo, um filósofo ou um psicólogo, eles sempre cairão em dogmatismo, viverão na fé da certeza.
Mas isso foi se desgastando e foi a arte que mais fez esse trabalho. Se a quimica tudo explica a questão é: de onde vem a quimica. Se a evolução é fato, a questão se faz: de onde vem a vida? Sim, emoções podem ser desarranjos quimicos, sim, o amor pode ser desejo animal disfarçado, mas de onde vem o desejo? O que é procriar?
Dizer que a vida é triste melancolia é adolescência.
Pensar saber que tudo pode ser explicado pela razão é deslumbre de jovem adulto.
Perceber que não temos a possibilidade de entender é começar a compreender.
Continuo com minhas muletas. Não quero mais retornar ao planeta romantico. Optei por me mudar de lá. Mas, passado o desbunde pela potência, recordo sua existência e entendo ser ele apenas uma face, pequena, de um todo inalcansável.

AS ILHAS DA CORRENTE- ERNEST HEMINGUAY

Releio mais uma vez este que é um dos últimos livros de Heminguay. Foi um fiasco. Mas, não sei porque, é dos livros que mais gosto.
Sei que ele é vazio. Dividido em 3 partes, na primeira lemos sobre um pai que vive em ilha tropical, confortávelmente só. Tem um amigo bêbado, ocasionais casos com prostitutas nativas e escreve. Seu casamento foi um fracasso e ele se culpa por isso. Três filhos vêm o visitar. Há uma longa pesca e lautos jantares. E o tom dessa primeira parte é de desencanto, monotonia. Mas ao lado disso, há uma soberba descrição do mar, da praia, do sol. Há a descrição da comida, e este livro abre nosso apetite, há receitas nele que fiz em casa, bebidas. Ao lado da dor do tempo perdido, existe uma descrição do prazer, dos apetites, e do sol. O sol brilha forte todo o tempo, e tudo é mar...
Na segunda parte a ex-esposa vem o visitar. Um dos filhos morre em desastre de avião ( é época de guerra ) e a dor se instala de vez. Heminguay se desnuda na forma como o personagem enfrenta a dor. A esposa é exemplo de elegância e os tons sombrios se instalam. Se gosto do livro é por sua primeira parte.
Na terceira, ele parte em barco à caça de submarino nazista que foi visto por lá. Aqui Heminguay se perde. Como aventura é inconvincente, como narração, repetitiva. Se já li este livro 3 vezes, esta terceira parte foi lida apenas uma. E basta.
Há um belo filme de Franklyn Schaffner que segue este livro. George C. Scott nasceu para ser Heminguay. De certo modo ele é mais Heminguay que o escritor. No filme, a parte um é esticada, a parte três diminuída. É o que eu faria.
Ernest Heminguay tem quatro livros que gosto ( ainda ). O SOL TAMBÉM SE LEVANTA é o melhor. Seus livros de contos são todos bons. O volume onde recorda sua vida em Paris é ótimo. E este imperfeito AS ILHAS DA CORRENTE. Vazio, às vezes tolo, sem rumo.
Mas há algo na descrição da vida, do azul do mar e da força do sol que nos cativa. Heminguay teve o DUENDE.... a força vital que os espanhóis descrevem. Só que ele cometeu um erro: vulgarizou esse DUENDE. E o perdeu. Toda a parte final da vida de Heminguay é a dor dessa perda, a impotência criadora.
Mas ele o revê, longe, em certos parágrafos deste livro. VALE!!!!

WOODY ALLEN/ GORE VERBINSKI/ ANTHONY MANN/ JAMES STEWART/ FELLINI/ BERGMAN

O DORMINHOCO de Woody Allen com Diane Keaton
Em termos de humor puro, nenhum filme de Allen é melhor ( entendam, este é o mais pastelão,e eu adoro pastelão ). Na saga do nerd que é adormecido em 1973 e acorda em meio a revolução séculos mais tarde, encontramos defeitos de diretor iniciante ( irregularidade ) e qualidades dessa mesma juventude ( irresponsabilidade ). Uma delicia!!! E que humorista genial Diane sempre foi ! São dela as melhores cenas. Nota 7.
RANGO de Gore Verbinski
Cheio de altos e baixos, esta homenagem ao western melhora muito ao final. Seu defeito é ter um personagem central fraco. A homenagem a Clint Eastwood é excelente! Aliás, a trilha sonora paga tributo a Morricone. Nota 5.
WINCHESTER 73 de Anthony Mann com James Stewart
Primeiro dos clássicos de Mann/Stewart. Um rifle é o que move bando de homens no oeste. Na verdade há mais que isso, há o ódio entre irmãos. O western de Mann em nada se parece com aquele de Ford, onde Ford canta a vastidão e a camaradagem, Mann destaca a solidão e a desconfiança. Stewart exibe uma então nova faceta de seu talento: o dom de mostrar a fúria contida. Um filme maravilhoso. Nota DEZ.
DESTRY RIDES AGAIN de George Marshall com James Stewart e Marlene Dietrich
Stewart é um muito calmo filho de antigo justiceiro que vai a cidade dominada por chefão. Ele, com seu jeito calmo e cheio de "causos" acaba por vencer, claro. Esta comédia-western é uma graaande diversão. Há humor genuíno neste excelente personagem. Nota 8.
...E O SANGUE SEMEOU A TERRA de Anthony Mann com James Stewart, Arthur Kennedy e Rock Hudson
Aqui Stewart cria amizade com tipo suspeito e ficamos sem saber por quase todo o filme o que os une. A fotografia é espetacular. Mas a ação carece da eletricidade de Winchester 73. De qualquer modo é um bom exemplar do filme de bangue-bangue. Nota 7.
A DOCE VIDA de Federico Fellini com Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Anita Ekberg, Yvonne Furneaux, Alain Cuny e Magali Noel
Crítica abaixo ( no texto sobre a avendia Sumaré ). Numa estranha coincidência, revi este filme antes de saber que ele seria vendido em banca de jornal. A figura do paparazzo é criada e batizada neste filme. Que marca a segunda fase da carreira de Fellini. Ele deixa de ser realista e passa a se aprofundar dentro de si-mesmo. Acompanhamos Marcello ( um soberbo Mastroianni ) em sua jornada por Roma. Ele caminha para o esvaziamento, o que vemos são mortes, de mitos, de sonhos e de intenções. Roma nunca esteve tão bela, escura, misteriosa, sexy. Não é uma obra-prima, tem muitas cenas falhas, mas suas grandes cenas ( o final é histórico ) são de antologia. Nosso mundo nasce neste filme. Nota 9.
UM ESPÍRITO BAIXOU EM MIM de Carl Reiner com Steve Martin e Lily Tomlin
A excelente história da ricaça que morre e encarna no corpo de Steve é ótima. Mas Reiner perde o ritmo várias vezes. Steve Martin, o melhor humorista americano dos últimos trinta anos, brilha. Seu papel é não só engraçado, é uma peça de arte. Nota 6.
MORANGOS SILVESTRES de Ingmar Bergman com Victor Sjostrom, Ingrid Thulin e Bibi Andersson
Em coincidencia, além de ver A Doce Vida, ainda tive minha quarta apreciação de Morangos Silvestres. Que também sai em banca de jornais. Vou passar o resto de minha vida vendo este filme uma vez por ano. Já o comentei longamente neste blog. Suas imagens são de sonho. Mostram a busca de resgate/remissão de um velho médico em viagem. Nesse caminho ele descobre ter errado sempre. É genial a forma como Bergman mistura o velho homem alquebrado com suas lembranças sempre jovens. A famosa cena do sonho ainda é rica em material e em sentidos. E tem um final inigualável, o velho homem olha seus jovens pais a pescar em lago, o velho sorri para eles e todo o sentido do filme se revela. Ele está conciliado com seu inferno. Em que pese duas cenas ruins, o filme é tão superior ao meio "cinema" que só pode ser comparado a Mozart ou Tolstoi.
SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR de Ingmar Bergman com Harriet Andersson, Ulla Jacobson, Eva Dahlbeck, Margit Carlvist
Uma constatação: onde Bergman acha tantas atrizes bonitas? Esta é uma comédia de Bergman, ou seja, é um filme estranho. Fez imenso sucesso de público ( o que testemunha a favor do público de 1955 ). Conta, com ironia, a história de casais que se traem, mentem, falam bobagens e seduzem uns aos outros. E se vingam também. É dos mais imitados filmes da história. Woody Allen já o refilmou e Paul Mazurski também. Mais Altman, o próprio Allen e uma infinidade de nomes têm se inspirado nele. Há ainda uma aula de sensualidade sem culpa da vulcânica Harriet Andersson. Leve, bonito, mas com um amargor que permanece. Nota 7.
A VIDA DURANTE A GUERRA de Todd Solondz
Adorei o que Cássio Starling Carlos escreveu na Folha. Ele denuncia esses filmes "chantagistas". Filmes como Rio Congelado, Preciosa e Inverno da Alma, todos milimetricamente formatados para ganhar festivais indie e serem endeusados por pessoas "com bom coração". Quem não gosta desses filmes é rotulado de insensível. Necas!!!! São filmes ruins feitos para enganar. Fáceis de fazer, fáceis de inscrever em festivais, fáceis de esquecer. Este é um deles. ZERO!!!!!!!!!!!!!

A HISTÓRIA DO MAGO MERLIN- FRIEDRICH e DOROTHEA SCHLEGEL, o poder dos contrários

Se Deus fez com que Maria desse à luz a Jesus, então o diabo fertiliza uma virgem e faz com que Merlin nasça. Merlin nasce então para vingar o diabo, mas a força de sua mãe faz com que ele traia seu pai e se volte ao bem. Um ser que conhece o mal e o bem, que sabe ver o futuro e o presente, eis o poder de Merlin.
Criança prodigio, ele logo passa a dar provas de seus dons. Ele sabe tudo e nada lhe escapa. Abandona a mãe e parte, será arquiteto de reinos e de vitórias. Ao fim de sua saga, Merlin cai de amores por Ninyanne, torna-se seu escravo e é trancafiado para sempre em círculo. Ele sabia que ela era seu fim, mesmo assim não pode resistir, entrega-se.
Escrito no século XII, aqui temos uma versão do século XIX em seus começos, obra de casal central do romantismo alemão. Os romanticos viam nessa lenda a recuperação de vitalidade espiritual perdida, um simbolismo sem fim, imagens de sonho. Mas o que essa história significaria para um homem do século XII ?
Até o encontro com a mulher, jamais Merlin se analisa. Ele faz o que deve ser feito, age. É homem que une os contrários: homem e animal, bem e mal, etéreo e sólido. Não pense que nossos antepassados eram tão ingênuos. Sabiam que ninguém voava ou vivia para sempre. Mas ainda não haviam perdido a certeza de que existem coisas que são sem parecer, manifestações que acontecem sem testemunhas, tempo sem relógio. Principalmente, o lugar do homem ainda era central, a dilaceração ainda não acontecera. A vida era o que era, e o homem vivia como deveria viver. O universo era de Deus, e Deus era seu pai. Nesse sistema, o homem reage a vida como se tudo fosse parte de um todo, a compartimentação não existia. Merlin é então uma manifestação desse todo, homem que sabe ler e antecipar esse universo.
Lição mais importante, ele compreende que a paixão é sua perdição, mas jamais ataca ou difama a mulher. Ela cumpre seu papel e cabe a ele cumprir o seu. E é essa paixão que faz com que Merlin se indague, se questione e pela primeira vez olhe para dentro de si. Mas ele crê na vida e sabe que na vida tudo é o que deve ser.
Pequeno livro de eterno saber.