PYGMALION- GEORGE BERNARD SHAW

   Bernard Shaw foi até os anos 60 tão representado quanto Shakespeare. Brecht, Shaw e Maugham. Esses eram os autores mais encenados, ao lado de WS, claro. WS enterrou a todos eles e continua popular como sempre. Maugham cansou, Brecht se tornou antigo e o que aconteceu com Shaw?
   O irlandês ( que detestava a Irlanda ) George Bernard Shaw foi a mais popular figura cultural da Inglaterra entre 1890- 1950. Viveu muito, nasceu na época de George Eliot e Meredith e viveu até além da segunda-guerra. Fabianista ( o fabianismo era a versão light do socialismo, made in England ), vegetariano e anti-casamento. Shaw escrevia panfletos e peças de teatro, fazia conferências e lançava modas. O mundo queria saber de suas opiniões, todos observavam sua vida. Morreu solteiro, famoso, nobelizado, cheio de sucessos no palco ( e no cinema ).
   Quando comecei a me interessar por livros ( na época das caravelas eu acho.... ), Shaw era tão famoso que mesmo tendo 11 anos eu já queria lê-lo. Ele era importante como são hoje Virginia Wolff e Karen Blixen. Paulo Francis o tinha como mestre e guia, pois Shaw era um tipo de metralhadora giratória. Suas palavras fustigavam e ofendiam e ele dava palpites sobre tudo. Mas subitamente ele saiu de moda e há quem agora o ignore.
   Bem, talvez seja uma época de bolhas de sabão a nossa, e não das granadas de Shaw.
   É famoso o diálogo dele com Isadora Duncan.... Por volta de 1920 os dois eram o homem e a mulher mais admirados do mundo. Então Isadora propôs que se casassem. O filho teria a beleza dela e a inteligência dele. Shaw recusou dizendo: "Temo que ele tenha minha beleza e sua inteligência"...
   Pigmalião, ou Pygmalion, é a peça que deu origem ao musical MY FAIR LADY. E lendo o texto vejo que o libreto do musical manteve 90% da peça de Shaw. A grande mudança é no final. A peça termina em aberto, o musical dá um final quase feliz ( e anti-feminista ). Eu prefiro o musical, mas a peça é fácil de ler e sempre divertida. As falas correm.
   O enredo é muito conhecido. Henry Higgins é um professor de fonética. Numa noite de chuva, à saída da ópera, ele conhece Elisa Doolittle, uma florista de fala vulgar. Aposta com amigo que conseguirá mudar a dicção da florista e assim enganar os snobs de Londres, que acreditarão ser ele uma Lady. Tudo isso ocorre numa Londres maravilhosamente vitoriana.
   No filme toda a atenção é para Elisa. Audrey dá seu grande show. Na peça há uma ênfase na dúvida: Higgins tem o direito de tirar Elisa de seu meio social? A educação de Elisa abre seus olhos para um mundo maior, mundo que ela não conhecia. Mas Elisa não tem o dinheiro para viver nesse mundo descoberto. Esse o drama. De que vale a educação sem a oportunidade? Educação sem avanço social e´ apenas frustração. Elisa sente isso na carne.
   Shaw continua atual. Educamos gente que jamais poderá viver no mundo que eles aprendem a conhecer e a admirar. Uma bela e intraduzível peça.
   PS: Há uma tradução que transforma ã giria de Elisa em carioquês do morro e Higgins num falador do português correto. Não funciona. Hoje a lingua correta não mais distingue a Lady da florista. Além do que não há como levar a sério um professor que distingue a lingua da Tijuca da do Leblon e da Urca. No original Higgins fala dos acentos de Fulham, Chelsea e Newcastle, acentos que são pronunciados. Elisa é uma cockney, Higgins fala o inglês da BBC. Intraduzível.

KONSTANTINOS KAVÁFIS

   José Paulo Paes traduz e fala dos vários pontos em comum entre o moderno poeta grego e Fernando Pessoa. Viveram no mesmo período, foram funcionários públicos, desconhecidos em vida. Ambos idealizaram o passado de sua nação. A diferença, vasta, entre os dois: Pessoa era um hiper-cerebral intelectualista; Kaváfis era um sensualista. Homossexual, solitário, Kaváfis ia à caça, perambulava pelos bares e ruas. Sua poesia fala desse tema, expõe sexualidade, nada teme.
  E rememora. Kaváfis nasceu em Alexandria e se considerava um herdeiro da cultura grega. Como Pessoa, teve o inglês como primeira lingua. Mas o grego logo se percebeu como helenista. Sua nação era a Ítaca de Odisseu, e muito além, o oriente helenizado. Seus versos unem Egito e Grécia, antiguidade e idade média. Paganismo e ortodoxia cristã, amor carnal e desejos transcendentes. Mas atenção: Kaváfis nunca perde o corpo de vista. O sangue e a carne mandam. Ele é sensual.
  E simbolista. Não se importa com o aparente, o evidente, o óbvio. Seu mundo é feito de noite, sombras e camas recém usadas. De peles beijadas e de um imenso passado. Ele vai a momentos decisivos da história e recria. Dá vida a heróis e a impérios esquecidos, faz de Antonio, César, Nero, Juliano, personagens. Máscaras que na verdade são Kaváfis, atores do drama que é a vida do poeta.
  Ele relembra anos idos, séculos perdidos, ele relembra jovens que amou, seu corpo em decadência, as noites de exageros. Inexiste arrependimento. Se Kaváfis lamenta, e ele o faz, é a passagem do tempo. A poesia é para ele a cura, o remédio que alivia a dor da perda. Seus versos dão vida àquilo que passou.
  Escritos de forma muito simples, Kaváfis foi "descoberto" logo após sua morte. Seus escritos, apenas 180 poemas em mais de 60 anos de vida, foram reunidos por seus amigos e publicados. Eliot, Forster e Pound logo o elogiaram e seu lugar no olimpo do século XX estava garantido.
  Leves, coloridos, vivos, ler Kaváfis é um prazer.

O MUNDO ACABOU- ALBERTO VILLAS

   Alberto nasceu em 1950 e trabalhou/trabalha na Globo, Band e SBT. Escreveu este delicioso livro sobre seu mundo. Mundo que ele confessa ter morrido a algumas décadas. Nada de chororô. Há saudade mas há muito mais alegria. Ter conhecido esse mundo é uma felicidade guardada no coração.
   O mundo que ele recorda morreu porque não é o mundo da alta cultura ou da grande história. Sejamos francos, o mundo de Plato ou de Proust está vivo. Mas o mundo de que Alberto fala, mundo de brinquedos, de aparelhos e de comidas, esse morreu. Então ele dá uma página para cada lembrança.
   Invejoso, dou aqui as minhas lembranças. Guiado pelas dele.
   PS: Quem nasceu após 1970 não saberá do que falo. Ou saberá?
   O cheiro do Vick Vaporub, que era emplastrado em meu peito para curar minha bronquite. Eu dormia de paletó de flanela e o Vick grudava no tecido. Ao lado, sobre o criado-mudo, o lenço de pano, azul e branco. Eu nunca estava sem um lenço de pano à mão.
   Os vizinhos vindo em casa ver TV. A TV só valia a pena se fosse vista em grupo. Assistir Tv a sós era coisa de maluco. Domingos vinham meus primos ver Roberto Carlos e Hebe. Durante a semana vinha Dona Mabilia, ver novela. A molecada via National Kid e Ultraman.
   Mabilia...existem nomes extintos. Valdir, Moacir, Luiz Carlos, Sandra, Maria da Conceição, Roberval, Juscelino, Ivo, Jurandir, Alaor, Benedita, Margareth e Margarida. Noémia e Nelson. Péricles e Roseli. Hoje é tudo Lucas, Gustavo, Tiago e Gabriel. E aquele monte de nomes estrangeiros de araque. Ah! e tem os sofisticados chic que ousam um Joaquim e uma Valentina.
   Tv em móveis de madeira, brilhando e perfumada com lustra-móveis Shell.
   Toda casa tinha baratas, muitas e pra matar se usava Flit. Para os pernilongos tinha uma cobrinha verde. A gente acendia a ponta e ela ia queimando e soltando cheiro ruim. Não funcionava, mas a gente usava... Pulgas na cama. Colchão de palha. Cheguei a dormir em colchão de palha e ter pulgas no lençol. Ainda existem pulgas?
   Bicicleta com espelinho retrovisor e borrachas de paralamas. Pedalar usando um Bamba preto. Eu tive um branco também. Acho que até hoje foi o melhor tênis que usei.
   Tinha um indio Apache que ficava na tela da TV antes de ela "abrir". A TV fechava às 2 da manhã e abria às 10. As pessoas dormiam e os funcionários descansavam...
   Colar figurinhas com goma arábica, uma cola com pincel, de cheiro forte e que deixava as figuras enrugadas. Quem era mais pobre fazia cola. Farinha e água. Meus primos faziam pipas assim. E funcionava. Engraçado, era um tempo em que dava pra ficar uma semana sem gastar um centavo.
   Eu ia de pasta de couro pra escola. E calça cinza de tergal com camisa branca de abotoar. O distintivo da escola no bolso. Costurado. Sapatos pretos Vulcabrás. As meninas de saia xadrez cinza e camisa branca. Meias 3/4. Atenção, era uma escola do estado. Camiseta e short nem pensar.
   "Este é Renato, esta é Cecilia. Renato e Cecilia são irmãos". É a primeira frase que li e escrevi na vida. Daí à Yeats e Homero foi um nadinha de tempo....
   Um homem de terno e gravata vinha vender enciclopédias. Eu pirava! Foi ali que nasceu meu amor aos livros. Ele vinha sexta e deixava um dos volumes em casa até segunda. Se a gente gostasse, comprava tudo. Meu pai comprou um monte: Ler e Saber, Barsa, Do Estudante.... Eu lia quase tudo. Adorava ler as coisas sobre os reis do passado, vidas de escritores e pintores e sobre bichos. Nada mudou. Ler sobre Adolfo I, Pascal e o jaguar ainda me fascina.
   Nas bancas eu ganhava Recreio. E aos nove anos comecei a ler Clássicos da Juventude. A Ilha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, Tom Sawyer e vasto etc. E ainda colecionava os fascículos de Conhecer e Os Bichos.
   O pai de meu melhor amigo escrevia a máquina em casa. Lembro de entrar correndo na casa dele e ver o pai escrevendo. Toda vez que ele ia teclar um ç ele me chamava para teclar. Tléc. Eu ficava todo-todo...Achava a mulher dele ( Meire ) a coisa mais linda do mundo! Engraçado....teclar e amar uma nova Meire....O que mudou?
   Sentar numa lata de arroz para cortar o cabelo. O barbeiro botava essa latona na cadeira, para eu ficar mais alto. Eu odiava cortar o cabelo. Hoje não preciso mais cortar...
   Os ovos eram chocados e eu ia ver, com toda a familia, os pintinhos quebrarem a casca. Piu, piu, piu... Toda casa produzia alguma coisa. Tempo de quintais, a gente tinha abundãncia de limão, couve, alface, ovos, galinhas, coelhos, banana e almeirão. Ah...e tinha uma parreira que nunca deu uva. Eu cansei de ver galinha ser morta na cozinha. Adorava ver as tripas quentes e cheirosas. Era um tempo em que na feira se vendia o bicho vivo, pra matar em casa. Trocas com vizinhos: Pode pegar as laranjas, leva este mamão, tome esses ovos...
   Minha mãe vivia costurando alguma coisa. A linha corria na máquina de costura. Aliás, toda casa tinha máquina de costura, enceradeira...se encerava até o terraço! Um cheiro de cêra maravilhoso!
   Não se comprava roupa. Isso era coisa de quem era muito pobre. Se mandava fazer. Minha mãe escolhia o tecido, o modelo e mandava fazer sob medida. Toda casa tinha seu alfaiate e sua costureira. Menos empregos no mundo, o que fazem hoje os alfaiates? ....existia até a lavadeira!
   Leite em garrafa de vidro, com nata grossa. O leite dormia na rua, de madrugada, e ninguém pegava. A garrafa era devolvida pela garrafa cheia. O primeiro emprego de meu pai foi esse: entregador de pão e de leite. De carroça, em Santo Amaro, 1950.
   Anos depois ele voltava do trabalho às 3 da tarde. E todo dia me dava 25 centavos. Eu corria à "venda do seu Roque" para comprar doces. Coração de Abóbora, Passoca, Pé de Moleque, Maria Mole, e meu favorito: um tipo de sanduiche de Maria Mole com duas bolachas Maizena. Os doces ficavam num armário de vidro, era só pegar. Nessa venda tinha de regadores e vassouras à feijão e óleo. Grande balcão de madeira e pedra, a escada para subir ás prateleiras mais altas, o menino de bicicleta que fazia as entregas a domicilio.
   Todo dia meu pai me dava um cálice de Biotônico Fontoura. E aos sábados fazia uma vitamina: ovo crú, açúcar e uma garrafinha de Caracú. Tudo batido no liquidificador. Era bom pra caramba, mas hoje eu não teria estômago. Tempos incorretos.
   Fotonovela era um tipo de HQ romântico, mas tinha fotos de atores e não desenhos. Minha tia lia. Eu coloria álbuns dos Flintstones. E adorava aqueles estojos de madeira onde vinham lápis, lapiseira, borracha, caneta, esquadro, apontador....
   A professora carimbava nossos cadernos com figuras de histórias de fadas. Quanto melhor aluno, mais carimbos. Meu irmão tinha um monte!
   Sempre adorei andar na chuva. Já com 7 anos eu tinha minha capa de chuva. Cinza, até os pés, abotoada com grandes botões verdes. E meu guarda-chuva preto. Até hoje sinto vergonha de confessar, mas eu adoro umbrellas! Chovia muito, garoava toda manhã, neblinas de cegar. No calor da sala, vendo Os 3 Patetas na TV, parecia que minha casa era a única do mundo. Era.
   Um fusca vermelho de lata. Eu entrava nele e pedalava. Tinha farol a pilha e buzina. Brinquedos eram pra se mexer. Tive uma armadura medieval de plástico, elmo, escudo e espada. Um trem à pilha, vários Fort Apache. De madeira, com indios a cavalo e a cavalaria com sabres. Ainda sinto o cheiro da madeira pintada. Uma cidade do Western. Com cocheiras, saloon, carroças, casa do xerife. Toda de madeira, enorme. Minha bicicleta era vermelha, Caloi.
   Eu estava deitado no quarto escuro e a porta se abriu. Em meio ao escuro, uma luz branca e uma buzina. Meus pais entravam no quarto, de surpresa, e me davam o Fusca! Eu tremia de alegria.
   Todo dia eu via O Pimentinha, Os Monkees e Coelho Pernalonga. A TV me hipnotizava. Eu prestava atenção em tudo, até em jornal que não entendia. Topo Gigio, Sessão das Três, Jambo e Ruivão, Circo do Arrelia, Corrida Maluca e Speed Racer.
   A carrocinha passava e levava todos os cachorros pra virar sabão. A gente sabia, sabão de lavar roupa era cachorro morto. O Phebo preto tinha cheiro forte de cãnfora e ardia na pele. Eu tomava banho dia sim dia não ( confesso, eu era um porquinho ), sempre encardido, minha mãe me esfregava com esponja de cozinha até ficar vermelho. Eu juro que não é só o Phebo que mudou. O Toddy em vidro gordo e escuro cheirava melhor, tinha mais sabor e o bolo Pullman ( sabor Califórnia ) era uma delicia!!! Será fantasia? Mas eu sinto agora o cheiro e o gosto na memória, e percebo que mudou. Basta dizer que abrir uma lata de café era cheiro se espalhando até no vizinho....
   Jogo de botões....Flamengo. Com Ubirajara no gol. Reyes na zaga. Fio no ataque. Tinha um do Corinthians com Tião e Rivellino. Eu era palmeirense, Ademir e Leivinha, Leão e Dudu. Mas meu pai me deu uma bola Pelé e virei Pelé. Eu torcia era pelo Pelé.
   Câncer de pele? Que? A gente ia pra praia pra se bronzear. Passava Coppertone, que não protegia nada, bronzeava. É aquele com a bundinha da Jodie Foster no rótulo.
   O primeiro refrigerante que tomei na vida: Crush. E eu amava Neston ( outro que mudou de gosto ), leite em pó ( comido seco ) e pão doce de padaria. Ovo cozido com gema mole, linguiça fininha bem passada, marmelada de lata, lamber o tacho de fazer bolo...
   Alguém lembra das colchas de Chenille??? Dos biscoitos Duchen? Piraquê? Aymoré? Cadê?
   Eu tinha uma japona azul marinho e meu pai sintonizava o rádio em ondas curtas. Era pra pegar rádios distantes. Uma vez conseguimos pegar a BBC. Mas normalmente pegava o Paraguay e a gente ficava ouvindo guaranias...
   Com um jornal se fazia um chapéu de soldado e com uma folha de caderno um barco. Chovia e eu corria pra lançar os barcos na exurrada. Tive meu estojo de quimica. Tubos de ensaio e liquidos coloridos. Eu queria fazer com eles um monstro japonês. Sábados íamos à bica pegar água. Eram pesados os garrafões de vidro cobertos com palha. Será que não tinha água encanada no Morumbi? Mas o banho não era com chuveiro? Mistério...
   A festa junina era em casa. Fogueira onde meu irmão queimou o pé. Balão. Quentão. Tive calça rancheira e calça de brim. Calça rancheira era a calça de Far west. Do rancho. Eu gostava era da calça de brim e de blusas de gola "olimpica". Olimpica era a gola rulê. Aliás vamos falar a verdade, eu era vaidoso pra caramba! Tanto me chamavam de principe quando fui criança que cresci pensando ser o Ronnie Von.
   Quando meu pai morreu, em 2008, eu comprei Aqua-Velva pra sentir o cheiro dele. Decepção! A Aqua-Velva não tem mais cheiro! Virou um vidrinho de plástico, sem cheiro e sem cor. Será que o mundo realmente acabou?
   Ainda existem bobs de cabelo, papel carbono, mamadeira de vidro, naftalina, velha de luto com véu no rosto, Van Ess, Modess, Colorama? Filtro de barro, pinico de louça e cristaleira?
   Enquanto eu viver, voce viver, este mundo que não morreu, estará vivo. Mundo do quase nada, do insignificante, dos bloquinhos de montar, dos pinos mágicos, bolinhos de chuva e drops Dulcora. Mundo pequeno que dá luz ao mundo grande. Pequenês que teima em ser tudo. Que bom!!!!
  

RELATO AUTOBIOGRÁFICO- AKIRA KUROSAWA

   Em agosto de 1945, logo após a derrota do Império Japonês, Kurosawa, assim como outros 100 milhões de japoneses, esperava a fala do imperador no rádio. Como todos, Kurosawa esperava uma ordem de Hiroito. Nas ruas, as pessoas se preparavam, a expectativa era a de que todos se matassem. A vergonha da derrota seria lavada com o sangue. Espadas e facas eram afiadas. Kurosawa diz que no Japão todo "eu" era uma vergonha. O japonês se aplicava para ser parte de um todo, pensar em sua vida, em sua individualidade seria egoísmo imoral, falta de honra. Naquele dia o imperador, instruído pelos americanos, poupou seu povo. A ordem era a de reconstruir, esquecer, perdoar.
   Kurosawa fala das pessoas saindo às ruas sorrindo. A vida vencera.
   Esta biografia deste que é meu diretor de cinema favorito, é um belo exemplo daquilo que diferencia o Japão do Ocidente. Toda a trajetória de Kurosawa é marcada pela teimosia, pela obstinação e pela gratidão a seus mestres. Ele foi uma criança frágil, efeminada, tendo sofrido na escola a perseguição de mestres e de colegas. Mas ele era teimoso. Se aplicava nos esportes e passou a fazer kendô. Andava horas para ir a seus cursos e encontrou por fim um professor que o entendeu. O pequeno Kurosawa amava pintar, desenhar e ler. O pai era um ex-militar, professor de educação física. A mãe era a tipica japonesa submissa.
   Metade do livro são cenas curtas dessa infancia. Gostos de comida, dias de chuva, névoas e o amigo que era como um irmão. Kurosawa lembra com delicadeza, parece pintar as páginas do livro.
   Como a maioria dos mestres do cinema, ele se fez diretor sem querer. Arrumou um emprego de produtor e se viu como assistente de diretor. Yamamoto foi seu mestre. Ele descreve os basidores da indústria do cinema, macetes de fotografia e de edição. E louva os filmes que ele assistia então ( ele é fã de John Ford ).
   Kurosawa encerra o livro em 1950, quando Rashomon vence em Veneza. Termina para não ter de falar de pessoas e eventos muito vivos ainda. Se fecha em silêncio.
   Mas ainda houve tempo para falar da descoberta de Toshiro Mifune, um fenômeno da arte de atuar, um homem meio grosseiro que dominava a tela como ninguém mais. É bonito ler os louvores de Kurosawa, ainda mais sabendo que os dois estavam brigados na época do livro.
   Para quem ama filmes, eis um texto obrigatório.
   PS: Kurosawa é meu favorito porque ele une a aventura e o drama, a pura diversão e a arte mais refinada. Tem o visual apurado de Lean ou de Kubrick, a poesia de Dreyer ou Ophuls, a seriedade de Bergman e Lang e o heroísmo de Ford e Mann. Ele é uma enciclopédia.

A AURA DE WALTER BENJAMIN

   Os homens andavam durante dias para ver uma pintura numa igrejinha em cidadezinha da Toscana. Olhavam, e sabiam que apenas lá, naquele lugar havia a chance de ter tal experiência. O ambiente da igreja, seu clima e seu lugar eram parte da experiência. Ao ir embora o homem sabia que não teria essa visão em nenhum outro lugar. Aquela visão era carregada viva na memória.
   Os homens iam ver Beethoven reger ou Schubert tocar. E sabiam que não escutariam a sexta ou a quinta em nenhum outro lugar. Eles escutavam e tiravam daquele momento o máximo possível. Era um momento único na história de uma vida.
   É disso que fala Benjamim, da aura. Por mais distante que um artista ou uma obra pareça do mundo da aura, toda manifestação artística traz em-si a herança de algo que foi criado como manifestação religiosa. Fazer arte é tentar sair do cotidiano, do aparente e óbvio e procurar criar uma visão original, única, transcendente. Por mais biológico ou corporal que um artista seja ele no fundo é herdeiro dessa tradição humana. Mas, e é essa a sacada de Benjamin, uma arte que pode ser levada pra casa perde completamente sua aura. Deixa de ser um tipo de experiência única e particular e passa a ser produto consumível e sem nada de sagrado ou secreto. Explico.
   Quando criança nunca esqueço de uma manhã em que perdido no Morumbi, encontrei em meio a um capinzal, restos de cerâmica no chão. Em meio ao mato eu achei desenhos geométricos no chão. Meus desenhos, vistos só por mim, escondidos lá para mim. A sensação que tive foi de desvendamento de um segredo.
   Na adolescência lembro dos primeiros clips que chegavam ao Brasil. Queen, Stones, Floyd...Todos me emocionava e eu achava que só eu os conhecia e só eu assistia. Mais que tudo, não existiam videos do Led Zeppelin. Espertamente, eles não se deixavam filmar. Formava-se um mistério, imaginávamos como seria o Led em movimento, eis a aura de Benjamin. Quem os assistia ao vivo sabia que aquilo era só para eles. Não seria gravado, transmitido ou vendido. O Led ali, sobre o palco era experiência só do público fã. Os Smiths no começo fizeram o mesmo.
   Um livro com aura é um livro que voce pensa que só voce o lê. Filmes censurados e proibidos tinham essa aura e vê-los finalmente liberados era uma sessão religiosa. Poder ver O Atalante de Jean Vigo, filme pouco conhecido e pouco visto,  foi uma experiência de aura. Eu sentia que só eu em todo o mundo o amava.
   A aura se cria quando há um sentimento de intimidade entre voce e a obra. Quando voce sente que ela é sua, completamente sua, e que então ela passa a fazer parte de voce. E principalmente quando há um sacrifício para vê-la, um momento decisivo, ou voce vê ali e agora ou nunca mais.
   Havia aura na dificuldade em se ver um Mizoguchi ou um Cocteau. No Dante que li numa cabana no mato. Naquele video em super 8 de Woodstock.
   O que pode haver de aura num filme com mil cópias e dez milhões de olhos? Em pilhas de Dickens recém reeditado? No cd de Schubert tocado no carro e escutado no dentista? Que arte sobrevive a Van Gogh em calendários e Mozart em filminho de arte? Que aura pode haver em coisas baixadas aos milhões? Fáceis e desvendadas, sem segredos e sem a experiência do intimo?
   O meu disco raro do Velvet Underground atingiu 12 milhões de visualizações. Não é mais o meu Velvet. Nunca mais será. É do mundo. É real e corriqueiro. Continua maravilhoso como sempre foi, mas sem aura, sem mistério e sem o amargo/doce gosto do único. São milhões de ouvintes, milhões de opiniões, milhões de audições.
   Aura? Nunca mais.

FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING

   Filósofo do romantismo, Schelling viveu entre 1775 e 1854. Contemporâneo de Beethoven, Goethe, Schiller, Haydn, Kant, Hegel, Wagner, Novalis e Holderlin....para citar só a cultura de lingua alemã. Poderia ainda falar em Schubert, Mozart, Schopenhauer... toda essa multidão de deuses vivendo e produzindo durante a vida de Schelling. O ímpeto criador fertilizando as mentes e principalmente os corações. Porque?
  Falo agora do pensamento de Schelling e arrisco a hipótese de que seu pensamento espelha a corrente sensível que pairava na alma alemã de então. Vejamos...
   A natureza e a conciência são uma só unidade infinita.
   Essa unidade, identidade de contrários, é o absoluto. Natureza e consciência, objetivo e subjetivo não são um a origem do outro, ambos procedem do absoluto.
   A reunificação da natureza e da consciência é a tarefa da obra de arte, e só ela consegue apagar a aparente oposição das coisas, unindo-as numa suprema identidade, no absoluto.
   A inteligência teórica contempla o mundo;
   A inteligência prática o ordena;
   A estética o cria;
   A mais perfeita intelecção da verdade é a que brota da criação artística.

   Essa a filosofia que permeia todo o pensamento alemão de então. O artista, cheio de confiança e ambição, sente em si a missão de criar o mundo. Vê-se como centro e como nobre. Schelling formula a perfeição sua filosofia. Não importa se hoje ela é válida ou não, o que interessa é que ela serviu a um propósito e espelhou um apogeu cultural.
   A partir daí só recuamos.

GODARD/ TRUFFAUT/ RALPH FIENNES/ SOKUROV/ CUKOR/ ROSALIND RUSSELL

   BANDE À PART de Jean-Luc Godard com Frey, Karina e Brasseur
Livre como o fogo e filmado em locais gelados. Tem cenas em escola de inglês e nas ruas feias. Filmado em poucos dias, fala de uma dupla de ladrões que envolvem moça ingênua em crime. Várias cenas históricas: a corrida no Louvre, a dança no bar, o olhar para a câmera de Anna Karina. Adorado pelos diretores jovens dos anos 2000, confesso não ser dos meus Godard favoritos. Irregular ao extremo, perde o foco em vários momentos. Mas vale conhecer. Nota 6.
   FARENHEIT 451 de Truffaut com Oskar Werner e Julie Christie
Em sua bio Truffaut diz ter tido problemas nas filmagens. Falava mal o inglês e Werner tinha ataques de estrelismo. O filme é frio, distante, sem emoção. Mas está longe de ser um erro. No futuro os livros são proibidos. A TV é a grande ditadora. O livro de Bradbury acerta em várias antecipações: a ditadura do "bem estar", a tela sempre presente, o sexo como ginástica. Ainda recordo da impressão que me causou quando visto na TV Cultura, aos 15 anos. Hoje é apenas um curioso drama frio. Nota 6.
   PRINCESA POR UM MÊS de Marion Gering com Silvya Sidney e Cary Grant
Uma atriz fracassada se passa por princesa da Europa. O plano, armado por seus ministros, visa fazer dessa "nova" princesa algo de mais simpático aos americanos. Grant faz um repórter que se envolve com ela. Na época Cary Grant ainda não era Cary Grant. A Paramount ainda não sabia do star que tinha em contrato. O filme, classe B, é apenas uma bobagenzinha fofa. Nota 3.
   OS 3 MOSQUETEIROS de Paul WS Anderson
Dumas para teens. O visual é da França de Richelieu, mas as pessoas e os fatos são dos EUA de 2012. Absolutamente desinteressante. Nota ZERO.
   CORIOLANO de Ralph Fiennes com Ralph Fiennes, Gerard Butler e Vanessa Redgrave
O texto de Shakespeare transposto para hoje. O mundo como lugar de conflitos e de revoltas. Estranho ouvir os versos ditos em 2012.... Eles acabam por funcionar. Dão ao drama a profundidade e a eloquência do bardo inglês. O problema é que o visual do filme é excessivamente rebuscado, ofusca o trabalho dos atores. Bela tentativa de Fiennes. Nota 6.
   O SOL de Sokurov
Nenhum diretor em atividade é mais corajoso que o russo Sokurov. Ele não faz a mínima concessão. Aqui ele acompanha o imperador do Japão nos dias em que é obrigado a se mostrar como "humano". O que vemos é um homem-criança perdido em dias e salas. Lento, simples, solene, real, rebuscado. A arte de Sokurov não conhece limites. Nota 7.
   OS REIS DO SOL de J.Lee Thompson com Yul Brynner
Um desastre! Tribo Maia viaja aos Eua e toma contato com indios de lá. Brynner, hiper-vaidoso, é esse indio. Uma chatice.... Nota Zero
   ESCOLA DE SEREIAS de George Sidney com Red Skelton e Esther Willians
Um rapaz volta a escola para tentar convencer a esposa, que lá trabalha, a voltar para ele. O filme é um musical sem vergonha. Brega ao extremo, mistura comédia, dança, jazz, burlesco e carnaval. Me lembrou chanchadas da Atlântida. Antes da TV, um filme como este era o equivalente a zapear por vários canais. Nota 6.
   AS MULHERES de George Cukor com Norma Shearer, Joan Crawford, Rosalind Russell, Joan Fontaine e Paulette Godard
Caso único: um filme que só tem mulheres. Em duas horas não vemos o rosto de um só homem. Nem como figurante. O que se mostra são as fofocas, os dramas e as invejas de um bando de mulheres ricas e casadas. O centro é uma "boa esposa" que perde o marido para uma predadora. É óbvio que a boazinha é Shearer e a má só podia ser Joan Crawford. De pior o filme tem seu moralismo tolo e atrizes irritantemente compostas ( Shearer e Fontaine, duas estrelas insuportáveis ), de melhor há a presença da esfuziante Rosalind Russell ( uma das maiores comediantes da história, ela é adorável ), e o sex-appeal de Paulette Godard, uma das mais interessantes atrizes da época. Cukor foi um grande diretor de mulheres, ele penetra no mundo de salões de beleza, almoços entre amigas e quartos de vestir. Bom gosto e bons diálogos. Nota 7.

O MONO GRAMÁTICO- OCTAVIO PAZ, AS PALAVRAS E A PRESENÇA...

Em meu primeiro ano de faculdade, era 1984, lembro que nossa excelente professora de português nos mandou fazer uma redação baseada na apreciação do Bolero de Ravel. Após ler aquilo que eu escrevera, um texto confuso sobre sonho, engano e verdade, ela me aconselhou a ler Octavio Paz, autor que ela considerava formular as mesmas questões que me inquietavam. Ela acertou. Mas só comecei a ler Paz nos anos 2000. Este é o quarto livro que leio desse autor mexicano.
Diplomata, ele servia na India quando escreveu este enigmático e lúcido texto. É um relato de viagem? É poesia? É filosofia? Quem sabe? Paz anda pelo caminho de Galta e vê uma parede suja e ruínas de um palácio. Macacos e homens nús que se pintam com cinzas humanas e com bosta de vaca. Uma mesa no vizinho e uma sombra de fim de tarde. Tudo lhe causa impressão. E tudo lhe faz questionar o tempo, a escrita e as coisas.
Somos seres que pensamos o mundo, olhamos e nos vemos no mundo, narramos o mundo, mas a angústia é a de que o mundo não nos vê. A tarde e a árvore são indiferentes a nossa presença. Não nos conhecem, ignoram. A tarde a a árvore podem ser destruídas por nós, feitas um nada, e mesmo assim continuarão a ser ignorantes sobre quem somos. Exilio.
A linguagem nos exila da vida. Ao dar nome a árvore não mais podemos a ver. As palavras tecem um véu entre a coisa, que não tem um nome, e o nome a que a nomeamos. O que vemos é uma árvore e não aquela árvore. A vida é uma linguagem, mas a linguagem não pode ser uma vida. Esse o tema principal do livro. A linha da escrita e do pensamento se tece no tempo e na materialidade do começo/meio/fim. Mas a árvore não conhece e não exite nessa linha. Nós a vemos em palavras e linhas, ela não é isso. Nos é inalcansável.
Mais: o eu foge  de nós. Nunca nos sabemos como eu. Passamos a vida a procura desse eu que foge por não ser explicável e traduzível em palavra. O vemos e então ele já se foi. Mas entre aqueles homens sujos, que sabem que nossa voz "é apenas um ruido como o ruido dos macacos e dos periquitos", ele percebe o estar-estando, o ser-sendo.
Eles andam pelas estradas da India, como seus avôs faziam e como seus netos farão. Não há uma linha ali, há um momento que vence o tempo. O agora é ontem que é amanhã. A linha se faz um caracol. Vida que prescende da palavra. O homem sem nome que está como a árvore. Reconciliado. O agora é um agora desnarrado. Sempre o mesmo e jamais igual.
Os animais falam entre si, mas nós falamos com as coisas e com nós mesmos. Nunca estamos calados e nunca conseguimos dizer aquilo que quer ser dito. Falamos esse discurso na árvore, na tarde e na Lua. Eles não.
A poesia tenta dizer o real e não pode. Ela não nomeia o que não tem nome, ela "desnomeia" as coisas. Faz o processo enlouquecedor de tirar das coisas seu nome. Rasga o véu da linha e tenta restituir a árvore sua condição verdadeira. Não consegue, mas toda poesia continuará tentando. Fazer da linha um momento que não passa e não corre.
Problema da escrita: ao ser lida ela se desfaz. Lemos e misturamos as linhas, interpretamos, sentimos, destruímos. Esquecemos. Lemos a árvore a ao lê-la deixamos de ler a árvore. E por ter sido lida ela não poderá ser o que é. Será um texto destruído. A árvore não é uma palavra, mas fazemos dela uma palavra, e lendo essa palavra perdemos a palavra. Dupla perda.
Paz fala ainda de sexo, do corpo. Pois mesmo um corpo nos é inacaptável. Vemos partes, uma coxa, uma boca, um sorriso, mas não vemos a totalidade do corpo. Ele sempre será fragmento, silaba de um discurso.
Livro que pode ser lido em fragmentos aleatórios, prosa em poesia, Paz pensava o próprio ato de pensar e escrevia sobre a razão de se escrever. Ele desconfia das palavras, vai contra os linguistas, diz que as palavras nada dizem, que a verdade sempre escapa, que o dito é o desimportante. Que a verdade não consegue ser pensada em linguagem. Octavio Paz nunca teve medo. Questiona o que vê, o que aprendeu e até o que sente. Em nosso mundo de texto e de imagem virtual, Paz faz uma falta tremenda.

WHITE, WHITE, JABOR, DR.REY, FRASIER, QUEEN E VITÓRIA

Arnaldo Jabor escreveu ontem sobre a experiência de se assistir um filme de ação hoje. Ele fala do ruído, do movimento sem parar, da aversão ao pensamento. As duas horas que satisfazem plenamente, mas que deixam um vazio após a experiência. Quando o filme acaba, nada fica com você. Faltou Jabor falar que o efeito desse cinema sobre a mente é idêntico ao efeito da droga. Euforia, adrenalina e depois o silêncio vazio. Vem então a dependência e a aversão a lentidão e ao tempo-morto. O cinema não é mais relevante. Ele é um tipo de passatempo oco, que ainda impressiona algumas pessoas que não conseguem ler, e usam o cinema "de arte" como grife de cultura. O cinema dito "de arte" é ainda mais vazio que o cinema de ação. Vende tédio como sofisticação, ideias velhas como coragem e absoluto narcisismo impotente como estilo. É também uma droga que deprime, acalma, pacifica. Blá!
Um milagre aconteceu! Jack White conseguiu alguns anos atrás criar um riff que se tornou tão popular como Smoke on The Water ou Satisfaction. O riff do White Stripes é cantado em todos os jogos da Euro. Um riff de rock se fazer hino é coisa que não ocorria desde 1980, quando Back in Black virou tema de jornal. Isso faz com que eu lembre de 1977, quando em meu curso de inglês tivemos aula sobre um single recém saído. Ele tinha de um lado We're The Champions e do lado b, We Will Rock You... Quem diria que naquele vinilzinho vivia a trilha sonora de todo o esporte das décadas seguintes?
Dirigir de manhã cedo escutando Barry White....em seu tempo ele era uma vergonha, hoje é chic. Eu sempre achei ele o máximo!
Mostra de filmes de Satiyajit Ray. Por um real. A Canção da Estrada é um dos mais originais e belos filmes já feitos. Obrigatório para quem nunca viu, Ray é um nobre fazendo cinema. Um quase deus olhando a miséria da vida. E se pondo em meio a seu povo. E tem uma trilha sonora de chorar de alegria. Filmes como esse fizeram do cinema uma arte central. O tacho que se raspa hoje é o tacho feito por Ray e muitos outros.
Um amigo elogia a série vitoriana da TV. Engraçado como as novas gerações só aceitam novidades vindas em pacote televisivo. Orgulho e Preconceito é a era vitoriana em seu aspecto mais bonito. Mas ninguém viu. Já a tal série.... Meu amigo sacou que aquela época é um calmante para nossos tempos. Sim. Etiqueta, valorização do "melhor" e segurança social aparente. Eu creio que o fascínio pela época de Vitória e de Eduardo vem das porcelanas e dos guarda-chuvas. Aqueles ambientes de janelas embaçadas, sofás de veludo e lareiras imponentes dão um sensação de conforto e de consolo irrecuperáveis. O Discurso do Rei exibe a fratura que matou e enterrou esse mundo. My Fair Lady é o melhor retrato desse tempo em filme. Eu amo os livros escritos nesse tempo. E.M.Foster, Conrad, Wharton, Henry James, Woodehouse....
O Saturday Night Live se revela absoluto fiasco. Pena.... Erro de cálculo. Botar um programa de humor em concorrência com bundas, sensacionalismos e a hipnose de Silvio Santos é missão inglória.  Domingo a noite é horário de vlae tudo pela audiência. Mundo cão x Mundo idiota.
Dr.Rey é o ponto mais baixo que podemos chegar?
Reassisto Frasier. O segredo de uma série de TV, aliás, o segredo da TV, é a amizade. Gente na sala, na tela de TV, se torna um tipo de amigo consolador. Se o cara na TV consegue criar esse vínculo, vem o sucesso. No cinema ninguém precisa criar amizade pelos tipos na tela para os aceitar. Na TV não é assim. A gente os recebe em casa. O Dr. Frasier é o amigo que eu queria ter. Penso que quem ama House ou amou Friends sentiu o mesmo. É por isso que a TV nunca poderá ser completamente arte. A ofensa e a provocação antipática são impossíveis na TV. Por mais crua e sanguinolenta, sempre haverá um cara bacana e uma mocinha bonita no meio da coisa. Um amigo pra se ver em casa.

PONTO ÔMEGA- DON DELILLO

   Numa galeria há uma instalação. Numa tela, o filme Psycho de Hitchcock é exibido em velocidade lenta e sem som. O filme passa a durar 24 horas. O livro começa nessa exposição. O tema é o tempo, o tempo como convenção e o modo de se modificar sua existência.
   Num deserto. Um velho. Ex-conselheiro de guerra. Na verdade é um intelectual que se fez conselheiro no Iraque. E um jovem. Que tem um projeto de fazer um filme com esse velho. Um filme sem cortes, em tomada única. "Como Sokurov em A Arca Russa", diz o jovem cineasta.
   Nesse deserto desaparece uma pessoa.
   O livro é isso.
   Um momento no tempo. Curto, 100 páginas, sufocante, cheio de ideias obscuras. Se voce quer começar a ler Delillo é este o livro. Não por ser o melhor, mas por ser o menos trabalhoso. Ele observa a vida de agora com ira. Ira fria.
   Incomoda.

A VIDA DO CORPO

   Li um texto em jornal, de J. Coutinho, onde ele fala da tomada de poder do corpo. Com o fim da idade religiosa, o que vemos hoje é a ditadura do corpo e assim vivemos suas leis como verdade única.
   Tudo em nós é então voltado aos valores corporais e tentamos o impossível, dar sentido à vida pela via biológica. Tudo se torna corpo: emagrecemos ou sofremos com nossa gordura, nos enfeitamos e passamos a vida toda preocupados com nossa aparência. Ser feliz passa a ser conseguir ser bonito, saudável e com atividade sexual plena. Tatuagens, piercings, centenas de sapatos, cirurgias plásticas, maquiagem, academias de ginástica; esses passam a ser os mantras do corpo. O espelho se torna o altar, o cirurgião plástico e o personal trainer são os pastores.
   Felicidade é ter saúde, sorrir com dentes brancos e "parecer" feliz. Neste mundo que matou a alma, tudo se resume a nosso corpo. Procuramos nele a felicidade, o bem e o sentido. O que ele pode nos dar? Óbvio, ele nos responde com suas limitações, tudo o que ele pode nos dar são prazeres efêmeros, prazeres corporais. Passamos a crer então que a vida em sua totalidade é este corpo, que ela existe dentro desses limites, que a vida é apenas isso, eu e a relação com meu corpo.
   Nesse mundo corporal nada pode ser mais temido que o mundo da alma que o nega. Se o corpo é imediatista, temporal e óbvio, o mundo da alma lhe parecerá sem razão, atemporal e incompreensível.
   Não tenho o menor interesse em saber se há ou não uma alma. O que falo é de alma como tudo aquilo que não é carne e exterior. A religião é criadora e ditadora desse mundo. Quando a matamos, instituimos outra ditadura, a corporal.
   No reino da alma a busca não é por beleza, saúde e vida longa. Procura-se honra, tradição e o salvamento da alma. Se hoje ansiamos pela sobrevivência, creia, houve um tempo em que a vida da alma era o objetivo. O corpo era para ser escondido, negado, ignorado. A alma era a grande preocupação.
   Interessante notar que hoje é o oposto em sua forma mais radical. Esconde-se qualquer sinal de vida interior, a alma é negada, escondida e silenciada. Ninguém se guiará por honra, por uma tradição ou pela salvação. Os valores serão sempre o prazer, a saúde e a beleza física.
   Começo um livro de um muito importante autor atual que eu nunca lera ( mas de quem ouço falar a vinte anos ), Don Delillo. Nessa novela o personagem principal diz que caminhamos para a volta à pedra. Que desejamos retornar a condição de coisa, que nosso corpo ansia pela não-consciência de si, pelo não-ser. Tornar-se um tipo de pedra, que jamais deixa de estar lá, e que não pensa em si-mesmo, uma coisa em repouso. Para Delillo, nossa história é a jornada de matéria que criou auto-consciência, e que ao fechar seu ciclo se fará matéria sem consciência outra vez.
   O texto de Coutinho se casa a perfeição com essa ideia de Delillo.
   No fim do texto o brasileiro diz que não devemos reclamar da vida vazia e sem sentido. Essa é a vida possível ao corpo e nós a criamos e apoiamos todo o dia. Comer, dormir, gozar. Se enfeitar, se cuidar, ficar forte, reproduzir. Fora disso, nada. Eis a vida corporal.

EU ME LEMBRO, SIM, EU ME LEMBRO- MARCELLO MASTROIANNI, VIVO, BELO E PROFUNDO

   Quando em 1996 Marcello Mastroianni foi a Portugal fazer aquele que seria seu último filme ( foram 170 ), uma pequena equipe foi com ele, para fazer o belissimo documentário que tem o nome igual ao deste livro. Os nomes só poderiam ser iguais, pois o livro é a transcrição do texto que é dito na película.
  Marcello solta a memória e viaja por lembranças. Não há nenhuma ordem cronológica e não se faz nenhuma pergunta. Ele fala aquilo que sua lembrança diz e coisas como casamentos ou amores ficam de fora. Cinema, infância, sonhos, medos, viagens, frustrações e amigos. Esses são os temas aos quais Marcello viaja. Fala sem pretensão, nunca procura ser sábio ou original; e acaba por ser cativante. O livro, que pode ser lido em duas horas, é tudo aquilo que o livro sobre Clint Eastwood não é.
   Talvez os dois livros demonstrem a diferença entre Clint e Marcello. Mais que isso, a diferença entre uma visão de vida á americana e à italiana. A história de Clint é objetiva, cronológica, sensacional e cheia de fatos. Marcello é subjetivo, foge da cronologia, conta coisas inuteis e viaja em ideias e sonhos.
   Ele recorda a mãe, o avô carpinteiro, o cheiro da madeira. As ruas de terra, as meninas. Fala de Tchekov, de Kafka, de Stendhal. Recorda Visconti, De Sica, Monicelli e Fellini. O modo maravilhoso de filmar de Federico Fellini. Uma festa nos sets, tudo em improviso, sem roteiro e sem falas, apenas breves instruções, o amor de Federico pelas pessoas, pelos rostos, pelos tipos ricos e diferentes. A imaginação que crescia sem parar, que aumentava tudo, que engolia o mundo.
   Mas o livro é de Marcello, um ator que ama Gary Cooper, Astaire e Clark Gable, mas que diz ser o cinema de seu país o melhor já feito. O cinema italiano tem mais vida porque tem espaço para o improviso, para o acidente, para a criação em grupo, sua pobreza faz dele mais colorido e muito mais real. E nesse mundo criativo nasce o cinema como caldeirão de misturas, uma sopa de ideias.
   Mastroianni foi central nesses 30 grandes anos do cinema da Itália. Seu rosto nos filmes de Germi ou de Scola o colocam como ícone. Cinéfilos tendem a adorar certos rostos. Bogart, Brando, Buster Keaton, Jean Gabin, Toshiro Mifune, Max Von Sydow e uns poucos mais. E no centro o rosto de Marcello, face vista em dezenas de filmes eternos.
   Para quem desejar entender a arte de Marcello aconselho que comece com DIVÓRCIO À ITALIANA de Germi.  Depois adentre aos Fellinis, Viscontis e De Sica.
  Memórias são nossas. Nada é mais nosso, nos pertence de forma mais completa que a memória. Ele cita uma canção dos navajos que fala disso. Deixo-a como um canto a esse ator perfeito e homem admirável:
  "Guarde na memória tudo aquilo que voce viu/ Porque tudo aquilo que voce esquece/ Torna a voar com o vento"
   As memórias de Marcello agora são um pouco minhas também. Salvas do vento, aqui comigo.
   Bela leitura.

CLINT EASTWOOD, NADA CENSURADO- MARC ELIOT

Acabou de sair no Brasil, pela Nova Fronteira esta bio sobre aquele que é, talvez, o maior astro vivo do cinema. Eu falei astro, não ator, e eu sei que hoje Brad Pitt ou Will Smith atraem mais público, porém Clint é uma estrela desde 1966!!! Mas, que pena, este livro é um lixo e aconselho a que não leiam. O retrato que Eliot pinta é sem cor, sem brilho, sem nenhum interesse. Terminamos de ler e quase nada conhecemos sobre o homem, o que aprendemos é apenas aquilo que os jornais falaram nessas décadas.
Clint nunca sonhou com o cinema. Foi levado a ele "sem querer". Gostava de filmes e de jazz, principalmente William Wyler, Billy Wilder e John Ford. Era bonitão e acabou sendo "achado" por empresário de atores. Pontas em filmes classe Z, e o estouro numa série de TV. Clint é até hoje o ator vindo da Tv que mais deu certo na telona. Foi pra Itália, fez os três westerns com Leone e o resto é lenda.
Ele entra na década de 70 como a maior atração de bilheteria do cinema, posto que mantém até o meio dos anos 80. A crítica adorava odiar seus filmes, o público amava. Clint Eastwood criou três tipos que passaram a ser imitados a exaustão: o solitário sem nome e sem história, o vingador violento e aterrorizante e o caipira perdedor. Em cada um deles ele chegou ao extremo, fez o mais solitário dos homens, o mais cruel dos heróis e o mais ingênuo dos caipiras. E só a partir de 1992 é que afinal crítica, Oscar e colegas passaram a ver o quanto ele era central no cinema atual.
Vaidoso, mulherengo, egoísta. Clint é um maníaco por comida saudável, por dietas, vitaminas e ginástica. Segue um programa para viver até os 150 anos. Clint tem sete filhos com cinco mulheres diferentes. Manteve casamentos com amantes, filhos escondidos, namoradas abandonadas, e foi sempre sovina em pensões e reconhecimento. Seduzia suas atrizes e as descartava ao fim do filme. Um Don Juan sem romantismo.
Foi prefeito da cidade de Carmel nos anos 80. A antiga prefeitura proibira o sorvete de casquinha nas ruas e ele se candidatara apenas para liberar a volta do sorvete. Tomou posse, liberou o sorvete e se desinteressou pela administração. Amigo de Reagan, a América pensou que ele seria o futuro lider conservador do país. Necas. Clint é individualista, se diz nem republicano e nem democrata.
O livro gasta páginas e páginas para falar de processos de divórcio, batalhas por direitos e jogos de poder. É chatíssimo! E tudo o que fala de menos árido é o que falei acima. Sem nenhum humor e arranhando muito de leve a superfície, o que Eliot passa é a imagem de um homem desinteressante, desinteressado e sem vida interior. Óbvio que não é defeito de Clint ser assim, com certeza é problema do livro ser escrito de forma desinteressante, desinteressada e sem vida.
Clint Eastwood é famoso por fazer filmes que sempre custam menos que o esperado e que são filmados em poucos dias. Ele faz tudo com pressa, sem grandes preparações ou pretensões. E acerta. Tem instinto. Marc Eliot não tem. O livro parece escrito a duras penas, com dificuldade, sem prazer algum. Ele erra.

O MAR- JOHN BANVILLE

   Vencedor do Booker Prize em 2007, este livro apresenta um grande problema: sua metade final. Ele arranca cheio de promessas e de belíssimas imagens, e então cai numa maçaroca de auto-piedade e de vazio sem porque. Se perde. Banville nega aquilo que tem de melhor e aceita a vulgarização da vida e da morte. Faltou coragem a esse bom autor. Se no meu texto abaixo falei que ele era um dos melhores autores vivos, digo agora, ao terminar seu livro, que ele não é um dos melhores. Frustrante.
   Um homem viaja para uma praia. Sua esposa acabou de morrer após longa agonia. Na praia ele se recorda do fim de sua infãncia e de momentos de sua vida adulta. Por todo o primeiro terço do livro, temos uma encantadora sensibilidade. Cheiros, cores e vozes são nos dadas de presente. Banville consegue fazer com que lá estejamos com ele. Mas de repente ele se perde. Abre mão de sua fantasia e sucumbe ao comum, longas descrições do nada, de fatos sem o menor interesse e sem arte. Quando Banville perde o interesse pelo jovem personagem o livro sucumbe.
   Bons livros crescem durante a leitura. Livros excelentes já começam em alto estilo e conseguem subir ainda mais. Obras de gênio continuam a crescer após fecharmos a capa. Este não é ruim, é impotente. Promete e desiste. Contenta-se com muito pouco.
   Pena.