MY FAIR LADY - ELEGÂNCIA E PARAÍSO

Primeiro são as flores. Closes de flores em variadas formas e cores. Durante um minuto e meio é tudo o que vemos : flores. Estão jogadas as cartas : o filme trata de estética, a estética da visão e a estética da língua. Mas é também a estética do amor e do cinema em sí. Vêm os créditos do filme : Jack Warner produziu pessoalmente, o que significa muito. Audrey Hepburn significa perfeição. Audrey fez algum filme ruim ? Rex Harrison, que Paulo Francis tanto amava, significa civilidade em grau absoluto. A Warner queria Cary Grant, mas foi o próprio Cary, com sua elegância de sempre, quem disse ser um crime tirar Rex do filme. Rex Harrison era o professor Higgins da Broadway, e ele é Higgins. Temos ainda Stanley Holloway, que significa humor em alto grau e Wilfrid Hyde-White, que é simpatia suprema. Mas há mais. Hermes Pan cuidou da coreografia, e apesar de não haver dança propriamente, todos se movem com graça e leveza. Harry Stradling fotografou, esse mestre dos diretores de fotografia, e há no filme um brilho colorido que remete a conforto e solidez. Mas vem mais : Alan Jay Lerner escreveu o roteiro e fez as letras, adaptando Bernard Shaw. Foi este filme que me ensinou que em musicais as músicas não são "pausas", elas são o centro da obra, são elas que revelam a alma do personagem. Este filme tem as melhores letras, diálogos deliciosos e uma leveza de sonho. As melodias são de Frederick Lowe e os arranjos de André Previn. Todas as músicas desta obra são perfeitas. Todas são inesquecíveis, ele é o musical para quem não gosta de musical. Se após My Fair Lady voce continuar a detestar musiciais, bem... seu caso é perdido. Cecil Beaton cuidou do visual geral. Beaton foi o Oscar Wilde dos fotógrafos, o luxo dos luxos, o nome chave do esteticismo, o dandy supremo. O que mais este filme pode ter ? George Cukor na direção, o que quer dizer gosto e tato. Após tantos diamantes, eis que ele começa.
Um cenário que é Londres, talvez em 1910. Cenário que foi feito de verdade, com suas colunas, pedras e ruas. Vemos roupas elegantes, cartolas, calhambeques, carruagens, jóias, rostos asseados. É a tal era vitoriana. Estamos no mundo da elegancia e dos bons modos. Chove então, e se abrem guarda-chuvas. Observe, nada de importante aconteceu, mas seu senso estético já está desperto. Surge Audrey, suja e com voz deplorável. Ela é uma florista de rua. Com a fala das ruas de Londres. Surgem Higgins e Pickering ( nomes adoráveis ). Um é linguista, o outro é um coronel culto. Higgins diz que a língua é tudo, e o filme é ode de amor à língua inglesa. E vem a primeira canção.
Paulo Francis em belo artigo dizia que Rex Harrison, em Londres, colocou a audiência abaixo na estréia teatral de MY FAIR LADY quando abriu a boca para cantar. Rex era péssimo cantor, então criou um tipo de "fala cantante" que é simplesmente genial. E dificílima de ser imitada. Nesta primeira canção ele fala da língua inglesa. A letra de Lerner é coisa de gênio. Rimas e ritmo, tudo flui, apesar da complexidade das palavras. Estamos capturados : o filme triunfa.
Eliza Doolittle é Audrey. O mundo queria que fosse Julie Andrews, a estrela da versão teatral. A Warner, sem Cary Grant, dessa vez bateu pé : precisamos de uma estrela das telas : Audrey. Pois Audrey está como sempre : adorávelmente adorável. Na rua ela canta sobre a alegria que seria ter uma poltrona macia e um chocolate quente. Nos ajoelhamos. Que música linda ! Ela nos transmite uma beleza que chega a doer, a beleza da esperança. O filme cresce muito. O que já era excelente fica ainda melhor.
Uma cena de poesia suprema é aquela em que amanhece nas ruas de Londres. A cidade de Dickens e de Thackeray nunca foi tão bela. Eis o pai de Eliza, um malandro bêbado chamado Alfred Doolittle. Criação genial de Holloway. Ele canta na rua, unido aos pobres maltrapilhos. Fala de sorte, de futuro. Sorrimos. O filme é de uma alegria encantadora. O mundo de MY FAIR LADY é um tipo de paraíso estético. Entramos então no santuário de Higgins, sua casa.
Um esbanjamento. Observe as janelas. Vidros azuis e amarelos, desenhos em cristal fino. Veja o imenso tapete persa no chão. As maçanetas de cobre polido, as luminárias belgas. Madeiras que cheiram a verniz em todo canto e imensos sofás de couro. O banheiro com seus azulejos pintados um por um, à mão. O padrão do papel de parede. É o ambiente de luxo masculino vitoriano. Ambiente que pede charutos, um Porto, um volume de Conrad. Não queremos sair de lá. Rex e Wilfrid moram alí. São dignos daquilo tudo. Mas a "mulher" surge e a paz se vai.
Antes de Eliza irromper na casa como sujo furacão, Higgins canta. O hino supremo dos solteiros. Jamais ouvi tantos bons argumentos sobre a vida de solteiro. Obra-prima masculina. O filme sobe ainda mais : ele é também sobre a guerra dos sexos. Me surpreendo : letras de canções podem ser tão ricas ? Alan Jay Lerner é um gênio !
Pois bem. Os dois amigos apostam. Higgins fará de Eliza uma Lady. Em seis meses. A levará a festa da embaixada, onde todos serão enganados. Estará provado que voce é o modo como fala. Higgins passa a ensinar Eliza a falar corretamente. Eliza sofre, se submete, e de súbito, no momento mais feliz de um filme cheio de momentos felizes, ela acerta : the rain in Spain... Os três dançam. A música é sublime. Um dos maiores momentos da história da sétima arte : Rex, Audrey e Wilfrid cantando e pulando. A vida pode ser perfeita. Mas o amor complica tudo....
Ela se apaixona. E canta a canção mais conhecida do filme. Impossível saber qual a melhor. Não há uma que não seja perfeita. As letras sempre são fascinantes e a melodia inesquecível. A peça/filme é momento único. Vem então a primeira prova de Eliza : as corridas em Ascott.
Essa cena em Ascott é das coisas mais belas já filmadas. E artificiais. Um desfile afetado de roupas elegantes, mulheres em fantasias divinas onde Audrey/Eliza entra como fada. O diálogo que ela trava com os lords e ladys é comédia perfeita. E o final da cena é soberbo. O filme, que se iniciara lindo continua em seu crescendo. Ele sobe todo o tempo.
Vem então o baile. Nessa cena o filme se arrisca. Não ouvimos nada do que se diz. Ficamos como distantes espectadores. Danças, poses, silêncios, exibicionismos. Eliza triunfa ! O filme se aquieta em planície alta. Cessa seu crescimento. Em duas horas de incessante êxtase ele interrompe-se. MY FAIR LADY. agora, é drama.
O filme fala então de tragédia séria : Eliza adquiriu cultura, mas o que fazer com ela ? Seu passeio pela praça onde trabalhava antes é dramático. Não faz mais parte daquilo, mas faz parte do quê ? Ela é uma Lady, mas não nasceu Lady e não tem dinheiro. Reencontra o pai, que em frenética cena de pub celebra sua despedida de solteiro. O filme continua maravilhoso, mas agora ele é doído. Higgins é incapaz de entender Eliza. Ele é masculinidade pura. Ela é só feminilidade. Não se tocam.
Mas um precisa do outro. Rex Harrison se supera em cena onde ele confessa ter se acostumado com sua presença. Sem ela a casa é vazia. Mas Eliza o repele. Ela foi pisada demais. Rex volta para casa só. E vem o final, que é de uma falta de romantismo chocante, mas que é puro Bernard Shaw. Após três horas de projeção o que queremos é mais. Pena ter acabado...
MY FAIR LADY ganhou oito Oscars em 1964. Cukor, Rex, Warner... todos levaram seus prêmios. Menos Audrey, que nem indicada foi ( injustiça. Ela está sublime. ) Foi imenso sucesso ( o que depõe a favor dos frequentadores de cinema da época. ) Foi o filme que me fez entender musicais. O assisto todo ano desde então, sempre próximo ao Natal. Ele é um presente que me dou. A alegria de rever MY FAIR LADY é a mesma de reencontrar uma festa querida. Brilhos e cores amadas, vozes amigas, canções de sonho. Nenhum filme me é mais "precioso". MY FAIR LADY é como jóia de família, foto de infância, coração de amigo : não tem preço. Ele dignifica o cinema popular, enobrece a profissão de ator, faz de uma sala um salão. É ouro puro.
MY FAIR LADY é soberbo !!!!!

SHAKESPEARE AND COMPANY - SYLVIA BEACH

A foto da capa já é uma delícia : Miss Beach rí, enquanto George Antheil entra em seu quarto pela janela. O livro vai nesse clima.
Sylvia Beach nasceu no fim do século XIX. Sua tia conheceu Whitman e guardou alguns manuscritos que Walt ia jogar no lixo. A família dela sempre foi importante, aquele tipo de família sangue-azul americana, da região que vai da Philadelphia à Rhode Island. Mas Sylvia logo se mostrou diferente e vai para Paris. Lá conhece Adrienne Monier, francesa dona de livraria, e resolve fundar uma livraria especializada em livros em inglês. Nasce a Shakespeare and Company. Livraria que vende, mas que também empresta livros. Os associados pagam uma taxa e podem pegar livros a vontade. Logo Sylvia se vê no centro da vida intelectual daquele tempo, os anos 15/35, em Paris, na margem esquerda do Sena, no centro do modernismo.
O texto é simples, leve e agradável. Ela vai falando de seus amigos, de suas vitórias, de seus hábitos. James Joyce ocupa mais da metade do livro. Apesar dela ser homossexual, Joyce é uma paixão gigantesca na vida de Sylvia. Por ele, ela se aventura em editar Ulysses, único livro que a Shakespeare editou, por ele, ela se endivida. Joyce é um enigma. Como acontece na bio de Ellman, ao terminarmos de ler este livro, somos incapazes de decidir se o irlandês foi um santo ou um crápula. Gênio com certeza. E de magnetismo irresistível.
Mas há mais. Há DH Lawrence, Gide, o amigo fiel Heminguay, Dos Passos, Erik Satie e suas manias, há Huxley, Maurois, Gershwin, Valéry, Cummings, Pound, Eliot, o esbanjador Fitzgerald. A melhor história é do músico de vanguarda americano Antheil. Ele morava no sótão da livraria e quando esquecia as chaves realmente entrava pela janela. Convidou os amigos para a estréia de sua nova obra, o Ballet Méchanique. A obra consistia de uma pianola programada tocando uma melodia sendo esmurrada pelo pianista, e em meio a tudo, uma hélice de avião fazendo perucas e chapéus da audiência voarem ( e ensurdecendo a galeria ). O que aconteceu nessa prémiere ? Ninguém ouviu a obra : do primeiro minuto ao seu final, o que se ouviu foram xingamentos, aplausos, vaias, murros, assovios e "vivas". O absoluto caos. ( Recordei de um texto- qual ? - que dizia que estamos perdendo o dom da emoção. O que nos faria hoje reagir assim ? O futebol ? ).
A livraria seria fechada por Beach em 1944, quando um oficial alemão, fã de Joyce, ameaçou confiscar tudo dele que lá havia. Antes que ele voltasse para cumprir a ameaça, Sylvia esconde todo o acervo e fecha. Passaria seis meses em campo de prisioneiros. Seus relatos da resistência são belíssimos.
Hoje, em Paris, existe uma Shakespeare and Company. No filme em que Ethan Hawke autografa livros ( qual o nome mesmo ? É com Julie Delpy... ) é lá que ele está. Mas não é a livraria de Sylvia Beach. Depois que ela fechou, um americano esperto abriu uma nova SeC em outro endereço. E eu que pensei que fosse a mesma...
Se voce ama livros vai gostar de ler este. Se voce ama a década de vinte, vai gostar de ler este. E se voce ama a vida, vai gostar de ler este.
Boa leitura.

PETER PAN FALA COM JAMES BARRIE

Quantos dedais foram dados ? E quantas avelãs em troca ? Dedais e avelãs não podem saciar a fome de beijos. Peter Pan com mais de quarenta nunca dá certo.
Ironia é. Na Terra do Nunca tudo tem de ser para sempre. Principalmente brincar. E se você disse pra mim, um dia, "Eu te amo", esse "Eu te amo" tem de ser para sempre.
Peter Pan com quarenta idos vê os amigos envelhecerem. E se recolhe com dor : Onde a loucura deste ? Cadê a coragem deste outro ? Melhor seria não os ver nunca mais.
Quantas Sininhos surgiram ? Voando, tão leves, ao redor do seu rosto e capturando seu coração incapturável ? E todas elas, em tarde de horror, transformaram-se em Wendys. Aquela que voava e espalhava brilho, tarde, cobrou os seus dedais.
Patético Peter. Você espera o que neste parque onde vive ? -" Eu nada espero. Não espero. Quero que nada mude, sempre."
Mas existe um tic tac, e existe um Gancho ( existia ).
Peter, Gancho morreu ! O crocodilo partiu e surpresa : o relógio correu.
Com mais de quarenta, voar ainda ? Não há mais contra quem lutar...
As Sininhos ainda lhe procuram. Elas surgem com seu brilho de pó e seus sorrisos de fadice. E como vocês riem ! Viver pode ser uma grande amizade, e vocês são amigos de tudo da vida.
Mas hoje você sabe, Sininho será Wendy e Wendy quer uma casa de tijolos, ela não pode viver no bosque dos Garotos Perdidos. Ela envelhece, Peter Perdido.
Sua vida foi gasta com Sininhos e suas palhaçadas, com Wendys e seus dedais.
E tudo o que você queria era voar.
Voou Peter ? Tanto quanto podia ? -"Eu voei e vôo ainda !"
Seu rosto Peter, está pesado, seu riso, tem algo de Gancho nele... você pode ouvir seu tic tac ?
-" Eu continuo na Terra do Nunca, e todas as Sininhos continuam comigo. Eu sei, eu sei e saberei sempre, um eu te amo é para sempre !"
Peter Pan com mais de quarenta jamais pode dar certo.
Mas quem viu o mundo lá do alto e lutou com Gancho e Índios, não poderá jamais esquecer. Seus olhos viram o que vale ser visto. Quem pode condenar sua magia ?
-"Então pegue minha mão e comece a voar. Pense apenas em coisas boas e não me largue. Esqueça sua casa, esqueça o tempo. Conte-me histórias de fantasia, eu não quero saber da realidade. Porque o mundo dos homens é mentira e eu sou de verdade."
Crianças sabem. Bichos sabem. Homens nada sabem.
Peter Pan aos quarenta, mais, brinca do que ?
Brinca com palavras, brinca com teorias, procura o que não morre e voa com Sininhos. Peter rima tortas frases e nunca vê a realidade. Mas e daí ? Ele jamais matou uma fada !
A noite sobe pela manhã, e ele sabe que nada pode ser explicado.
A manhã adormece na tarde, e ele vê tudo que interessa.
Tarde que fecha os olhos de noite, onde ele adormece sabendo que tudo é sempre o de sempre.
Peter Pan -" Morrer deve ser a maior das aventuras !" Mas fique mais um pouco por aqui. Entre samambaias e o mar. Espere a chegada de nova Sininho ( que será mais uma Wendy ) e mantenha o tempo em suspensão.
Com mais de quarenta você já venceu. O cabo foi dobrado e o tempo lhe é amigo.
Ridículo Peter Pan com mais de quarenta, continue a voar.

SOBRE OS FILMES E DESENHO :
Hook de Spielberg - Tem elenco brilhante ( um Gancho-Dustin Hoffman perfeito ) mas Spielberg se perde num excesso de mel. Nota 6
Peter Pan de PJ Hogan - Uma chatice. Efeitos gratuitos e muito pouca poesia. Nota 2.
Peter Pan da Disney - Os primeiros trinta minutos são poesia magistral. As imagens de Londres noturna são imbatíveis. Depois vira aventura banal. Nota 8.

BUSTER KEATON/TAVIANI/SPIELBERG/PAUL NEWMAN

FLIPPER de James B. Clark
A história do garoto da Florida que faz amizade com golfinho. O filme se tornou série de Tv ecológica. Muita gente passou a conhecer golfinhos via Flipper. O filme é ingênuo, doce, meio enjoado. Mas o cenário é lindo. Nota 4.
FREE AND EASY de Clyde Brucknam com Buster Keaton, Robert Montgomery e Anita Page
Buster Keaton em filme falado... ele tem uma voz séria, fria, pouco engraçada. Seu corpo fica subjugado aos diálogos e o filme se torna um grande vazio. É triste assistir ao começo do fim deste mago da poesia. Como ver um pássaro sem asas. Hitchcock disse que " todo filme ruim é igual : são duas pessoas falando e mais nada. " Keaton falando cala seu corpo e amordaça seu rosto. Fim. Nota 3.
NOITES COM SOL de Vittorio e Paolo Taviani com Julian Sands, Nastassja Kinski e Charlotte Gainsbourg
Se voce se interessa por religião e fé este filme é obrigatório. Trata da luta de um homem por conhecer Deus. Ele se entrega ( ou tenta se entregar ) a solidão total. Cenário, música e atores exatos. Há uma cena de chuva de doer de tão bela. Nota 8.
CIÚMES de Clarence Brown com Clarck Gable, Jean Harlow e Myrna Loy
Eu adoro Myrna Loy. Para mim, ela é a mulher perfeita. Aqui ela é esposa feliz de homem apaixonado e romântico. Mas um dia ela põe na cabeça que ele a trai com secretária. O tipo de deliciosa besteira que Hollywood fazia às dúzias, num tempo em que cinema era indústria de "diversão civilizada ". Todos os atores transpiram charme, os diálogos são leves e espertos e o filme corre como trem de prata. Relaxe...... Nota 7.
CASANOVA E A REVOLUÇÃO de Ettore Scola com Marcello Mastroianni, Jean-Louis Barrault, Hanna Schygula e Jean-Claude Brialy
Em que pese um Mastroianni soberbo como um Casanova velho, e um Barrault apimentado como um escritor libertino, este mastodôntico filme do belo diretor Scola, tem os piores defeitos do cinema europeu : ele se acha mais brilhante do que de fato é. Nota 3.
CAVADORAS DE OURO de Mervyn Leroy com Joan Blondell, Dick Powell, Ruby Keeler, Ginger Rogers e Aline MacMahon
Garotas na miséria tentam fazer sucesso na Broadway. É musical coreografado por Busby Berkeley, ou seja, é ridículo, exageradamente carnavalesco, é o máximo do kistch, e é divertidíssimo !!!! Joan é sedutora, Dick é o bom rapaz, Ruby a menina inocente, Ginger faz a gostosa interesseira e Aline diz as melhores piadas. Só vendo para crer neste musical onde ninguém dança ( até o surgimento de Astaire o que se fazia era mover a câmera pegando atores quase parados. Musical era uma sucessão de "quadros" posados, onde o ritmo era dado na edição. Astaire paralisou a câmera e soltou os pés. ) As músicas são ótimas. Nota 7.
LOUCA ESCAPADA de Steven Spielberg com Goldie Hawn e Ben Johnson
Moça "obriga" marido a escapar da prisão para que possam raptar o próprio filho e salvá-lo da adoção. O filme é todo on the road. É divertido ver este muito jovem Spielberg filmando de modo solto, sem nenhum melado, engatilhando algumas cenas pouco "perfeitas", mas já exibindo sua fixação pela infância. O filme foi grande fracasso e nada fazia prever o que Spielberg se tornaria. Um belo road-movie dos 70's. Nota 7.
VALE TUDO de George Roy Hill com Paul Newman
Que belo filme e que bela surpresa ! Nesta história de um fracassado time de hockey no gelo, Paul Newman brilha no papel do técnico-jogador que se convence de que para vencer é preciso ser muito sujo, jogar feio e com violência absoluta. O filme não tem vergonha : o que importa é vencer. Trata-se de uma comédia que se tornou cult, que foi péssimamente refilmada e que diverte muito. O time todo é feito de desajustados e o trio dos Hanson, três atores amadores descobertos para o filme, é hilário. De certa forma este é o primeiro filme de "Adam Sandler ou de Will Ferrell" da história. É o mesmo tipo de humor mal caráter e sujo, mas aqui, ainda com resquícios de roteiro e direção. Nota 8.
O PAI DA NOIVA de Vincente Minelli com Spencer Tracy, Joan Bennet, Elizabeth Taylor e Don Taylor
Refeito em 95 com Steve Martin, Diane Keaton e Martin Short. É incrível, mas o roteiro é quase exatamente o mesmo ! Muito pouco foi mudado, talvez apenas as cenas com Short. Apesar de eu adorar Steve, Spencer Tracy está a anos-luz dele, assim como comparar Elizabeth Taylor com a mocinha que fez a filha em 95 chega a ser cruel. Minelli também não pode ser comparado à Charles Shyer. Então pra que o refilmaram ? Nota 7.
INTRIGA INTERNACIONAL de Alfred Hitchcock com Cary Grant, Eva Marie Saint, James Mason e Martin Landau
Dizer o que ? Este é o filme que me fez descobrir Hitchcock. Trata-se de um dos dois ou três filmes mais divertidos já feitos. Ele é leve, engraçado, cheio de ação, de suspense e de clima de pesadelo também. Um banquete, onde o mestre inglês esbanja genialidade em fazer o que quer com seu público. Se existe um filme perfeito, este é o filme. NOTA ACIMA DE TODAS AS NOTAS.
A TORTURA DO SILÊNCIO de Alfred Hitchcock com Montgomery Clift, Anne Baxter e Karl Malden
O lado negro de Hitch. Filmado em Quebec, cheio de sombras, este filme trata de padre que é acusado de crime. Ele sabe quem é o assassino, mas não pode dizer quem é sem quebrar seus votos de segredo de confessionário. Este filme original trata de religião, de culpa, de paranóia, de razão contra fé e de um ator extraordinário : Clift, o ator que abriu caminho para Brando. É também um dos filmes que melhor usa o truque favorito de Hitchcock : as tomadas em que os olhos dos atores falam conosco; são momentos soberbos. Não é um filme fácil, é desprovido de humor, mas é um grande filme. Nota 9.

INTRIGA INTERNACIONAL - HITCHCOCK, O MELHOR ?

Saiu mais um DVD de INTRIGA INTERNACIONAL. Este vem com dois discos. O filme no disco 1 e no 2 tem quatro horas de extras ! Só o documentário sobre Cary Grant já vale o investimento, mas ainda temos um farto material sobre Hitch com depoimentos de fãs como Scorsese, Guillermo del Toro e Curtis Hanson. Para um fã desse filme como eu sou, é um super prazer. Mas vamos ao filme.
Passei por toda a minha adolescência evitando Hitch. Por dois motivos : Primeiro eu o achava muito Pop. Como fã de Fellini e Truffaut, eu achava que Hitch não tocava em grandes temas. O incrível era eu desconhecer ser Truffaut um fã do inglês. O segundo motivo era OS PÁSSAROS. Eu o vira quando criança e sentira muuuuuito medo. Beeem ...
Até que um dia, num entediante sábado, assisti este INTRIGA INTERNACIONAL na antiga TV Manchete. Nem me lembro o porque de finalmente encarar o mestre, mas ví o filme completamente estarrecido. Eu descobria um segredo : o grande cineasta não era aquele que falava de "grandes temas", mas sim aquele que fazia grandes filmes. Hitchcock ainda é referência por isso : ele diverte quem procura diversão e intriga aquele que vê o cinema como arte. Seu domínio é absoluto. Ele esbanja talento, se exibe, faz brincadeiras, nos pega pela mão e leva onde quer. Não tem concorrentes na arte de iludir, de "filmar leve", no modo como as cenas fluem, constantes, absolutas, certeiramente exatas.
Grant é um executivo bem-sucedido. É confundido com agente-secreto e corre meio USA fugindo dos seus novos inimigos. O filme é todo absurdo : nada faz muito sentido e tudo é inverossímel. Mas... quem se importa ? Hitchcock jamais procura o realismo. Os seus filmes sempre são cinema, ilusão, e nos envolvem. Não questionamos, sentimos. Sua maestria já está inteira nos primeiros 3 minutos de filme : vemos Cary Grant e percebemos sem pensar que já conhecemos seu personagem. Hitch apresenta situações sem discursos, sem apelações, tudo nos é dado naturalmente. Quando notamos já nos apaixonamos pelos personagens e estamos presos ao filme. E quanta ação ele tem ! Mas é ação sempre suave, elegantemente encenada. Tiros, trens, carros, um bandido que exala charme ( James Mason ), uma sedutora agente ( Eva Marie Saint ), leilão, fugas, e muita comédia, comédia inesperada, comédia feita por esse enigma do humor e do bom-viver chamado Cary Grant.
A sequencia do milharal, quase muda, é, provávelmente, a mais perfeita aula de edição e clima já dada por qualquer diretor. Mas todo o filme é uma aula. As posições que a câmera assume, o rodopiar de rostos e lugares, os sets milimétricamente planejados. E ainda há a partitura de Bernard Herrman, mais uma obra-prima desse maestro dos maestros.
INTRIGA INTERNACIONAL foi, nesses seus 50 anos, muitíssimo imitado. Todos os thrillers de espionagem ( incluindo tudo de Bond ) beberam em suas imagens. E mesmo assim ele ainda intriga, absorve, diverte e ensina. De seu primeiro segundo a seu último frame, tudo é absoluta perfeição : nada em excesso, nem um só diálogo sem sentido, cada tomada precisa e criativa, surpresa sobre surpresa, prazer às toneladas. Revendo-o hoje, pela quinta vez, percebo que ele é indestrutível e me vejo pensando se seria este o melhor filme de Hitchcock.
Apesar de existirem nomes como Wilder, Ford, Hawks, Kurosawa, Bunuel, Bergman, nenhum deles tem a quantidade de obras-primas como Hitch e nenhum chega perto da facilidade que ele aparenta ter ao filmar. E o principal, nenhum se comunica tão instantaneamente com todo tipo de público. INTRIGA INTERNACIONAL é obrigatório.

LIÇÕES DE FRANCÊS - PETER MAYLE ( COMER É BOM )

Uma refeição inesquecível. Penso que todos nós temos aquele almoço, aquele jantar que fica na memória. Este livro de Peter Mayle ( voce deve ter notado que nesta época do ano não leio nada de muito dificil. Férias ! ) fala sobre um inglês, povo avesso a comida, descobrindo a riqueza de sabores franceses. Afinal, tudo o que os ingleses têm é fritas com peixe e pudim de rim.
Quem nasceu numa família européia sabe o quanto eles falam sobre comida. Lembranças dos pêssegos da infância, das cerejas e dos figos. Todo dia é dito : "É tempo das uvas !" ou " Hora das melhores linguiças ! " É uma verdadeira doença ! Benigna doença ! Festas só têm sentido por seus pratos. O grande lance do Natal não são os presentes, os enfeites ou seu simbolismo. São os pratos que serão comidos. O livro diz, e eu já havia notado, que a maior parte do orçamento mensal de um europeu latino é gasto com o estômago. Seu carro e suas roupas ficam muito atrás...
Peter Mayle escreve leve, fácil, gostoso. É um inglês que descobriu o sol, o prazer sensual, o tempo vagaroso. Nos leva pelas festas da rã, dos vinhos, da trufa fresca. Nos ensina a fazer uma omelete, a apreciar um pastis e a entender um café. E nos seduz com queijos, pão e conhaque.
Ficamos pensando na vulgar tolice desse café em copo de isopor e em como a cultura americana é toda baseada na poupança do tempo. Rapidez sempre. O serviço e o savoir faire ficam completamente esquecidos. Traga-me um café enfeitado e rápido. O gosto.... quem pensou que o sabor é importante ? Entendemos porque a agricultura francesa é subsidiada. Não há como continuar fazendo queijo e champagne decentes sem proteção contra alimentos industrializados.
Recordo então de meu primeiro café da manhã em Courbevoie e na variedade de geléias, queijos, tipos de pães e de doces que há no café da manhã gaulês. Meus tios estão longe de serem ricos. São trabalhadores comuns. Mas eles gastam muito em comida, em vinho, e principalmente, em tempo. Para eles ( e sei que esse costume está mudando ) é inadmissível comer em menos de duas horas. Uma salada, dois pratos quentes, pão e queijos, vinho e frutas, esse é o mínimo para fazer um homem feliz. E como comem !!!!! Você acha que a refeição terminou e eis que vem mais um prato ! Fatias de melão com presunto crú, alface com azeite e queijo brie, perna de cabrito, batatas sautée, vagens e cenouras, galinha assada ao mel, mais queijos, copos e copos de vinho tinto, pedaços de baguette com manteiga, omelete de cogumelos, e mais carne, e mais queijo !!!!! E no fim, para descer tudo, Calvados e café. Caramba !!!!!
Nossa cultura made in USA nos deu coisas que eu realmente adoro : cowboys, rock, jazz e o melhor cinema. E ainda skate, surf, rap, e uma informalidade que me agrada. E nos trouxe maravilhosas panquecas, sucrilhos em que me vicio e milk-shakes gigantes. Mas é uma cultura muuuuuuuito diferente da latina ! Há um excesso de eficiência que rouba o tempo a tudo. O que importa é quanto voce faz em menos tempo, e nunca o que voce faz. Há um desejo em se estufar a barriga e não em comer com conhecimento. Gostos puros e simples : muito doce ou muito salgado. Não existe a riqueza de gostos estranhos ( trufas, rãs e escargots ). Coca no lugar do vinho. É o tal do café com sabores...
Comer no quintal, gastando meio salário e desperdiçando toda a tarde à mesa... esse é um costume europeu, de italianos, portugueses, alemães ( mas não de ingleses ). E de brasileiros com seus churrascos com cerveja ( o churrasco poderia ter maior variedade ! ) O café na padaria, em louça ou vidro, com cheiros fortes de manteiga, de chapa, de sonhos; com fregueses falando alto, conversando com o balconista, abrindo o jornal. A delícia que é um pão quente com manteiga pingando... Manteiga.......
O livro fala dessas coisas. E dessa estranha forma de vida que é o francês. Esse bicho que adora discutir, que pensa ter sempre a razão e que é guiado por seu estômago. Onde cozinheiros são super-estrelas e restaurantes são catedrais. O prazer à mesa é rei.
O Natal vem aí... faça deste uma data de mesa inesquecível. Se dê um gosto nunca sentido e um ritual informal de glutonaria explìcita. Vinho, queijos, conhaque, café, manteiga e azeite. Sacie a fome por vida. Tudo ao sol e noite adentro, com prazer. Talvez a vida seja só isso...

NOITES COM SOL- TAVIANI ( E TOLSTOI )

Que Tolstoi foi o maior escritor da história não tenho dúvida alguma. Que foi um santo há quem pense. Não creio em santos, mas creio em iluminados. O conde Tolstoi teve uma iluminação, um êxtase, uma visão.
Padre Sérgio é seu conto mais auto-biográfico e em 1990 os irmãos Taviani fizeram este filme baseado no conto. A narrativa de Tolstoi é terrível obra-prima de filosofia natural. O filme jamais poderia o igualar. Mas ele é, felizmente, digno de tal brilho. É um imperfeito filme que impressiona e comove. Na alma.
Os primeiros vinte minutos são fracos. É a parte que narra Sergio como um barão que serve ao seu rei. Mas ele é traído por sua noiva e parte. Sua vida será a busca impossível por Deus.
Primeiro ele se torna padre. Depois um ermitão. Faz milagres ( o filme não os esclarece ). É vencido pela tentação ( a tentação é feita por uma muito jovem Charlotte Gainsbourg...... ) e termina se juntando aos camponeses e desaparecendo no mundo.
O filme tem cenas que impressionam. São momentos sem voz, de absoluta beleza. A cerejeira, com a qual ele dialoga ( calado ) desde a infância em busca de Deus; a vastidão do campo, onde ele se isola para fugir dos homens; a cena final, em que ele caminha para o fim; o mergulho no lago... Em todas essas cenas há algo de profundamente religioso. Os Taviani conseguem nessa hora algo de Dreyer e de Bresson, mas acima de tudo, nunca traem o espírito de Tolstoi.
Tolstoi foi um hippie antes do tempo. Um existencialista. Um homem do nosso tempo e do futuro. O filme brilha por nos mostrar isso. Sergio quer alguma coisa. Mas nem ele sabe o que.
A cópia que existe desse filme em DVD é terrível. A fotografia está estragada. Mesmo assim o filme é belo. E tem uma trilha sonora de Nicola Piovani genial. Música maravilhosa à Mozart.
Se voce tem uma alma inquieta, se voce crê no mistério da vida, se voce quer mais do que pode ter... veja este filme. É obrigatório. Imperfeito, porém inesquecível. Faça esse bem a sí-mesmo.
Noites com Sol é uma oração de fé na vida. Triste, porém, vivo.

FINZI-CONTINI/ TATI/ SALLY FIELD/ JORDAN/ WOODSTOCK/ EASTWOOD

NORMA RAE de Martin Ritt com Sally Fields
Sally ganhou seu primeiro Oscar com este filme sobre sindicalismo americano. Ela faz uma caipira, meia saidinha, que vai se conscientizando politicamente, ao conhecer um radical sindicalista "de esquerda". Além da muito carismática atuação de Sally, há um belo roteiro de Ratchett, que não romantiza nada ( não há romance entre os dois ) e nem cria nada de violento ou policial na história. O que vemos é uma tecelagem desumana, e a rotina deplorável de seus empregados. Ritt sempre gostou de fazer filmes com mensagem e este é de seus melhores. Não há panfletagem crua, o que há é bom cinema. Nota 7.
O PEQUENO GRANDE HOMEM de Arthur Penn com Dustin Hoffamn e Faye Dunaway
Dustin, no auge da fama, fez esta sátira ao western. Ele é um velho de 120 anos de idade, que em 1970, recorda sua vida a um jornalista. Este é um "Dança com Lobos" da era hippie. O herói é criado com os índios e se perde entre duas culturas : a branca é vista como hiper violenta e materialista; mas os índios também são bastante tolos. Há uma cena em que o velho chefe se deita para morrer que é hilária ! O filme começa meio sem sal, mas após 30 minutos ele se torna uma divertida comédia ( com algumas cenas cruéis ). Dustin era grande amigo de Penn, recusou convite de Bergman para fazer este filme.... Nota 6.
CAFÉ DA MANHÃ EM PLUTÃO de Neil Jordan com Cillian Murphy, Stephen Rea e Bryan Ferry !!!!!!!!!!
Desconcertante ! Acompanhamos a vida de um adotado menino, menino que se torna menina, que de Patrick se faz Kitten. Tudo para ele/ela é fantasia : ele tenta fazer do mundo uma festa. O acompanhamos na escola, já assumido e depois em sua adolescência/ juventude. Ele se envolve com cantor glitter ( feito por Gavin Friday. O filme vale por sua redescoberta. Procure no youtube clips de sua banda dos 80 : Virgin Prunes. São do cacete ! Glitter/ Punk genial. ) Continuando : vem uma tentativa de assassinato por um velho tarado ( Ferry, breve cena e muito bem ) e envolvimento com a guerra na Irlanda. Com tamanho assunto, o filme é bom ? Não. Irrita a voz do ruim Cillian. Não nos interessamos pelo personagem, não nos convence, e como o filme é com e sobre ele... A trilha sonora é um primor ! Nota 3.
ACONTECEU EM WOODSTOCK de Ang Lee
Fuja !!!!! Fuja correndo ! Um imenso fiasco ! Um anti-Woodstock, um caretésimo filme sobre um jovem tentando sair do armário. Quem se importa ? Com um dos momentos chave do século XX acontecendo ao lado, quem se interessa pela história daquele mala ? O filme chega a ser ofensivo de tão errado. Nota 1.
BLOOD WORK de Clint Eastwood com Clint Eastwood e Jeff Daniels
A história do ex-policial que volta a ativa para tentar descobrir quem matou sua doadora de coração transplantado. Clint sempre fez dois tipos de filme : ambiciosos filmes para novos fãs, e entretenimentos descompromissados para velhos fãs. Sou velho fã, adoro seus filmes mais pop, mais simples. Que belo policial é este !!!! Meio triste, lento, bastante envolvente, delicioso. Clint Eastwood é nosso Hawks e nosso Ford. Viva !!!! Nota 8
TRAFIC de Jacques Tati
Último filme de um muito grande diretor. Tati era cinema puro. Não há closes em seus filmes. Todas as cenas são vistas de longe, ângulo aberto ( em todos seus filmes ). Mal vemos os rostos dos atores, pois o que interessa a Tati são os corpos, as paisagens e principalmente as coisas em movimento. Seus filmes são fenômenos do olhar, suas tomadas lembram fotos de Doisneau ou Bresson. Vemos que cada movimento de cada figurante é milimetricamente ensaiado. Não há um só passo de um só figurante que seja casual. Todo movimento é parte de um mecanismo, e sempre existem vários movimentos coordenados acontecendo. Este filme, inferior ao perfeito "As férias de Mr. Hulot ", é fascinante em suas imagens e tem duas cenas de humor irresistível : a do guarda-chuva e a genial dos limpadores de para-brisa. O filme é crítico em relação ao amor dos homens por seus carros, mas nada tem de amargo. Tati adora as coisas. O que mais me agrada nele é sua falta de respeito pelas palavras. Seus filmes são dialogados, mas o que é dito não tem nenhuma importância. Gestos e atos, eis a vida para ele. Na parte final do filme, passada na Holanda, repare num dos mais belos cenários que já ví. Preservar um lugar como aquele é imperativo ! Já disse Roger Ebbert, assistir Tati não é como ver um "filme"; é como visitar um lugar muito querido. Trafic é lugar de férias agradáveis. Nota 8.
O JARDIM DOS FINZI-CONTINI de Vittorio de Sica com Lino Capolichio, Dominique Sanda, Fabio Testi e Helmut Berger
A profanação do que é nobre... Foi com a primeira guerra mundial que toda a nobreza viveu seu golpe final. E com a segunda ruiu toda a ilusão que o homem ainda podia ter sobre bondade ou dignidade. Este filme mostra acima de tudo a profanação da beleza. A destruição da nobre linhagem dos judeus de Ferrara. ( Uma das idéias mais tolas sobre a guerra é a de que os italianos eram um tipo de fascista-cômico. Há quem pense que judeus italianos não foram executados. Tanto foram que toda uma comunidade de judeus foi exterminada. ) O filme, auto-biográfico, centra-se na família Finzi-Contini, uma família tão rica que se dá ao luxo de jamais sair de casa. Eles nunca se misturam. Seu palácio e seus jardins recebem amigos e dentre eles Giorgio, que se enamorará por Micol, amiga de infância. Ela o repele, mas além dessa dolorida história de amor frustrado, há a história de um cerco que se fecha sobre todos, e mais cenas proustianas sobre tempo e memória e a tolice de judeus otimistas, pensando serem italianos e portanto salvos. Mas a beleza ( o filme é esteticamente primoroso ) do filme está nessa terrível sensação de "extinção" que nos assalta. Vemos o final de algo que nossa geração jamais conheceu : nobreza. Pois o fascismo ( de direita ou esquerda, tanto faz ) traz ao mundo algo novo : a cultura do feio, do estridente, do mínimo denominador comum, do vulgar, do grito e da delação. Nosso mundo afinal... E beleza fria, radiantemente fria nasce em cena após cena, seja pelo belo roteiro baseado em Giorgio Bassani, seja na foto de Ennio Guarnieri ou na bela trilha de Manuel de Sica. Vittorio foi um gentleman. Seus filmes têm o toque leve, porém contundente, de um verdadeiro poeta. Este filme, monumento discreto e simples às coisas belas, é um poema a tudo que termina, coisas que são abandonadas, à profanação. O jardim é pisado por não-convidados, o estrago é para sempre....
Eu tinha 14 anos quando assisti a este filme numa Sessão de Gala de um sábado muito frio. Foi um de meus primeiros contatos com aquilo que o cinema poderia ser. Lembro que chorei. Tanto tempo depois, hoje, tantos filmes mais tarde, o reencontro. Mal recordava sua história, mas percebo, como madalenas proustianas, que certas imagens não foram esquecidas : o sol entre as árvores do jardim, o rosto de Micol e principalmente uma frase, a única, da qual nunca me esquecí : "Eu nunca mais verei este jardim..." Síntese de tragédia sem remédio e símbolo de toda beleza, beleza que é sempre um fim e nunca um começo.
Naquele tempo, Finzi-Contini, assim como HOUVE UMA VEZ UM VERÃO, O MENSAGEIRO, A NOITE AMERICANA e OITO E MEIO, foram os filmes que me fizeram perceber que havia alguma coisa maior na vida, mais brilhante, sem tempo e sem mácula. Um jardim.
Ele continua vivo.

O PRIMEIRO GOLE DE CERVEJA - PHILIPPE DELERM

No começo desta década a editora Rocco lançou uma coleção de livros chamada : "Prazeres e Sabores". Cada livro falava sobre alguma coisa relacionada ao bom-viver. Tínhamos livros então sobre azeitonas, cigarros, um livro sobre a geração perdida ( anos 20 ) e o primeiro e ótimo livro de Peter Mayle ( de quem acabei lendo tudo ). Este "Primeiro Gole..." é um minúsculo livreto escrito por Delerm e que fala de cotidianos prazeres. Aqueles momentos de bem estar, de satisfação, que todos temos e que fazem da vida um colorido e inebriante prazer.
Cada mini capítulo conta um prazer e Philippe passa a discorrer sobre esse momento de brilho e de conforto. Uma faca no bolso é seu primeiro prazer. Mas não uma faca qualquer ! Aquela faquinha que voce usa para cortar salame, queijo, para lascar madeira, cortar uma rosa. Faca de cabo de osso, cabo de madeira enegrecida. Faca, na verdade agora inútil, e que por ser inútil, é um prazer sem igual. Jogada no bolso amplo de uma calça de veludo verde escuro, repousando para emergência que jamais virá. Segura e dando segurança....
Sentiram do que trata o livro ? Deliciosamente fala de delícias. A lista prossegue...
Embrulho de doces; Descascar ervilhas frescas; Um cálice de Porto; Cheiro de maçã; Croissant na calçada de manhã cedo; Bicicleta; Inalação para gripe na infância; Comer no jardim; Colher amoras; O primeiro gole de cerveja; Dirigir de noite na auto-estrada; Viajar em trem velho; Banana split; Convidado surpresa; Sanduíche de sobras no domingo à noite; Pulôver no outono; Jardim ao meio-dia no verão; Alpargatas; Bolas de vidro com neve dentro; Romance de Agatha Christie; Caleidoscópio; Lingerie feminina; Cabine telefônica; Jogar bocha.
En todos esses temas, desenvolvidos em duas páginas, ele faz deliciosas associações, lembranças, prazeres que trazem mais prazeres. O livro exibe aquela França da mesa e da cama, do paladar farto, dos cheiros e da gulodice, da alfazema e do vinho. Solar.
Minha lista, sua lista... seria uma delícia a redigir !
Cheiro de terra após a chuva; Cozinhas grandes com mesas bagunçadas e velho cão à porta; Bolachas velhas em saco pardo de papel; Feiras de rua cheias de donas de casa gordas; Calcinhas brancas; Corpos nús debaixo de lençóis brancos imaculadamente limpos; Padarias ao amanhecer; Mãe fazendo bolinhos de chuva; Vick-Vaporub; Guarda-chuva e cachecol em dia frio e úmido; Som de cigarras no verão; Descer a Serra de noite; O mangue; Torta de nozes; Relógios velhos; Cheiro de livro novo; O primeiro gole de cerveja; Assistir um Hitchcock; Pássaros à janela; Camisas havaianas; Conversar à beira-mar; Chuva correndo na calha; Caneta tinteiro; Flanar em ruas velhas; Luz de vela; Ronco de cachorro; Receber uma carta...
Existem prazeres bem maiores que esses. Encontrar um novo amor, ir à Paris, cruzar o mar. Mas são esses prazeres simples, quase diários, que nos consolam, nos iluminam, nos dão prazer em viver. Cultive-os. Descubra-os. Torne-os seus. O livro de Delerm é mais um desses minúsculos e muito vivos prazeres.

O UNICÓRNIO - IRIS MURDOCH

Iris Murdoch foi tema de um belo e tristíssimo filme. Com Kate Winslet como a jovem Iris e Judi Dench como a Iris com alzheimer. Embora não tão conhecida no Brasil, ela foi central nas letras em inglês do quarto final do século XX. Filósofa acima de tudo. E escritora de ficção.
Aqui ela nos conta uma história que é muito fantástica, misteriosa, simbólica, sobrenatural até. Mas onde nada de fantástico acontece. Fala de uma moça que vai trabalhar num castelo inglês. Lá, em meio a pântano, vive uma mulher que jamais sai de seus domínios. Com ela vivem empregados e parentes, conhecidos e agregados. Ela percebe algo de estranho em tudo e logo vê que a mulher, dona do lugar, não pode ou não ousa querer sair do lugar. Está confinada.
O livro é terrível. Tem autêntico clima de pesadelo. Todos são passivos. Menos Gerald, o guardião da prisioneira. Passamos pelos capítulos com apreensão e bastante incomodados. Há algo de muito odioso naquilo que nos é mostrado. E então, ao lembrar que Murdoch foi filósofa, começamos a montar uma charada ( montada ao mesmo tempo pelos personagens que a vivem ). A mulher é o Unicórnio e ele simboliza Deus. Ela é o ser que nunca poderá mudar e que é amado, mas jamais entendido. Gerald é o próprio anjo do mal, aquele que é temido, que domina a todos e que faz o que quer. Vemos os personagens, apaixonados pela prisioneira, passivamente impotentes, incapazes de salvá-la. Pois o livro nos joga esse pensamento : Deus não pode existir sem nosso amor e nosso amor precisa ser ativo. Nós é que devemos o salvar e não o contrário.
Esse tema nas mãos de autor mais dotado seria obra-prima inesquecível. Mas Murdoch tem idéias de gênio, mas estilo pobre. O livro é escrito como simples romance impessoal. Personagens que não nos tocam, ou pior, não respiram verdade. Não há prazer em sua leitura. Admiramos Murdoch, mas não a amamos.
Amo alguém como Henry James por isso : de um nada de enredo ele tira 500 páginas de complexo prazer. Iris Murdoch com um tema rico e profundo nos dá enfado e decepção.
Estilo é tudo. Não importa o que voce escreve. O que importa é como voce escreve. Iris escreve banal. O Unicórnio é pura frustração.

ULYSSES/ BRANDO/ LUMET/HENRY FONDA/RESNAIS

ULYSSES de Joseph Strickland com Milo O'Shea e Barabara Jefford
Um filme difícil. Se você não conhece o livro de Joyce nem tente assistir este filme. Strickland levou vinte anos procurando quem o financiasse. O filme, muito bem interpretado, é quase incompreensível. Mas tem alguns momentos que recordam a força demoníaca de Joyce. O monólogo de Molly, ao final, é maravilhoso. Prosa poética erótica extraordinária. Não posso dar nota a este filme. É único.
O ÚLTIMO TANGO EM PARIS de Bernardo Bertolucci com Marlon Brando, Maria Schneider e Jean-Pierre Leaud.
O filme é um poema sobre a coragem. A coragem de Bernardo por fazer um filme tão burguês numa época em que todo cinema italiano era político e furiosamente de esquerda. Coragem de Brando por fazer de Paul sí-mesmo, dando a nós, generosamente, sua alma e suas fraquesas. Coragem de Maria, por se desnudar sem glamour e por jogar no lixo, sem afetação, seu possível estrelato. Coragem do público, por transformar em sucesso um filme tão triste. Ele analisa a loucura do amor e sua destruição. Ele mostra o vazio existencial e a irremediável solidão. E ainda antecipa a falência da política e do próprio amor verdadeiro. Que mais voce pode querer ? E ainda nos dá um milagre : Marlon Brando. Nota DEZ !
INFERNO NA TORRE de John Guillermin com Paul Newman, Steve McQueen, William Holden, Faye Dunaway, Fred Astaire e Jennifer Jones
Que elenco!!!! E que filme ruim!!!! Mas é divertido. Vemos chamas, vemos gente correndo, música de espetáculo, atores que amamos. É o tipo de super-produção da época : a grana era gasta em caras famosas e não nos efeitos. Nota 5.
OS PICARETAS de Frank Oz com Steve Martin, Eddie Murphy, Heather Graham
Adoro este filme. Vivêssemos em tempos de comédia teria sido um grande sucesso. É a história do diretor ruim e fracassado ( Martin, excelente !) que usa ator doido e paranóico ( Eddie, maravilhoso ! ) em filme de ficção à Ed Wood. Engraçado e nunca apelativo, o roteiro, de Martin é criativo e afetivo. Oz é um diretor subestimado, ele não tem um só filme ruim. Nota 7.
A ÉPOCA DA INOCÊNCIA de Martin Scorsese com Daniel Day-Lewis, Michelle Pfeiffer, Winona Ryder
O livro de Edith Wharton é um dos que mais me deu prazer ao ser lido em dois dias em 2005. É obra-prima de estilo e de elegância. O filme não. É frio, distante, vazio. Scorsese não acredita no que mostra e se perde. Parece desistir. Nota 5.
RETORNO A HOWARDS END de James Ivory com Emma Thompson, Anthony Hopkins e Helena-Bonham Carter
Este sim. Ivory nasceu para fazer este filme. A primeira parte é uma obra-prima. Tudo funciona a perfeição. Você se vê completamente envolvido pelo lugar e pelas personagens. Depois ele perde um pouco de força, mas no geral é um muito grande exemplo do mais alto requinte em visual e escrita. Os atores estão soberbos ! Nota 8.
12 HOMENS E UMA SENTENÇA de Sidney Lumet com Henry Fonda e Lee J. Cobb.
Um juiz chama os jurados a sua sala. Eles irão decidir o destino do réu. O filme, todo passado numa sala, mostra os 12 discutindo a sentença. Nós nada sabemos do réu. E terminamos o filme sem saber se ele é inocente ou não. O que se discute não é isso. Se discute a certeza - como condenar alguém sem ter absoluta certeza de sua culpa ? E como ter certeza de alguma coisa ? O roteiro de Reginald Rose, habilmente nos mostra isso, nada é o que é, tudo pode ser discutido.
Este é o primeiro filme de Lumet e é considerado sua obra-prima. Não sei se é seu melhor, mas é coisa de imenso talento. 90 minutos numa sala com 12 homens desagradáveis. E queremos mais !!! A habilidade de Lumet ( e do câmera, Boris Kaufman, o cara que fez L'Atalante ) é espantosa. Vemos rostos suando, bocas falando, roupas molhadas, mãos. E ouvimos as vozes : e que vozes... há o tímido, o racista, o narciso, o vendedor, o infantil, o velho. E há Fonda, ator único, ator que é a imagem da correção, da inteligência calma, do espírito nobre. O filme empolga, diverte, faz pensar e conquista nossa total adesão.
Sempre votado um dos 100 mais da América, merece sua imorredoura fama. É obrigatório !!!! Nota DEZ !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
AS NEVES DO KILIMANJARO de Henry King com Gregory Peck, Susan Hayward e Ava Gardner
Um caçador está morrendo na África. Ele relembra seu grande amor. Passamos pela Espanha, por Paris e pela Riviera. Caçadas, touradas, bebedeiras e guerras. Vários trechos de Heminguay são habilmente misturados. O filme é quadrado mas é boa diversão. Nota 6.
AMORES PARISIENSES de Alain Resnais com Sabine Azema e Agnes Jaoui
Até os anos 80 todo diretor era aposentado aos 60. Minelli, Capra, Wilder, Wyler, Stevens, Ford... todos foram chamados de velhos e ultrapassados aos 60. De repente tudo mudou, e Eastwood, Altman, Manoel de Oliveira, Lumet e Woody Allen ( dentre muitos outros ) conseguem filmar até o fim. E bem ! Resnais tem 85 anos. E se mostra aqui de uma jovialidade e leveza maravilhosas ! Ele, que começou nos anos 50 com filmes muito sérios e graves, faz aqui um divetido filme sobre pessoas que nada fazem de especial. Apenas vivem. Mas gostamos de vê-las, de escutar seus diálogos. O filme, feito quase ao mesmo tempo que o "Todos dizem eu te Amo" de Woody, também usa trechos de canções pop para explicar sentimentos. É um efeito que encanta : funciona muito bem. Os atores exalam simpatia ( Sabine mais que isso ) e é obra de inspiração. Resnais está tendo um belo fim de vida !
E pensar que Bergman desistiu aos 60.......

AMOR E AMIZADE

Primeiro fato : não existe amor sem paixão. Todo amor é apaixonado. Se não for, não é amor, é amizade com sexo - muito mais comum do que se pensa.
A amizade também é ciumenta. Mas tudo que ela quer é atenção. O amor quer ser único, o maior do mundo - todo amante pensa ser seu o mais nobre dos amores. Cobra do outro a nobreza que ele pensa ter. O amigo quer apenas companhia, ser escutado afetuosamente.
O amor tem a chave de nossa divinização ou de nossa destruição. Todo amor é necessariamente destrutivo : e dessa destruição pode nascer um novo ser -ou ter como fruto cinzas. Ele é sempre dionisíaco. A amizade nada destrói. Ao contrário, ela quer manter tudo exatamente como é. Na amizade há o desejo de se ter ilha de não-tempo. Quando amigos se encontram, o tempo é sempre o do primeiro encontro. Todo amor é portanto revolucionário. Toda amizade é conservadora.
Mas o amor nos envelhece. ( Chineses pregavam a abstinência sexual como forma de vencer o tempo. Eu creio nisso. Todo grande amante é envelhecido. Eunucos nunca envelhecem. ) O amor nos consome, nos leva a lugares novos, nos faz abandonar coisas conhecidas. Há uma conta pelo amor. Não pense que amor se paga com amor, não seja ingênuo. Se paga com vida.
A amizade pode terminar. Mas deixa para sempre uma saudade de paz e de irmandade. Quando voce torna-se amigo é sempre para sempre. O amor pode e normalmente termina. O que fica é outra coisa, não amor saudoso ( saudade apenas quando um deles morre ) fica raiva, rancor, remorso ou esquecimento. Amor não. Na amizade, mesmo na distância e na briga, sempre há a lembrança da própria amizade. No amor há lembrança de erros e de injustiças.
Amigos são alma. Figuras etéreas se encontram. Mas sempre há o convite ao sexo ( quando sexos opostos ). Amigos podem transar. E pensar que aquilo sempre foi amor, que era uma paixão disfarçada. Nunca foi. O amor nasce carne e termina carne. Nasce exigente, gritando, exuberantemente egoísta. Sabemos quando ele vem. O amor não pode ser amigo. Pois ele quer e exige. Amigos pedem.
Você joga coisas fora quando ama. O passado é esquecido. Às vezes pedimos por amor como quem pede por amnésia. Amizade não pede esquecimento, ao contrário, ser amigo é reviver o passado, sempre e sempre. É recordar os jogos da meninice e gostar de contar e contar histórias de vida. O amor não. Ele é todo esperança de futuro. Seu dardo é voltado à frente : esqueça sua família, seus ex-amores, seus amigos, sua casa. Pense no que virá : filhos, nova casa, viagens, futuro.
Todo futuro leva ao fim. Na amizade esquecemos apenas uma coisa - o fim. Portanto ela é sem final. Amigos andam em circulo. Amantes correm em linha reta.
Reatar uma amizade sempre se parece com supressão de tempo. É como se eles tivessem se visto ontem. Reatar um amor é tentar transformar carne em espírito. Pode renascer. Mas renasce como espectro do que foi um dia. Sobreviverá na lembrança confusa e no sexo que procura o rastro de cheiros perdidos. O corpo muda dia a dia, o amor muda com ele.
A amizade é consolo de dor e compartilhamento de alegria. O amor é aumento de dor e aumento de alegria. A amizade não é fértil. O amor é solo e semente, chuva e sol, ele é sempre vivo e sempre vida. Amigos são imagens, amantes são cheiro, gosto e tato.
Jamais tente unir amizade e amor. Você perderá o amigo e não terá o amor. Ou destruirá o amor e não ganhará um amigo. Porque a amizade se faz na luz. Ela precisa ser clara e solar. O amor se faz na sombra. Necessita de zonas escuras, segredos e luar. Iluminar o amor faz dele coisa seca. Apagar o brilho risonho da amizade faz do amigo bicho preso.
Vamos ao amor como quem encontra tudo. Vamos a amizade como quem acha consolo para não ter tudo. O amor magoa quando se revela não ser tudo. A amizade esfria ( mas se sincera não morre ) quando se revela restritiva. Amigos precisam ser livres. Amantes não. Jogamos fora metade de nós mesmos para poder unir a metade que restou à outra metade. Amigos são duas laranjas inteiras não cortadas.
O auto-sacrifício do amor é que faz dele algo de nobre. Renunciamos a vários prazeres ( que subitamente parecem fúteis ) pelo novo amor. Por ele tudo podemos fazer. Dar a vida. E dela tudo queremos : ela inteira. Amigos nada sacrificam pela amizade. Eu sou isto/ voce é isso. Caminhemos juntos. Nada há de heróico em seu nascimento.
Mas há com o correr do tempo....
O heroísmo da amizade se revela com o tempo, de forma sutil e constante. Reencontros, crises atravessadas, ajudas não pedidas, momentos de alegria genuína. O heroísmo do amor é seu oposto : diminue com o tempo. Toda aquela coragem e originalidade vai se resfriando e o sacrifício começa a ser cobrado e não mais dado com prazer. Uma poesia de explosão. A amizade é crônica diária.
Eu tenho pela amizade, amizade.
Tenho pelo amor, amor.
A amizade não me dá medo e me é natural. Consola e nada pede. Posso ter mil amigos e ser sincero e fiel a todos.
O amor me dá medo e me é trabalhoso. Nada consola e pede tudo. Posso ter um amor e ser fiel apenas a ele. Mas ele sacia meu corpo e me faz mais vivo. Me envelhece mas me dá a sensação de estar existindo. Desperta meus sentidos e amortece minha memória. É irresistível, como droga, como vicio, como a morte.
Meus amigos. Vocês nada me dão de trabalhoso. Pedem apenas o que posso dar. E me deixam ser fiel a outras amizades. Me dão a ilusão de eterna juventude e com voces posso ser infantil para sempre. Anesteziam meu desejo, minha dor e minha doideira. E não me viciam, não me matam. Amigos.......
Mas eu preciso de amor...