J.J.CALE, ROCK É COISA DE ESTRADA

O cara veio do sul. Entenda bem, do SUL. O negócio é quente, é San Diego, Tijuana, Baja, Orleans, Rio Grande, Mexicali... Cactus e o Bayou, como ele próprio diz: Land of broken dreams.
O cara passou uma década até começar a gravar. E até hoje, velho como um canyon, ele é para poucos. A voz de cigarros sem fim, de bourbon e de conversas à fogueira. Voz de botas rotas e cintos afivelados. Prata escurecida. Viejo.
A guitarra do homem é como México em technicolor. E é economia tipo Robbie Robertson. Só que Robbie é um falcão, seu toque é de ar; JJ é coyote esfaimado, toque de areia e osso. Gringo e palmeiras da Florida.
Carros vermelhos, imensos e com ferrugem, e morenas de jeans vagabundo. Um isqueiro acende-se no escuro: é o som de JJ. Tudo nesse som é noite de suor, a tua janela aberta por onde entra o ruído de alguém rindo. E pernilongos. Mas o som é também a tarde de sol, sempre calor, voz em movimento, em jeep, em carrão, em moto, em cavalo, a pé de pés descalços. Uma onda de suor cai pela sua testa. Bafo.
JJ são as melhores mulheres. As que sabem beber cerveja. As que sabem dançar seu próprio passo inventado. Que são como espinhos. JJ canta pra elas. E ele canta mal, mas ele canta como elas entendem, roucamente rascantemente espetadamente. JJ está sempre lá onde o vento faz a curva. Onde as coisas foram perdidas. Mas ele pouco se importa. Nunca chora.
Sério, jamais triste.
Feio, sujo e animal, sexy.
JJ Cale não é para cidades. Ele não está nem aí para tuas avenidas de lixo. Mas ele também não é aquele cara do campo verde de sonhos pacíficos. Asfalto fervendo e pneus que derretem. Ele é a diferença entre macho e viril. JJ é um homem.
Ouço agora os seis discos que tenho do cara. De 1972 até 2008. E ele nunca muda. É sempre exatamente o mesmo. Uma gruta de ouro onde o último mineiro morreu de calor e de sede. Totem mescalero. E digo pra parar de lorota ( pois a música mais longa de JJ tem apenas 3 minutos )
JJ Cale é do cacete!

MEMÓRIAS DE BRIDESHEAD- EVELYN WAUGH

Evelyn Waugh foi escritor central na Inglaterra conturbada dos anos 1930/1960. Começou como um satírico autor de esquerda, lançando hilários livros que perturbavam a igreja anglicana, a realeza e os dandys. Ler Scoop é uma festa para a mente.
Mas na parte final de sua vida ele se tornou direitista e sua verve irônica foi trocada por um amargor rancoroso. Brideshead, livro de transição, é já um retrato dessa nova vida, vida que tem algo de podre, de perdido. Uma bela ruína.
Acompanhamos Charles Ryder, capitão do exército, que na segunda guerra visita a mansão dos Flyte, e então se recorda, em meio aos novos tempos de miséria e desencanto, de sua relação com Sebastian Flyte, o jovem herdeiro, um dandy wilderiano, extremamente sofrido e excêntrico. A narrativa é cheia de dor, e de um ar de homossexualismo reprimido e triste. Charles acaba se relacionando com a irmã de Sebastian, relação que naufraga quando toda a familia dela se torna católica. A culpa afunda a vida da mansão.
Quando lançado, todos os fãs de Waugh abominaram o livro. Parecia trair seu estilo. Não era vivo, era amorfo. Com o tempo se tornou pequeno clássico. Um quase enigma.
Em 1982 a BBC fez uma minissérie em 20 capítulos do livro. Foi exibido pela tv Cultura em 1988 e na época era chic reunir os amigos em casa para ver Jeremy Irons como Charles Ryder e Laurence Olivier, Claire Bloom mais John Gielgud como os pais da duas familias ( Gielgud como pai de Irons está maravilhosamente afetado ). A série escancarava a bichice afetada do livro. E causava furor uma frase de Claire Bloom, a de que entre jovens ingleses e alemães é normal ser gay aos 18 anos. Já na Itália e na Espanha não.
Em Londres a série se tornou febre e jovens passaram a se vestir como Sebastian, ternos brancos com sapatos claros, chapéus de palha fina e cabelo curto caindo sobre os olhos ( se voce pensou em Bowie-Lets Dance- acertou ). Todo o movimento new-romantic ( Duran Duran, Spandau Ballet, Ultravox, Japan, Gary Numan.... ) tem seu novo visual copiado desta série. Série que jornais britânicos chamavam de "enfadonha viagem por cenários ricos e olhares langorosos onde nada acontece, a não ser a constante exibição das bundas de Irons e de Andrews."
Eram os anos 80, inacreditávelmente exibicionistas.
O livro não é enfadonho e muito menos estático. Escrito em bela prosa, ele tem ritmo, tem verdade, tem porque. Toda a primeira fase de Waugh é muito mais brilhante, mas a névoa que flutua nestas páginas nos captura e nos faz pensar.
PS: eu adorei a série da BBC. Não perdi um capítulo e ia à faculdade de calça branca com blusa de lã amarela pendurada nos ombros. Para mim, a trilha sonora da série era a melhor do mundo e procurava uma mulher como Diana Quick, a irmã de Sebastian.
Confusos anos 80.....

CLINT/ STALLONE/ MICHAEL DOUGLAS/ PECKINPAH/ RODRIGUEZ/ ASHBY

PRIMAVERA de Robert Z. Leonard com Jeannete MacDonald, Nelson Eddy e John Barrymore
Se voce quer fantasia, nada se compara aos filmes americanos dos anos 30. E nada chega perto em açucar da MGM. Em magnífico cenário e em produção imensa, aqui se conta a história de cantora que abre mão do amor pelo sucesso. O filme se parece com miniatura de porcelana. Mas é a melhor porcelana! Barrymore, já inchado pelo alcool, dá seu pequeno show. A Jeannete dos tempos da Paramount era melhor. Lá ela podia ser maliciosa. Na MGM ela é toda fofura. Nota 6.
DIRTY HARRY NA LISTA NEGRA de Buddy Van Horn com Clint Eastwood, Liam Neeson, Patricia Clarkson e Jim Carrey
Último filme de Harry. O roteiro é muito ruim. Fala de assassino serial. Jim Carrey em começo de carreira faz astro do rock junk. Canta Wellcome to the Jungle de Axl, e é hilário! Slash faz figuração em enterro. Neeson, muito jovem, é diretor de filmes de horror. E em meio a tudo isso, Clint engole o filme com seu carisma. O único grande Harry é o primeiro, de 1971. Nota 4.
OS MERCENÁRIOS de Sylvester Stallone com Sly, Mickey Rourke, Jason Statham, Dolph Ludgren, Jet Li.
Um filme esquizóide. Vamos lá: a ação é terrível. Tem aquele vício tolo dos filmes de ação feitos hoje: nada é mostrado. A edição é tão frenética que é impossível ver quem mata quem, ver um soco, um salto. Nada é observado, não há tempo para o suspense, não dá tempo de ter medo. Tudo é apenas ruído e flashs de sangue espirrando. Mas o filme tem um atrativo: Mickey Rourke. Todas as suas cenas são boas ( e são apenas três ). Ele faz um tatuador maluco e não entra na briga. Quando ele interage com Stallone e os outros o filme respira. Há humor, há vida. Mas Sly tem um compromisso com o video-game e 80% do filme é picotes de violência. Os carrões deviam aparecer mais, Jason e Jet Li deviam falar mais, e Rourke tinha de ficar mais em cena. A história....não existe. Eles vão lá no fim do mundo ( o Rio ) matar uns bandidões. O rosto de Stallone dá medo de tão deformado. Bruce Willis tem uma cena: está em ótima forma. Nota 5.
A GUERRA DOS ROSES de Danny de Vito com Michael Douglas e Kathleen Turner
Nos anos 80 existiam 3 símbolos sexuais: Sigourney, Kim e Kathleen. Kathleen era a mais bonita e melhor atriz, mas ficou doente e inchou. Aqui, ainda bela, faz uma esposa que pira ( assim como o marido ) e o filme é a insana briga dos dois. Douglas dá um show. Nasceu para fazer desequilibrados. Mas de Vito é um doente. O filme é sombrio, meio Tim Burtoniano, gótico até. Me incomodou muito. Nota 4.
PAT GARRET E BILLY THE KID de Sam Peckimpah com James Coburn, Kris Kristofferson, Bob Dylan, Chill Wills, Harry Dean Staton e Jason Robards
Um poema. O filme é triste como a trilha de Dylan é. Cowboys que sabem que seu tempo se foi, o filme é uma elegia à morte. E como se morre!!! Se no filme de Stallone morrem trezentas pessoas ( e nada vemos dessas mortes ) aqui morrem trinta e todas elas doem em nós. A bala penetra, o sangue jorra, e principalmente, o rosto sofre. Há dor e há surpresa. E há uma moral: vale a pena morrer e matar, desde que seu nome não seja esquecido. Billy não foi. Sam jamais será. Este muito árido e imperfeito filme ( ele é sujo e lento ) é fascinante. Coburn está soberbo. Pat Garret é a angústia de quem negou seu passado e vive na solidão de se justificar. Peckimpah não é para meninos. Ele filmava com os intestinos. Nota DEZ!!!!!!!!!
MACHETE de Robert Rodriguez com Danny Trejo, Jessica Alba, Michelle Rodriguez, Robert de Niro, Don Johnson, Steven Seagal e Lindsey Loham
Digamos que existiu um garoto no Mexico que cresceu amando os filmes de Peckinpah. E digamos que esse garoto se tornou cineasta. Ele fará filmes Peckinpahnianos. Mas como não viveu a vida de Peckinpah, serão citações de Peckinpah. Deliciosas citações. Machete é Trejo. O cara mata com facão. E todas as mortes que provoca ( e que são bem exibidas, sem a velocidade video game ) são hilárias. O filme é uma comédia de primeira. Mundo onde os caras são carniceiros estilosos e as mulheres são deliciosas ninfo. ( Michelle Rodriguez está, finalmente, uma musa. Sua cena final, de tapa-olho, é nota dez ). É um carnaval de sangue falso, assassinatos bem humorados, corpos curvilineos, falas absurdas. Detalhe: é o mais HQ dos filmes. Batman e Homem-Aranha nada têm do espírito livre e juvenil das melhores HQ, são pretensiosos. Aqui não: tudo é página de quadrinho. Lixo delicioso. Mal posso esperar pela continuação! Nota 9.
ENSINA-ME A VIVER (HAROLD AND MAUD ) de Hal Ashby com Ruth Gordon, Bud Cort e Vivian Pickles
O livro "Sex, drugs e rocknroll...." fala bastante sobre Ashby. Diz que ele foi o inocente talentoso que pagou o pato pelos excessos da geração Coppolla. Este filme exibe a inocencia e o talento. Está em cartaz como peça de teatro, com Gloria Menezes, mas este filme é histórico, um clássico dos filme cult e até hoje um modelo para todo filme independente tipo Juno. Fala de menino rico que adora frequentar funerais e tenta se matar todo dia. Tem mãe perua e fria ( atuação hilária de Vivian "-Harold, francamente! Acho que voce não está tendo um bom dia!", isso é dito com finesse enquanto Harold se enforca ) e um dia conhece uma senhora de 80 anos, meia louca, meia hippie, que lhe ensina a viver. Como estamos em 1971, os dois transam e se drogam e o final é muuuuito triste. Mas é uma comédia amarga, voce vai rir e vai chorar com a cena final. A trilha sonora, linda, é de Cat Stevens, uma estrela folk na época e que hoje é um muçulmano proibido de entrar nos USA. As canções são todas doces e tristes, do tipo "vamos lá voce consegue". É sem dúvida um filme do bem e diferente de tudo ( em 71 foi uma revelação em ano cheio de revelações ). Detalhe: assisti-o a primeira vez em 1986. Na época começava uma terapia. Caiu como uma bomba em minha vida, tudo parecia estar lá! Eu era o garoto calado e preso, eu precisava me libertar e aquelas eram as minhas canções. Visto hoje, eu ainda amo aquele menino e sinto ter a obrigação sagrada de ser fiel a ele. Todos nós somos Harold. Ruth Gordon, roteirista de gênio dos anos 40, faz a senhora maluquinha. É o ponto menos brilhante do filme. Uma Kate Hepburn o transformaria em ouro. Mas nada que atrapalhe a beleza ingênua desta preciosa jóia cult. Na época existiam garotos que viam o filme oito vezes seguidas. O roteiro de Colin Higgins é exemplo de perfeição. Nota DEZ.

PAT GARRET AND BILLY THE KID - SAM PECKINPAH

A violência aqui, neste desencantado poema, vem sem que a ação a prepare. E então, ao contrário dos filmes de tiros e correrias de hoje; quando uma pessoa é aqui baleada, nosso choque é bem maior. As pessoas morrem com dor, com gemidos, com sofrimento.
Já na sua primeira cena há crueldade real : galos são mortos a tiros. Ao mesmo tempo nos é apresentado Billy : um sujo, hedonista, sexy e insensível herói. Sim, um bandido sádico como Billy é o herói do filme. Porque Peckinpah vê nele um homem livre, e sendo livre, um homem de verdade, completo. A sociedade funcional, o sistema capitalista ainda não capturou Billy, e portanto, ele deve ser sacrificado. O filme conta a história desse sacrifício.
Quem o persegue é Pat Garret, bandido que virou xerife, homem rebelde que agora é servidor da sociedade. Pat e Billy foram amigos, e o filme mostra sem pudor o que há de apaixonado nos dois. Em Pat há tragédia. Tudo em que ele toca se faz sangue. Tudo o que ele vê é dor.
James Coburn faz Pat Garret. Ninguém poderia fazer melhor. Seu rosto, mapa viril de tensão e de força, leva-nos pelas poeirentas planícies daquele fim de mundo. Kris Kristofferson é Billy. Há muito de juvenil e de impulso puro em todo seu gestual. Ele ama a vida, ama as mulheres, os cavalos e as armas, e ele mata sem qualquer receio.
Mas o filme ainda tem Bob Dylan. É dele a trilha sonora e ele atua no papel de um atirador de facas. Dylan não interpreta, está apenas por lá. Nos surpreende a fragilidade do corpo de Bob Dylan. É para este filme que ele compôs Knocking on Heavens Door. Ela toca só uma e breve vez. É na morte do personagem de Chill Wills. Ele leva um tiro na barriga e se esconde para morrer em paz. As mortes neste filme são assim. A cena é comovente. E cruel.
Sam Peckinpah tinha sangue de índio americano. Ele era um desses homens livres e sempre contra as regras de civilidade. Todos os seus filmes tiveram problemas com os produtores, e este foi fiasco de bilheteria e de crítica. Os críticos de 1973 cobravam sensibilidade deste trabalho, cobravam consciência politica, cobravam mais arte. Tivesse sido lançado agora seria melhor entendido e faria imenso sucesso. Levaria Oscar, prêmio ao qual ele jamais foi indicado.
Sam Peckinpah bebeu até morrer. E morreu em 1983, aos 53. Nem 50% do seu potencial foi usado. Neste filme se bebe muito. Sempre tem alguém enchendo um copo. E todas as falhas que percebemos ( é um filme muito imperfeito ) são as mancadas de mente inebriada pelo alcóol e pela ira. Pois Pat não se cansa de dizer no filme : "- São novos tempos...e eu quero estar vivo. Pessoas como nós ou se adaptam ou morrem..."
Billy não se adapta. É morto, em cena belíssima, por Pat Garret. Esse final de filme, silencioso. é dos mais belos e tristes de todo o cinema já feito. Nos deixa com nó na garganta. Dói.
Trata-se de obra magistral de um dos gigantes do cinema de macho ( talvez seu melhor nome ). Sam Peckinpah é poeta da violência e do desencanto. Este filme é como um adeus, uma noite em deserto gelado, o fim de uma raça esquecida.
Sam Peckinpah não é para gente fraca.

BUFFALO SPRINGFIELD- AGAIN / THE BAND

Richie Furay, Neil Young e Stephen Stills. Este é o segundo disco e é uma delicia.

Urgência e um riff que lembra Jumpin Jack Flash. A voz é a de Young, com suas costeletas de Wolverine. Mr Soul é um rock meio psicótico, urgente e tem um solo da guitarra maníaca de Neil Young que é inesquecível. Um detalhe: não sou fã dele. Acho Stills melhor. Neil Young oscila demais, entre excessos de pretensão e algumas canções simples e realmente lindas. Mas não é o gênio que tanta gente diz. Mr Soul é das excelentes. Uma bela porrada.

Mas o melhor deste disco são as músicas de Stephen Stills. Com seu violão de cristal, às vezes uma guitarra escorregadia. O vocal rouco de estradeiro, uma pitada de dor, uma dose vasta de espaço vazio. Stills cria o rock made in California, que infestaria os anos 70 ( ele não tem culpa ) e em seu grupo seguinte, o Crosby, Stills, Nash and Young, seria ele também o salvador da pátria. Por causa da idolatria à Young, ficou Stills desvalorizado pela história. Mas suas músicas aqui são deliciosas, e melhor, envelheceram muito bem.

Esta banda que ainda tem Richie Furay, um baladeiro pop, nunca vendeu tanto assim. Mas acabou se tornando histórica pelo futuro de seus componentes, e por ter anunciado o som que seria dominante. Pegaram o legado dos Byrds e o amplificaram. Ouça que vale muito a pena. Além do que sua influência é sentida ainda agora, quarenta anos depois.

Mas quero falar do segundo disco do grupo de Robbie, Richard, Rick, Garth e Levon. The Band. A perfeição em forma de música. É este que os levou a capa da Time.

Across the great Divide abre com alegria. Muita alegria. Vocais unidos e um piano caminhante. Está feita a comunhão, coração à coração. Daí explode o rabecão de Rag mama Rag. Caraca! É como um cavalo bêbado de bourbon!!!!! E a voz de Levon é a voz de todo cowboy !!!! Se o disco continuar nesse nivel é de matar de tão bom... The Night they drove old dixie Down. Majestática. Aqui chega a melancólica tristeza. Eles descem a estrada rumo ao sul derrotado e consolam todos os losers do mundo. É uma obra-prima. Uma daquelas para se cantar berrando e em grupo de amigos. Eis um hino!!!!!! Up on Cripple Creek é alegre. E gruda no cérebro. Voce fica por aí a cantarolando. Não sei porque ela me lembra ressaca feliz. Aquelas manhãs em que voce sorri de sua dor de cabeça e do gosto azedo. Tem um vocal desafinado do cacete. É bom demais. Jemima Surrender, a mulher que geme como um porco e ama como um cão. É suja, bem suja. O riff inicial é pesado e caótico e o vocal é gemido em alto e bom som. Eles reclamam e nos dão pura diversão: música fun. Look out Cleveland é um apelo. O disco não cai de sua altura. Como pode? Jawbone é estranha. Tinha tudo pra dar errado. Ela entra atravessada, torta, e dá certo! Vira canção pop!!! King Harvest fecha o disco. Lá nas alturas. E fecha o círculo: tem o clima de Great Divide ( mas em nada se parece ). O disco é simples e muito rico, cheio de meandros e muito pop, parece banal e é inesgotável.

Pulei as canções de Richard Manuel. When you Wake, Whispering Pines...são tristes, tristes...Richard era um poeta da melancolia. São a outra cara de The Band, a cara que os fez parar sem brigar, se aposentar quando viram que a enganação podia chegar. São canções de tristeza verdadeira.

Na capa marrom estão os cinco. Todos com barbas e cabelos curtos. Parecem confederados ou mineradores do Alasca. Nada têm de meninos ( embora jovens então ). Eles trouxeram a dor e a alegria de adultos so rock.

ANDRÉ BARCINSKI

O blog do cara é nota dez. André é aquele tipo de cinéfilo Sam Peckinpah/ Robert Aldrich/ Lee Marvin e James Coburn, ou seja: show. Puro fun.
Mas não escrevo só pra ficar babando-ovo. É que ao escrever sobre seu crítico de rock favorito ( Nick Kent ), ele me recordou algo muito fundamental e muito esquecido. Coisa que as novas gerações do pop/rock nem imaginam: O fato de que até o meio da década de 80 não existia o saudosismo no rocknroll. Creia! É a pura verdade!
Quando eu lia a POP nos anos 70, tudo o que se falava era sobre aquele ano, e só sobre aquele ano. Em 1978, um disco de 1976 era muuuuuito velho. Estranho né? Ninguém falava de Syd Barret, Nick Drake ou Jim Morrison. Só Hendrix sobreviveu do mundo dos mortos. Um cara quando chegava aos 30 anos era considerado gagá !!!! ( Jagger aos 28 era ridicularizado, assim como Dylan aos 30 e Lennon aos 29 ). Para uma banda "antiga" ( Os Stones eram antigos com 8 anos de estrada, o Led Zeppelin em 1975, com sete anos (!!!!!!!) era chamado de dinossauro ) sobreviver, ela vivia se reciclando. E isso fazia com que Alice Cooper se tornasse baladeiro, ou que Rod Stewart se fizesse de Elton John. ( Aliás Elton virou titio aos 27 ). Quem sumisse das paradas era esquecido em dois anos.
Então falar de Beach Boys era considerado o máximo da caretice vovô, ouvir Beatles era para seus pais e Iggy Pop ou MC5 estavam completamente no ostracismo. Era um mundo cruel e árduo. Os caras tinham de lançar disco novo todo ano, mudar de visual sempre, excursionar sem parar, se tornar hard-rock, depois glitter, depois pop romântico, depois soul.... e afinal disco ou pseudo-punk. Pense, Elvis morreu em 1977 com quarenta anos. Para nós ele era velho como Bing Crosby ou Silvio Caldas. E isso não acontecia só comigo que tinha 14 anos, os críticos de 25, os roqueiros de 22 também eram assim. O T.Rex surgira em 1970, quando chegou 1974 eles já pareciam brontossauros.
As coisas mudaram por volta de 87/89. Foi quando o rap escancarou o plágio, a coleção de discos sempre viva, a referência assumida. James Brown reansceu. E junto com isso, bandas como REM, Smiths e U2 assumiram a dívida para seus ídolos: Byrds, Mott The Hoople, Them e Gram Parsons. Vieram os cds e o que era raro ou mal mixado se tornou "novo". Gente de 50 anos e gente de 20 começou a se misturar, bandas homenageavam os seus vovôs e fato impensável ocorreu: ser cool passou a ser quem ouvia coisas muuuuito antigas ( John Lee Hooker, Chet Baker ou Sam Cooke ).
Mas já em 1977, quando ninguém se lembrava de Brian Wilson ou de Arthur Lee, e em tempo em que Iggy era tratado como um imbecil demente, já lá estava Nick Kent, escrevendo sobre os esquecidos malditos, os irredutíveis, os que não mudavam, os veteranos cowboys. Nick não foi o único, Bangs também estava nessa, mas Nick era mais direto, mais escrachado, mais sujo. Ele não perdia tempo falando dos novos caras ( Queen, Aerosmith, Motorhead ), ele erguia tributos aos anciões de 28 anos.
Era assim.
PS: no cinema era igual. Em 1977 um ator de 35 era beeeeem velho. Quando John Travolta explodiu em 77, Robert Redford e Dustin Hoffman passaram para a muito velha guarda.

DEMOCRACIA

Democracia é juntar um monte de gente e se decidir pelo mínimo denominador comum. É colocar em votação um filme de Bergman e um de Gore Verbinski e dar Verbinski. Vence quem atinge a maioria e a maioria é burra.
Não, isto não é papo de PSDB perdedor. Serra candidato já é sintoma da tal democracia. Entre Dilma, que mesmo eleita ainda nada disse de relevante, e Serra, que disse várias coisas irrelevantes e conseguiu desunir seu partido, eu fiquei com minha consciência, votei no nada budista.
Democracia nos faz ouvir Restart e nos leva a ler John Grisham. Pior, nos convence que estamos errados se não formos pró-maioria. Se não defendermos a maioria, se não formos democráticos, seremos gente do mal. Ou pior, esnobes.
Estou falando disso porque estou lendo um livro de 1934, de editora do Porto/Portugal. É O Mandarim, de Eça de Queiroz. A antiga grafia de nossa lingua... que bela e principalmente, que invulgar!!!!!
Como é bonito o sciência, o phantasia, a palavra estylo cheia de estilo, desherdados, throno, pittoresco.... as palavras como devem ser : cheias de caráter, cheias de gosto, de cheiro, de "aristocracia". Mas, escrever assim era mais dificil, e a malta ignara precisa aprender o simples. Democraticamente rebaixa-se a língua ao burro, e ele, zurrando, balança o rabo feliz.
Tempo há de vir em que teremos cinquenta palavras em uso. E tudo "sera iscritu comu si fala". A cultura "comu coiza di mitidu a besta". Democracia é isso.

JACKIE CHAN/ OTTO PREMINGER/ GONDRY/ THOMAS ANDERSON/ PECKIMPAH/ CLINT

CITY HUNTER de Wong Jing com Jackie Chan
Um muito jovem Chan, num filme passado em navio. Ele luta pouco e o filme é Os Trapalhões made in Hong Kong. Tem cenas inacreditáveis! É o tipo de filme que quando resolve ser engraçado não teme a bobice. Eu me diverti. Mas está mais pra circo que pra filme. Nota 5.
SIDE STREET de Anthony Mann com Farley Granger
Noir de primeira. Um carteiro rouba grana de bandidão e se perde sem saber o que fazer depois. Devolve a grana? Gasta? Distribui? A vida do cara vira um inferno! Mann sabe tudo: o filme tem suspense, drama, ação e belas imagens. Pena Farley ser tão limitado ( mas não consegue estragar o filme ). É bom para quem ainda não descobriu o noir. Nota 8.
PASSOS NA NOITE de Otto Preminger com Dana Andrews e Gene Tierney
Cada vez mais me convenço que o paraíso do cinéfilo é o filme noir. Aqui, um policial psico mata um bandido e tenta esconder esse crime. Ao mesmo tempo se apaixona por moça simples. Há um soberbo clima de paranóia e Dana está muito bem. Seu rosto é maldoso e torturado. Preminger foi um muito bom diretor que Hollywood esnobava. Adoravam seus filmes, detestavam o homem. De todo gênero de filme, é o cinema noir o que menos envelhece. E é o mais difícil de ser refeito hoje. Um pequeno clássico. Nota 9.
PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO, INVERNO...de Kim-Ki Duk
Vamos lá. Existem filmes, como os de Aldrich ou Tarantino, que nada nos ensinam, nada têm de nobre. Mas que são cinema de primeira. Puro cinema. Esses são os grandes diretores. Artistas que se apoiam apenas no próprio veículo, nada pegando da literatura, do teatro ou da tv. Gente como Hitchcock, Ford ou De Palma. Mas existem aqueles que não são tão afinados com o puro cinema, que não fazem filmes tão excitantes, mas que enchem a tela de referências, de toques filosóficos, poluem o cinema de literatura ou de filosofia. São esses que fazem os filmes mais chatos do mundo, mas que às vezes nos fazem pensar. Este filme, como cinema puro, é apenas uma bela coleção de fotos. Mas ele faz pensar, faz viajar em idéias. Para o que se faz hoje, tá bom demais. Nota 7.
ADÚLTERA de Claude Autant-Lara com Gerard Philipe e Micheline Presle
Eis o tipo de filme que Godard/Truffaut/Chabrol adoravam esculachar nos Cahiers du Cinema. Dá pra se imaginar suas páginas furiosas sendo escritas, enquanto esta lenga-lenga sonolenta rola na tela. O filme é pesado, morto, escuro, feminino ( no pior sentido ), velho, insuportável. E todo metido a arte, tem a ilusão do bom-gosto, tenta ser belo, superior.......Não é a toa que eles amavam tanto o cinema noir e o western!!!!!! Nada é menos western e noir que esta coisa modorrenta!!!!! Mereceu cada chibatada que os jovens cineastas lhe deram. Nota Zero.
REBOBINE POR FAVOR de Michel Gondry com Jack Black
Mas Gondry não era um gênio? Onde? Como desculpar um filme tão "esperto" como este? Seu humor parece piada de fim de festa de casamento, suas sacadas são as sacadas das pegadinhas do Faustão. Um lixo que chega a ser constrangedor. Parece um filme ao qual não fomos convidados a assistir, uma brincadeira entre amigos. BáaaaaH!!!! Nota Zero.
SANGUE NEGRO de Paul Thomas Anderson com Daniel Day-Lewis
Anderson, ex-assistente de Altman, diz ter assistido toda noite a O TESOURO DE SIERRA MADRE enquanto filmava este imenso mural sobre a ambição. Foram mais de sessenta vezes que Bogart e Huston acompanharam as noites de Anderson. Deu certo? Sem dúvida é um filme invulgar. É ambicioso, cinema puro, sem popices, sem falsos toques de "genialidade". Ele é doloroso, é bonito, e tem um ator em atuação inspirada. Mas para cinéfilos ele trai várias influências e isso o esvazia um pouco. A gente percebe de onde foi tirada cada cena. Mas... e daí? pelo menos ele tem o gosto de pegar essas cenas de fontes puras e não de video-games ou da tv. Um comentário: o povo mais animadinho adora os filmes de Fincher, Gondry e Nolan. Assim como os metidos adoram Trier, Lynch e Kar Wai. Prestem atenção em Joe Wright, Alexander Payne, Todd Haynes, Irmãos Coen e James Mangold. Em 2030 é o que ficará. E Paul Thomas Anderson também. Nota 8.
PISTOLEIROS DO ENTARDECER de Sam Peckimpah com Randolph Scott e Joel McCrea
Já ví crítico dizer que é este o melhor filme de Peckimpah. Só para quem não gosta de Sam !!!! Neste que é seu segundo filme, vemos esse estupendo diretor ainda preso, ainda contido em suas doideiras. Mas já dá pra entrever seu humor tétrico, sua violência gráfica, e seu amor pelos velhos perdedores. O que há de melhor é a relação entre os dois velhos cowboys. O filme mostra o fim de sua época. Mas perde tempo demais com jovem casal ! Repare que os coadjuvantes já se parecem com aquele tipo de cowboy sujo e meio louco dos westerns da época hippie. Este filme foi feito cinco anos antes dessa época. A forma como os bandidos morrem já é de nosso tempo, eles caem para trás, o sangue escorre e vemos que a dor existe. O poeta da violência já lutava por nascer. Nota 6.
IMPACTO FULMINANTE de Clint Eastwood com ELE e Sondra Locke
Quarta aventura de Harry Callahan. É aqui que está a famosa frase : GO AHEAD, MAKE MY DAY ! Estranho, após o maravilhoso primeiro Dirty Harry, todos os outros parecem pastiches, falsos, quase gozações. E este, o único dirigido por Clint, tem a cena mais amadora que já vi : um carro estaciona num bosque, um cara desce, e vemos refletido no vidro do carro um rosto sorrindo e uma câmera ao lado!!!!!!!! Sim!!!! O câmera foi refletido pelo vidro e aparece nítido e sorrindo no filme...Como Clint não viu isso? O editor é Joel Cox, de todos os filmes de Clint, a Warner produziu, como passou uma coisa tão amadora???? É inexplicável..... Após essa cena, perdi todo o interesse pelo filme, passei a vê-lo como uma brincadeira, e fim. Clint Eastwood, ídolo meu, é um cara inescrutável. Nota 4.
SUBLIME OBSESSÃO de Douglas Sirk com Rock Hudson e Jane Wyman
Um mês atrás assisti a versão anos 30 desta história. O filme é uma babaquice melosa e insuportável. Escrevi que se Douglas Sirk tivesse conseguido salvar aquela história ridicula na sua refilmagem de 1954, eu o chamaria de gênio. Pois eis um gênio: Douglas Sirk. Este ídolo de Almodovar, Fassbinder e Todd Haynes, com ritmo, economia e objetividade, salva a história melosa, e nos dá um drama envolvente, vivo, exagerado e fascinante. O filme é tudo aquilo que toda novela de tv tenta ser, viciante. Os atores estão perfeitos e a trama, sobre playboy que se apaixona pela ex-esposa de médico por cuja morte ele foi acidentalmente responsável, acaba nos pegando, apesar de todo seu não realismo. É cinema de verdade, sem afetação, uma história sendo contada com ritmo musical, sem falhas, com tudo no lugar certo. Sirk sabe. Nota 9.

PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO....-KIM-KI DUK

Você um dia amarrou uma pedra à vida.

E o sapo, e o peixe e a serpente foram asfixiados em sua vida.

O sapo que se transforma, o peixe que mergulha na água, e a serpente que se renova.

Voce lhes deu uma pedra para carregar.

E sua pedra, dura/sólida/fria não tardará.



O vazio é uma casa/mosteiro. Pintada e de madeira.

O mundo é um lago onde a casa mora. Água ao redor da casa.

O velho e o menino.

O passado e o presente. O futuro nos dois.

Único modo de ser.



O desejo vem como consequencia. Sobre as águas calmas ele é febre. Cobras que se enroscam.

O desejo é vida e vida é ilusão. Etapa a ser vencida. Sabedoria sem servidão.

O desejo sempre vence. Ele se vai, fortalecido, voce fica, destruído.

A paz do lago está partida. O velho e o jovem são agora dois. A unidade se perdeu.

O mundo de coisas e de palavras chama.



O velho será serpente após o fogo.

O menino será o velho após o desejo.



O peixe será o peixe, o sapo será sapo.

E a pedra será carregada.



O cinema atual só é relevante no oriente. Kim-Ki Duk. Eis um grande cineasta. E mais que isso: um verdadeiro budista. Seu filme é um silêncio que procura um vazio. Não tem ação, apenas espera. Não tem furor, apenas quietude. Não tenta transformar budismo em filosofia existencial ( como fez Bertolucci em O Pequeno Buda ). Ele não olha o vazio de fora, como fizeram Hesse e Schopenhauer. Kim está inserido no vazio.

Conheço a casa cercada por água.

A minha era cercada por um pântano.

Após ficar, inutilmente desperdiçando tempo e fazendo nada, por várias horas lá, eu começava a sentir só o pássaro que voava, a formiga que passava e o capim que se movia.

Tudo que eu pensava era no suor que molhava minha testa e no cheiro da lama que vinha do córrego que serpenteava.

Aquele e aquilo era meu vazio onde eu nada fazia e nada era. Um que estava.

Nunca estive tão vivo.



Nada espere deste filme. Ele é um vazio. Nem bonito e nem feio, nem moderno e nem antigo, não é bom ou ruim, e não tem ação e nem é artístico.

É nada.

Mas perceba: A vida é uma casa em meio a um lago onde um velho assiste um menino.

Por mais que nos cerquemos por palavras, coisas e ações vãs, a vida é um espaço onde a serpente renova, o sapo transforma e o peixe mergulha.

Este filme é precioso.

O BUDA

Agora chove lá fora. E vêm as palavras: pode haver uma enchente, o feriado se foi, chuva é coisa poética, molha meu amor, rega as plantas, chuva é trânsito ruim, chuva ácida, o tempo mudou, a chuva são gotas de água, chuva dos deuses.....
Modo budista de pensar a chuva: chove.
Estou vivo. Irei morrer. Estou amando, o amor pode ser perdido. Estou feliz, toda felicidade deve ser usufruida. Estarei feliz? O que me faz feliz? Satisfazer desejos. Ser livre. O que é ser livre? Livre do que? O que é o desejo? Mas todo desejo é por sí insatisfeito. O kosmos é infinito, mas o que há após o infinito? O que existia antes do primeiro segundo? De onde veio a primeira matéria???????
Modo budista de pensar. ( ).
Vazio.......................................................Vazio.
nem o sim e nem o não
silêncio
Palavras são brinquedos de criança.
Poeira que nos faz fechar os olhos.
mas até mesmo os olhos são parte do jogo.
Pensamos com palavras
Sentimos apenas o que é palavra
mas as palavras são falhas
Porque foram criadas pela ilusão
Nomeamos para deixar de ter medo
Nomeamos para poder lidar
Nomeamos para vulgarizar
sem um nome não há
sem um nome não sei lidar
sem um nome o vazio e o nada
a verdade?

Chove.
Folhas molhadas e ruído de água.
Cheiro que vem do chão.
Pássaro cantando.
Quem chove sou eu
molhado eu
chão eu
Quem canta sou eu
Mas eu sou aquilo
eu sou lá
( )

Buda.

SONGS FROM THE BIG PINK - THE BAND

Não é pouca coisa.
Num tempo de doidos chapados, eles eram sóbrios.
Em era de solos de guitarra e gritos revoltosos, eles propunham a delicada atitude.
Quando todos eram terminais desesperados, eles trilhavam a esperança da amizade.
E em terra de artistas egocêntricos, tudo o que eles faziam era comunitário.
Não é pouco.
Como diz a Rolling Stone, salvaram almas perdidas na confusão pós-68.
E mais.
Mudaram os Beatles, que após ouvir este disco deixaram de lado o psicodelismo e passaram a fazer canções ( há uma famosa foto em que os fab four os homenageiam ). Desfizeram o Cream, fazendo com que Clapton jogasse fora seus solos e passasse a tentar cantar.
E deram novo significado a todo o rock americano, ao lembrar aos ídolos doidos que tudo na música americana é folclore, raiz, verdade.
Com este disco eles abrem caminho para Leonard Cohen, Neil Young, Van Morrison e Gram Parsons.
Não é pouca coisa eles terem sido a primeira banda a ser capa do Times.
E terem sido os primeiros a ser homenageados em show ( Dylan, Young, Morrison, Muddy Waters, Clapton, Joni Mitchell ) quando a moda de homenagens ainda não existia. Foram filmados por Scorsese e deixaram a banda de lado, se aposentaram, ao sentir que a inspiração se fora ( como Bergman faria no cinema ). Optaram por não explorar seus fãs.
Tudo isso é The Band. Robbie, que toca guitarra como quem toca a mulher amada, com maciez, tato, carinho; Rick e seu baixo sacolejante, Garth enfurnado em efeitos de teclado, Richard com os pianos de buteco e Levon e sua batera de ritmo estradeiro. Todos liderando, todos nos vocais, ninguém como frontman.
Neste seu primeiro disco, gravado na casa de fazenda Big Pink, onde Dylan se recuperava de acidente, eles são mais pó e solidão em grupo que nunca. Eles são o melhor equivalente que o rock já produziu dos filmes de John Ford e dos poemas de Whitman. Tudo é estrada, tudo é casa em comunhão, tudo é pra valer.
Quando a primeira faixa entra, Tears of Rage, voce já sente: nada aqui é comum, mas tudo lhe será familiar. Poucos discos têm uma faixa 1 tão pouco pop, tão pra baixo, tão íntima. Eles choram uma derrota, mas no resto do disco veremos que essa derrota não os destruiu. Faixa a faixa, são onze, eles vão se erguendo, se aprumando, reconstituindo o mito do herói, e dando injeção de ânimo ao combalido rocknroll.
Seu som, escutado hoje não te impressionará por sua originalidade. Foi tão copiado desde então ( e ainda é ) que parece apenas mais uma banda fazendo outra vez esse tipo de som pop. Mas na época de Beatles, Doors e Zappa, em que todo disco era psicodélico, eles foram os criadores desse som. Adulto, masculino e sensível sem ser frouxo.
O que irá te impressionar agora é a beleza das melodias, a nobreza das vozes e a sinceridade de um grupo que transpira verdade em cada segundo de som.
Quando a música Long Black Veil irrompe ( faixa 7 ) voce desaba. Nada em rock soa tão verdadeiro. E trágico.
Ouvir este disco é então ser testemunha de uma cerimônia onde a fé é na força do homem, na inspiração da raiz e na aventura da estrada. Vindos do Canadá ao mundo, The Band será sempre a lembrança do grau máximo de dignidade em música. Pois talvez existam bandas melhores (quais? ) mas nenhuma é tão amiga.

O MELHOR DOS PSICÓLOGOS ( SOBRE A PAIXÃO ) - STENDHAL

Concordo com Harold Bloom ( e tantos outros ), Stendhal é o escritor que melhor analisou a paixão, desde o momento em que ela nasce ( é o único que consegue demonstrar como e porque ela surge ) até sua morte. Apenas Tolstoi lhe faz sombra.
Recordo de momento em minha vida, doente de paixão frustrada, em que comecei a ler O VERMELHO E O NEGRO. Sem muita vontade, achando ser incapaz de concentração, insone. Mas aconteceu a magia: logo em suas primeiras páginas Stendhal me capturou. Alí estava tudo o que eu vivera, eu não estava só. O livro me reergueu e só então percebi o quanto um livro pode ser precioso. Mas o que Stendhal faz é ainda melhor: ele descreve a paixão em profundidade, mas jamais deixa de nos exibir o ridículo que vive ao lado do sublime. Ele não faz sátira, respeita o amor, mas demonstra o quanto nosso sofrimento tem de consciente, de livre-escolha, de masoquismo. Stendhal sabe exatamente onde mora a armadilha.
E sempre é um prazer ler seus livros. A escrita varia entre a alegria solar ( o amor para ele, mesmo se sofredor, é sempre vital, portanto, alegre ) e o sonho. Ele consegue nos fazer mergulhar no delírio da paixão, mas nunca parece "místico" ou poeta, é sempre um realista.
Julien, personagem deste livro, é um frio ambicioso. Ou não? Ele sabe usar o amor, trata-se de um sedutor. Ou não? Essa dubiedade acontece também com as duas personagens femininas centrais. Ficamos em dúvida: aquilo é amor verdadeiro ou é narcisismo? Eles se amam ou se usam para se amar? A vítima é uma vítima ou é uma atriz/autora, presa em sua peça feita de espelhos?
Stendhal usa todos os artifícos do romantismo, mas os analisa, esvazia-os, mostra a bufonaria dos hábitos. Julien paga por seus crimes, mas mesmo o cadafalso é ilusório, teatral, mascarada de convenções.
Como dizem tantos críticos, mais que o amor, Stendhal mostra que é o desejo que sempre nos cega e nos faz errar. E preciosamente, em sua escrita, Stendhal transmite cada meandro, cada fagulha desse desejo, seja o subjetivo desejo pela felicidade, seja o urgente desejo pelo poder. Ele demonstra que amor é carne, é posse, é ter, mas que também pode ser alma, deixar de ser, dar-se e se iludir.
Nietzsche chamava-o de O GRANDE PSICÓLOGO. Percebeu Stendhal que todos os nossos erros nascem de nossa impaciência, que bastava saber esperar e conseguir calar para deixar de errar. Que toda a dor do homem nasce do fato de que somos incapazes de nos aquietar. É urgente que façamos coisas, que matraqueemos, que "vivamos". E toda essa ação, essa falação sem fim nos leva ao erro, principalmente em amor, mundo onde o silêncio e a quietude são regras de ouro.
Tudo o que sofri e tudo o que errei estão em Stendhal. O VERMELHO E O NEGRO, obra-prima de tempo em que o gênio abundava no ocidente, é manual de paixão, auto-ajuda de verdade, monumento à mente sagaz de um homem.
Stendhal sabia tudo.