é uma tela !

No começo da viagem ela pega uma telinha e passa todo o caminho vendo um show. Nada que ocorra na estrada, no caminho, poderá despertar sua atenção. Pois bem...
Leio numa revista que na exposição de Matisse a maioria das pessoas tira fotos dos quadros com seus celulares. Passam por todas as obras em coisa de cinco minutos, fotografam e vão embora. Esse texto diz que no início do século algumas mulheres desmaiavam de emoção ao ver essas pinturas. Assim como havia gente que pirava ao olhar Picasso... ele diz que as pessoas precisam fotografar para provar a si mesmas que estiveram lá. Sim. Mas dá pra pensar mais:
O futuro é hoje, já chegou. Vivemos naquele futuro onde a única coisa real É O QUE ESTÁ NA TELA. Fotografam Matisse para fazer com que ele exista, para tentar, em casa, olhando a tela, sentir algum tipo de emoção real pelo pintor. Fora das imagens eletrônicas NADA TEM VALOR.
Vejo um vídeo ( sim, eu também estou nessa ) de um show dos Rolling Stones em 1964. Não, não vou falar do estranhamento em se perceber que Mick Jagger sobrava em 1964. O que entendo, só após ler esse texto sobre Matisse, é que perdemos, e estamos perdendo cada vez mais, a capacidade de nos emocionar. Vendo aqueles jovens berrando, chorando, perdendo totalmente o controle em 1964, noto que hoje não se perde mais o controle. A emoção irracional, que antes vinha como extase estético ou frenesi dionisíaco, hoje quando se manifesta, vem como violencia pura e idiota.
Chorava-se vendo Mick Jagger rebolar. Chorava-se vendo a Portela na avenida. Chegava-se ao paraíso se escutando Mozart. Avistava-se Deus ou o Demo em cada nova paixão. Desmaiava-se vendo Matisse. Ia-se à rua brigar por Godard contra Truffaut. Se morria por Goethe ou por Rimbaud. Alguém se mata por Saramago ou por Coetzee ?
Mas as emoções estão dentro de nós. Ainda seremos humanos por algumas gerações mais. Só que estamos nos tornando incapazes de vivenciar qualquer tipo de emoção estética. Levamos fotos de Matisse ( e de Paris, da praia, da festa ) pra casa porque temos a esperança de poder guardá-las e então, um dia, descobrir seu segredo. Mas não. Nietzsche dizia que falar de um sentimento o matava. Fotografar a vida a congela, esfria, distancia, faz com que o momento se vá.
Na tela revemos o que já se foi. Dividimos isso com os amigos. E nada sentimos de muito sério. A tela prova que lá estivemos, que foi real. Mas a experiência foi apenas isso : um olhar e uma imagem. Registramos dentro de nós como imagem em tela : imagem fria.
Mas, como eu disse, as emoções estão lá, em nós, e precisam sair. E saem : violência absurda e inútil ou sintoma obscuro. Uma dor no peito, uma azia, ganho de peso. Comprimido pra dormir, mais um carro, um novo curso ( caça submarina ? dança moderna ? ), uma briga no trabalho, uma bebedeira na balada, um amor extra. A alma precisa se manifestar, ela ainda está aqui.
A menina gruda os olhos na tela enquanto o carro viaja por ruas e pontes e árvores e rios. Depois ela fala no celular enquanto desce do carro. Liga o laptop no quarto e comenta a viagem com a amiga que está no celular. Então ela coloca um filme no dvd e adormece vendo esse filme. Amanhã ela vai tirar 90 fotos da praia enquanto escuta música no mp qualquer coisa. E o inesperado estará bem longe dela ( ela pensa ), e as emoções serão controladas ( ela tenta ).
Desconcentração completa. Ninguém sabe mais penetrar no azul de Matisse. Nossa mente, bem treinada, só percebe o que brilha, o que se move, o que é editado. Tudo que parece parado nos é incompreensível. O futuro é hoje e neste tempo Matisse é um deus grego do qual não mais se entende a linguagem. Um hieróglifo sem desvendamento. Fotografamos para um dia tentar o desvendar : esse dia jamais chegará.
Se Hitler fosse hoje ninguém se sacrificaria contra ele. Faríamos protestos na internet, gozações na tv, filmes sobre ele, ongs de ajuda às vítimas. Mas não iríamos à rua, não nos alistaríamos na guerra. Porque nossa capacidade de indignação se foi. É o que mantém a turma do mal em Brasília. È o que fez Bush não cair. Nossa ação se inicia e se encerra diante de uma tela. Fora dela, bem, faz de conta que nada conta.
Se neste mundo-futuro só é real o que está na tela, então tudo o que não está nela não é real. Mas a natureza nada tem a ver com isso. Ela continua viva e ativa, como desde sempre, independente de telas ou digitalizações. Então se conseguirmos nos olhar de outro ponto de vista, de fora do que vivemos hoje e agora, percebemos que o irreal somos nós, é a tela, nossa vidinha entre câmeras e imagens. Percebemos que este celular, este pc, este carro é o que é : apenas um brinquedinho. E que TUDO o que temos aprendido a chamar de real é na verdade uma falsificação da vida, uma cópia empobrecida. A imagem na tela não é de verdade. A tela de Matisse é a verdade.
Então aquele cara berrando no show dos Stones em 1964 continua na tela até hoje. Eu o vejo agora. Seu berro não é mais real. É cópia do berro que ele deu em 1964. Mas, aí vem o diferencial, em 1964 ele NÃO GRITOU PARA UMA CÂMERA, ele gritou para o momento efêmero, ele gritou para o mundo ao seu lado, para aquele único segundo : SEU GRITO NÃO TINHA A VONTADE DE SER ETERNIZADO E REPETIDO. Ele não posava. O grito era desajeitada expressão do espírito. Portanto, apesar de ser falsamente revisto na tela, hoje e agora, ele é ao mesmo tempo mensagem inconsciente de um tempo pré-tela. Ele é puro.
Nada mais pode ser puro hoje. A menina de 10 anos posa espertamente para câmeras de celular todo dia e toda hora. Ela aprende a se olhar e a se rever. O cara que berrou desajeitado em 1964, hoje iria berrar sabendo o valor de seu berro. Seria impuro. O repetir de uma coisa vista numa tela. Um berro mais profissional, mais consciente, falso.
Fotografamos Matisse para ter Matisse em casa. Acabamos por não ter Matisse algum em casa e por não parar para observar o Matisse verdadeiro. O irreal é nosso e nada vale ou diz. O verdadeiro tem um valor que não compreendemos e diz coisas que não sabemos ouvir.
Perdemos alguma coisa de sincera nestes anos. E ganhamos imagens em tela no lugar.
Ainda iremos conseguir um dia vencer a morte. Viveremos para sempre, em telas. Vivos para sempre. E jamais nascidos fora dela.



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improvisos sobre maria rita kehl- jazz

Quando ela fala do anúncio em que a noiva presta atenção no carro que passa na rua, ignorando o namorado perdedor, me vem uma questão à cabeça : não terá sido sempre assim ? Mas logo me vem a resposta : não, não era bem assim. Pois nos romances de Stendhal e Balzac, que tanto vasculham as relações e tanto falam de poder e dinheiro, vemos que os valores eram outros. Se fala da elegancia de um jovem nobre, mas eis a diferença : é um jovem "nobre". Sua nobre elegancia, seu fascínio está depositado em seu porte, no modo como ele fala e pensa. Descreve-se seu bigode, sua bengala, o olhar, o tom da voz, e principalmente sua conversação. Tudo é chic, caro, exclusivo, mas não existem marcas, as coisas de valor são permanentes ( ou tentam assim ser ). Acima de tudo o que mais se valoriza é o nome, o bom nome, e isso está associado a honra. Balzac falar de um barão que tinha um novo castelo, uma nova carruagem ou um novo relógio era impensável. Tudo deveria parecer de família, único, exclusivo e cultivado por gerações. O sedutor, com suas costeletas e seu charuto fedido, deveria transpirar poder antigo, cheirar a conhaque, ter a dureza do carvalho.
Como ela bem nota, nesse meio é a neurose o mal que se instala. Você deve ser filho de seu meio, honrar sua linhagem, e se você não consegue seguir esse destino surge o sintoma neurótico. Não havia uma ditadura do gozo, muito menos do consumo; a ditadura era a de ser alguém, e esse alguém era seu pai. Era mais fácil ser pai. O papel estava muito claro e bastava ser como seu próprio pai fora com você. Se esperava do pai autoridade, exemplo e uma certa distância. O pai fazia coisas. Hoje é inviável ser pai. Quem quer ou precisa deles ?
Durante séculos fomos obrigados a ser alguma coisa. Mesmo que fosse uma mentira, você tinha de ser um soldado, ou um escravo, talvez um artesão, e com sorte na nascença, um nobre. Nada que você comprasse ou fizesse poderia mudar o que você era. Creio que foi o tempo da esquizofrenia, dos transes místicos, dos fanáticos. E da invenção da poesia, do teatro e das filosofias. Mas isso mudou e veio o tempo de fazer dinheiro. Você não precisava ser alguma coisa, você tinha de fazer alguma coisa. Desaparece o vagabundo de estrada, o menestrel, o cavaleiro andante; o homem se prende a uma rotina de fazer dinheiro, tentar ascender pelo comércio, pela indústria, pela politica. Junta-se poder, faz-se contato, acumula-se dinheiro e terra. Engorda-se. Daí vem a era do ter alguma coisa, e essa é a era anterior a nossa, é a época que se encerra com nossos pais.
Se antes você existia pelo que era, se depois você se definia pelo que fazia, agora era o tempo de ser o que se tinha. Possuir coisas era possuir identidade, existir. Maria Rita Kehl, de certa forma, pensa que ainda estamos nessa fase, mas acho que não. Essa época já passou e com ela se foi a histeria. Veja : meu pai tinha uma casa, um sítio, um carro, um telefone, seguro de vida. Ele queria ter coisas, não comprar coisas. É diferente, é muito diferente. Quando ele comprava uma casa era para sempre. Um carro deveria durar o máximo de tempo possível. Um relógio era comprado com a idéia de ser dado ao filho um dia. Se adquiriam coisas para serem parte de sua vida, serem parte de você. Elas precisavam ter valor. Mesmo os livros, discos, roupas, tinham que ser comprados como parte de sua vida, permaneceriam com você e com seus continuadores. Usar um paletó que foi de seu pai.
Hoje nós compramos muito, mas, estranhamente, nada temos. Tudo o que adquirimos já vem com sua data de despedida. Seu carro é objeto alugado, ficará necessariamente obsoleto, assim como tudo que o cerca. Sua casa será derrubada ou reconstruída, e mesmo seus livros, discos, serão abandonados como modas que se foram. Você pagará, cada vez mais, para ter sensações, não para possuir algo. Alugar um livro, um som, um filme, jamais guardá-lo ( inclusive em sua memória ). Apagar fotos, lembranças e diários. Num mundo em que tudo tem um preço mas nada é permanente, como se pode cobrar fidelidade, amor eterno ou compromisso ?
As coisas são mais perversas do que Maria Rita diz. E após a histeria, sintoma do mundo onde tem de se ter coisas para ser alguém, vem a depressão de quem compra coisas e nada possui. Você olha ao redor e não vê nenhum resquicio. Nada de sua história fica. É como se todos fôssemos fantasmas, como se nenhum sinal de nossa passagem pudesse ser percebido. Nossas despensas têm de estar sempre vazias, prontas para abrigar novas compras, que não são reais e nada ocupam. A continuidade se desfaz. Nos vemos cometas, soltos no vazio. Comprando mais um celular, mais um carro, mais uma tv...e jogando fora tudo em 6 meses. E perdendo o prazer em 6 dias.
Se no inicio você se definia pelo que era, se depois você existia fazendo coisas e se até muito recentemente você era o que comprava, agora para ser alguém você não precisa ser coisa alguma ( é até bom ser indefinidamente estudante, pensar aos 50 anos " o que serei quando crescer ?" ), você também não precisa fazer nada para existir como humano ( fazer o que ? O que eu gosto de fazer ? Qual meu dom ? ), e ironia atroz, você também não é mais o que tem ( bom é ser o cara sem casa fixa, sem emprego certo e sem destino ), mas você precisa e tem de ser uma coisa apenas : um comprador. Mesmo que seja uma passagem para o Nepal, um curso de budismo, uma dose de heroína ou um filhote de bulldog; você precisa consumir.
Que armadilha em que fomos nos meter. Jovens pobres com celulares de último tipo grudados na orelha, olhando para os pais e vendo neles uns perfeitos idiotas por não terem a grana do Ronaldinho ou do Belo; jovens ricos cheios de falsa adrenalina, namorando peruinhas feitas para serem exibidas e jamais ouvidas, olhando para o mundo e vendo nele uma vitrine de loja onde tudo é prazer, e onde esse prazer sempre é miragem. Por mais rico que ele seja ele jamais sente que tem tudo aquilo que deveria ter.
Cobrar responsabilidade ? Honra ? Verdade ? Perante o que ? Compradores que por mais que gastem nada têm, só podem ter uma cobrança : continuar sentindo vontade de comprar. Para sempre desejando, querendo, procurando. Já não acumulamos mais, e nem queremos ser ou ter algo; tudo o que sentimos é um desejo vago, uma vontade de preencher um vazio. Comprar. Eis o que precisamos : satisfazer esse desejo, atolar esse vazio, gozar logo, rápido, sem pensar muito. Satisfazer esse desejo urgentemente, em qualquer lugar e em qualquer objeto, pornograficamente. Não importa se a sandália é de plástico e solta a tira, não importa se a blusa estica e é ridícula, não quero saber se a festa é uma roubada, tudo o que desejo é aliviar o próprio desejo, pois não penso mais em prazer, penso em alívio.
Ejacular logo meu dinheiro. Ser um comprador feliz, incluido, na turma, em dia com o que rola no mercado, sorrindo e sendo antenado. Hoje isso é tudo. Acho pouco. Acho pobre. Acho cômico. E é assim...

O EQUILIBRISTA

O cara costuma ser barrigudo. Uma cara de tédio, misturada com um ar de superioridade. Olha tudo como se tudo fosse um nada. É o cara que adora dizer, alto e estridente, que rock bom era feito até 1971, 72, talvez 73. Ele me irrita. Ignora o punk, ignora o movimento de NY-79, pior ainda, ignora o rap e a música eletrônica. Esse cara só aprecia quem "toca bem". Mas me irrita também aquele cara que pensa que tudo começou com a mtv. Acha muito e nada sabe. É magrinho e tem idéias esqueléticas. Sabe tudo o que aconteceu de 1995 pra cá, e o passado lhe é tão vazio quanto seu cérebro. Chega a dizer asneiras como : os Beatles só venderam tanto porque não tinham concorrência!!!! Ele confunde o fato de não conhecer os concorrentes dos Beatles com a idéia de que eles não existiam... modo de raciocinar mais infantil não há. Os Beatles cresceram exatamente pela concorrência brava. Tiveram que bater as bandas de Liverpool, depois as de Londres, e a América ( onde ainda vendiam Sinatra, Bennet, Elvis, Ray Charles e os novos, tipo surf bands, os negros da Motown, da Stax e os intelectuais do folk e do jazz ), foram acossados depois pelos hippies, pelos psicodélicos, pelo bubble-gum e pelo country. Mas o esqueleto acha, mal informado, que só existia Stones, Beatles e um imenso nada...
Idéia tão tola como a do gorducho amante do rock do "bom", que acha que rap não é música e que para fazer eletro basta apertar um botão !
Sou do contra e me equilibro entre os dois. O esqueleto acha que sou "do passado", por não me empolgar por bandas que nada fazem que eu já não tenha escutado. Pensam que sou passado, mas não percebem que o que não gosto É EXATAMENTE DE NOVAS BANDAS QUE CHEIRAM A NAFTALINA ! Já os gorduchos me acham tolo. Pois não comungo com eles no amor a quem toca bem. Odeio tudo que cheire a Jazz-rock e progressivo, e não me anima o blues técnico. Ficam abismados quando falo que adoro rap e pior, quando falo que Bowie, Lou Reed e Bryan Ferry são gênios. Pior que tudo : amo os Kinks, os Faces e o Velvet. Eles nada entendem...
Também não me dou com a menina de óculos e cabelo à Louise Brooks, que pensa que todo cinema bom é em preto e branco. Ela olha os desenhos animados de hoje ( e de ontem ) com desprezo e filmes de aventura lhe são insuportáveis. Ama filmes densos, dificeis, raros. Ela não entende como posso ser fã de Dumbo, do Patolino, de Bruce Willis e de Will Smith. Lhe pareço falso.
Mas também não me dou com a loura produzida, que estuda publicidade ou arquitetura, e que" a d o r a" tudo que é novo e "moderno". Essa confunde arte com padaria e julga filme como se julga pão quente : bom é o que saiu do forno agora. Suas referências se encerram em 1991, pensam que Spielberg inventou o cinema. Para elas sou um rato de cinemateca.
Adoro me equilibrar assim, no fio estreito, mas que na verdade é um mundo largo : onde o gorducho só percebe solos e vinil, eu percebo além, percebo beats e grafitis; onde o esqueleto só ouve musiquinhas e modinhas, eu escuto décadas de invenções. Ela, com seus cursos de filosofia da arte, só quer assistir o histórico filme do diretor obscuro da Islândia, mas eu assisto todas as cores e todas as histórias; e a lourinha, com suas sainhas de Paris, quer ser a primeira a ver o novo ganhador do prêmio dourado, eu, quero rever o antigo campeão que não se esquece.
Enquanto o Corinthiano detestar o Palmeiras, eu defenderei a importancia do verde; e quando o porco atacar o Timão, eu irei falar dos méritos de um time alvi-negro. Ataque a Argentina que eu te falarei do futebol de Di Stéfano e Maradona; desmereça o Brasil que eu idolatrarei Zico e Rivaldo.
Não estarei no meio-dia e nem na meia-noite : meu horário é seis e dezoito. Odeio aglomeração de edificios, mas não suporto a floresta : meu lugar é o suburbio. Nada de São Paulo, nada de Amazônia, sim para a Serra do Mar e Santos : selvagem pero no mucho, grande, mas pequeno.
Discutirei com você, se insistir em defender Fidel e Che; mas também discutirei se defender Bush e Berlusconi; falarei da cultura inglesa se for um francófilo, e se você for amante de Londres, demonstrarei a maior profundidade da França em comparação a Grã-Bretanha. Se a igreja católica for extinta, me tornarei um cruzado; se os católicos perseguirem ateus e judeus, serei um erege.
Não sou Robin Hood. Defendo somente a mim mesmo, minhas idéias. Talvez resida aí minha profunda comunhão com este século : PERCEBO QUE TUDO É PROFUNDAMENTE RELATIVO, que nada é absolutamente certo, e principalmente, nada exclui nada. Que procurar o equilibrio é viver no meio, não vestir camisa de time nenhum, dizer sempre a palavra : porém.....
Nada pior que o fã de Joyce que tenta te explicar o porque dele ser tão genial, e nada pior que o cara que não consegue ler Joyce e diz então que Joyce é uma merda. O pintor que não sabe desenhar e imita Pollock pobremente, e o desenhista habilidoso que nada sabe criar e desdenha de Klee por ser " só rabiscos."
Entre Freud e Jung eu fico com Kierkgaard, e entre Nietzsche e Kant eu fico com Montaigne. Mas se atacarem Freud e Kant irei os defender.
Na verdade minha posição é solitária, pois bastam dois concordarem para que eu defenda o terceiro ausente. Em meio a brancos racistas me torno negão, e se um negro diz que só negros sabem fazer música logo discuto Mozart e Bach. Sou chato pra caramba !!!!!!! Isso é que sou. Mas eu adoro ser assim!

BALTHASAR/TOM JONES/CARY GRANT/RETRATO DE JENNIE

AU HASARD BALTHASAR de Robert Bresson
Um burrico mama o leite materno. Crianças fazem seu batismo. O filme é a história desse burro e dessas pessoas. Mas não é Disney: nunca se humaniza o burro, ele é apenas uma besta que vive como uma besta : sofre. Mas vem daí a pregação de Bresson ( e apenas Dreyer é tão crente quanto Bresson ) o bicho é um santo. Não que ele faça milagres ou seja mágico, não! A santidade para o diretor francês está no fato de que o burrico é isento de maldade e está, sublimemente, em comunhão com a vida.
Quando neva ele recebe a neve no lombo, quando chove ele se molha. Apanha dos donos, sofre no trabalho, mas é feliz ao comer sua relva : o animal está sempre em acordo com a vida, está em casa, na sua casa, esteja onde estiver. E acima de tudo, o bicho olha : e o que ele vê é o fato de que as pessoas são muito más! A maldade que o filme exibe não é a maldade cinematográfica de sádicos exageros, não é a maldade de bandidos ou de psicopatas, é pior : são as maldades, cruéis, do dia a dia de pessoas ignorantes, a maldade prazerosa, a maldade inutil, vazia, tola. Todos são ruins e os que não o são, se tornam vítimas idiotas, imbecís que se deixam usar. Balthasar olha, não julga, na verdade nada entende. E aí nasce a genialidade do filme : começamos a ver o mundo como o burro o vê : incompreensível vaidade e futilidade ! Todo ato humano como tentativa de afirmar uma vaidade, mesmo que seja a vaidade de sofrer, de fracassar, de ser humilde, vítima.
Balthasar nunca chora, não tem o orgulho da lágrima. Ele sobrevive. Ao fim, em bela e comovente cena, Balthasar se deita ao lado das ovelhas ( como um Jesus em seu calvário ) e morre. Fin.
O cinema de Bresson atinge aqui seu ponto radical : nada de interpretações. Seus atores nunca podem interpretar : dizem as falas como quem as lê. Bresson repetia as cenas até os deixar tão esgotados que desistiam de passar qualquer coisa, aí ele filmava. Para Bresson, uma idéia só pode ser passada se não houver uma "performance" do ator. Balthasar é um animal, é seu ator ideal. O filme tem também aquilo que o dogma copiaria : crueza fria. Os cenários são reais, a luz é a que existe na vida, nada é artifício. Mas o filme tem algo que o dogma nunca possuiu : verdade. Bresson realmente crê no que exibe : a realidade da maldade. Para Bresson ( como para Bergman e Dreyer ) o mal é dominante na Terra. O mal é mal absoluto. Existem muitas pessoas que existem para a maldade, têm prazer com a maldade e nada as detém. O bem, raro, está em Balthasar, um bicho que nada julga. Tudo que ele queria era ser deixado em paz. Conseguiu. Eis a maestria do filme : o mal perde PORQUE O MAL SÓ PODE EXISTIR EM VIDA. Com a morte o mal cessa. Com a morte Balthasar atingirá o paraíso.
Para mim, nenhum filme pode ter mensagem mais radical e mais terrível. Nota Dez!!!!
TOM JONES de Tony Richardson com Albert Finney, Susannah York, Edith Evans, Hugh Griffith, Joan Greenwood
Alegria! Tom nasce bastardo e tem apenas um defeito : não resiste a nenhuma mulher. E nenhuma mulher resiste a Tom. Vemos a Inglaterra de 1750 como em telejornal moderno : verdadeira, suja, viva, alegre, mortal. O filme é exemplo de juventude em cinema. Ele festeja a vida. A trilha de John Addison fez história. Finney ( o Peixe Grande ) está sublime : ele nos apaixona, é o amigo para toda vida que todos queríamos encontrar. nota 9.
UM ANJO CAIU DO CÉU de Henry Koster com Cary Grant, Loretta Young e David Niven
Sim! Um anjo vem a Terra e ajuda as pessoas sem fazer nenhum milagre. Tudo que ele faz é ser simpático e as ouvir. O anjo é Grant, ou seja, ele é muuuuito simpático. Niven faz o bispo que o emprega e que virá a detestá-lo e mandá-lo embora. Há uma cena num rinque de patinação que se tornou lenda: exemplo de beleza do cinema. O filme demora a começar, mas quando engrena emociona muito. Toca algo de muito doloroso em nós : a perda. Seja de um amigo, uma fé ou um anjo. Lindo filme que irei rever no Natal. Aconselho a que façam o mesmo. nota 9.
A MEGERA DOMADA de Franco Zeffirelli com Richard Burton e Elizabeth Taylor
Não dá certo. Zeffirelli deixa o filme tão enfeitado, tão bonitinho que se perde sua leveza. É pesadão, frouxo, chato. nota 1.
NANÁ de Jean Renoir com Catherine Hessling
Que filme esquisito!!! A atriz que faz Naná, a mulher destruidora de homens da história de Zola, é tão canastrona que transforma o filme em comédia crua. Será proposital ? O filme é longo, longo, longo...mas tem umas duas belas cenas. Mas que é esquisito, isso é! nota 2.
O JARDIM SECRETO de Agnieszka Holland
Você já deve ter visto na Sessão da Tarde. É chato pacas! nota 1.
AMAR FOI MINHA RUÍNA de John M. Stahl com Gene Tierney e Cornel Wilde
Filme kistch amado por Almodovar e que tais. É um novelão tão exagerado, com diálogos tão melodramáticos e com atores tão ruins ( Gene nunca esteve pior ) que se torna alegre diversão idiota. Fala de mulher que ama tanto seu marido que mata todos que possam lhe roubar sua atenção, inclusive o filho. Será que alguém um dia lhe levou a sério ? nota 5.
DODSWORTH de William Wyler com Walter Huston, Ruth Chatterton, Paul Lukas
Começo a notar o porque de Wyler ter tido tamanho prestígio : ele nunca erra ! Devo ter visto mais de quinze de seus filmes, entre dramas, westerns, comédias, policiais, e digo, não há erro.
Sinclair Lewis, primeiro autor americano a ganhar o nobel, escreveu esta história. Enquanto na época era moda escrever sobre americanos ricos como vilões e americanos morando na Europa como heróis, aqui, Sinclair fez o contrário : o industrial rico e simples, feito com maravilhosa graça e humanismo pelo pai de John Huston, é o herói. Ele viaja a Europa com sua esposa, aposentados, e lá, ela, deslumbrada pela cultura européia, chifra esse velho poderoso, o abandona e se torna "culta, fina, sofisticada". O industrial, que realmente a ama, espera, disfarça, se desilude e acaba por desistir. Reencontra o amor em Napoles, com uma americana amarga que enxerga seu valor. Parece uma xaropada ? Não é! Wyler filma sem jamais cair no melô. Nenhum diálogo é adocicado, burro, exagerado. Dodsworth é inocente, mas não idiota. Ele sabe o que acontece, mas não quer entender. O filme é bonito, adulto, fluido e é uma aula de direção e de roteiro. Huston está fantástico; seu Dodsworth, personagem muito sutil, é levado com bravura infinita. nota 9.
SHAMPOO de Hal Ashby com Warren Beaty, Julie Christie e Goldie Hawn
Um belo cabeleireiro de LA tem caso com todas as suas clientes. O filme, imenso sucesso em 1975, se passa em 68, portanto todos se drogam, todos fazem sexo e todos querem ser modernos. Mas o filme é algo mais : o cabeleireiro é um poço de solidão. Mais que traçar suas clientes, ele é usado por todas elas. Um boneco bonito para se ter prazer. Warren está perfeito, sempre foi melhor ator do que se pensou na época. Julie está bonita e Goldie uma bobinha ( faz tudo aquilo que sua filha faz hoje ). A trilha é super!!! nota 6.
O RETRATO DE JENNIE de William Dieterle com Joseph Cotten e Jennifer Jones
Primeiro um pouco de história : Selznick é considerado o produtor mais importante de toda a história do cinema. Porque ? Porque numa época em que produzir era amar a arte ( o produtor fazia tudo : escolhia elenco, cenário, roupas, músicas, roteiro, diretor, lançamento ) era Selznick aquele que mais se metia, mais acertava e mais arriscava. Mas aqui ele exagerou. O filme acabou com sua vida.
Levou dois anos em produção ( um absurdo ) e é um imenso fracasso que o fez falir. Mas é um filme lindo, uma obra-prima romântica, obrigatória para quem gosta e sabe "viajar" numa fantasia.
Cotten, excelente em seu aturdimento apaixonado, é um pintor fracassado em NY. Primeiro mérito : o filme é quase todo filmado em externas. A fotografia ( de Joseph August, sofreu tanta pressão que morreu nas filmagens ) é um primor. Raros filmes tem fotografia tão criativa e bonita. Nuvens no céu, neve que cai, a luz da Lua a noite, nunca ví cenas tão belas. Pois bem... esse pintor conhece uma menina no Central Park. A criança a cada encontro dos dois está mais velha. O pintor, inspirado por ela, pinta melhor e faz sucesso. Mas ela não existe, é um fantasma. Sim, é Ghost com Em algum lugar do Passado com uma infinidade de outros mais. Mas é de longe o melhor.
Veja o primeiro encontro : ele conversa com a criança. Ela canta uma canção. A cena é típica de Tim Burton, dark e poética. E o que a menina canta ? É incrível ! Uma canção pop de 2010 num filme de 1945 ! Bernard Herrman ( dos filmes de Hitch ) foi chamado só para escrever essa canção ( veja os custos subindo. O resto da trilha, ótima, é de Dimitri Tiomkim ). A canção é uma melodia gótica com harmonia de tons tecno e vocal à Patti Smith. Um milagre. Mas o filme é mais: A tempestade que separa os dois tem clima de sonho que nos faz pensar, após o filme terminar, que o próprio filme foi um sonho. E há Jennifer, uma atriz ainda viva, amante do casado Selznick na época, que produziu esta estravagância como homenagem à ela. Quando ele morreu, em 65, Jennifer foi achada louca numa praia da Califórnia. Se recuperou, voltou a estudar e é hoje uma famosa psicóloga. Era bela e boa atriz, ganhou um Oscar logo em sua estréia. O amor dos dois ( eram casados com outros. O marido dela ao descobrir sua traição bebeu até morrer ) era de verdade.
Assistam este filme que é diferente de tudo que você já viu. E vejam os extras de Rubens Ewald Filho. Ele confessa seu amor pelo filme, o primeiro que viu na vida. Lindo. Nota DEZ!
PENNY SERENADE de George Stevens com Cary Grant e Irenne Dunne
O único diretor que podia fazer frente a Wyler era Stevens. Veja este doloroso filme e saiba o porque. È a tocante história de um casamento banal. Cary, excelente e emocionante, é o marido. Um normal marido de classe média baixa. Irenne é sua esposa. Casam-se, perdem um filho e perdem um outro. E é só isso. Nada de muito incomum, de muito original. Mas o estilo de como isso é contado é genial.
O filme começa do fim : a esposa abandonando o lar e escutando discos. Daí vem um grande achado : cada disco é uma memória, um capítulo da história dos dois. O namoro, o casamento, a falta de dinheiro, a vida com um bebê ( são as melhores cenas. Você morre de vontade de ter um filho. São cenas longas, sem pressa, calmas e muito reais. ) Vem um forte drama, que o diretor sabiamente evita mostrar, e o final, que parece feliz, mas que na verdade é amargo. Simples. Mas que delicioso filme! Grant nos surpreende saindo de seu tipo malandro boa vida e sendo um ansioso jovem marido. Ele se mostra desajeitado, inseguro, apaixonado e até simplório. Irenne está como deve estar, mãe de férrea feminilidade, teimosa, impaciente. O filme é a vida que brota dessa mistura. Assistimos, sempre com prazer, seu cotidiano.
Entrar neste drama é como ver um album de retratos. Ou melhor, ouvir as canções que mais te marcaram. Melancólico. E uma delícia. E dizem que Hollywood não sabia ser "vida real"... uma obra-prima. Nota DEZ!!!!!!!!

MONTAIGNE, BURNS, SAKI, VILLON E ETC

Quem leu sabe : Montaigne foi o primeiro e o maior dos blogueiros.
Vejamos.
Nasceu em família enriquecida e recém nobilizada. O pai, esclarecido, o educou de forma erudita : acordava ao som de cravo e os empregados só podiam falar latim com a criança. Montaigne cresceu feliz e estudou com prazer. Lia muito, principalmente Seneca e Plutarco ( como Shakespeare ) e viveu uma juventude de vinho, mulheres e amigos. Encontrou em La Boetie o único amigo que lhe compreendia. Mas morreu cedo, esse Ettiene de La Boetie. Já casado, pai de família, Montaigne, triste e incapaz de se permitir ter prazer, em luto pela morte de Ettiene, se isola no castelo da família. Escreve um livro. Um livro para ser lido apenas pelos amigos. Um livro que não poderia interessar a ninguém, pois seu único assunto era o próprio autor. Montaigne diz isso na introdução. É um livro escrito para a cura de quem o escreve. Michel de Montaigne escreve como fala, e intui que falar cura. Não a toa ele é o Freud original.
Ele ainda lutaria uma guerra, seria prefeito de Bordeaux e participante das lutas religiosas da França do século XVI. Shakespeare lhe deveria tudo. Emerson também. Montaigne é o primeiro homem moderno da Terra. Ele nos inaugura.
O que é o livro ? Um blog. Ele discorre sobre o que pensa, o que leu, o que viveu. Os capítulos, muitos, falam do amor, da morte, da honestidade, mas também falam de trivialidades, de comida, de bebida, de roupas, de modas, de tudo que o constitui. E ele usa a linguagem do amigo. Conversa conosco, dialoga, educa. Inaugura a crônica, a confissão do anônimo, a biografia do não-célebre, a despretensão na escrita. Ele cai em contradições, desmente, desnorteia. Mas é sempre simples, claro, amigo.
Sempre releio trechos de Montaigne, mas nunca leio seu livro inteiro. Foi feito para ser visitado. A intuição que o levou a escrever é coisa de bruxo. Ele foi o futuro.
Lí Robert Burns pela primeira vez. É o poeta nacional da Escócia, assim como Keats é da Inglaterra, Goethe da Alemanha, Pushkin da Russia e Whitman da América. Shakespeare é o poeta do Ocidente. O nosso é Drummond e Camões é de Portugal.
Burns escrevia canções. Seus poemas são letras de música. Muito simples, rimas fáceis, vibrantes. São poemas de bar. Seus assuntos são : bebida, comida e mulher. Vibra de prazer, mas também de revolta contra a opressão inglesa. Poemas para serem lidos aos gritos, rindo, bebendo, em paixão. Burns andou pela Escócia a pé, aprendendo o canto do povo e ao valorizar a raiz escocesa ( ele escrevia em escocês, não em inglês ) Robert Burns ajudou a criar o romantismo. Ele anuncia a valorização da alma do poeta como antena do povo.
Também tomei contato com François Villon. Villon foi ladrão e religioso, político e condenado. Fugiu, mentiu, escreveu muito e foi preso. Sua época, a mesma de Camões, Cervantes e Rabelais, é a época do literato-soldado, do intelectual-herói, do aventureiro-pensador. Seus poemas, muito franceses, são o oposto de Burns : elaborados. Falam de Deus, da morte, do sexo e da devassidão. Difícil.
E tem H.H. Munro, vulgo Saki. Contos da era Eduardiana. O melhor tempo da Europa, o último grande tempo ( 1890/ 1914 ).
O que foi essa era ? O apogeu do poder material da Europa ( as custas da exploração da Asia e Africa ). Eduardo, rei, foi um grande gastador. E como todo inglês adora copiar seu nobre mais querido, os ingleses começaram a gastar, a esbanjar, a desperdiçar. Surgiram os exageros : casas de mármore com paredes revestidas de seda, quadros, vasos às dúzias, estatuetas italianas, bronzes, móveis de jacarandá do Brasil, tapetes persas, espelhos de cristal belga, bengalas, cartolas, empregados, carruagens, viagens com 15 empregados, porcelanas, esnobismo. É o mundo de Wilde, Carroll, Wells, Shaw, James e depois de Wolff, Huxley, Waugh e até de Lawrence. Mundo de Saki.
Seus contos são hilários. Três páginas apenas. E o tal nonsense, tão inglês.
Porque a Inglaterra tem tanto talento para o humor ? Apenas o humor judaico lhe faz frente. O que aconteceu para que houvesse esse desabrochar de riso, de escárnio e principalmente, de absurdo cômico ?
A introdução do livro, de Rosalia Garcia, arrisca dizer : o humor nasce como válvula de escape da rigidez da rotina inglesa. O inglês rí, faz trocadilhos, cria absurdos para quebrar o gesso dos horários rígidos, do chá com leite, da etiqueta formal, do sempre igual. Numa nação de guarda-chuvas pretos, carros pretos, guardas da rainha em formação e classes que não se misturam, criar o absurdo para quebrar a chatice é não só necessário, é vital. Saki faz isso todo o tempo. Fala de chás que dão errado, de caçadas desastradas, de festas que afundam, de nobres ridiculos. O inglês acima de tudo rí de sí mesmo e, apesar de se saber absurdo, ama seu modo ridiculo de ser. Seu humor não é feito para gargalhar, ele é feito para mover o cérebro, arejar o pensamento, pintar o guarda-chuva de rosa e o Rolls de amarelo.
Duas velhinhas tomam chá. Mas Jacques Cousteau, vestido com escafandro, toma chá com elas e tem um peixe na mão. O teto cai e um pianista toca no quarto ao lado. O pianista está pelado. Um repórter pergunta na rua porque os escoceses usam saiote e um homem de saiote é morto numa rua. Isto é nonsense. É produto que só existe na terra de Peter Sellers, de Kevin Ayers, de Alice no país do espelho, do Monty Python e deste Saki, que tanto faz rir fazendo tão pouco.
O humor francês, apesar de Tati, é tão fraco por ser um país que se leva demais a sério. A Itália é cômica por saber ser ridícula. A América tem o humor do judeu e do negro, um humor feito para se vencer a opressão. Se rí da dor para se superar a ferida. Mas o inglês cria o anti-esperado, o anti-real, o anti-relógio. Ele se mantém britânico, se mantém súdito da rainha; porém cria um momento de exagero, de absoluto absurdo, de transe de sem sentido, de humor inglês. É genial. È Evelyn Waugh, é P.G. Wodehouse, e é Saki.
Por ser tão formal e reprimido, eu o entendo, o pratico em minha vida e o idolatro. A vida é nonsense e só quem foi obrigado a ser cego e de súbito abre os olhos percebe a graça.
Viva Saki !

O DIA EM QUE UMA BOLA ME FEZ CHORAR

As malas estavam prontas e nós iríamos para Paris em 3 dias. Eu não queria ir. Era ainda um anglófono, não gostava da empáfia parisiense. Mas alguma coisa estava mudando em mim. Era a copa da Espanha, uma copa marcada pelo sol e por alguns jogos inesquecíveis. A última copa em que quatro seleções poderiam ser campeãs com justiça. ( Itália, Alemanha, Brasil e França. ) Foi a copa de Rossi, Rummenigge, Falcão e Platini. Mas também de Antognoni, Breitner, Junior e Tigana. E muito mais...
No meu quarto, eu, que durante a copa aprendera a amar a seleção da França, assistia mais uma exibição de gala desse time que era como Mozart em campo : refinadíssimo toque angélico. Eles jamais davam um chutão, nunca faziam um lançamento longo. Eram passes curtos, milimétricos, dribles limpos, claros, refinados. Uma completa âusência de violência. As camisas azuis, da Le Coq Sportiff, jamais erravam. Aprendi a idolatrar aquele meio campo que era um quarteto de cordas digno de Haydn : Alain Giresse, um ladrão de bolas, um baixinho de Marselha, um Napoleão da bola; Ghenghini, o rei do passe, príncipe de modos sublimes, magro garçon; Tigana, o ágil, veloz, surpreendente Tigana, primeiro ídolo negro da bola tricolor, habilidoso atacante de raio sem fim; e o maior de todos : Michel Platini, apesar de Zico, Maradona, Zidane, Romário, Crujff, Van Basten e vasto etc, foi este 10 tricoleur, o mais perfeito toque que um time já teve. É dele o mais belo gol que ví ( Juventus x Argentinos Júniors em Tóquio. Três chapéus, limpos e longos na pequena área, e o gol. Tudo sem deixar a bola cair e sempre com o mesmo pé. O juiz anulou esse gol. Porquê ? Nunca ninguém soube. A Juve venceu com gol de Michel. )
O jogo naquele dia era pela semi-final, contra a Alemanha de Rummenigge, Breitner, Hansi Muller e Kaltz. Detalhe : a França até então jamais vencera os alemães em competições oficiais. Mas o jogo foi uma festa francesa ! Toques e mais toques de classe, dribles maravilhosos e um fato raro : essa seleção nunca errava um passe ! Era um ballet dos quatro mosqueteiros do meio campo. Mas... tragédia de Racine : o ataque de Rocheteau e de Six perdia gol atrás de gol ! Um gol fez a França, um mísero gol ( como em 2006 contra o Brasil, em que moralmente o jogo deveria ter sido 3x0 ). E a Alemanha, que na época ainda era A Alemanha, fez um também, e levou o jogo para a prorrogação.
Vieram então os mais fantásticos 30 minutos de toda a história do esporte ( e quem diz isso não sou eu, é a FIFA. Este jogo é o quarto maior da história. Os outros 3 são : 1970- Alemanha 4x4 Itália, 1982: Brasil 2x3 Itália, 1970: Brasil 4x1 Itália e este França e Alemanha ).
Nessa prorrogação a França, nos quinze primeiros minutos, jogou o melhor futebol que presenciei em toda minha longa vida. Fez 3x1 nos alemães e começou a comemorar a final, que seria contra Brasil ou Itália. Trocava passes, dava dribles, e finalmente, fazia gols. Veio o segundo tempo e nada mudou : um show de classe. O quarteto tocava Beethoven para os germânicos. Mas... aos 10 do segundo tempo Rocheteau invade a área livre para fazer o quarto. O goleiro Schumacher, sai e tromba com Rocheteau. O francês sairá de campo com o maxilar fraturado. A França desaba. O pênalti não foi marcado e Rummenigge, aos 12 e aos 15 do segundo tempo da prorrogação faz o milagre : 3x3.
Quando Six chuta fora o último pênalti... eu choro. Porquê chorei neste jogo e não em Brasil e Itália ? Porquê a Itália jogou melhor aquele jogo. Os dois jogaram bem na verdade, mas os italianos tiveram mais raça. Mereceram. ( e, típico daquela nobre geração brasileira, de Sócrates e Zico, de Falcão e Júnior, de Telê e Leandro; jamais se contestou a vitória italiana. Choraram, mas nunca criaram teorias conspiratórias, como fez a vergonhosa geração de 98, dos amarelões Ronaldo e Júnior Baiano. )
Chorei naquela tarde/noite porque assistí a derrota da beleza frente a eficiência, da arte frente a guerra, do melhor frente ao aplicado. Ver Platini chorar ao final me engasga até hoje, e fez com que nascesse minha francofilia ( sim. Não foi Sartre ou Godard. Foi Platini e Ghenghini. )
A geração do cérebro Zidane, o maior jogador dos últimos 15 anos, lhes faria justiça. Seriam duas euros, uma olimpíada, duas copas das confederações e uma das mais belas vitórias em copa. ( Contestada só no Brasil, que é parte interessada. Um time com Vieira, Deschamps, Desailly, Zidane, Pires, Henry e Trezeguet não mereceu ? Na verdade a França foi prejudicada naquela copa em casa : Zidane foi expulso na primeira fase e suspenso, injustamente, por três jogos, só retornou na final. )
O que me levou a escrever este texto foi exatamente o São Paulo e Flamengo de ontem. Um lançamento banal de um jogador paulista e uma exibição normal de um velhinho europeu bastaram para mostrar a carência de cérebros que há no futebol. De alguém que pense o jogo, que encontre soluções, que faça o inesperado. Como faziam em superlativo grau os 4 mosqueteiros, como Zidane sempre fez, com frieza Descatiana, e como tantos brasileiros sempre souberam fazer ( Gerson e Rivelino eram mestres nisso. ) Aqui, Raí foi um dos últimos. O estilista, o mago, o simplificador. Naquela tarde maldita isso começou a morrer. Faríamos melhor se, como Telê fez com Crujff, aplaudìssemos Zidane e Platini, e não culpássemos os deuses, a Nike, a bola ou o acaso. Pet mostrou a elegância que o futebol deve ter. Ou então, é o tédio de super-atletas correndo e berrando até morrer. A Alemanha venceu naquele dia. Mas o mundo chorou por Platini. Justiça, enfim.

HOLANDA, 1974, SONHO E DECEPÇÃO

Como dizia Nelson Rodrigues, "meninos, eu ví ! " Holanda 3x0 Uruguai. Não era o uruguaizinho de hoje, era o Uruguai de Forlan e Pedro Rocha. Após o jogo, Rocha disse que durante todo o primeiro tempo ele não vira a bola. A celeste não passara uma só vez de seu meio campo.
Era a copa da Alemanha, 1974, e a equipe sul-americana fora pega de surpresa porque era um tempo em que ainda poderiam ocorrer surpresas no futebol. ( Não falo de zebras. Zebra é quando o fraco vence o forte. Surpresa é quando algo totalmente surpreendente acontece. Independe de sorte, é puro talento. ) A surpresa era possível porque a tv não podia exibir TUDO o que acontecia no futebol. Conhecia-se um ou dois jogadores europeus durante o ano, e era só na copa do mundo que se podia ver quem era quem. Assim, um técnico tinha a chance de montar um time realmente surpreendente, e pegar o adversário com as calças na mão. Foi o que aconteceu com o Uruguai. Apesar do Ajax ser tri-campeão do mundo ( vencendo os sul-americanos na casa deles. O formato antigo era muito dramático : o campeão europeu tinha de jogar a final na Bombonera ou no Centenário, e o latino tinha de ir a Milão ou Madrid. ) O Feyenord também fora campeão em 1970, mas ninguém espionava nada. Brasileiros, argentinos e uruguaios se achavam os melhores. A Holanda trucidou os três.
Holanda 4x0 Argentina. Foi, junto com a França jogando contra a Alemanha em 1982 e o Brasil contra a Argentina também em 82, a maior exibição de um time que já vi. Com uma diferença : aquilo era realmente novo. Foi a última vez que o futebol evoluiu. Telê Santana e Claudio Coutinho caíram estarrecidos na época. Os tempos mudavam, mas os conservadores acabariam por vencer. O que era esse time ?
Simples. O gênio chamado Rinus Mitchel, maior técnico do esporte, pegou a molecada da perifa de Amsterdã e montou um time : o futuro Ajax imbatível. Moldou uma tática à eles : a pelada organizada, o tal do "futebol total ", todos jogando em todas as posições, todos marcando gols e marcando o adversário, todos tendo a habilidade de jogar como centro-avante e líbero. Deu certo. Deu certo porque aquela geração tinha muito talento, muita técnica e três gênios de elevadíssimo QI : Neeskens, Van Hannigan e Johnan Crujff, este, o mais talentoso jogador que vi jogar. Quando o Uruguai, e depois a Argentina, viram a bola rolar, cinco ( cinco !!!!! ) jogadores se atiravam sobre quem estivesse com a bola, a roubavam, e em vez de lançar a bola ao atacante, tocavam ao "zagueiro" que avançava com ela e tocava ao "volante" que fazia o gol. Tudo de primeira. Mas quem era zagueiro ? Rudi Krol ? ( Após tanto tempo eu lembro todos os nomes ), Suurvier ? Van der Kerkoff ? Quem era volante ? Neeskens ? E atacantes ? Johnny Rep ? Resenbrinck ? Não foi Crujff que marcou Rivelino ? Mas principalmente, porque esse time se tornou a estrela no céu dos fãs de Bowie, Che e Kubrick ?
Simples saber. Eles tinham uma atitude de "não estou nem aí ". Passavam a impressão de jogar brincando, rindo, e de que, de uma hora para outra, poderiam abandonar a partida se ela não lhes desse prazer. Mas havia mais. Eles transavam na véspera do jogo. Na concentração, esposas e namoradas podiam dormir com seus amores. Eles podiam fumar, podiam sair quando quisessem, podiam falar. Eram livres, e seu futebol era espelho disso. Era Dionísio no futebol.
Então entravam em campo. Cabelos longos e desgrenhados, camisas fora do calção, conversando, falando piadas, rindo. E jogavam. Corriam muito, tocavam rápido, e driblavam. Tudo feito com simplicidade, com prazer, com leveza. Foi a última evolução técnica no esporte.
Os técnicos do resto do planeta logo os copiaram. O Barcelona, com Mitchels e Crujff foi quase igual. Mas o Barcelona não tinha o QI dos jovens holandeses. Pois para jogar daquele modo era preciso inteligência, amizade, alegria, ter crescido junto, criado junto. Os outros times adotaram a superfície do estilo : a linha de impedimento, o atacante que também deve marcar, o toque rápido, o carrinho na bola e zagueiros que atacam. Mas era diferente, não era natural, era uma obrigação. O futebol que hoje você assiste, menino, é neto dessa Holanda. O melhor Manchester, o Barça e o Real que vocês viram eram rascunhos pobres dessa equipe e o São Paulo do Telê ( que exibia jogos de Crujff para seus talentos ) foi uma bela tentativa. ( Assim como o Flamengo de Claudio Coutinho e de Carpeggiani ).
O futebol evolui sempre, claro. A ciência do esporte evolui. Correr mais e ser mais forte. As táticas e o modo de jogar é o mesmo desde 1974. A Holanda era um 3/5/2, que se tornava 6/3/1 e metamorfoseava-se em 1/3/6. A Alemanha, que venceu, jogava como jogam os times de Muricy e de 90 % dos times. Jogava defendendo bem e contra-atacando com força. Venceram e não foi injusto, se mataram em campo na final, tinham de vencer, e a Holanda foi vítima de seu único ponto vulnerável : a vaidade. Amoleceram ao fazer 1x0 com três minutos de jogo, perderam gols e interesse e quando acordaram já era tarde. Um time que tinha Beckenbauer, Breitner, Gerd Muller e Sepp Maier não pode ser zebra. Foi a vitória de Apolo. A Alemanha jogava com clareza, objetividade, eficiencia. Com o talento de Franz e Paul, e os gols de Gerd.
Falta falar de Holanda 2x0 Brasil. Foi um jogo feio. O Brasil bateu muito. Poderia ter sido 5x0 para os holandeses. Poderia ter sido 1x0 para o Brasil. ( O Brasil jogou melhor os dez minutos iniciais. A Holanda observou o Brasil de Rivelino, Luis Pereira, Carpegiani, Marinho Peres e Jairzinho no início. Então começou a jogar. ) Para o Brasil foi uma vergonha : jogamos feio e sujo. Telê lutaria contra essa lembrança.
Em 1988 a Holanda ganhou a eurocopa com Rinus Mitchel novamente no banco. O convenceram a sair da aposentadoria. Aquele time de Gullit, Rijkaard, Van Basten deu show, mas nada tinha da "Laranja Mecânica" de 74. Nunca mais aquele estilo, nunca mais aquele sonho. A mais poética das equipes, a mais amada pelos adversários, a mais copiada e a mais frustrante, nunca mais.
Você, jovem que tem como referência Christiano Ronaldo e Kaká, talvez entenda agora o porque de em todas as copas, os caras de cerca de 40 anos, sempre torcerem pela Holanda, e a olharem com carinho e respeito. É que em meio àqueles Davids, Bogardes, Seedorfs e que tais, jogadores tão comuns, tão como todos o são, nós temos a esperança de rever, nem que seja por cinco minutos, a festa laranja, a orgia de pernas que se confundem, o prazer da pelada. É como se fantasmas pairassem sobre o campo verde onde joga a Holanda. E nos frustramos.
Meninos eu ví. E não me esquecí.

FOREVER CHANGES- love is arthur lee

Demoro muito para escrever sobre este disco, pois temo não fazer justiça a sua beleza. É um disco cheio de segredos, de recantos úmidos, de radiante fé e de sombras tenebrosas, assustadoras. Nada nele é explícito, portanto, é incompreensível para cultores da pornografia. Ser sutil é seu maior mérito, ser obra de gênio. Arthur Lee, homem impregnado de Lewis Carrol, Poe e Shelley, bruxo leve/ voador, um pássaro.
Sua gravadora, Elektra, colocou todas as fichas neste álbum. Mas não estourou, nem poderia. Excesso de sofisticação, fineza em tempo de grossura, e acima de tudo, Lee era um negro, líder de banda branca, fazendo música nada africana. Não há swing aqui.
Antes de ouvir este disco, para quem se interessar, sugiro que primeiro procurem no youtube seu show em Glastonbury. Para vocês meninos, creio que será mais familiar assistir Lee no palco, com seu carisma fantástico, sendo aclamado pelo que sempre foi : gênio fecundador, músico hiper plagiado ( ontem, hoje e sempre. Até Madonna o roubou. ) Se você gostar do show, lindo, talvez você consiga entender o disco. Se não te emocionar, sinto por sua alma, estás definitivamente corrompido.
Primeira faixa : alone again or- é uma cascata de violões e de melodia que dão ao que virá seu caráter, música feita de água. Fluida e incorruptível. A harmonia ameaça desabar todo o tempo, mas se mantém em suspenso, à tona quase num milagre de engenho. A música, feita cachoeira, muda de rumo diversas vezes, e aqui há o maior encanto deste gênio : sua música muda a cada minuto, fica mais intrincada, complexa, mas jamais adquire peso e nunca parece pedante. O segredo de toda arte perfeita é jamais parecer difícil e sempre ser leve. A alma comunga com o universo desta canção.
a house is not a motel. Quantas vezes isto foi copiado. Quantas mais será imitado ? É a menos suave, tem um solo ácido de guitarra elétrica. Básica para a geração dos anos 80 inglesa, paira na geração inglesa de hoje como desafio etéreo. O Love foi a mais inglesa das bandas, apesar de ser da Califórnia.
andmoreagain. Alguém pensa à janela na chuva que cai e no amor que faz o coração bater arrastado. A melancolia impera, a dor vem em sedas rasgadas. Como tudo no Love, a música varia e quase afunda, mas o rumo não se perde. Isto não ter sido um hit atesta a burrice das paradas, em 67 ou em qualquer tempo.
the daily planet. A vida é urgente. Chove cristal de imaginação. Música melhor que isto ? Onde ? É brilho visual, música que aquece a alma e os ossos. É como nascer em meio a flores e sol, tudo é imperiosamente belo aqui. Uma pausa que remete a dúvida no meio da canção e então vem mais um milagre. Tudo dá certo e volta a melodia original : mas ela se enche de ácido ! Eis Lewis Carrol !!!! Sobe e desce e vai e vai e vai....... roda em cores e risos. Arthur Lee foi um anjo se anjos pudessem ser.
old man. Num bosque há uma torre mofada e lá um velho. Faço-lhe um pedido e me sinto velho como ele, ou mais. É música medieval, de sempre, é melodia para se morrer de tristeza. Mas, milagre ! ela cresce e renasce ! Violinos, este é um disco de violinos e desse piano dedilhado por mãos de gelo. Nada na música de Arthur é força. Tudo é poder.
the red telephone. Abre-se uma outra porta : cuidado ! Você vê mortos do outro lado. Mas você crê em mágica e muda de canal : olhe os olhos de Lee, o que você vê ? O que você sente ? Passos dentro de seu corpo e a vida flue dia a dia a dia... ser feliz é não saber o quanto se é infeliz... pare e veja : eu sinto você uma vez e estive em você duas... e às vezes viver é estar entre números e fora de tudo. Esta é a mais mágica das canções, ela é fora de tempo, fora de você e de mim e de mundo. Roda e roda e enlouquece e é um perigo em forma de poesia. Leve como dormir no verão.
maybe the people. A canção de estrada do disco. Talvez seja a mais simples e a mais influente. É quase feliz e chega a ser solar. Os metais guiam toda a melodia.
live and let live. Um gnomo a canta. Medieval ao extremo. Mas muda, tudo muda neste disco. Ela é na verdade um enorme ponto de interrogação. Um encontro de dois rios que vão para uma queda que dá no espaço e volta ao nascedouro. Há ira, mas existe a fonte também. Ela é uma prece e é blasfema. Agulha no ponto vital.
the good humor man. Ironia. Uma cançoneta de ironia. Elegancia profanada : Lee estraga a popicidade que ela poderia ter. A letra é alegrinha, tola, infantil e se torna ferina por tanto ser boba. Arremedos de outras possíveis melodias se vão. Ele mata sua beleza sendo mais belo do que se poderia tentar ser.
bummer in the summer. Uma homenagem a Dylan. Mas é um Dylan celta. Letra longa que se vomita, mas a melodia é tingida por música tonta, folk de sonho, acordes de poetas provençais turbinados. Dylan de erudição, Dylan à Paul MacCartney. É lindo.
you set the scene. O fim. Um hino. Você anda por onde andou e não sabe que já lá andou. É pra cantar junto se você souber cantar... ela roda.
Love. Forever. Changes. Após isto, a decadência. Arthur Lee não poderia repetir o que já fizera. Então... o nada. A geração de 1999 lhe fez justiça e lhe paga tributo até hoje e para todos os sempres. Ouvir isto é amar.

DE ANJOS E DE VERDADES

Vejo um belo filme : UM ANJO CAIU DO CÉU. Filme de natal, doce, bem feito, simples. Fala de um anjo ( Cary Grant ) que vem a terra ajudar um pastor ( David Niven ) que sofre. Esse anjo, sempre feliz, sempre calmo e sedutor, se indispõe com o tal pastor, que é incapaz de ver onde ele pode lhe ajudar. Pois o anjo, aparentemente, rouba o amor de sua esposa ( Loretta Young ) e de sua filha. ( Assim como de todos que lhe cercam ). O que ele faz para os seduzir é simplesmente os escutar. O anjo escuta o coração dos outros, faz com que eles falem o que lhes aflige, faz com que avistem seu caminho. Na verdade o anjo nada lhes dá que eles já não possuíssem. Mas o pastor, cego em ambição, não percebe nada e vê nele um simples sedutor.
O filme é apenas isso, mas há algo de profundamente comovedor nele. Principalmente no momento, terrível, em que ele vai embora. O anjo se vai, e sentimos que alguma coisa de muito especial se parte naquelas vidas. O preto e branco do filme fica mais cinzento e sua trilha sonora parece vazia. Alguma coisa de muito profunda ( sem querer ? ) é tocada.
Nos vemos naquele momento. Assumimos nossa condição de orfãos, de ignorantes, de vaidosos cegos simplórios, de egoístas. Sentimos um vazio quando ele parte, que na verdade é o vazio onde sempre estamos, feito mais forte. E para piorar as coisas, esse anjo tem a cara de Cary Grant....
Não importa se anjos existem ou não. Eu particularmente creio que jamais existiram. Mas o que interessa é sua criação, o porque de os termos criado e o motivo de os termos dispensado. ( Que é o que ocorre no filme, o pastor que o convocou o despede depois ). Me parece que existiu um momento ( existe ainda em cada um de nós ) em que devemos escolher entre o anjo e a ambição. Se tornar "adulto" e portanto jogar fora anjos, fadas, brinquedos e ingenuidades, ou abrir mão da vontade de poder, e deixar-se guiar como ovelhinha dócil continuando docemente obediente a anjos, destinos e mandamentos. Tudo bobagem !!!!
O mundo tentou se tornar livre, adulto, dono de sí mesmo. Dispensou anjos, reis, heróis e poetas. E se tornou mais adulto por ter feito isso ? Claro que não. Continua apegado a brinquedos, fadas e ingenuidades ( na forma de produtos fúteis, gurus new age e ismos vários ). Transformamos o mundo num playground sem magia, bosque artificial sem encanto.
Dissecamos todo o mistério. O que colocamos no lugar ? Nada que dure ou permaneça.
Volto a dizer, se anjos existiram e foram depois expulsos por nossa ciência, ou se jamais existiram, não é a questão. O que me toca é a idéia de não conseguirmos aceitar sua ajuda, seu exemplo, sua alegria.
Fazem alguns milhares de anos que temos em nossa mente, bem lá no fundo, um pequeno poema que citarei a seguir. Por mais que filósofos, artistas e gurus tenham tentado esquecer suas palavras elas continuam a ecoar entre o dia em que nascemos e o dia em que morremos. Pois foi o pensamento que guiou o pai do pai do pai do pai de nosso avô. Ainda é, além de toda vaidade, de todo orgulho, a imagem do conforto e da doce alegria plena :

"Deus é meu pastor e nada me faltará
Leva-me a descansar em pastagens verdes e me conduz a águas refrescantes;
Conforta minha alma, guia-me pelas sendas direitas,
Para que eu honre seu nome.
Ainda que eu caminhe pelos vales da morte
Nada temerei, porque Ele está comigo.
Vosso cajado e vossa voz são meu conforto. "

Várias centenas de anos, milhares na verdade, de anos depois, este texto, creditado ao rei David, ainda é, quando você sente dor ou medo, o mais belo consolo já escrito. Esta é a tal voz angelical, este é o caminho indicado e não imposto ( caminho de submissão ? de auto-negação ? Alguém pode me indicar alguma crença que não tenha alguma submissão ? ). Ter um pai que nos guia e conforta. Aqui se exemplifica o mais profundo desejo humano. Seja esse pai um Deus, um psicólogo, um imperador ou um filósofo. Ou, nesta era do desejo sem fim, o vendedor de drogas ou de carros importados da esquina.
Mostre-me a senda verdejante. Acalme minha dúvida. Venda-me um apartamento no condominio The Eden.....
O filme merecia ser refilmado para ser visto nos shoppings ( vocês já estão chamando os shoppings de Mall ? ). Mas provavelmente o anjo seria mais histérico, se apaixonaria pela esposa e sucumbiria aos prazeres do consumo de luxo.
A pureza só se perde uma vez, não pode ser readquirida. Eu perdí meu anjo muito cedo ( aos 9 anos ). Hoje me consolo crendo em artistas e filósofos e sendo o Senhor de meu cachorro. È... pode rir, mas estou falando sério. Pois eu o levo a vales verdejantes e nada deixo lhe faltar. E sei que comigo ele é feliz.
Pense nisso.

brilhante, feliz, exultante: TOM JONES de Richardson

Sim meus meninos. Eu espero a trinta anos para poder assistir TOM JONES, este famoso e sumido filme de 1963, que venceu, mesmo sendo 100% inglês, os principais Oscars daquele ano ( filme, direção e roteiro ). Albert Finney infelizmente perdeu para Sidney Poitier, mas depois eu falo disso.
Você sabe que quando a gente espera tanto tempo por alguma coisa a chance de se decepcionar é enorme. Mas hoje tal coisa não aconteceu. Finalmente saiu o dvd e finalmente pude ver o tal filme. A única tristeza foi a de não ser uma versão restaurada. Mas vale!!!
Nesse tempo todo eu pude ler o livro de Henry Fielding. É de 1749 e é um dos livros chave do nascimento do romance moderno. Pois o romance precisou ser inventado, não pense que o homem sempre fez romances. Livro era coisa para religião, história, filosofia e poesia. Talvez DOM QUIXOTE já fosse um romance, mas isso é discutível. De qualquer modo, o livro é aquela coisa típica de seu tempo. É livre, picaresco, sensual, muito fantasioso, e crítico. Delicioso. E infilmável por sua abrangência.
Tony Richardson resolveu tentar. Ele era um jovem diretor da moda, no auge da fama, na Londres em seu último apogeu. Deixe eu dizer : deve ter sido super ter 20 anos na Londres de 63. Sabe como é... Beatles, Stones, Kinks, Who, Yardbirds, Them, Pretty Things, Small Faces, Mayall, Spencer Davis. As minissaias, Carnaby Street. Você tinha o melhor teatro do mundo, a melhor poesia, os pintores mais quentes, e os romancistas mais interessantes. Tudo estava em Londres!!!! E ainda ganharia a copa do mundo de futebol em 66 ! E no cinema você tinha acabado de criar o mais famoso herói do mundo ( Bond ), possuía os melhores atores e agora ( chorem franceses ! ) tinha diretores como Anderson, Reisz, Schlesinger e Boorman. E este Richardson, este jovem irado, que chamou então John Osborne para escrever o roteiro. Pra quem não sabe, Osborne era ao lado de Pinter, o grande nome do novo teatro. O roteiro deste filme é a tradução, moderna e bem-humorada, da Inglaterra de 1749, e da Grã-Bretanha de 63, a ilha que ainda tinha Jim Clark e George Best. ( Um escocês e um irlandês. Mas faziam parte da cena ).
O filme é uma ode à juventude. Ele brilha em exuberância, em alegria de viver. É profunda e absolutamente feliz. Seria impossível de ser feito hoje; tanta alegria ingênua nos ofende.
Há uma famosa cena de caçada que realmente merece toda sua fama. Nos sentimos dentro da caça e percebemos que os atores realmente se divertem com ela. Aliás, Richardson joga tudo para nos divertir. O filme tem uma profusão de cenas de brigas, duelos, namoros eróticos, correrias, fugas e bebedeiras. A câmera, às vezes trêmula, usada na mão ( achaste que fosse invenção recente ? ), às vezes voando em avião, outras correndo em trilho, em closes, em panorâmicas. Certas imagens são congeladas, e em outras os atores falam conosco. E tem uma maravilhosa cena em que Tom e uma mulher comem à mesa se seduzindo, porca e desajeitadamente, que vale seu Oscar. Aliás, esqueça os bonitinhos filmes de época, geralmente feitos com Kate Winslet ou Keira Knightley. Este filme se aproxima do que deve ter sido a vida em 1749. Ele é sujo, exagerado, desajeitado, obcecado por sexo e deliciosamente despudorado.
Tom é Albert Finney, ator da brilhante geração de Peter O'Toole, Terence Stamp, Sean Connery, Michael Caine, John Hurt, Alan Bates e Peter Finch. Formado na tradição teatral britânica ( muito jovem o ator já enfrentou de Shakespeare a Shaw, de Wilde a Beckett ), Finney passa uma coisa muito difícil para quem já tentou atuar : felicidade de se estar atuando. Ele flutua em cenas burlescas, passa todo o filme sendo chamado de "belo" e comendo todas as mulheres, mas nunca o vemos como vaidoso ou maldoso, Finney cria um personagem que é feito de jovialidade, alegria e fé em sí mesmo. Representa a jovem Inglaterra, ainda virgem do cinismo enfadonho de 1880.
Você, jovem imberbe, deve conhecer Finney do filme que deu o Oscar a Julia Roberts. Ele era o advogado que a ajuda. Esteve no policial de Lumet, aquele do ano passado. Fez o tio boa-vida de Russel Crowe no ruim filme de Ridley Scott. E principalmente : Albert Finney foi o pai, que nada mais é que um Tom Jones ancião, no Peixe Grande de Tim Burton. ( E agora eu percebo que Burton o chamou como homenagem a seu Tom. )
Mas o filme tem mais. Hugh Griffith como o chacareiro vizinho, sempre às voltas com suas caçadas, seus bichos e seus palavrões; tem a histórica Edith Evans, aquela que Olivier considerava a maior atriz da história, com cenas e frases de uma comicidade irresistível. Ninguém, jamais, pronunciou a língua inglesa como ela. Sua presença é solar. Mas há ainda Susannah York, a linda Susannah, atriz com quem eu queria casar aos 12 anos. Ela é tudo o que imaginamos que deva ser uma heroína de romance.
E então, após um milhão de voltas, de idas e de outras idas, o filme termina como deve terminar. E eu penso, após três décadas de espera, que se eu tivesse visto o filme aos 12 anos, ele teria sido meu filme favorito por muito tempo.
O que me resta é agradecer ao inventor do dvd.
Se você for assistir este filme já lhe aviso : não é arte. Guarde a arte para os artistas. É um filme para se divertir, para se admirar, para sorrir. Para gostar dele é preciso apenas uma coisa : um espírito leve e jovial. Eis um filme que se fosse gente eu chamaria de amigo. Prazer o conhecer.

STERNBERG/STAGE DOOR/ALTMAN/BETTE DAVIS

MOLIERE de Laurent Tirard com Romain Duris, Fabrice Luchini, Laura Morante e Ludivine Sagnier
Houve tempo em que filmes europeus eram lançados toda semana no Brasil. Romy Schneider era mais famosa que Jane Fonda e Catherine Deneuve que Barbra Streisand. Mais que Jack Nicholson, Dustin Hoffman ou Clint Eastwood, as pessoas amavam Yves Montand, Jean-Paul Belmondo, e principamente Mastroianni. Alain Delon era tão famoso quanto é hoje Brad Pitt ( Delon era mais bonito ) e o mais amado diretor era Fellini. Nos anos 80, com os filmes tipo Rambo/ Robocop/ Duro de Matar, a América se tornou a única fornecedora de filmes pop. Rompeu-se a ligação, e hoje, estrelas européias com menos de 40 anos... quem ?
Romain Duris é o maior ator/estrela da França hoje, e penso que muito pouca gente o conhece fora de seu país. Ele faz Moliere neste filme, e o faz muito bem. Seu Moliere é o Moliere que imaginamos, se parece com alguém que escreve, atua e possui gênio. O filme, belo e alegre, é delicioso. Mas é esse estupendo Fabrice Luchini, diabólicamente engraçado, fazendo um nobre cornudo com raro talento, que nos impressiona. Torcemos para mais cenas com ele, são hilárias. O filme é cheio de frases elegantes ( tem ótimos diálogos ) e se passa em palácios suntuosos ( que nos fazem ter consciência da triste condição de nossa arquitetura ), o filme é um prazer para a vista. Na França ainda se fazem filmes para o povão em que não há um só tiro, nada é digital e nada se passa num mundo de sonhos. São bons atores, bons diálogos e uma boa história. Aliás, às vezes é um alívio ver atores europeus : você já notou que eles têm rosto de "gente" ? Nota 7.
NAKED CITY de Jules Dassin
Um narrador conta o que vamos ver : um dia na vida de Nova Iorque. As imagens das ruas e dos bares, metrô, barbearias são sensacionais. Na verdade o filme é quase um documentário. Depois vem uma boa trama policial, toda filmada em locais autênticos. São as lições do Neo-realismo colocadas em prática por esse excelente Jules Dassin. O filme é elétrico, rápido, viril, magistral. nota 8.
O RETRATO DE DORIAN GRAY de Albert Lewin com George Sanders, Donna Reed, Angela Lansbury e Hurd Hatfield
O doido diretor do maravilhoso PANDORA, filmou antes este hiper enfeitado Dorian Gray. È irritante ver Sanders vomitar epigramas de Wilde colocados a torto e a direito na história. O filme é enjoativo como glacê branco. nota 3.
A GUERRA DO FOGO de Jean-Jacques Annaud
Após ganhar o Oscar em seu filme de estréia, Annaud passou anos para conseguir fazer este filme. Usando o trabalho do autor de Laranja Mecânica ( Anthony Burgess ) que criou uma língua ancestral, Annaud filma uma aventura passada no início da nossa história, no nascimento da civilização como a conhecemos, na hora da descoberta e da valorização do fogo. O filme é bela aventura, bastante plausível, sério, e com tema tão difícil, consegue se sair muito bem. Mas é isento da poesia maravilhosa que 2001 tem em seu início. Os temas dos dois filmes são complementares, mas Kubrick fez coisa de gênio e Annaud é bom diretor, não um criador original. Mas este filme é ok. nota 7.
PEFÍDIA de William Wyler com Bette Davis e Herbert Marshall.
Baseado em peça de Lilian Hellman, o filme foi feito no tempo em que Lilian era a heroína da esquerda americana. O filme nos mostra como os ricos são maus e não se cansa de acumular maldade sobre maldade. Wyler, um dos gigantes, dirige tão bem que nem tomamos consciência de seu trabalho. Não há um só erro, uma só tomada a mais, uma cena longa demais ou feita às pressas. Wyler trabalha para nosso prazer e para o brilho de texto e atores. Ambos brilham. Bette dá seu show costumeiro. Ela exala maldade. Você é hipnotizado. nota 8.
A IMPERATRIZ VERMELHA de Joseph Von Sternberg com Marlene Dietrich
Entre 1930/1937, Sternberg fez uma série de filmes com sua musa, Dietrich, e a transformou em super-estrela, rival mais quente de Garbo. Marlene foi crescendo filme a filme, e quando os dois se separaram Sternberg se apagou. Os filmes são todos parecidos : lugar exótico, cenários imensos e barrocos, insinuações fortes de sexo anormal e closes e mais closes de Marlene hiper-glamurosa ( Madonna copia esses closes até hoje ). Este é o pior dos que ví. Sternberg enlouquece e perde o senso do ridículo. Nesta história passada na Rússia de Catarina, o palácio é uma gororoba de caveiras e monstrengos, Marlene dorme com metade do exército e os diálogos são risíveis. É exemplo de cafonice chique, de pesadelo gótico. nota 2.
STAGE DOOR de Gregory La Cava com Kate Hephurn, Ginger Rogers e Lucille Ball.
Comédia dos nos 30 é assim : diálogos apimentados que jogam ironia sobre ironia e nos fazem sentir mais espertos se os entendemos e mais sofisticados se os citarmos. São tão bem escritos que continuam, mais de setenta anos depois, a ser o modelo de tudo o que é cosmopolita, fino e elegante. Aqui vemos uma pensão onde vivem aspirantes a atriz. Ginger é a mais cínica e a líder do grupo, Kate é a bem nascida que quer brincar de ser atriz. Ou seja, Kate e Ginger fazem elas mesmas. Kate está linda. É fantástico como ela, que não era bonita, parece a mais bela das atrizes em vários filmes. Isto é diversão inteligente, atemporal, que só não é genial porque tem duas cenas de drama sério que desandam com o ritmo esperto. nota 8.
SILLY SYMPHONIES
Comentei esta coletânea abaixo, em texto próprio. A nota é DEZ !!!!!!
BASQUIAT de Julian Schnabel com Jeffrey Wright, David Bowie, Gary Oldman e Benicio del Toro
Julian foi artista plástico nos anos 80. Amigo de Basquiat. O filme é mensagem carinhosa e saudosa ao amigo morto. A trilha sonora é cheia de canções fantásticas ( Cale cantando Cohen é de matar ). Triste, pesado, tortuoso, funciona a perfeição, por fazer aquilo que Kael reclamava em outros filmes : fala de um artista tortuoso de forma tortuosa. Como o filme de Dylan, que fala de um artista multi-facetado em filme multi-facetado. Kael falava ( mal ) de "Sociedade dos poetas Mortos", filme que era contra a repressão, mas que fora filmado como o mais conservador dos dramalhões. Assim como ruim é RAY, filme que fala de um cantor que era puro calor, sensualidade e feeling, mas que teve como bio um filme que é frio, pudico e calculado. Basquiat é um filme perdido, desencantado e incompleto... como seu personagem foi. nota 8.
ASSASSINATO EM GOSFORD PARK de Robert Altman com Maggie Smith, Helen Mirren, Clive Owen, Emily Watson
A única pessoa no mundo que poderia ter feito este filme é Altman. O fato de ele não se perder e conseguir fazer fluir uma tão vasta galeria de rostos, vozes e sentimentos, atesta, mais uma vez, sua genialidade. Ele era mestre em "colcha de retalhos", em sinfonia de atores, em modernidade anárquica-total. Este jamais brilha como SHORT CUTS ( afinal, Cuts É o maior filme dos últimos vinte anos ), mas é filme de mestre. Um micro exemplo, da mais ampla ressonância, de tudo que há de mesquinho e torpe nas relações de classe. Gol de placa. nota 9.
SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO de Hitchcock com Ingrid Bergman e Joseph Cotten
Que bela era Ingrid ! E que desamparo ela passa ! Mas este filme, o único Hitch feito na América que eu nunca vira, foi feito sob as ordens de Selznick, não é puro A.H. Melodrama gótico, foi adorado pela crítica francesa e odiado pela americana. É um filme muito esquisito...nota 5.

JEaN miChEL BAsquIAt- julian schnabel

O começo. Uma onda do Hawaii atrás dos prédios de NY. É 1980. O último momento em que o mundo brilhou sem vergonha, sem noção, sem medo do ridículo. É o som, soberbo, do PIL tocando Public Image. Um tempo em que o globo ainda poderia perigar e em que os ratos de Wall Street tinham algum medo. O filme começa e é uma bio para ensinar aquilo que toda bio deveria saber : queremos a tentativa de se mostrar o artista criando. Não quero ver quem ele comeu ou o que ele fez, quero a agonia de sua criação, a alegria de seu parto, o nascimento diário de sua vida. Este filme é triste pacas, porque aquele foi um tempo de profunda tristeza. A gente sabia, intuia, que era a última chance, que a revolução anterior fora alegre e ingênua e que esta, 1981, era desesperada e cínica. Tão cínica que seu cinismo sujou o mundo e o deixou cínico para sempre. Mas ..... hoje... Eu quero esquecer...
Esquecer os anos 81/88 e esquecer que um dia eu pintei camisetas, eu e DiPierre. Que eu peguei uma camiseta com a foto de Keith e escrevi em vermelho sangue "hell"... queria esquecer que eu e Frank Chico andávamos de sobretudo, bêbados, e vomitávamos enquanto cantávamos poemas sem rima que não tinham o menor valor. Quero esquecer os péssimos vídeos de arte que fiz, onde Eliana L era amarrada em arame e uma tv era destruída com tinta branca. Quero nunca mais ouvir Tom Waits e John Cale e esquecer que eu vivi num tempo em que Miles Davis e Andy Warhol estavam vivos.
Mas eu lembro do dia em que Miles morreu. Eu estava na garagem da casa em que morava, onde todas as paredes tinham palmeiras e peixes rabiscados e onde tudo cheirava a tinta. Naquela noite, Miles morto, escreví para ele algo sobre tigres e deuses. Eu queria que ele nunca morresse. Como quando Andy se foi e eu queria que ele fosse/é o último a rir : ele adivinhou e criou nosso mundo. Andy sabia que se você ficar algum tempo em exposição numa tela, mesmo que fazendo nada, as pessoas tenderão a te considerar uma estrela. Andy sabia de tudo.
Jeffrey Wright está sublime. Benicio está lá, e tem Bowie como Andy e onde Bowie está Andy sempre estará. Schnabel foi amigo de Basquiat. Será ele um diretor central de hoje ? Julian é.
Mas quero esquecer a voz de John Cale cantando Hallelujah. Esquecer o suicídio lento e sujo de uma geração brilhante. Esquecer a música pop de NY que era irmã incestuosa do mundo das artes plásticas onde bandas e pintores e fotógrafos e cineastas e escultores viviam no mesmo barco e comiam-se uns aos outros. Não vou e não posso lembrar de Julio que se caiu de um andar e se espatifou. Dele na tv, a gente amava tanto a tv e as câmeras de vídeo, tv era chic e vídeo era arte, dele na tv insultando os ratos e falando de Cocteau e Rimbaud. Não.
Este filme é um coquetel deprimente de sujeira e de pintura colorida e de sexo sem companheirismo e de vida ansiosa. A gente errou em tudo, mas pelo menos tentamos acertar. Pior é não tentar e mesmo assim errar.
Tinha de ter aids.
81/88 de porões transformados em galerias e de galerias que eram puteiros. O filme é uma porcaria pretensiosa. O filme é 81/88. Em 1988 voltou essa merda hippie e voltou Seattle e voltou Manchester e essa saudade de 67... shit !!!!!! 81/88 era a saudade do futuro, de Pollock, de Van Gogh, de Dadá, de Duchamp. 81/88 é futuro.
Este filme é uma bosta.
Este escrito é uma merda.
E Basquiat vê imagens de Andy numa tv velha e derrama uma lágrima. E eu vejo Wright que é Basquiat ver Bowie que é Andy e derramo um suspiro. Os filmes de Schnabel são tristes demais.
Consigo esquecer essa época. O mundo tenta esquecer essa época. Você nasceu nessa época. Este apodrecido e limpo universo nasceu nessa época. Uma brilhante geração de olhos arregalados e nariz com sangue. Que ao vestir uma camiseta precisava colocar algo de diferente para realçar. Geração pavão. Cometas de rabos brancos cheios de brilho efêmero. Abismos de glamour amoroso.
Este escrito é para aqueles que tentaram e erraram. Todos vocês, Oh you pretty things...