FREUD/ COCO CHANEL/ O CORVO/ SHANGHAI MARLENE

O CORVO de Henri-Georges Clouzot
Cartas são enviadas anonimamente e deixam pessoas muuuuito nervosas. Mestre Henri toca em ferida de franceses de 1944 : a delação. O filme, labirintico, envolvente, nervoso e maravilhosamente belo, é obra de diretor inesquecível. Clouzot domina toda a técnica mas vai além, tem muito o que falar. Não é seu melhor filme ( O SALARIO DO MEDO é imbatível ) mas fornece pistas do quanto ele é grande. Nota 8.
A ÚLTIMA MISSÃO de Hal Ashby com Jack Nicholson, Otis Young e Randy Quaid
No livro de Peter Biskind se fala muito deste filme. Exemplo do moderno filme americano da época : sem herói, sem grandes cenas, sem enfeites. Jack tem talvez seu melhor desempenho e a história fala de dois marinheiros que devem levar marujo, preso por ter roubado, de base naval até policia. Acabam desviando do caminho e se encantando pelo prisioneiro, um ingênuo caipirão. O filme tem a virtude de ser honesto, crú. Ashby foi mais um talento destruído pelo pó. Nota 7.
A GAIOLA DAS LOUCAS de Edouard Molinaro com Ugo Tognazzi e Michel Serrault
Perdeu a graça. Baseado numa peça de imenso sucesso de Jean Poiret, fala de casal gay que irá receber a visita da ultra-conservadora família da noiva do filho de um deles ( o filho foi concebido em noite de fraqueza ). Assisti este sucesso ( filmes europeus faziam sucesso popular nos anos 70/80 ) no cine Cal-Center. Achei hilário na época. Era um tempo em que assistir alguém desmunhecar era engraçado. Não sei se somos mais tristes ou menos ingênuos, mas esse tipo de humor não provoca nada hoje. Tognazzi está muito bem, Serrault nem tanto. A refilmagem de Nichols com Robin Willians não é melhor. Este vale como lembrança do luxo dos anos 70. Caraca ! Como as pessoas se vestiam com cuidado !!!! Nota 4.
O EXPRESSO DE SHANGHAI de Josef Von Sternberg com Marlene Dietrich e Anna May Wong
Cada close em Marlene é sonho de beleza ( e como ela está canastrona ! ). Sternberg era apaixonado por ela e fez sequencia de filmes só para a homenagear. Este é o mais famoso, mas não o melhor. O estilo das imagens ainda impressiona : barroquismo puro. Sternberg enche a tela de gente andando, de carroças, cavalos, carros, malas, véus e móveis. As estações de trem e o próprio veículo são completamente falsos, mas são ao mesmo tempo aquilo que sonhamos como certo. É o mundo como ele deveria ser, não como é. Cada escada e cada roupa é obra de mil detalhes. Sternberg era louco. O filme é velho como diamante. E ainda brilha. Nota 7.
COCO ANTES DE CHANEL de Anne Fontaine com Audrey Tautou
Lixo. Lindos cenários que nada significam em historinha boba sobre a vida de Chanel em seus começos. Chega a ser desagradável de tão vazio. Nota 1.
HOMEM DE FERRO II de Jon Favreau com Robert Downey e Mickey Rourke
Um filme tipo Amaury Junior. Voce olha um bando de celebridades se divertir ( eles riem, se exibem, brincam, são sexy ) enquanto voce baba fingindo se divertir também. Não dá pra dizer que o cinema está em crise de talento. Terminou. O que era lixo é hoje top, o que foi top é feito com vergonha e sensação de fracasso. A inteligência artística morreu, viva a esperteza bancária.
FREUD de John Huston com Montgomery Clift e Susannah York
Em seu livro Huston diz ter péssimas lembranças deste filme. Atores com estrelismo e sets tensos. Mas valeu a pena : o olhar de Clift é poder transcendente. Ele é Freud sem imitar Freud. Ele cria seu Freud, ou seja, interpreta. Penso que se refizessem este filme fariam de Freud um tipo de cheirador doidão. Aqui ele é um neurótico muito curioso, que enfrenta a descrença de seu meio. As cenas de sonho são inesquecíveis e todo o filme, fotografado em p/b por Douglas Slocombe, tem a irrealidade de fotos perdidas. Assisti pela primeira vez em 1978 na Globo. Foi paulada tão forte que não pude dormir. Revisto algumas vezes desde então ele mantém seu poder. É filme sério, sisudo até. Como Freud o foi. Huston dirige de seu modo rápido e sem frescura, funciona. Aqueles cenários de ruas enevoadas e os hospitais com seus loucos perdidos nos hipnotizam. Freud se perde dentro de si-mesmo e volta à tona com a chave do inconsciente. Se a sua descoberta é válida ou não, não importa. Ele mudou nosso modo de ver a vida. O filme é digno disso. Nota DEZ.

A SOMBRA DAS RAPARIGAS EM FLOR - MARCEL PROUST

Proust é dificil ? Talvez seja; se voce lê-lo com reverência. Leia Proust como se lê um amigo. Corra os olhos pelas suas longas frases. Leia-o como quem passeia por veredas floridas. Flaneie.
Proust é chato ? Jamais ! Ele é radiante. Traz em seu texto a delícia da vida bem vivida. Vai fundo no que sente, tem coragem, tem alcance e acima de tudo, é belíssimo.
Mas Proust bate de frente com nosso tempo. E assim, torna-se valioso remédio para stress e para ansiedade. Nos traz mundo calmo, delicado, sem atrito. Descortina um jardim.
Mas nada tem de beleza escapista. Não é nunca um poetinha. Neuroses e tristezas estão sempre alí, em toda frase. Mas ele aprecia esses sentimentos, os cultiva, analisa-os e distende-os. É o maior dos psicólogos.
Maravilhoso o modo como ele desenvolve seu romance. O narrador recebe uma visita. Essa visita recorda outra visita. Que recorda um sentimento. Desse sentimento vem outro sentimento e outra lembrança. Daí nasce uma conclusão e dessa conclusão vem mais outra lembrança.
Nos perdemos nesses caminhos de sol e de chuva. Mergulhamos em suas imagens e ao lê-lo trazemos à tona nossas próprias imagens. Ler Proust é dialogar com o livro. Lemos e pensamos ao mesmo tempo, vemos suas imagens e desenterramos as nossas.
È fantástico o modo como ele descreve a ação física. Após dezenas de páginas onde o personagem espera pela visita de sua amada, ela chega e parte em duas linhas. Toda a ação física do livro é descrita assim, uma ou duas linhas.
Não é essa a nossa vida ? O amor vive na cabeça, cada ação produzindo milhares de sensações, recordações, medos, planos, ilusões e expectativas. Para Proust, lembrar de um amor é amar. Enquanto voce está com a amada, o amor é obstruído por palavras, atos, jogos, planos, ruídos. Depois, a sós com seu espírito, voce vive o amor completo, recordando tudo o que foi sentido.
Se é assim nossa vida não importa. O que tem importância é que Proust nos dá uma opção de entendimento dos afetos. Talvez seja assim. E sua escrita nos convence disso ao nos lembrar de nossas paixões. Belas e eternas não enquanto ação, mas maravilhosas em nossa mente.
O personagem é do alto-mundo e dá uma certa tristeza pensar no quanto essa alta-roda dirigente decaiu. O mundo do livro é de um refinamento completo. Marcel Proust dá aulas de etiqueta. Etiqueta da alma. Mente-se com elegância. Despe-se com erotismo. Ganha-se dinheiro com discrição. Afetos e privacidades tratadas como jóias de família. Tesouros para muito poucos.
Em mundo onde esfrega-se tudo no rosto de todos, onde nada é tesouro secreto e nada tem o valor do segredo, ler Proust é acariciar o coração. Uma alegria que embala o sangue.
Poucos livros são lidos com a sensação de se estar crescendo. São romances que nos nobilitam, nos engrandecem, nos ensinam dizendo aquilo que já sabíamos mas não formulávamos. Poucos autores são como guias e menos ainda são mundos completos. Abrir Proust é abrir carta de amigo, ler diário de avô sábio, conhecer nobre imortal.
Em mundo onde quem grita leva e quem chora vence, Proust nos dá a certeza de que gritos e choros passam, mas veredas de recordações brilhantes ficam. Ignorar isso é desperdiçar a vida.

O FIM DE UM AMOR INFINITO ( AO SOM DE GRAM PARSONS )

O mais duro foi olhar o rosto dela pela primeira vez. Olhar pela primeira vez sabendo não mais ser meu rosto. Porque seu rosto era meu continente. Cada sinal e cada curva era uma perfeição imperfeita onde eu reconhecia meu mundo. O rosto dela era meu lar, meu começo e minha morte futura. Agora, pela primeira vez, eu devo olhar esse mundo como estrangeiro.
Como poder viver sem casa ?
Como não mais ouvir sua voz ? Porque a voz dela era a música dos meus dias. Som que parecia ser minha trilha desde sempre. Voz que dizia tudo que importava e que bania o resto. Poderei viver sem essa voz ?
Depois ter de aprender a ver o mundo sem ela. E o pior : ter de encarar o mais terrível dos fatos : nosso amor não é/era perfeito. Foi maculado por um fim e amor que tem fim não é amor perfeito. Cair.
E nos dias seguintes caio do céu onde eu não tinha consciência de estar. Sinto solidão pela primeira vez em anos. E penso : Para que estar aqui se meu continente se foi ?
Aprendo então a sobreviver no mar. No frio úmido de fins de tarde cruéis. Para que existe o domingo ? Porque não pular domingos ? As vagas me afundam, me erguem e eu não ligo mais. Que o mar faça de mim o que lhe aprouver. Eu, deixado, me deixo.
Dias indiferentes e noites de triunfo sem ganho.
Um dia sinto que o frio úmido pode ser belo. E que o mar é sempre. Nasce a poesia e simbolizo a vida. Deixo a coisa ir e vir e tomar e passar. Me vejo de longe. E ainda a ouço todo
dia.
Mas ela não cresce mais em mim. Tornou-se mais um símbolo. Outra onda em oceano vago.
Dizem que feridas cicatrizam. Nunca cicatrizam. Dizem que o tempo cura. Não há cura. Tudo o que voce vive viverá em voce para sempre. Aquilo que foi seu mundo será mundo ausente e morto, mas permanecerá luto. Sombra sobre restos imorredouros.
O rosto dela é hoje irreconhecido. O meu continente afundou em maremoto de lágrima.
Mas a ferida fica como parte de meu mar e de meu símbolo.
Quem falou que viver é fácil ?

PROUST É AGORA MAIS ÚTIL QUE NUNCA...

Eu mergulho nas páginas de Marcel Proust procurando nelas o resgate de meu mundo próprio. Nada é mais saudável hoje que ler Proust, ele é o antídoto a tudo que nos aflige. Nele somos convidados a diminuir a velocidade, a resgatar o dom da observação e principalmente a cultivar o brilho espiritual. Ele é guia de bem viver.
Só o que está fora de moda pode nos resgatar. Nosso mundo é um convite a não-individualização. Sem perceber, voce se molda a quatro ou cinco protótipos ( inclusive o tipo anti-tudo ) e pensa estar sendo voce-mesmo. Não. Com o mergulho sem escafandro em Marcel, sua alma relembra a amplidão natural que toda vida pode ter. Amplidão que nos é roubada em labirintos de ruas quebradas e edifícios entalados em pedra e aço. No tempo que tem só um sentido, adiante sempre, rumo às novidades. Mundo atual que nos obriga a jogar tudo fora, sempre.
O modo como Proust escreve modifica nossa forma de pensar. Há quem o chame de "o primeiro neurolinguista" do mundo. Sua prosa é como um descascar de cebola. De casca em casca, de frase em frase, ele vai nos demonstrando que tudo é relevante, que cada fato e cada imagem é universo infinito de sentidos e de história. É um anti-fugacidade, um anti-superficialidade, e é um oceano de prazer.
Porque prazer ? Marcel Proust não é autor dificil ?
Sim, dificil por exigir ateñção do leitor. Mas um prazer celestial, por nos dar em troca a imensa sensação de se estar vivo. O autor francês nos exibe em linhas sem pudor, a felicidade de se fazer parte da linha do tempo. Aliás, linha que se enrola como novelo até se fazer bola. Um círculo em que todo prazer vem do tempo que se esvai. Uma perigosa feitiçaria, pois ele nega tudo o que este século afirma.
Para Proust o sentido da vida está no que já foi vivido. Nosso prazer não reside na esperança de um novo amor, reside na lembrança de amor perdido. Cada beijo é presente que se torna imediato passado, e esse passado é tudo o que temos. Negar nossa história é viver em vazio.
NOTE BEM : IGNORAR E NÃO ATENTAR, PROFUNDAMENTE, AO QUE SE VIVEU, É ESVAZIAR A PRÓPRIA VIDA DE SEU VALOR. Pois só tem valor aquilo que pode e merece ser recordado.
Nada é mais contrário a nosso mundo caminhante que essa idéia. Proust ajuda-nos a valorizar a vida, valorizando tudo o que foi feito e pensado.
Proust amava música. Nenhum texto é mais musical que o seu. O modo como ele escreve é harmonia de sensações e melodia de palavras. A escrita alça vôo, plana e desaparece dentro de nossa consciência, toca nossos nervos e nos acalma. Tudo nele expressa um grande " Assim é ".
Mas o mais importante em Proust é que ao ler sua prosa opera-se em nós uma afirmação de fé. Nasce lentamente uma espécie de orgulho proustiano, um assumir-se como história individual, um rememorar, enamorar-se de sí-mesmo. A melodia nos envolve e nos indica as galerias abissais de nosso espírito, galerias em que penetramos sem qualquer medo, sabendo estar sendo guiados pela música da escrita. Nos individualizamos.
Proust pode salvar sua vida ( como escreveu Alain de Botton ) pois ele lhe dá valor, dignifica sua trilha, dá sentido ao seu passado. Nos faz acariciar alma e cérebro, toca nossa mão e nos embala rumo à vida real.
Se voce conhece algum autor mais "útil" me diga. O que Marcel Proust oferece é a restituição de almas ignoradas e ignorantes. O novelo do tempo e do sentido, a fé em sí.

Stendhal, Tolstoi, Henry James e Marcel Proust
Não existem autores que escrevam melhor. È o quarteto que faz prosa musical, quarteto de melodia e harmonia, estetas.
Stendhal é puro prazer e amor. Tolstoi é filosofia de vida e de além. James pinta rostos e exibe a realidade de sentimentos. E Proust, memória que é chave para valorização de vida.
Ler esse quarteto é uma felicidade.

SCORSESE/ FANTASIA/ GROUCHO/ NUM LAGO DOURADO/ TERREMOTO

NUM LAGO DOURADO de Mark Rydell com Henry Fonda, Kate Hepburn e Jane Fonda
Kate derrotou Meryl Streep, Susan Sarandon e Diane Keaton em 1982 com este filme, levando seu quarto Oscar. Henry, cinco meses antes de morrer levou o seu. Ele está fabuloso ( nunca o ví menos que fabuloso ) nesta melosa história de casal de velhos que passa férias em casa à beira de lago. Lá eles recebem visita de filha problema ( Jane, bela e aparecendo pouco ) e tomam conta de filho do novo namorado da filha. Henry consegue passar tudo o que significa ser velho : ter medo de morrer. Seu velho nunca se parece com uma piada. O filme nunca pesa demais, tem momentos de muito humor e é representante da reação do cinema-família contra as loucuras dos anos 70. Fez imenso sucesso e recordo de o ter visto sobre o Atlântico, no avião voando rumo à Frankfurt. Reparo também que é um tipo de filme completamente extinto. Ninguém é neurótico, ninguém tem emprego esquisito, nem é muito rico ou miserável. Nada ocorre de sensacional, é apenas gente banal em momento importante e inevitável. O filme se deixa ver, e passa como canção nostálgica. Tudo nele é bonito demais, limpo demais, mas os atores levam a história com brilho e conseguem dar vida ao que dizem e fazem. Nota 6.
FANTASIA de Walt Disney
Após o imenso sucesso de Branca de Neve, Walt gasta tudo o que tem e vai à falência tentando provar ser artista classe A com este muito metido desenho. Fantasia levou anos para ser feito e foi detestado por público e crítica. Walt se salvou com Dumbo e Pinóquio, e nunca mais se arriscou. Este desenho são clips de música erudita. Interessante notar como desde então o mundo inteiro se disneysiou. A forma como este filme vê a arte é absolutamente infantil. A sexta de Beethoven se torna uma fábula de pseudo-mitologia, com cavalinhos alados, centauras ninfas e muita pedofilia. Seios nús e muitas bundas de bebês, mas tudo bem gracinha, bem Disney. A Sagração de Stravinski, que é hino de paganismo, aqui é história sobre a criação da vida. É muito bom, é legal ver mares em erupção, vulcões, fogo e dinossauros. Mas nada tem de Stravinski. O final tem Mussorgski, em cena que cita ( plagia ? ) o Fausto de Murnau. Demônios e assombrações. Deve ter apavorado as crianças... Há ainda Dukas, Tchaikovski, Schubert... velho problema do mundo pseudo-intelectual : pensar que citar autores significa conhece-los. Disney infantiliza, domestica, torna tudo inofensivo. Profeta desta época de parques de diversão e visuais chocantes. Nota 3.
BELEZAS EM REVISTA de Lloyd Bacon com James Cagney, Ruby Keeler e Joan Blondell
Musical anos 30 com coreografia de Berkeley. É incacreditávelmente brega e deliciosamente bobo. Como sempre, tudo gira em torno da montagem de um show. Tem uma coreografia aquática inacreditável : dá pra perceber o medo de miss Keeler. Impressiona a objetividade do cinema de então, não se perde tempo com nada, as coisas são curtas e diretas, se é pra acontecer, que aconteça já. Isto é a TV de 1933 !!!! Nota 7.
A RELIGIOSA de Jacques Rivette com Anna Karina
Baseado em Diderot. Hiper pretensioso, eis aqui tudo de ruim que o cinema francês e a nouvelle-vague em especial, pode ser : chato. Chega a ser inacreditável sua cara de pau. Nota 1.
TERREMOTO de Mark Robson com Charlton Heston, Ava Gardner e George Kennedy
Filme do tempo em que acidentes eram moda no cinema. Sua primeira hora é boa, Robson sabe levar uma história, mas quando começa o terremoto enjoa tanto acidente e tanta tragédia. 4.
A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO de Martin Scorsese com Willem Dafoe, Harvey Keitel e Barbara Hershey
Baseado em Nikos Kazantzakis. Com o mesmo roteirista de Taxi Driver ( Paul Schrader ), Martin vê Jesus como um Trevis Bickle palestino. Jesus começa o filme como Van Gogh, um esquizofrênico, e termina como Cristo, ser que funda nosso mundo. Sua morte é momento de cinema corajoso e de soberbo talento. Scorsese consegue demonstrar que apenas a morte na cruz faz de Jesus, Cristo. Ele não poderia morrer como homem, seu sacrifício ( e o filme é genial como exposição do que seja ser herói ) é o motivo de sua existência. O herói é herói ao morrer, não em vida. Isso é demonstrado de forma engenhosa. Mas o filme tem uma cena muito ruim : a salvação da prostituta. Parece que veremos o Monty Python cantar. Uma cena genial : a ressurreição de Lázaro. Aterradora e crível. O filme nada tem de fácil, Judas ( Keitel, muito bem ) é visto como figura tão importante como Jesus e os outros apóstolos são pouco mais que broncos. Trata-se de filme cheio de ira, de brilho e de muita dor; sentimos que Scorsese se penitencia. O filme mostra toda a revolucionária novidade de Jesus : um Deus de amor. Até então todo deus era baseado em força e poder, Jesus coloca o amor no centro do mundo, o amor como razão para se viver. Ele inaugura-nos. Nota 8.
THE PLEASURE GARDEN de Alfred Hitchcock
É o primeiro filme do mestre. Vale só por isso, pois é um comum filme pop inglês da época. Não se trata de suspense. Nota 4.
SUPLÍCIO DE UMA ALMA de Fritz Lang com Dana Andrews e Joan Fontaine
Último filme americano de Lang. Uma vergonha ! Mal enquadrado, atores sem direção, roteiro cheio de furos. O grande Lang sem nenhum tesão. Nota Zero !
CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO de John Sturges com Spencer Tracy, Robert Ryan, Lee Marvin e Ernest Borgnine
Homem chega a cidadezinha. Todos o recebem com rancor. Todos escondem um terrível segredo. O filme tem fotografia deslumbrante. Ele é seco, árido, másculo. O clima de hostilidade se mantém por todo o filme e o roteiro é redondo, engenhoso, direto. Nada de forçado, nada de inverossímil, nada de pedante. É um belo filme com Spencer dando aula de discrição. Nota 7.
SEU TIPO DE MULHER de John Farrow com Robert Mitchum e Jane Russell
O filme tem uma primeira parte perfeita : um bando de esquisitos num hotel de luxo mexicano. Há um clima Hawks/ Huston e Mitchum carrega o filme com ironia. Mas aí acontece uma loucura : surge Vincent Price, e tudo muda, agora é uma gozação, uma sátira, um carnaval. Entendemos então que o filme mudou de diretor, que o produtor é Howard Hughes e que Farrow brigou com ele. Toda a parte final se parece com bebedeira, o filme cambaleia, fica à deriva. Não deixa de ser fascinante com as cenas dentro do barco tão ousadas, modernas, tortuosas. É um filme invulgar. Nota 6.
OS GÊNIOS DA PELOTA de Norman Z. MacLeod
É com Groucho, Chico e Harpo. Quem não gosta deles ( óh pobre infeliz ) vai detestar este filme. Tudo aqui é anárquico, solto, sem porque. Quem gosta deles ( óh gente feliz ) vai embarcar na viagem rumo ao mundo sem sentido dos geniais Marx. Nota 7.

DANDO UMA DE HG WELLS

Voce nascerá e será imediatamente conectado a um serviço de medicina e babá. E já começará a aprender duas línguas. Essa conexão com pediatra, pais e professora será então ampliada para amiguinhos e um pet. Porque todos carregarão uma central onde se ficará ligado vinte e quatro horas por dia. Todo o tempo voce assistirá tudo o que seus amigos fazem e eles verão tudo o que voce faz. Será o mundo da total exterioridade, não haverá como criar vida interior.
A música te acompanhará pela vida inteira, silêncio será desconhecido. Voce criará sua própria trilha sonora e tentará fazer com que seu amor a compartilhe. Ninguém escutará nada do outro, só o que ele criou para sí-mesmo. Será o sonho do romantismo : todos serão artistas ! Porque essa trilha não será baixada. Com programas simples voce comporá e executará a música que voce sonha. Para voce mesmo.
Haverá também um programa que executa filmes. Terão criado imagens virtuais de atores do passado. Assim voce poderá criar um policial com Humphrey Bogart, Harrison Ford e Louise Brooks. O programa criará um roteiro e voce assistirá a esse filme dirigido por sua imaginação. Voce tentará fazer com que alguém o assista, mas todos serão produtores de seus próprios filmes e não terão tempo para ver o seu.
Conectado a vida inteira tudo o que acontecer no mundo será conhecido em tempo real e tudo parecerá virtual. Não vai dar pra se importar muito, pois todo o tempo voce terá amigos falando e imagens e música.... Solidão nunca mais.
Livros serão coisa de excêntrico, voce carregará uma biblioteca numa pastilha. Um mundo sem objetos, tudo estará todo o tempo à mão, suas coisas serão virtuais, mundo sem páginas, discos, fotos, pinturas....
Voce terá a certeza de ter um mundo só seu, bolha onde só penetra o que voce permite. Mas nessa bolha, é estranho, é permitido tudo.
Um programa anti-drama lhe dirá quem namorar. Um outro, de afinidade mental, lhe dirá quem pode ser seu amigo e haverá um para sexo casual ( tipo físico e classe social ). Essa pessoa terá acesso a seu sistema special-gold, onde voces misturarão seus programas e comporão musicas e filmes juntos. Casar será unir programas, quem falar comigo falará com voce também. Nossa bolha será comum. Casamentos durarão um ano.
Se terá um refrescante contato com a natureza. Se viajará à Sibéria para se isolar do mundo e de lá voce enviará para seus contatos imagens que eles já têm, em que voce fará tudo o que eles já fizeram.
Gente "muito louca " tomará um chá que os desconectará de tudo. Esse povo verá e escutará o mundo sem música de fundo e sem filtro digital nenhum. Será uma "viagem astral" a de viver por uma hora como os antepassados viviam. O chá é para dar a coragem. Desligar tudo sem algum aditivo dará um terror visceral.
O olfato terá desaparecido, mundo sem cheiro, e os cães serão mais dóceis, um tipo de gato mais moleque. Gatos serão como bonecos de pelúcia.
Nossas peles serão mais claras e desprovidas de pelos. Sempre de óculos escuros e de tecidos cobrindo braços e mãos, o sol nos ferirá. Não existirão mais pessoas louras naturais, mas todos serão louros artificiais. A mulher poderá aumentar e diminuir bunda e seios de acordo com seu humor, de manhã pouca bunda para malhar, de noite um bundão para a balada. Os homens usarão blush, rímel e batom todo o tempo. E terão vozes agudas. Mulheres mandarão. Homens serão apenas reprodutores.
Viveremos 130 anos. O que fazer com tanta vida será a grande questão.
A nova doença será um tipo de catotonia. O cara fica de frente para uma parede e pára de falar, digitar ou reagir. Torna-se um tipo de vegetal. Sem memória.
Todos beberão tônicos para sentir desejo, pílulas para dormir e vacinas anti-stress. O sofrimento será fora de moda, mas haverá uma certa confusão mental, uma sensação de irrealidade que será exaltada como fashion.
Nesse mundo não estarei eu, e provávelmente nem voce. Mas ainda se falará de Platão e de Shakespeare. Mas eles serão interpretados de um modo completamente diferente. Pensarão neles como criadores de vida.
Carros continuarão a existir, e estradas e ruas. A pobreza irá persistir, mas serão pobres conectados, sem comida, mas cheios de imagens e de músicas. A guerra será lutada por robots, mas terá por vítimas as cidades "reais". Ninguém contará os óbitos. Contarão sómente robots avariados.
Usinas produzirão atmosfera, usinas produzirão água. Lagos e sapos serão mitos.
Nesse mundo não estarei eu e nem voce, talvez
Começo a entender então o porque de existir a morte
Nesse mundo eu não quero existir, e nem voce, talvez

Vista do alto a cidade terá milhares de eternos jovens conectados em seus mundos particulares. Sempre ligados a seus milhares de amigos. Todos terão um rosto de sonolencia, um ar de ausência. Eles serão confiantes de que estão sempre felizes. Serão a primeira geração em tudo.
Vista do alto as ruas têm lixo e mendigos. Mas os mendigos estão conectados a outros mendigos e o lixo é ignorado. Na sua visão particular voce está numa ilha dos mares do sul ( as ilhas dos mares do sul são míticas, agora, como a Atlântida. Submergiram. )
Não se apertam mãos, não se dá abraços, mas se beija e se trepa. Muito. Com os que estão na sua rede, os que passaram pelo filtro, os de sempre.
Não se come mais carne de verdade. Só de laboratório. Bois foram dizimados. Porcos extintos ( sem dor ). Frutas e legumes são como sempre foram. Por fora. Têm mais nutrientes. E nenhum sabor. Mas existem ótimos temperos !
Não existe aids, não existe tuberculose, não existe sarampo. Mas existem deformações dos ossos, sangramentos de pele e diluições do sangue. E pessoas que se esquecem e se voltam à parede...
Nesse mundo eu não estarei. Nem voce, talvez....

Colecionadores pagarão fortunas por celulares antigos e os museus de arqueologia irão expor embalagens de hamburger.
O espírito terá sido mapeado e se descobrirá o centro cerebral da esperança. Um chip nos dará fé e um outro uma vida espiritual. A fé será usada para crer no próprio chip e a vida espiritual para ser dividida com os amigos.
Mas pessoas irão se voltar contra a parede, e eliminarão a memória....
Voce procurará esse amigo e encontrará uma parede e um vazio sem informação, fora do ar...

E vendo a cidade do alto voce percebe
Que este não é mais seu mundo
E voce cai.

ALICE/ TUDO PODE DAR CERTO/ LEÃO NO INVERNO/ ORGULHO E PRECONCEITO

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS de Tim Burton
Como Spielberg fez com Peter Pan, Burton resolve mostrar uma Alice mais velha. Coisa de bilheteria.
Difícil falar deste filme. Ele é totalmente calculado para agradar doidinhos-soft e psicodélicos-light. Burton fez um filme que usa personagens e título emprestados de Lewis Carroll, mas que negam tudo o que o autor inglês pregou. Ninguém é obrigado a filmar um livro ao pé da letra, mas é sim obrigado a respeitar o espírito da obra, a intenção do autor. E a única intenção de Carroll era o nonsense. O filme grita e implora uma gota de humor, não consegue. Burton continua preso ao darkismo mais convencional, é um emo cinquentão. O filme, belíssimo e vazio, é enfadonho. Chato em sua loucura fake e profundamente convencional. Tudo pede um toque de Terry Gillian. Alice torna-se assim uma chatíssima moça magrela e tuberculosa do século XXI. Os personagens, e o coelho é o mais mal entendido, tornam-se apenas bobos. Em Carroll eles são perigosos. O filme nada tem de perigoso.
O mandamento número um do livro era o de que nada nele poderia fazer sentido e nada poderia ter uma moral a ser demonstrada. Burton faz sentido e joga uma moral à história. Noto agora a dificuldade que Tim Burton tem com o sexo. Há alguma cena de sexo em algum filme dele ? Ele fez algum filme passado em nosso tempo ? Uma bela decepção este Alice. Apenas uma bonita sequencia de belos cenários com trilha sonora fraquíssima e perdida de Danny Elfman. Um equívoco que será amado pelos emos, góticos e moderninhos de butique. Nota 4.
O LEÃO NO INVERNO de Anthony Harvey com Peter O'Toole, Katharine Hepburn, Anthony Hopkins, Timothy Dalton, Jane Merrow
Um filme perfeito. Texto, foto, trilha e atores. Ele começa forte e não para de crescer até seu final exultante. É um filme que nos dá alegria, força, vontade de criar e de viver. Ele é grande. Comento-o mais abaixo. Nota DEZ !!!!!!!!!!!
ORGULHO E PRECONCEITO de Joe Wright com Keira Knightley, Mathew MacFayden, Rosamund Pike, Donald Sutherland e Carey Mulligan
Joe é bom diretor. Foi ele quem fez o excelente Desejo e Reparação. Aqui, em história de Jane Austen, ele acerta outra vez. Ao contrário de Burton, ele entende e respeita o livro, não se mete a fazer desconstruções e outras tolices. Ele compreende acima de tudo que no mundo de Austen o dinheiro manda no amor. O filme é uma festa. E o elenco se mostra a altura, principalmente Brenda Blethyn e Donald Sutherland, que fazem os pais das cinco filhas casadoiras. Um filme que diverte, emociona e não apresenta um só erro. Austen, Henry James e Dickens são adorados pelo cinema. Felizmente. Nota 8.
PAISAGEM NA NEBLINA de Theo Angelopoulos
Mais uma chance para Theo. Não dá ! Ele é muito chato. É a história de duas crianças procurando seus pais. Mal filmado, mal encenado. Nota Zero.
OS ASSASSINOS de Robert Siodmak com Burt Lancaster, Ava Gardner e Edmond O'Brien
Os primeiros dez minutos são coisa de gênio. Dois caras entram em lanchonete e prendem todos lá dentro. Os dois estão lá para matar um homem. Em termos de clima, fotografia e movimento de câmera é uma aula. Os dois acabam por matar o homem e o filme é a história do porque desse crime em flash-back. É um dos maiores clássicos do filme noir. Tudo nele é fatalidade, pessimismo, podridão e tem Ava, perfeita como a mulher muuuuuito fatal. Não é para ser apenas assistido, é aula de cinema. Nota 9.
A IDADE DA INOCÊNCIA de François Truffaut
O filme fez com que eu lembrasse do porque Truffaut ser tão famoso. Após o fracasso de Adele H, ele lançou este barato e simples filme sobre crianças e escola. Foi sucesso de crítica e estouro de bilheteria. É um filme paraíso : amamos as pessoas e aquela vila. Tudo é dirigido com leveza de poeta e com amor de anjo. Um filme para trazer alegria ao mundo. É pouco ? Nota DEZ.
QUATRO IRMÃS de George Cukor com Katharine Hepburn, Joan Bennet e Jean Parker
Baseado no classico de Louisa May Alcott, livro e filme mostram exemplarmente o modo como os americanos se viam e ainda tentam se ver. Kate está encantadora como a irmã mais estourada de uma família de quatro irmãs no norte dos EUA de 1865. Seus romances, suas tragédias, seus risos. O filme é bastante antiquado. Uma peça de museu. Mas é bonito. Nota 6.
TUDO PODE DAR CERTO de Woody Allen
É engraçado ver Larry David fazendo Woody Allen. E é bom saber que ainda existem filmes como este : adultos sem serem tristes. Se voce ama Woody ( e este é meu caso ) voce vai adorar. Se voce o detesta, fuja dele. Não é como seus filmes europeus, filmes que podiam agradar até os anti-Woody, este é o Woody de New York, cheio de palavras, amargo e engraçado, classe média, urbano, neurótico. Fica longe dos melhores filmes dele, mas nos faz lembrar do verdadeiro Woody. E eu adoro isso ! Nota 7

AFINAL QUEM FAZ OS FILMES - PETER BOGDANOVICH

São 900 páginas de muito interesse. Peter Bogdanovich, diretor de A ULTIMA SESSÃO DE CINEMA e de WHAT'S UP DOC ? passou anos entrevistando importantes cineastas que fizeram a história do cinema americano. Neste volume da Companhia das Letras, ele nos apresenta algumas de suas entrevistas ( Já que as conversas com Ford e Welles seriam publicadas em volumes próprios ).
A longa introdução escrita por Peter, que começa com a lembrança de conversa com Warren Beatty, já é por sí uma maravilha. Ele, amorosamente, relembra a Hollywood que conheceu ( uma Hollywood já em seu fim ), o privilégio de ainda ter podido conhecer Hitchcock, Billy Wilder e Jean Renoir.
Allan Dwan é o primeiro a ser entrevistado. As entrevistas são organizadas por ordem de idade e Dwan é o mais velho. Um mestre de grandes produções do cinema mudo que se tornou um cineasta classe b no falado. Com Dwan conhecemos o nascimento do cinema, a época em que verdadeiros aventureiros dominavam a arte e o quanto de improviso havia em tudo.
Uma curta entrevista com Raoul Walsh vem depois. Walsh que antes de ser diretor fez de tudo um pouco, um cara que foi marinheiro, que conheceu cowboys de verdade, que foi ator de circo. E que como diretor sempre foi grande, desde aventuras do cinema mudo, passando por filmes de pirata, dúzias de westerns, filmes de gangster e comédias. Filmou até os anos 60 !
Fritz Lang vem a seguir. O muito vaidoso Lang. Conhecemos o cinema alemão então, indústria que rivalizava com a americana ( e tomamos consciência de um fato : com o cinema mudo todo filme era internacional. Todos falavam pela mesma língua, o gesto ). Lang fala do cinema nazista, da invenção da ficção científica, de seus clássicos e de sua fuga para os EUA.
Josef Von Sternberg dá uma curta entrevista amarga. O descobridor de Dietrich e gênio do cinema barroco, fala pouco e fala mal. Despreza sua própria carreira.
Howard Hawks ganha 140 páginas de diálogo. Tomamos consciência de que nenhum diretor clássico se levava a sério. Todos fizeram filmes como coisa provisória, enquanto não surgia nada melhor. Todos mantiveram esse dom de conversar sobre seus clássicos de forma jovial, sem qualquer afetação, com humor. Hawks foi piloto de avião, de carros de corrida e caiu em Hollywood por brincadeira. Foi ficando... foram 40 anos de carreira e cerca de 50 filmes. Um gênio na comédia e na aventura, ele fala de atores, diretores e de escritores ( foi amigo de Faulkner e de Heminguay ) sem jamais se vangloriar. É a mais deliciosa entrevista.
Leo McCarey, diretor de imenso sucesso, é o seguinte. O cara trabalhou com O Gordo e o Magro, com Harold Lloyd e os Irmãos Marx !!!! Mae West e WC Fields !!!! E vários Cary Grant. Leo é entrevistado em cama de hospital, morreria pouco tempo após a entrevista. Um homem elegante, de humor cristalino.
O muito bem sucedido George Cukor dá belo depoimento. Um esteta que dirigia atrizes como ninguém. Diretor favorito de Kate Hepburn, lançador de várias estrelas, o homem de MY FAIR LADY.
Vem então Alfred Hitchcock, e tudo o que tem Hitch no meio é importante. Ele não é sovina : ensina a dirigir durante a conversa com Peter. Conta como se deve construir o suspense, como cortar, como usar o humor. Hitchcock fala do cinema com ar de quem sabe tudo, mas nunca como artista ou gurú. O ponto que une todos esses pioneiros é sua falta de afetação. Eles se viam como competentes no que faziam, mas consideravam o cinema uma arte menor, uma diversão. Foi a nouvelle-vague que os convenceu do contrário.
Edgar G. Ulmer fala sobre o policial b e é fascinante seu início no mundo do filme classe z. Seu convívio na Alemanha com todos aqueles que fariam o cinema americano ( Murnau, Zinneman, Wilder, Siodmak, Dieterle, Lang )
Chegamos a Otto Preminger, que dirigiu alguns dos melhores filmes noir e nos anos 50 filmes corajosos, de crítica social. Um grande diretor, famoso, tirânico, de sucesso.
Joseph H. Lewis é por outro lado o perdedor. Sem sorte nenhuma, este diretor de talento, acabou a vida na TV. Fez westerns maravilhosos e um super-clássico policial.
Temos agora o grande grande grande Chuck Jones, o criador do Papa-Léguas, de Pepe Le Pew e do Frajola. Ele fala do ambiente da Warner, a loucura do pessoal da animação, do prazer de se criar desenhos que eles sabiam serem imortais. Chuck, um ídolo pessoal meu.
Vem Don Siegel, o criador do Dirty Harry, o macho do filme b.
Frank Tashlin, que Godard considerava gênio, criador das melhores comédias de Jerry Lewis, o primeiro cara a satirizar astros de rock, e que começou trabalhando na equipe de Pica-Pau e depois do Pernalonga.
Robert Aldrich fala de seus filmes de guerra, da violência, do futuro do cinema, de ação. Já é um diretor que vê o cinema como negócio, que mete o peito no lixo, e que consegue às vezes ( apesar dos produtores ) grandes filmes.
Com Sidney Lumet temos a última entrevista. Ele representa os diretores que vieram imediatamente antes da geração de Bogdanovich. Diretores que começaram em TV, que viam filmes como arte, que seguiam os diretores europeus, que estudaram para ser cineastas. Com a geração de Lumet ( da qual fazem parte Altman, Nichols, Penn, Frankenheimer e Pollack ) termina o aventureiro, o cara que se tornou diretor por acaso. Nasce o cinéfilo, o cara que só entende de filmes, só fala de filmes e cuja experiência de vida se deu numa tela em sala escura.
O livro é uma saga. Começamos no século XIX e terminamos na era da TV. Diretores piratas, diretores gigolôs, diretores soldados de guerra, diretores ciganos.... até chegar nos ratos de cinemateca.
Para quem adora filmes, não existe livro melhor.

NA IDADE DA INOCÊNCIA - TRUFFAUT

Em 1976 fui pela primeira vez, sozinho, ao cinema . Eu era uma criança em 1976 e fui ao cine Astor, o imenso Astor, com amassado trocado num bolso, assistir NA IDADE DA INOCÊNCIA.
Cheio de medo, desci do Ônibus e fiz hora, cheguei cedo demais. O Jornal da Tarde elogiara muito o filme e era Truffaut naquele tempo meu diretor favorito. Graças a filmes como A Noite Americana e A Sereia do Mississipi, que eu vira na TV. Cinema era muito barato, a mais barata das diversões. Um garoto de onze anos podia ir com cinema com o dinheiro de duas cocas. Entrei na sala vazia ( era quarta, quatorze horas) e o assisti. Gostei, mas não muito, e nesses anos todos nunca mais o revi.
Agora, décadas depois......É o Melhor filme de François Truffaut e um dos melhores filmes dos anos 70. Talvez seja o mais belo filme já feito sobre o comeco do infância. E mostra as diferenças entre Itália, Inglaterra, França e EUA.
Foi a França, através de Rousseau, o primeiro país a dar a devida atenção à Criança. O filme de Truffaut faz digno tributo a essa tradição.
Filmes americanos sobre a infancia tendem a transformar tudo em gracinhas de pequenos adultos. Ingleses fazem da criança vítima do sistema e italianos vêem crianças como poetas ingênuos. Franceses as respeitam como aprendizes da vida. Na visão do cinema francês, Rousseauniano, toda criança é um ser sincero. François Truffaut ama-as. Ele é uma delas.
O roteiro mostra momentos de uma sala de aula numa pequena cidade do interior. Aulas, intervalos, professores, namoros, os pais, as ruas. Nada grita no filme: Truffaut, que é sempre tão suave, tem aqui toque de veludo, o filme desliza sem drama pesado, sem forçar nada. Possui uma alegria maravilhosa.
Duas cenas são de genialidade absoluta: a sacada do Bebê e a história do ator-assobiador (somente esta cena já faria do filme coisa genial). Você gargalha e sente gratidão pela engenhosidade de François. Não há um só momento entediante e cada pequena cena (e é ele todo feito de pequenas cenas, Não há protagonista) é plena de vida, de apelo e verdade. Truffaut jamais foge das implicações da meninice, ele arquiteta o filme como sinfonia colorida.
Um professor, que é a voz de François, François que foi delinquente infantil, faz um discurso soberbo em sua verdade simples. Ele defende as crianças. O filme é advogado de todas elas.
Fazia tempo que eu não via um grande filme de Truffaut. Eu havia esquecido o porquê dele ser tão Famoso. Este filme, obra-prima de pureza, mostra o poeta, o feiticeiro que ele foi. Nada aqui é complicado, nada gigantesco, nada faz chorar. Você é seduzido por todas aquelas crianças, pelo bem-viver, pela câmera alada de François.
Pois aquela vila é um paraíso! E mesmo em suas dores é uma vida que vale a pena.
E nada mostra melhor essa genialidade do diretor que a cena da menina que não vai almoçar com os pais. Esperamos final em rebeldia ou lágrima. Nada disso. Truffaut resolve essa cena com humor. Maravilhoso.
Quando voltei para casa, em 1976, eu queria ser François Truffaut. Hoje, milhões de filmes depois, prefiro ser Howard Hawks, Mas se eu pudesse ter feito um único filme, este seria meu filme.
Naquelas carteiras, no barraco do aluno pobre, na praça e nos edifícios, na lousa e no rosto das crianças ( e que rostos belos ) em tudo Truffaut viu alegria, viu sinceridade, viu a vida.
Vacina contra mal-humor, este filme permanece como ode ao cinema, às crianças, a vida e ao amor por viver.
Truffaut foi único.

A DITADURA DA CIÊNCIA

Na ditadura o que existe é só o poder central, tudo o que foge dessa corrente principal é ignorado, quando não perseguido.
Vivemos, antes, a ditadura da religião. Fora de Deus ( seja qual fosse esse deus ) nada era verdadeiro. Como Deus é espírito, a carne era ignorada. Nesse mundo onde o que não se vê é o que faz diferença, arte e filosofia florescem. São religião de quem tem dúvida.
Desde a renascença vivemos a transição dessa ditadura. Nos livramos de uma ditadura na esperança de poder viver sem opressão alguma, livres. No século XVIII essa esperança atingiu seu apogeu. Derrubar reis era derrubar a ditadura divina. O corpo deixava de ser oprimido.
Mas agora vivemos a ditadura oposta, a ditadura da ciência. Nada existe que não possa ser provado, tudo é um processo natural. Sem perceber nos tornamos ratos de laboratório.
O corpo é rei. Eu sou minha pele, meus dentes, aquilo que exibo. Só posso existir na vida prática, ativa, real. Subjetivismo ou interioridade são doenças. Amo porque sinto tesão, e se amo devo transar, pois amor é sexo, e sexo é real. Se estou triste é uma disfunção quimica e se não me integro à massa tenho um problema psico-social. A história é uma ciência, a filosofia é uma ciência e toda religião tem de parecer ciência.
Escrevo numa máquina, assisto uma tela, falo num aparelho, corro num trambolho mecânico, visto fibras sintéticas, me alimento com sabores quase verdadeiros, uso pílula para ficar legal, tomo vitamina pra não ficar doente, analiso meus dentes e minha respiração, injeto líquidos para ficar bonitão, troco o que puder de mim. Vivo para meu corpo e para a realidade científica.
No mundo da ciência só vale o que pode ser provado, o que apresenta resultado e o que se mostra como a última descoberta. É mundo escravo do tempo, pois ao contrário da religião, ciência é temporal. Nos colocando nesse mundo vivemos no tempo reto onde a + b será sempre c, sem variação.
O que existe será função.
Nosso corpo sofria na ditadura religiosa. Ele era ignorado e gritava através de sintomas. Não podia existir. Nosso espírito ( chamo de espírito tudo o que nos é interior ) sufoca na ditadura da ciência. Ele é obrigado a se submeter às vontades da carne, fecha-se em sí-mesmo, produz tristeza e vazio. Pois no mundo do espírito não pode haver tempo e não existe função. Seu tempo não se rege por ação e reação. Ignora tempo e espaço.
Mas em nossa ditadura tudo é tempo e espaço. Tudo é caminho plano para outro caminho plano. Equação demonstrável. Impossível para nós imaginar outro modo de pensar ou viver que não seja o da ciência.
Neste admirável mundo novo, a arte se torna parte do processo. Ela existirá apenas enquanto tempo e lugar, deverá ter uma função real ( dinheiro, poder ou educação ) e ser etapa de descoberta. A arte não pode mais falar ao espírito, ela existe para tocar o corpo, dialogar com o mundo real. Arte pequena.
Talvez em 4000 anos termine esta ditadura. O que virá depois... quem sabe ? Como nascemos e vivemos dentro desta realidade, nos é impossível imaginar outra forma de viver, assim como por mais que tentemos, não conseguimos saber como era pertencer a mundo onde o corpo não existia.
Quando duas partículas colidem em túnel europeu o que interessa ao mundo real é " o que virá a seguir ? "
A questão espiritual é : " De onde surgiu a primeira partícula ? "

O LEÃO NO INVERNO - ANTHONY HARVEY

Existem várias maneiras de se assistir este brilhante filme inglês. A política, a estética e a psicológica. Usufruir das três é ter um sorriso no rosto durante as duas horas e meia do filme.
A política.
O filme conta o dia de natal de 1183 em que Henrique, rei inglês, dono de metade da França, tentou decidir com quem ficaria seu reino. Ele apóia John, filho idiota e repugnante, mas sua mulher, Elinor, apóia Ricardo, uma máquina guerreira. Há ainda Geoffrey, filho ignorado e talvez o mais inteligente e Philipe, rei da França em visita ao castelo. Peter O'Toole faz Henry, Kate Hepburn é a rainha e Richard é Anthony Hopkins. Timothy Dalton faz Philipe. O rei mantém uma amante, exibida diante de todos, e trancafia a esposa num castelo durante dez anos. Eis o geral. Parece Shakespeare, mas felizmente, nunca tenta ser. O que vemos é uma feroz briga de cães. Agressões sobre agressões, mas que brilhantemente, sempre se encerram com uma frase de humor. O filme é drama medieval, mas com a ironia do século XX.
É o momento chave em que a monarquia se afirma na Inglaterra, o momento em que Henry dá as diretrizes do modo britânico de domínio e de guerra ( ele chega a dizer que ele é o inventor da guerra ). E vemos, deliciados, o quanto já fomos grandes.
De Shakespeare o filme consegue o efeito de nos fazer testemunhas do imenso universo que há no homem. Henry não quer, ele ansia. A rainha não trama, ela é diabólica. Tudo é inteiro, não existem meias emoções, o espírito humano está completamente livre. O roteiro de James Goldman, baseado em peça sua, tem diálogos que nos deixam sem fôlego. Jamais sabemos quem fala a verdade, quem está sendo leal, se as lágrimas são sinceras. Todos jogam, todo o tempo.
Estéticamente o filme é imbatível.
Começando com a trilha sonora de John Barry, uma das melhores e mais famosas do cinema. Barry foi um gênio, suas centenas de trilhas o provam. Aqui ele se supera. È música medieval e bárbara. Sublime. Mas há mais. Vemos a real arquitetura da época. O rei parece um mendigo, o castelo é frio e fétido, as tropas são pequenas e desorganizadas. Estamos longe da bela Itália e o rei francês é modelo de cortesia e educação, Henry perto dele é um bárbaro.
A fotografia é de Douglas Slocombe. A cena da rainha cruzando o lago justifica sua carreira.
Quanto aos atores... Kate ganhou seu terceiro Oscar aqui. Merecido ? Ora. Ela mereceria todos os Oscars da história. Sua superioridade sobre qualquer atriz de qualquer tempo é total. A rainha que ela faz é a mais triste das criaturas. Kate consegue passar a dor de uma mulher que envelheceu e perdeu seu amor. Ao mesmo tempo ela é má, mentirosa, jogadora, e começamos a duvidar de seu sentimento. Há uma cena em que ela se olha no espelho que é, talvez, o melhor momento de uma atriz já filmado. Só Falconetti em Joana D'Arc lhe chega perto.
Peter O'Toole perdeu mais um Oscar aqui. Para Cliff Robertson ( Pode ? ). O papel é o mesmo que ele havia feito em Beckett. Só que naquele filme era Henry jovem, aqui é o Henry aos 50. O que dizer dele ? Nos apaixonamos por seu rei. Olhamos fascinados seu descaramento, sua violência, seu gênio e no final, sua suprema decepção. Peter torna-se um sol. Uma aula para todo ator. Carisma puro, bem treinado, como só atores treinados em Shakespeare possuem.
Para voce sentir o clima do filme conto uma cena : o rei quer ir à Roma, anular seu casamento. A rainha o ameaça com a morte. Os dois discutem, se ofendem, são humilhados e ele parte. Kate, genialmente, diz ao final : - Qual a família que não tem seus altos e baixos ?
Por que não se fazem mais filmes assim ? Por que nossos filmes históricos não passam hoje de um enfadonho desfile de modas e a única questão é : quem ficará com a pobre mocinha ?
Creio que o principal é o completo desconhecimento de história e de estética. Mas talvez seja ainda pior. A incapacidade de se entender diálogos complexos e brilhantes. Uma pena.... Daniel Day Lewis, Meryl Streep, Susan Sarandon, Kevin Kline morrerão sem papéis como estes.
Em 1968 ele concorreu a montes de Oscars. Ganhou 3. Merecia mais.
Psicologia.
O filme trata do embate entre o princípio da pura masculinidade e da pura feminilidade. Trata da briga por atenção nas famílias. Trata do incivilizado tornado civilizado. Da dor de se precisar ser livre. E tem a exposição de almas desnudas, suas injustiças, seu egoísmo, seu medo.
Termino contando mais uma cena : Henry diz que após o natal a rainha voltará a seu cativeiro. Kate derrama uma lágrima discreta e diz que não há dor maior que a de se conhecer o mundo, a liberdade e perder todo esse mundo.
O filme é sobre isso. O cinema hoje vive esse dilema. Nós somos essa rainha.
Que Deus nos proteja e que Henry seja clemente.
O Leão no Inverno somos todos nós. Este é o inverno de nossa coragem.

FILMES DE CRÍTICOS/ FILMES DE NÃO CRÍTICOS/

UM OLHAR A CADA DIA de Theo Angelopoulos com Harvey Keitel e Erland Josephson
Este diretor grego é rei de festivais e de críticos chatos. O que leva alguém a nos obrigar a assistir seu vômito, sua sessão de psicanálise, seu umbigo ? Alguém deveria ensinar Theo a filmar. Ele não sabe enquadrar, não sabe editar e não dirige os atores. Quando Sokurov faz um filme sem cortes existe uma compensação. Sokurov faz a câmera fluir, os atores andarem, a fotografia seduzir. Theo não corta e não apresenta nada. Ver suas longas cenas é como olhar um relógio. Os atores ( e Keitel precisa sempre ser dirigido ) ficam jogados em cena, não sabem o que fazer e como falar. Há uma cena em trem que é das coisas mais patéticas já vistas. Quando surge Josephson ao final, ator de gênio, surge o único sopro de vida nessa patetice.
Do que trata esta coisa ? Da busca de sentido ? Do tempo ? Da guerra ? Bem, voce pode ver o que quiser nele. Na verdade trata do buraco em que se meteu o cinema de arte. Masturbação.
Pessoas ao tentarem ver este filme irão pensar que todo filme "de crítico" é assim. Irão jogar isto no mesmo saco que Bergman ou Fellini. E isso é um crime ! Bergman sabia cortar, enquadrar e dirigir atores, Fellini também. Mas Theo faz aquele tipo de engana trouxa em que a falta de técnica é chamada de arte original. Como fazem tantos outros.
Eu realmente odiei este filme porque ele faz mal ao cinema. Afasta o novo público dos filmes diferentes, trai o próprio cinema. Quem nunca viu um Antonioni ou um Murnau irá fugir de todo filme "de crítico" pelo resto da vida. E isso é uma pena.... Theo infla preconceitos. Não dou nota.
LUZ DE INVERNO de Ingmar Bergman com Gunnar Bjornstrand, Ingrid Thulin e Max Von Sydow
Um padre perde sua fé. Sem conseguir ajudar um homem em crise ( que se mata ), ele foge de mulher que o ama. Ao final, ele celebra missa, como no começo do filme. Trata-se de uma fita feita por Bergman para sí mesmo. É o mesmo tipo de filme-umbigo e psicanálitico de Angelopoulos. Mas, ao contrário do grego, Bergman, gênio que é, sabe fazer um filme. Há narração, ritmo, fotografia cuidada e principalmente atores muito bem dirigidos. É um dos filmes mais dificeis do sueco, ele transpira pessimismo. Nota 7.
QUÊ ? de Roman Polanski com Marcello Mastroianni e Sydne Rome
E Roman faz sua versão de ALICE. No caso, ela é uma hippie bonita que todos querem traçar. O filme todo se passa numa mansão a beira do Mediterrâneo ( um paraíso de sol e saúde ) onde vivem pessoas excêntricas. Marcello faz um tipo de gigolô doentio, e há mulheres nuas, tarados, marinheiros e velho quase-morto. Polanski faz um tipinho asqueroso que só quer roubar e estuprar. É um filme falho. Sem graça para ser comédia, pouco inspirado. Mas seduz o modo livre como Polanski filma, uma ALICE de tempos doidos e sem rumo. Pelo menos o libertarismo de Lewis Carroll é respeitado. Nota 6.
FALLEN ANGEL de Otto Preminger com Dana Andrews, Alice Faye e Linda Darnell
É um alivio encontrar o cinema narrativo americano. Pegar uma câmera e contar uma história. Tentar ser um bom diretor com bons atores, não um "artista". Este é um noir que fala de golpes do baú e de crime. A história é completamente inverossímil, mas quem liga ? O que importa é que ficamos lá, entretidos e até torcendo. Após Theo Angelopoulos é como achar água no deserto. Nota 7.
PSYCOSÍSSIMO de Steno com Ugo Tognazzi e Raimondo Vianello
A comédia italiana...Ugo já foi meu ator favorito !!!! Que bom que resolveram lançar algumas despretensiosas comédias da Itália. Esta fala de dupla de atores fracassados que se envolvem em crime. O filme começa meio devagar, mas vai crecendo e diverte. O humor criado aqui é aquele de Golias, Renato Aragão, Costinha, uma delícia infantil. O que aconteceu com o cinema italiano ? Eles faziam de tudo : cinema de gênio, comédias populares e até westerns ! Onde se perderam ? Ugo Tognazzi era tão popular quanto Paul Newman ou Dustin Hoffman, faziam-se filas para ver seus filmes ( como os de Totó, Alberto Sordi e Lando Buzzanca ). Nota 6.
SUA ÚNICA SAÍDA de Raoul Walsh com Robert Mitchum e Teresa Wright
Estava tentando encontrar uma palavra para definir o rosto de Mitchum : insolente. Este western esquisito, fotografado pelo mestre James Wong Howe, é uma mistura de tragédia, filme noir e cowboys. Cheio de sombras, rochas e clima asfixiante, me pareceu uma empreitada ambiciosa demais. O western é melhor quando mais simples. Walsh era chamado de gênio pelos franceses. Nunca foi. O filme se deixa ver. Nota 7.

O LIVRO DOS INSULTOS DE H.L. MENCKEN

Tudo o que sei devo a Paulo Francis. Ele me apresentou ao mundo que vale a pena seguir e ao que deve-se abominar.
H L Mencken foi o Francis americano. Um jornalista que escrevia sobre o que lhe desse na telha. E é prova do quanto "devoluímos" o fato de que um texto tão subversivo fosse o mais lido pelo americano de 1920. Procure O LIVRO DOS INSULTOS DE MENCKEN na tradução de Ruy Castro ( outro Menckeniano ) em sebos. É da Companhia das Letras e foi editado em 1990.
A crença primeira de Mencken era a de que todo autor que valha alguma coisa está eternamente irritado com seu tempo e seu país. A segunda era a de que nada podia ser pior que um caipira americano. Talvez apenas um snob inglês. Poe, Conrad, Twain e Tolstoi eram seus autores favoritos. Dostoievski, Heminguay, Lawrence e Ibsen eram os que ele fustigava.
Mencken não via qualquer valor em pintura. Para ele, o homem pré-histórico já pintava bem, o que prova que a pintura não requer dom ou inteligência. Pode-se pintar conversando. A música era a arte suprema. Para o homem chegar à Beethoven e Brahms foi preciso toda uma evolução, educação, luta, superação. A literatura vem logo em seguida. Primitivos não escrevem como Joseph Conrad.
O teatro e o cinema, por serem feitos por muitos para muitos, sempre serão guiados pelo gosto comum. Não existe cinema ou teatro individualista, eles serão eternamente circo. Vulgares. Música e literatura é a voz de um para um. Mesmo se numa multidão.
Mencken não dava muito valor a poesia. Dizia que uma criança pode fazer boa poesia. A prosa vale muito mais, pois na prosa não há disfarce, não há véu ou fantasia, ou se escreve bem, ou não se escreve.
Mas não pense que Mencken fala só de literatura. Fala de boxe, sexo, religião, política e até sobre telefones. Sempre com doses imensas de humor e de verdade.
Todo homem decente se envergonha sempre do governo sob o qual vive.
A fé pode ser definida como a crença ilógica na ocorrência do improvável.
Pelo menos numa coisa homens e mulheres concordam : nenhum deles confia em mulheres.
Nada é mais fatal a paixão que a monogamia. E a paixão é o maior inimigo da civilização.
Todo artista é um mosca-morta, o patriota é um covarde, o corajoso é uma besta, o intelectual sofre do fígado e não salta sobre uma agulha... e é sobre isso que querem que o universo gire.
A mulher vê o homem como ele é, alguém que quer acreditar naquilo que ele gostaria de ser.
Um pastor : um bestalhão tentando provar que é melhor teólogo que o papa.
Igreja latina : não é um silogismo, é um poema. Nada significa grande coisa, o que vale é a beleza das palavras.
Toda a civilização foi fundada sobre a covardia humana. Um bando de molengas se unia atrás de muros e dava as armas e o poder para outros menos covardes, que lutavam por eles. Esses menos covardes roubavam as terras dos muito covardes. Eis a origem da nobresa e da história.
Todas essas são frases de Mencken. Penso no que ele escreveria sobre Bush, Twitter, Putin, Terrorismo e TV. Ler esse americano é dose bem vinda de liberdade de pensamento, de humor e de arrojo.
Procure.

THE DEAD - JAMES JOYCE

O que fala mais alto sobre aquilo que voce é, é aquilo que te acompanha pela vida.
Quadros de Gauguin, o Transformer de Lou Reed, O Morro dos Ventos Uivantes, filmes de John Ford, William Butler Yeats e Shakespeare. Tem certas coisas que me dão um norte. Acrescente a isso este conto, o último do volume Dublinenses, do gênio meio cego da Irlanda ( Irlanda e Paris são outras obsessões ).
O conto, curto, trata de uma reunião de natal em 1904. Três senhoras recebem parentes e amigos para um jantar. Travam-se conversas, dança-se, ouve-se música e ao final a esposa daquele que talvez seja o personagem central ( não há protagonista ) faz uma confissão, confissão essa que modificará o sentido da vida desse marido e do próprio conto.
Ela fala de um amor vivido aos 17 anos. Um amor terminado em morte.
O texto é só isso. Em primeira leitura ele nos apaixona por ser muito bem escrito. Fácil de ler, é quase um poema sobre momento pleno de vida. Tudo é VIVO naquela casa. Acompanhamos as danças, as conversas, no fundo tão banais, com absoluto encanto. Mas a coisa se torna perigosa ao final. Um convidado, famoso cantor, canta uma melodia folclórica antes de se ir. É essa canção que trará de volta a este mundo a imagem do moço morto, do namorado perdido. De volta ao hotel, após a "confissão" da esposa, temos um dos mais lindos monólogos da história ( vasto como Shakespeare e com a mesma dimensão cósmica ). O marido percebe, e nós com ele, que perante a MORTE, diante de um amor falecido, a vida nada significa, e ele, seu amor, é um vazio para a esposa.
Um homem que escreve tal conto é um gênio. Me sinto pouco à vontade para chamar um autor de gênio, mas Joyce é. E muito poucos foram.
Percebemos ao final que a casa das três senhoras é nossa vida. Cheia de conversas, de movimento, de luta por atenção. Joyce adorava música, queria ter vivido como músico, e ele faz da música o elo de ligação com o eterno, com outro mundo. Na casa eles comem, riem, se exibem e bebem. Mas existe a neve lá fora e a presença desse jovem amante que morreu por amor. A casa é cercada por esse frio, e por esse espírito que permanece afetando a vida, para sempre.
Joyce consegue, com simplicidade e facilidade de gênio, nos fazer entender a beleza da morte perante a vida, e mais perigoso, que apenas morrer por uma causa dá sentido à vida, no caso, morrer por amor. Que sómente um amor morto em seu auge permanece como sentimento vivo. Estranho e belo : morrer para permanecer vivo. É um pensamento profundamente cristão.
Como é possível que um homem em apenas vinte páginas vá tão longe ? Consiga provar que aquela reunião ( vida ) é um ínfimo nada perante o mundo de fora ( morte ) e que um casamento de vinte anos nada representa perante um amor de sacrifício ?
Apenas certos contos de Tolstoi e Tchekov chegam aos pés deste pequeno monumento ao ato de escrever. Joyce foi um santo.