PEANUTS- CHARLES M. SCHULZ

   Minduim passava na TV quando eu era criança. Eu adorava. E tinha o jazz de Vince Guaraldi que me dava uma sensação boa, de bolo recém assado. Tinha um lado tristonho. Eu pressentia que seria um Charlie Brown da vida. Nunca um Snoopy. Com a idade fui me transformando em Linus.
   Tantos anos mais tarde ainda me emociono com Peanuts. E admiro o fato de Schulz ter desenhado todas as tiras, sózinho, por toda a vida. Ele era um poeta. Um poeta de verdade. Há tanto para falar de Charlie Brown. Ele antecipa o humor de Woody Allen em mais de dez anos. Um pequeno neurótico, com medo de tudo, sempre perdendo, sempre suspirando. O sorriso de Charlie Brown é profundamente comovedor. Não há sorriso mais triste que o dele. Mas Peanuts não é só Charlie Brown. Já foi dito que na galeria de personagens de Schulz estão presentes todos os tipos de neurose moderna. De Marcy até Schroeder, toda a gama de tristezas e de ilusões está representada. Mas em meio a eles há Snoopy.
   Snoopy representa a saúde mental plena ( não são palavras minhas, mas as assino embaixo ), ele é realista, apesar de seus sonhos com o Barão Vermelho e o Legionário. Snoopy percebe o ridiculo das vidas ao seu redor e é feliz com seu prato cheio e sua casinha de madeira ( onde há uma biblioteca e uma sala de jogos ). Snoopy não fica apavorado a toa, e quando resolve se mover, resolve as coisas. E sonha. Sonhos reais, sonhos dos quais ele não tem vergonha. Sinto que Schulz, como eu, adoraria ser Snoopy.
   O que me encanta na vida dos Peanuts é seu espaço. As ruas são imensas, as casas têm jardins, há lugar para as crianças viverem. Mas ao mesmo tempo tudo é desolado, vazio, melancólico. O fato de tiras tão tristonhas serem as mais populares do século XX diz muito sobre o que foi essa época. Charlie Brown arremessa a bola e sabe que vai errar. Mas continua arremessando. Snoopy vem e lhe mostra a lingua... o que mais Charlie Brown pode fazer? Suspira, diz "Que puxa...", e continua jogando. E erra.
   Snoopy dança, o que confirma a teoria de que todo filósofo verdadeiro deve saber dançar. Não que ele "saiba" dançar, mas ele dança como sabe... então ele sabe! Quando Snoopy vira o personagem Joe Cool o mundo faz sentido.
   Guardo os livros de Schulz ao lado dos livros de Rilke, Yeats e Whitman. Pra mim faz todo o sentido. É culminância de um tipo de arte. Schulz foi um gênio intuitivo.

TINTIM- HERGÉ

   Spielberg está finalizando um filme sobre Tintim, o herói criado pelo belga Hergé, herói que é a décadas imensamente popular em todo o mundo. Mais que isso, é Hergé o homem que inaugura um tipo de quadrinho europeu, de aspecto mais realista ( mas não real ), e de composição mais "limpa", organizada. Qualquer página de Tintim que voce abrir ao acaso lhe dará uma impressão de ordem, de quadrinhos bem divididos, de traços harmoniosos.
   A primeira experiência que tive com esse herói não foi boa. Foi numa série de Tv, que era exibida pela Tv Bandeirantes, décadas atrás. Não é a mesma série canadense, boa, que depois foi exibida pela Cultura. Eram desenhos de muito blá blá blá, e além de tudo, Tintim com aquelas meias de lã e o topete esquisito me parecia um nerd dos mais enjoados. Coloquei-o de lado e só voltei a Tintim na idade adulta. Foi quando li "O Segredo do Licorne" e me peguei vibrando com o talento de Hergé. Comprei todos, livros de capa dura, ainda da editora Record.
   Hergé não viaja. É Tintim quem viaja. Hergé pesquisa em casa, com fichas onde anota tudo sobre os países onde se passam as aventuras. E desenha. Desenha de forma naturalista, com detalhes, de uma forma clara, simples, correta. Hergé nunca vai te pegar pela criatividade, ele te encanta pela correção. E Tintim, um menino sem segredos, tipo de repórter, com seu cão Milou, um schnauzer branco, vai ao Tibet, a India, aos EUA, a Lua até. Sempre correndo de lá pra cá, sempre com pressa. O capitão Haddock surge após alguns números. Capitão bêbado, que tem um jeito engraçado de blasfemar ( seus sicofantas, macrocéfalo, rocambole, canibal, ectoplasma, filoxera, flibusteiro.... ), Haddock que se torna personagem mais "colorido" que Tintim, capitão pessimista, sempre nervoso, que não pensa.
   Será que Spielberg vai conseguir tornar Tintim famoso também nos EUA? Em entrevistas ele diz que quando o descobriu se apaixonou na hora. Mas haverá em meio a tantos heróis barulhentos e ultra-violentos, poços de neuroses e de machismo simples, haverá lugar para um rapaz que parece tão... cálido? Espero que sim. Seria muito bom se Tintim se tornasse um grande sucesso de cinema.
   Releio então alguns números de Hergé. Ainda são bons. Não me pego mais "dentro" da aventura. Infelizmente o tempo fez com que se criasse uma parede entre eu e Tintim. Mas ainda há prazer, ainda admiro a beleza dos traços, das linhas puras e limpas, do colorido suave. Na verdade é um filme que desejo muito assistir. Vamos esperar e torcer...

CONVERSAS COM SCORSESE- RICHARD SCHICKEL

   Martin Scorsese descreve, nesta longa conversa com Schickel, o bairro onde nasceu. Se voce assistiu a "Goodfellas", é aquilo, máfia, gangues de rua, becos sujos. O pai, estoico, tentava não se envolver com a máfia, a mãe, mulher sábia, cheia de ironia, cuidava de Martin, que sofria de asma. O pai o levava ao cinema toda semana, e em casa o jovem Scorsese desenhava os filmes que assistira. Ele amava westerns e épicos sobre a antiga Roma. E tinha um sonho: ser padre.
   Esse é o inicio desse belo livro de Richard Schickel, uma longa entrevista com aquele que é o principal diretor de cinema da América em atividade. Martin gosta de falar e mais que tudo, ele realmente ama o cinema. É bonito ler suas palavras sobre Gary Cooper, John Ford, Rosselini ou Howard Hawks. A descoberta do neo-realismo italiano com seus pais, na TV, e a longa análise que ele faz sobre "Rastros de Ódio".
  Várias curiosidades são expostas. O fato de que foi Martin quem deu o pontapé para Wes Anderson fazer a "Viagem a Dajeerling", Wes teve a ideia ao ver 'O Rio Sagrado" de Renoir ( e filmes de Satyajit Ray ), indicado por Martin. Os bastidores de Woodstock, filme-festival que ele co-dirigiu, mas do qual foi garfado. ( Interessante observar que Woodstock deveria ser um festival "normal". Nada havia sido programado em termos de filmagem ou cobertura de midia. De repente as pessoas vão chegando do nada e o evento se torna monstruoso ). A explosão de 'Caminhos Perigosos", e dá pra notar que é um dos favoritos de Martin até hoje. De Niro, um cara calado e cheio de ideias; e o mentor de Martin, Michael Powell, um gênio do cinema inglês e que acabou por se casar com sua montadora. Aliás, foi Powell que o aconselhou a aceitar a direção de Goodfellas.
   Scorsese recorda a beleza do Technicolor, as cores fortes ( ao contrário dos filmes de hoje, que têm cores esmaecidas, mortas, frias ). A produção de 'O Aviador", que tenta reproduzir o colorido dos filmes em technicolor, ( o sistema technicolor não existe mais. A Kodak aposentou a revelação e produção dessa película. Era um sistema caro demais. O último filme foi "O Poderoso Chefão II" ). É triste observar o fato de que hoje não se pode mais fazer filmes como 'O Poderoso Chefão" ou "Apocalypse Now". Existe toda uma gama de temas e custos proibitivos. Filme caro só se for para os teens, filme ambicioso tem de ser barato.
   O contraste entre o cinema de Martin e o de Eastwood. Martin, um italiano que cresceu com rock, ( ele é louco por Stones, Dylan e The Band ), e faz filmes intensos; e Clint, um tipico americano da California, que cresceu com cool jazz e faz filmes sóbrios, controlados. E observamos que isso se reflete até nos gostos pessoais. Se Clint vive citando Kurosawa, Leone e Huston; Martin cita Visconti, Fellini, Hitchcock, muito Bergman e um monte de Elia Kazan.
   O mais delicioso são os pequenos filmes geniais que Martin adora. Filmes de Wise, de Fuller, de Anthony Mann. Elogia Frank Capra, James Stewart e Henry Fonda. E diz que agora, mais velho, anda vendo muito Michael Powell, Carol Reed, Jean Renoir, e principalmente Carl Dreyer. Ele considera "A Palavra" uma obra-prima. E se emociona ao contar como teve sorte em ser um jovem cinéfilo nos anos 60. Bergman estreando filmes novos a cada nove meses, e mais Cassavettes, Pasolini, Olmmi, Bertolucci, Antonioni, Bunuel, Godard, Kubrick...
   Scorsese conta filme por filme. O mais dificil de fazer foi "A Ultima Tentação de Cristo", filme que sentimos ser aquele pelo qual ele mais lutou, mais se entregou, mais sonhou em fazer. E ficamos sabendo que a mais de dez anos ele sonha em fazer um filme no Japão, sobre missionarios católicos para lá enviados no século XVI. Ninguém quer produzi-lo. Enquanto isso ele faz "A Ilha do Medo" e prepara um documentário sobre George Harrison e um longa de ficção sobre Sinatra. Tudo na esperança de um dia fazer o tal filme japonês. Nos bons tempos da Warner ele já teria sido feito...
   Ele fala da barbárie. Que é óbvio que estamos caindo degrau a degrau e que pelos próximos duzentos anos estaremos em mundo de extrema violência. Filmes, músicas, jogos, linguagem, tudo nos prepara para esse mundo. Martin diz que os ídolos de hoje são todos guerreiros, lutadores e impetuosos, nada há que faça com que admiremos a doçura, a caridade ou a compaixão.
   Martin preserva filmes. Gasta seu dinheiro nessa paixão. Tira antigos filmes do ostracismo. E os exibe para seus elencos antes de suas filmagens, para que saibam o que ele deseja obter. Daniel-Day Lewis é um ator que conhece profundamente o cinema clássico, e Leo di Caprio aprendeu com Martin, ( "Out of Past" de Jacques Tourneur, se tornou o filme favorito de Leo nas filmagens de "Os Infiltrados" ).
   Fracassos ele experimentou vários. 'New York, New York" foi o maior. Uma tentativa desastrada de fazer um musical com as cores de Minelli e o drama de Scorsese. "Os Infiltrados" é seu Oscar, afinal, mas "A Ilha do Medo" é incrivelmente sua maior bilheteria ( um filme para ganhar dinheiro, e que parece estar longe de ser um favorito de Martin ). Mas me veio uma sensação estranha durante a leitura do livro. É a de que Scorsese é sem dúvida um dos grandes. Tão bom quanto Kazan. Ele fez alguns filmes que me deixaram muito impressionados ( TAXI DRIVER, O TOURO INDOMÁVEL, OS INFILTRADOS ), ou que me deram um soco na boca ( A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, CAMINHOS PERIGOSOS, GOODFELLAS ), e até aqueles que me divertiram intensamente ( ALICE NÃO MORA MAIS AQUI, A COR DO DINHEIRO, THE LAST WALTZ ), mas ele não é o tipo de diretor que me dá vontade de rever e rever seus filmes. Com excessão de ALICE e de CAMINHOS PERIGOSOS, nenhum deles eu vi mais de uma vez. Os admiro muito, mas não os amo. Tenho uma teoria: sua energia é tão intensa, seus melhores filmes são tão nervosos, que vê-los é experiência cansativa, me esgota. Tenho de os ver, nunca me arrependo, mas não desejo repetir a dose.
   Mas como pessoa, o livro o atesta, Scorsese é bom para se conversar, para se conhecer, é um cara admirável. Eis um bom presente de Natal para cinéfilos.
   PS: Ao falar da morte ele diz: "Será uma pena não poder mais rever os filmes de Capra, de Ford, de Kazan..." Tenho pensado nisso. Morrer não me dá medo, o que me entristece é não poder rever certos filmes, ouvir certas musicas e sentir o sol na pele...Mas esse é tema pra outra conversa....

IMPRESSIONÁVEL ( LENDO O LIVRO NOVO DE SCHICKEL E SCORSESE )

   Ainda não terminei de ler o livro, então não é especificamente dele que vou falar. O que falarei agora é de um detalhe visto numa fala de Martin. Ele conta de sua "fase impressionável". É a fase da vida em que nos deixamos tocar profundamente pelas coisas, em que não criamos ainda uma barreira crítica. Época em que amamos filmes, músicas e pessoas com uma paixão sem reflexão, atirada, dada, completamente inteira.
   Nessa fase da vida ( entre 11 e 13 anos ), Scorsese ia muito ao cinema com seu pai e via filmes na Tv também. Faroestes e épicos sobre os tempos antigos ( Roma, Egito, Grécia ), esses foram os filmes que lhe marcaram a alma. E também "O DIA EM QUE A TERRA PAROU", de Wise. É um capítulo lindo, e Scorsese diz que até hoje é apaixonado pelos westerns ( John Ford é seu diretor favorito ), e por filmes sobre os tempos romanos.
   Eu já lera, tempos atrás, um psicólogo falar sobre esse assunto. Que na verdade nosso gosto estético é todo definido nessa idade, e que tudo aquilo que nos apaixona depois paga tributo àquela época. Bem...eu não ia muito ao cinema aos 11/13 anos. Mas os poucos filmes que vi se tornaram um tipo de parâmetro pelo qual comparo tudo aquilo que vejo. Claro que de forma instintiva.
   Uma reprise de Pinóquio, no imenso cine Astor. A sensação de sair do sol forte da rua, do barulho e do calor, e de repente entrar num ambiente sagrado ( Schickel compara salas antigas de cinema com as catedrais ), um ambiente escuro, silencioso e frio. O veludo da cortina cobrindo a tela e o lanterninha de uniforme azul me levando até meu lugar. O gongo soa e as cortinas se abrem. A cor. O colorido dos vermelhos e dos azuis, a imensidão da imagem. Senti vertigem, quase medo daquele universo tão vasto. Esse mundo criado pela imaginação, essa festa de cor e de cenários, o movimento súbito e a sensação de estar em presença de outra realidade, é tudo isso que sempre procuro num GRANDE filme ( e às vezes encontro em SAPATINHOS VERMELHOS, MY FAIR LADY, ERA UMA VEZ NO OESTE, LAWRENCE DA ARÁBIA, RAN ). Nesse tempo também assisti no cinema ANNIE HALL, JULIA e BANZÉ NO OESTE. Quando os vi, ao contrário de Pinóquio, já havia em mim a consciência do cinema como arte. Pinóquio foi visto aos 10 anos, Annie e Julia aos 13. Eu lia críticas de jornal, sabia quem eram Woody Allen e Fred Zinnemann. E de Annie eu peguei a liberdade, a sensação de que num filme tudo poderia acontecer, que o diretor podia fazer aquilo que desejasse fazer. E de Julia, que foi uma experiência muito forte, eu senti a poesia da imagem, a beleza plástica que um filme pode ter. E me peguei querendo ser Jason Robards, querendo escrever como ele, aconselhar como ele, ter um bangalô igual o dele.
   Será que é isso que me norteia? Será que eu procuro a emoção que tive com esses filmes? E muitos outros, vistos na TV. A sensação de medo que vivi com OS PÁSSAROS na velha Tupi, VIAGEM AO CENTRO DA TERRA com James Mason, em Sessões da Tarde de chuva e frio. As comédias de Jerry Lewis, os filmes medievais, Hatari de Hawks, filmes de guerra de John Ford e filmes de monstros de Ray Harryhausen. Eu me encantava, mergulhava naquilo, sentia tudo. Será esse o meu padrão?
   E os primeiros discos: Elton John, Alice Cooper, Rolling Stones, Stevie Wonder, Led Zeppelin, David Bowie, Rod Stewart, Wings, Black Sabbath e Deep Purple. O rádio onde toda manhã eu escutava Secos e Molhados, Novos Baianos, Tim Maia e Jorge Ben. Minha mãe ouvindo Roberto Carlos sem parar e meu pai com bandas marciais. Shows de Tom Jones na Tv, e minha maior paixão da vida inteira: OS MONKEES. Nada me tira da cabeça a ideia de que meu gosto musical foi feito pelos Monkees ( e por Hardy Boys, Gatolândia, Familia Dó Ré Mi, Archies, Sabrina, Josie e as Gatinhas ), bandas de cartoons que passavam na TV. O que entendo por musica pop está toda aí.
   Mas na verdade, o que mais me deliciava, eram os filmes que eu via com minha tia. Ela era completamente americanizada, adorava e delirava com tudo que fosse BEEEM americano. E com ela eu via filmes de Doris Day, de Tony Curtis, Rock Hudson e musicais, musicais que passavam de tarde na tv Cultura, Astaire e Rita Hayworth... Ah... mas havia Os 3 Patetas na Record e O Gordo e o Magro na Tupi....
   Scorsese diz bem, voce não via apenas um filme ( ou escutava um disco ), voce queria ser aquele cara, e conseguia ser.
   Pra sempre.

A CEIA DOS ACUSADOS- DASHIELL HAMMETT

   Nick e Nora formam um casal urbano que passa seus dias em doce usufruir de seu afeto. Entre dúzias de drinks e frases cheias de ironia afetuosa, eles perambulam entre bares e restaurantes. Ricos, alegres e corajosos, são a síntese daquilo que os americanos da época da depressão queriam ser. Quem os criou foi Dash Hammett, um ex-várias coisas, dentre elas ex-detetive da Pinkerton. Ah sim...Nick foi um detetive. E neste livro, volta a ação.
 O enredo é complicado. São montes de suspeitos, montes de pistas e ambientes variados. Nick anda em meio a tudo isso sempre acompanhado por whisky, vinho, gim, martinis e algum café. Era uma época em que beber era saber viver, então Nick bebe. E fala. Se fala muito neste livro. Autores mais "sérios" adoravam Hammett por causa de seu talento em diálogos. O livro tem a prosa americana típica: poucas descrições de cenários, muito diálogo. O livro todo é construído em frases trocadas entre duas ou mais pessoas, e as frases de Nick e de Nora são sempre brilhantes, leves, engraçadas, esvoaçantes.
 Os fãs de Dash Hammett ( são muitos ), não vão gostar do que vou dizer, mas prefiro o filme dos anos 30 baseado neste livro. Nick e Nora são feitos com enorme carisma e simpatia pelos adoráveis William Powell e Myrna Loy. Vê-los é se apaixonar pelos dois. Dentre os livros de Hammett prefiro muito mais "Continental Op", uma coletãnea de contos de detetive.
 Dashiell Hammett, inventor do moderno detetive americano, autor do "Falcão Maltês", teve um destino funesto. Casou-se com Lillian Hellman, autora "relevante", chata de galochas, que sugou tudo o que podia de Dash. Alcoólatra, impotente, sem conseguir escrever nada, Hammett viveu muito, mas foram décadas de total aposentadoria. Hoje é um tipo de herói americano, o tipo de autor macho, íntegro, vivido, que todo escritor iniciante ingênuo tenta parecer. O filme de 1976, "Julia", ajudou muito nessa mitificação. Hammett é feito com simpatia e sabedoria pelo grande Jason Robards ( levou Oscar pelo papel ) e Lillian é feita por Jane Fonda ( um absurdo, pois Hellman era famosa pela feiura ). É um filme excelente, de Fred Zinnemann, belo e emocionante... quem viu o filme tende a querer ser um escritor como Hammett, e ter uma "amiga" como Lillian.
  De qualquer modo, voltando ao livro, ele não deixa de ser uma aula na arte de se escrever diálogos. E é engraçado observarmos como até hoje ainda se percebe a influência desse estilo em livros policiais, filmes estilosos e até em música pop. Nick e Nora ( e seu cão Asta ) eram encantadores. Viver como eles deveria ser uma experiência fascinante.

GLAMOUR- DIANA VREELAND

   Saiu agora um livro, luxuoso claro, sobre glamour e elegãncia. São fotos, belíssimas, que trazem curtos e preciosos comentários de Diana Vreeland. Como? Voce não sabe quem foi Miss Vreeland? Vogue lhe diz algo? Ela é o diabo que vestia Prada. Captou?
   Para Diana, a elegãncia vive apenas em pensamentos e também em alguns animais. As pessoas, raras, que conseguem refletir esses pensamentos e essa animalidade têm elegância. O livro as exibe.
   As fotos são de Irving Penn, Richard Avedon e Cecil Beaton. São os três reis do glamour. Para os cinéfilos, lembro que Avedon foi feito por Fred Astaire em Funny Face ( filme que teve a consultoria visual do próprio Avedon ), e que o mais elegante filme da história, My Fair Lady, contou com a consultoria de Beaton ( além dos desenhos de figurinos e de cenários, feitos por Sir Cecil, único fotógrafo da história a ser nobilizado pela rainha ).
  Vreeland diz que as fotos de Beaton parecem emitir luz, como se fosem pedras preciosas. Há uma foto de Audrey, feita por Cecil, que realmente emite luz. Uma fria luminosidade branca vinda da mão e do rosto de Audrey.  Audrey que Diana chama de gazela, comparação que ficou famosa.
  A maioria dos fotografados viveu seu apogeu entre os anos de 1930/ 1950. Alguns podem dizer que é saudosismo de Diana, digo que não é. E explico o porquê.
  Tenho um gostoso saudosismo dos anos 70, mas sei muito bem que não foram anos de elegância. E nem do melhor cinema ou literatura. Foram anos de aventuras primais, de loucura adolescente, de exageros irresponsáveis e da melhor música pop. E é por isso que adoro os anos 70. Mas não foram elegantes. Pois bem, qualquer foto de rua, tirada em Londres, Milão ou New York, entre 1930 e 1965, mostra um glamour que não é fantasioso. Esse glamour se percebe na luz que emana dos postes, nos enormes automóveis, nas vitrines discretas e nas pessoas, com suas camisas engomadas, foulards, vestidos rodados e piteiras. Era uma vida mais lenta, mais posada, cuidada, e muito mais trabalhosa. Hoje se vestir é simples. Mesmo as marcas mais caras economizam em tecido, costura e detalhe; em 1950 havia uma profusão de cortes, pontos, tecidos e enfeites. Cabelos penteados, barbas bem feitas e calçadas para se flanar: elegãncia possível. Em 2011 vemos gordos de chinelos e bermudas sujas, mocinhas de shorts e cabelos desgrenhados e senhores de calça amassada e blusas "de marca" que não deveriam valer dois reais. Pagam quinhentos. ( Roupas simples e não-duráveis, que na verdade são sempre práticas, para que nos sobre tempo para a ação, o trabalho ).
   Mas, lógico, estou falando das ruas de então e de agora. E ver Copacabana em 1958 é aula de glamour ( há um livro com fotos do jovem Pelé que é de chorar de prazer. O cara, até ele, era um dandy... hoje temos o "elegante" Neymar ). O jovem Tom Jobim chega a irritar de tão glamouroso.
   No mundo da alta roda, os gurus da elegãncia atendiam pelos nomes de Audrey Hepburn, Cary Grant ou Fred Astaire. Audrey sempre se parece com um pensamento perfeito e irreal, Cary dá a sensação de ter acabado de sair do banho sempre, e Fred... bem, Fred não parece real, ele é como um elfo moderno. Hoje temos Lady Gaga, Justin Bieber e Chris Brown. Ah... e os cultores do passado, os muito fakes, tipo George Clooney ( que imita Cary Grant até no jeito de olhar, com o queixo para baixo e os olhos erguidos ), e uma infinidade de pseudo-Audreys.
   Tempo de ciência não pode ser tempo de elegância. Não há cientista que pense em cor ou em estilo. Pensam em efeito final, jamais em trajeto. Gozo não é elegante, a elegância vive na sedução.
   Acabei falando muito de roupa e de luz, mas voce sabe, esse glamour existe principalmente em atos, no modo de falar, no andar, naquele savoir faire e joie de vivre de quem sabe sempre onde está o melhor e o mais bonito. Na tal animalidade de gato, de cavalo, de pássaro ou de peixe. No belo pensamento transformado em movimento, em vida. Eis o glamour.
  

CENA DIONISÍACA ( IN MY TIME OF DYING )

   Já vivi tantos transes dionisíacos ao som desta música que sempre acho que o mais recente será o último. Nunca é. O mais recente foi hoje.
   O primeiro é inesquecível. Junho de 1977. Eu era um pubescente. Havia abandonado a escola e ficava todo o dia só, nas ruas cheias de mato e de sapos. De tarde ouvia discos. E estava meio apaixonado por Jeanne, uma menina com a qual nunca havia falado. Num fim de tarde a música veio e me levou embora- simplesmente. Fechei os olhos e esqueci- fui. Dez minutos que parecem durar até hoje. Meus braços separaram-se de mim e minha voz cantou com uma potência que nunca foi minha. A forte batida estava dentro de mim, desde sempre.
   Após essa primeira vez a vida deixou de ser o que era. Saí da sala, fui pra rua de noite e andei a esmo, sem saber onde ir, mas indo exatamente onde tinha de ir. Pulei a janela e entrei no quarto. Havia um poster de Robert Plant nesse quarto. E de Gerry Lopez...
   O mais dionisíaco solo de guitarra.
   Hoje, tempo que nos rouba tudo de sagrado, vejo esse video. E pasmem, não me decepciono. Mais que isso, sorrio. Mais que isso: entro dentro de lá. E sei: um milagre.
   Tem coisas que são para sempre.

PARA AS MENINAS E MENINOS NASCIDOS EM 1998. E QUE OUVEM O QUE EU AMO.

   Minha última postagem do mês é para aquelas pessoas que eu conheço e que ( tanto tempo ) já fui. Vocês, adolescentes que insistem em ser inocentes, e que andam com suas guitarras em estojos de plástico e vestem camisetas justas, pretas, com Page, Plant, Jones e Bonham. Que ficaram doidos ao ver minha coleção de velhos vinis dos quatro Zeppelins, e que disseram querer ter vivido naquele tempo... Que tempo meus garotos e garotas? Aquele é este tempo para voces!
   Tantas bandas vieram e continuam a vir ao Brasil, que pena que vêem após a festa, após o auge que se acabou. Megas bandas, hiper bandas, quais? Por isso é que voces, moleques, amam uma banda que já era antiga para seus pais.
    ( E vejo no youtube comentários sobre os videos e pesco estes que são engraçados: "É este o motivo de se precisar inventar a máquina do tempo", " Quando vejo John Paul Jones sinto ódio de meus dedos", " Jimi Page faz com que eu desista de tocar guitarra" ). Pois eu conto agora, pra voces moleques de 13 anos, moleques crescidos em meio ao rap e ao funk, minha história de Led Zepp. ( Curta, mas que repercute ).
    Sol, poeira e a lage do meu amigo inesquecível, a gente ouve Tangerine em pose de guru e pensa: isto é pra sempre. Um balde de água na cabeça, outro balde nas meninas, um último pra se beber. Recortar as revistas e colar as fotos na parede do quarto. Pegar duas facas e acompanhar John Bonham batendo as facas na mesa até machucar. Tirar o celofane do disco e ouvir com meu bro, no escuro, com a respiração cortada, coração disparado, e sentir após meia-hora: Yes!!!!!Yes!!!!!! Yes!!!!!!!
   ( Sentir trinta anos depois quase a mesma coisa ao ver QUASE FAMOSOS pela primeira vez. Eu sou um deus grego!!!! )
    Sol, poeira e lage que agora é de voces, alunos. Bebam seus baldes e amem suas meninas e seus meninos. Ao som de Going To California ( quem diria? ).
    A critica foi ruim com o Led nos anos 70. Porque eles pareciam alienados. E era um tempo politico. Se esses criticos soubessem o que viria depois teriam os endeusado. Os anos 90 lhes fizeram justiça. A maior banda da história do rock.
    Última coisa: seus netos vão escutar Kashmir.
    Canto In My Time Of Dying no carro de meu pai em 1977... é hoje. É pra sempre.

Led Zeppelin - In My Time Of Dying (2)



leia e escreva já!

TRISTEZA, MELANCOLIA, ALEGRIA E FELICIDADE, COMENTANDO JABOR

  O Estadão ( que está dando de mil a zero na Folha, ontem teve até uma página sobre 'Billy Budd", dvd de Peter Ustinov já comentado aqui ), publicou ontem uma crônica de Jabor em que ele recorda sua mãe. A vida cotidiana de sua infância/adolescencia, o pai machista. Em certo momento ele fala da tristeza que acompanhava a vida de sua mãe, da tristeza dos móveis da sala. E diferencia a tristeza de então com a "tristeza esquizofrênica" de hoje. Dando a entender que a tristeza de sua mãe era menos violenta, mais gotejante, insistente e suportável. A de hoje seria esquizofrênica por se intrometer na própria alegria, por "parecer" feliz e ser sempre tristonha. Mais, ela vem como vaga de tempestade, destrói e se vai, para retornar mais forte depois.
   Não sou da geração de Jabor. Mas sei do que ele fala. Eu não chamaria a tristeza de agora de esquizo, a chamaria de histérica. É uma tristeza nervosa, que nada observa ou usufrui. Tristeza apressada, urgente, tristeza que se alimenta do não- tempo e do não- espaço. Tristeza que ri. A velha tristeza é a simples e extinta melancolia. A clássica melancolia, que não reconhece tempo. Uma melancolia que olha as coisas com saudade, uma tristeza de suspiros e de impotência. Nada nervosa, antes sonolenta. A melancolia só existe no mundo onde a alegria é rara, mas a felicidade possível. A tristeza histérica é o outro lado da moeda do mundo de alegrias constantes e felicidade distante. Uma, a antiga, é a paz triste ou a paz feliz; a atual simboliza uma triste corrida e a alegre disputa.
   É tudo uma questão de tempo e espaço.
   Existe um site na internet chamado geoportal. Nele, voce vê mapas de 2008 e pode compará-los a mapas fotográficos de 1958 ( em 58 um balão voou sobre SP e fotografou a cidade toda ). O que salta aos olhos é a questão do espaço. A cada quilômetro há espaço livre, sem dono, um horizonte para se esquecer da vida. Vejo que as lembranças que guardo da minha cidade de 1970/1972 não são fantasiosas. Lá estão os limites da cidade sem propriedade, os riachos sinuosos, os horizontes sem fim. E mais, não existem fotos de favelas. Nos limites da metrópole o que existe é mato, árvores, campos de futebol. Um nada que era o tudo verdadeiro. Silêncios.
   As imagens da cidade de hoje é uma retilinea maquinária de concreto. Tudo é linha reta, labirinto, horizontes curtos, espaços tomados e vendidos. Nosso corpos conformam-se a esse espaço dominado, curto, racional. Não há respiro, fuga, esquecimento de onde se está. Mundo onde tudo se contabiliza, se mede.
   Vivemos em espaços catalogados e restritos, nossa alma é reflexo desse ambiente.
    PS: Fato interessante para ser pensado: a internet é um prazer real ou uma necessidade criada artificialmente como foi o cigarro?

SHANE, UM LIVRO INTEIRO SOBRE O FILME DE GEORGE STEVENS ( HEIDEGGER E O WESTERN )

   Paulo Perdigão, programador de filmes da Globo, lançou em 2000 este livro. São 190 páginas analisando cena a cena o monumento SHANE ( Os Brutos Também Amam ) de Stevens. Para quem adora o filme é obrigatório, mas não vou falar de tudo aquilo que ele fala. O que mais me alegrou é o paralelo que Paulo faz entre o western e a filosofia de Heidegger. Ele sintetiza algo que eu intuia mas não conseguia ver com muita clareza.
   O cowboy é aquele que vive no limite entre dois mundos. Não faz parte da cidade/familia, e nem é parte da marginalidade. Não é da cidade e nem do campo. Não está no presente e nem pensa no futuro. Ele está na solidão e me movimento. E vem daí a filosofia Heideggeriana: o cowboy se debate por se sentir preso. Preso numa condição existencial. Mas o que ele não percebe é que ele é o único personagem realmente livre. A angústia perante o vazio e a falta de propósito é a própria sensação de liberdade. Os fazendeiros jamais ousam pensar em liberdade, o mesmo acontecendo com os homens da cidade. Eles vivem nas formas que foram para eles construídas. O cowboy é o ser que saiu dessa forma e se lançou ao limite, ao vazio. Ele sente a solidão, mas nesse sentimento ele pode ver o que acontece a seu redor. Ele vive no vazio dos espaços e dos dias, mas ele sabe, intuitivamente, que foi ELE quem escolheu, foi ele que assim o desejou.
   Todos os grandes heróis trazem embutidos em si esse trajeto existencial. Ninguém melhor que o cowboy exemplifica isso de forma tão nítida.

OS MORTOS- JAMES JOYCE

   No momento em que Joyce escreveu Os Mortos, sua alma se encontrava perturbada. Ele se irritava ao constatar que mesmo vivendo na Itália, a Irlanda permanecia viva dentro de sua mente. O conto é a constatação de que tudo aquilo que cremos morto continua influenciando a nossa vida. Mais que isso, por ser morta, e portanto fora do tempo, essas coisas têm o poder da imutabilidade. Portanto, como deixa claro esse conto, quem pode vencer um amor que morreu de tanto amar?
   No Natal, em Dublin, irmãs solteiras convidam amigos e parentes para a ceia. Música, poesia, discursos e bebidas. Ao fim da noite, Gabriel, o personagem central, descobre que sua esposa viveu uma paixão na juventude. Um jovem apaixonado por ela, de certa forma, morreu de amor por sua mulher. Caindo em si, ele constata que ninguém conhece verdadeiramente alguém, e pior, que os mortos continuam ditando, indefinidamente, os acontecimentos da vida dos vivos. Joyce, jovem quando escreveu este conto, demonstra soberba compreensão da vida e da mortalidade. Gabriel olha a esposa, olha a neve que cai ao fim da narração, e percebe o tempo.
  Não há um final nesse conto, não existe um começo. Exemplo central do tipo de história possível no mundo moderno, Joyce sabe que o mundo ordenado de Austen ou Dickens se fora. Não podemos crer mais em vidas que transcorrem em linha reta. O conto é um fragmento, uma noite numa vida, um floco de neve. Não saberemos de onde os personagens surgiram, e jamais iremos saber o que deles será feito. A narrativa é um pedaço de um pedaço, e do pedaço se tenta tirar um sentido, e esse sentido, Joyce sabia, é a busca do sentido. O único personagem definido e completo é o rapaz morto.
  Na biografia de Richard Ellman ficamos sabendo que a esposa de Joyce também teve um jovem amante que morreu.  Joyce escrevendo tenta dar rumo a uma história que o perturbou? Como saber? Uma tristeza "fofa" ronda através de todo o texto. As pessoas na festa não se percebem, não se tocam, estão em mundos paralelos, à parte. Mas é uma melancolia tola, ausente de propósito, sem força. A impossibilidade do trágico também está aqui representada. Pois a tragédia se dá em pessoas que aceitam a dor e sabem ser ela certa e fatal. Nosso tempo não mais a conhece. Negamos.
  OS MORTOS, com suas vozes empoladas, seus discursos vazios e a cena aterradora na escadaria, é, talvez, o melhor conto que já tive a glória de ler. James Joyce fala de emoções inescapáveis e da condição de se viver sem se poder saber nada. Gabriel tem seu mundo roído diante de nossos espiritos, ele desaba em meio minuto. O modo como Joyce faz isso, simples, claro e sorrateiro, deixa marca na carne de quem o lê.
  Ler é morrer um pouco, e absurdamente, é também viver mais.