DEREK AND THE DOMINOS- sol, desespero e amor

ATENÇÃO:
ESTE TEXTO NÃO DEVE SER LIDO POR MENINOS ( MENINA PODE ). ELE FALA SOBRE SENTIMENTOS VIRIS. PODE CAUSAR DOR, MEDO E INSEGURANÇA.

A Rolling Stone disse uma vez que existe um certo tipo de disco que consegue passar aquilo que seria um ato de sucídio por amor. Música que é um abismo de dor, mas não de neurose. Ao contrário da neura, é dor verdadeira, inteira, assumida, é a completa e abismal paixão. O autor do texto cita "Darkness on the edge of town" de Bruce e "Tonight is the night" de Neil Young como exemplos desse momento de dor e de inspiração, e cita " Derek and the dominos" como o momento maior, onde o autor se mata de amor em nossa frente, e ao ouvir o disco, se estivermos apaixonados, nos sentimos morrer com ele.
Mas o que é Derek ?
Você sabe, é o Eric Clapton da heroína, o cara que em 1970 todos diziam ser o próximo morto. O que não sabiam é que ele já estava no inferno. ( E è sintomático de sua situação o fato de Keith Richards ter dito numa entrevista que trabalhar com Clapton era barra-pesada demais !!!! ).
Eric acabou com o Cream ( no auge da fama ) por dois motivos : por ter escutado a The Band e querer fazer aquele som, e por estar entupido de heroína. Mas, como tudo que é ruim pode ficar pior, ele se apaixona pela esposa do melhor amigo : Patty Boyd Harrison, esposa de George, aquele George...
Clapton vai, cheio de culpa ( não foi platônico e George perdoou os dois ) para a América e se mistura com uma gang de muito talento e de muita droga, os tais Dominos. Disfarçado então, ele lança um disco onde canta ( grita ) seu amor por Patty. Ouvindo o disco ( que nada mais é que uma carta de amor ), ela escolhe continuar com George, mas dois anos depois opta por Eric ( com quem ficaria mais de dez anos ). Clapton lança o disco, pira de vez e desaparece por quatro anos. Quando retorna, limpo de heroína, bebedor compulsivo, ele se apresenta como o cara que conhecemos desde então : acomodado, calmo, pop. Com a morte, por sucídio amoroso, daquele poeta do blues, nasce o guitarrista pouco ousado, clean e elegante, boa praça. Quem assistiu o show em homenagem a George ( excelente ) sabe do que falo : Clapton é um gentleman. Mas quem ouviu e sentiu os Dominos sabe mais : o disco é um berro de desespero amoroso.
Como devo deixar bem claro, o disco é de dor e desespero, mas nada tem de neurótico. O amor que ele passa é a paixão visceral de um homem de coragem por uma mulher especial. Apesar de ter sido gravado por um bando de junkies, nada em seu som trai qualquer tipo de viagem ou de pesadelo drogado. É um disco de blues. Para ser entendido por quem se perdeu numa estrada, para quem sabe o que é estar onde não se queria estar, para quem acordou e se viu no blues.
Nunca duas guitarras soaram tão fortes e tão cheias de sangue. Clapton chamou Duane Allman para tocar com ele. Duane, na época não muito conhecido, morreria em acidente de moto dois anos mais tarde, no estouro da Allman Brothers Band. Eric, com a modéstia que nele parece ser verdadeira, deu para Allman os melhores solos e passa boa parte do disco fazendo base para os solos de slide do americano. E que solos ! Tudo o que uma guitarra pode fazer em termos de emoção é feito pelo slide de Duane e pelo dedilhar de Eric. Os solos não são colocados nas músicas, eles explodem, sempre em desespero, sempre em lamentações dobradas, numa espécie de hiper saturação do blues. O efeito sobre aquele que já se apaixonou pela mulher errada e pagou por isso, é devastador. As duas guitarras, faixa após faixa, trazem uivos e gemidos que revivem toda a dor de uma emoção destruída e destruidora. Após estas faixas não há como outro guitarrista os superar, a linguagem do instrumento é esgotada.
As faixas falam de toda a história dessa paixão. Começando com " I Looked Away ", com solo soberbo de Eric, caminhando por "Bell Botton Blues", faixa que já estraçalha seu pobre coração aniquilado, tudo no disco conta a história da sua/ da minha/ da paixão de todos. Mas veja bem, paixão com P gigante, paixão louca de total entrega e total desfalecimento. Clapton se suicida nestes sulcos, dá sua alma à musa e renasce outro ser, anos depois. O cara que gravou isto, o louco deus da guitarra do Cream e do Yardbirds desaparece neste album. Album que continua com a festa de Keep on Growing, prossegue pela soberba Anyday- que tem vocais de morrer de dor, e deságua na música das músicas de estrada, Key to Highway, que tem os melhores solos já gravados. Quando Have you ever loved a woman surge, só resta entregar tudo à música, o que foi gravado alí é algo precioso demais para ser explicado. É música pura, superior; explicá-la é tão dificil quanto explicar uma paixão.
Dos músicos que tocaram neste disco, dois se mataram, um enlouqueceu e Duane morreu no acidente. Eric Clapton sobreviveu. E acima de Hendrix, Cobain, Morrison ou Curtis, eu valorizo o sobrevivente, o que viu a besta e voltou para continuar. Clapton viu. O demonio que ele viu tem o tamanho deste emocional disco. Era um demonio feito de amor, de desejo e de aventura. Ele soube domá-los. Não fez pouca coisa.
Ao final ele sobreviveu a Patty e a George. E melhor, manteve a amizade dos dois. O que fica disso tudo ? Este disco... e penso que ao final tudo se resume ao blues........

DAISY MILLER / INCIDENTE INTERNACIONAL - HENRY JAMES

Um imenso prazer ler James. É o melhor escritor dos últimos 150 anos ? Talvez Tolstoi e Proust sejam tão bons quanto ele, mas desde Stendhal eu não conheço quem escreva tão bem, tão "bonito", de modo tão claro, refinado, prazeroso e profundo. James esgota os vários angulos de cada sentimento, nos dá o personagem inteiro, complexo em todo matiz, cria com exuberância.
Daisy Miller é uma noveleta de 80 páginas. Compara americanos à ingleses. Sabemos que James nasceu na América, mas muito cedo emigrou para a Inglaterra. Sua descrição é imparcial, mas notamos, surpresos, que na época desta história ( 1875 ) a América já era a América. Vejamos :
Toques cômicos animam todo o relato. Desse modo, vemos Daisy, em Londres ( e depois em Roma ), uma americana rica ( James só fala do que conhece, as altas classes ), se divertindo como uma americana se diverte : falando tudo o que pensa. Isso deixa os britânicos alarmados ! Falar tanto, falar tudo, fazer confidências, expor sentimentos... quanta falta de educação ! Pior, Daisy anda sozinha pela cidade ! E se aproxima dos homens, sorrindo, sem ter sido apresentada à eles ! Tudo nela é ação ingênua, tudo nos ingleses é convenção estudada. Nada pode ser natural na Europa, lugar antigo e pouco selvagem. Para Daisy, viver é falar e fazer. Ingleses não se preocupam em fazer, seu ideal é a nobreza, e um duque passa a vida na inutilidade.
Na segunda história, são dois nobres ingleses que visitam Nova Iorque, e o tom cômico é maior. Basta dizer que eles temem não compreender a língua americana e morrem de calor no verão, pois para eles Nova Iorque está muito próxima do Equador !!!
Neste relato, os dois são ponto de atenção da sociedade de Newport, sociedade que se irrita ao constatar que um nobre inglês jamais comparece ao parlamento e nunca demonstra interesse por suas próprias ruínas históricas. Eles nada têm a dizer sobre nada. As americanas, por seu lado, fazem aquilo que as americans fazem todo dia e toda hora : compras ! Sim meus caros, em 1875 a grande atividade americana já era o consumo. E elas andam de lá para cá, toda tarde flanando, e comprando sedas, jóias, luvas, sombrinhas, botinhas, perfumes, quadros, flores, móveis, tapetes, vestidos, vasos, talheres e um imenso etc. Os homens trabalham e trabalham, mesmo os milionários, que não conseguem parar de fazer dinheiro. São todos terrivelmente ingênuos. Acreditam na democracia, na missão americana e em Deus. Pior, acreditam que a Europa é aquilo que leram em livros europeus. Sempre se decepcionam, e descobrem, como caipiras que são, que nada é melhor que Richmond.
A salientar a figura de Raymond, uma criança americana na Europa, que reclama todo o tempo da Inglaterra. Para ele o céu é nublado, as pessoas são feias, as casas pequenas e a comida sem sabor. Lugar bom é Poconotsy, onde existe o bom doutor Taylor, que tudo cura, e onde as estrelas brilham de verdade. Para ele, a Oak street é muito maior que Trafalgar e Picadilly juntos.
Assim como é hilário o modo como os dois nobres estranham o chuveiro do hotel ( imenso, a América é a terra dos hotéis e dos transatlânticos ) e ficam horas tomando banho.
O que notamos é que nada mudou na América. E é fascinante ver o nascimento do gigante, em seu auge de otimismo e juventude. Era óbvio o fato de que seu estilo de viver seria dominante no século seguinte, que toda cidade seria Nova Iorque e que toda mocinha seria Daisy Miller. Já os ingleses sumiram. Tornaram-se apêndices da América, pseudo americanos com a pose de nobres, ou cockneys que pensam estar no Harlem.
Além de mestre da psicologia, Henry James se revela aqui ( nestes seus primeiros sucessos ) um humorista digno de Wilde e um observador agudo daquilo que realmente importa. Ler estas novelas é prazer e informação, o que mais se pode querer ?

FREARS/CLAUDETTE COLBERT/BOORMAN/HITCHCOCK

OS IMORAIS de Stephen Frears com John Cusak, Anjelica Huston e Annete Bening
Entre 1990/1998 foi moda o filme de malandragem. Aquele tipo de filme que mostrava gente desonesta ( e muito charmosa ) em seu "trabalho" diário. Era um tipo de filme delicioso e este é dos primeiros ( e dos mais amargos e cruéis ). Frears, grande e irriquieto diretor, dirige com sua costumeira correção e apesar de Cusak não ser o ator ideal para o papel ( e aqui começa a amizade dos dois, que os levariam a fazer juntos " Alta Fidelidade" ) o filme sobrevive muito bem, graças ao excelente roteiro de Westlake e as perfeitas Anjelica ( um fenômeno ) e Anette ( linda e maldosa ). Diversão de alto nível. nota 7.
O GENERAL MORREU AO AMANHECER de Lewis Milestone com Gary Cooper e Madeleine Carrol.
Passado na China ( soberbo cenário labiríntico ) é uma aventura sobre americano que luta contra tirano chinês ( tirano de direita ). Impressiona o carisma do elenco conhecido, a fotografia expressionista cheia de sombras e um clima de suspense absorvente. O tipo de filme pop que justifica a existência do dvd e o resgate dos filmes dos anos 30. nota 7.
A OITAVA ESPOSA DO BARBA-AZUL de Ernst Lubistch com Gary Cooper e Claudette Colbert.
O roteiro de Billy Wilder e Charles Brackett é, talvez, o mais perfeito roteiro alegre já escrito. E quem dirige é Lubistch, o mais admirado dos diretores de comédia. O tema : na Paris da Paramount ( ou seja, é a Paris que deveria ter existido ), um americano muuuuito rico e muito ocupado, conhece numa loja, uma francesa de sangue azul, porém, falida. O pai dessa francesa é um malandro de marca maior. É lógico que os dois irão se apaixonar, é lógico que se detestarão no começo. E é lógico que o filme é maravilhoso ! Tudo funciona : Cooper está no auge do carisma, faz um americano como todo americano desde então pensa ser- bonito, esperto e educado. Claudette está belíssima e com um jeito de malicia ingênua exuberante. Todos os coadjuvantes brilham e as falas têm o cinismo alegre que Wilder sempre exibiu. Não tem um só momento arrastado, jamais parece forçado e corre leve como espuma. Se um filme fosse champagne, este seria um Dom Perignon. Nota DEZ !!!!! É uma obra-prima.
UMA HORA COM VOCÊ de Ernst Lubistch com Maurice Chevalier, Jeanette MacDonald e Genevieve Tobin.
Não tão bom. Mas bastante amoral : o marido ama a esposa, mas a trai alegremente com sua melhor amiga. A esposa dá o troco. É um musical de opereta, bastante austríaco, e isso quase estraga o filme. Chevalier, que foi super estrela, fala com biquinho. Os franceses até hoje pagam o pato : todos pensam que falar francês é fazer bico. Chevalier fazia bico, os franceses na verdade falam soprando fumaça ( como Jean Gabin ). È um filme antigo como carruagens ou valsas. Nota 5.
UM BOM ANO de Ridley Scott com Russel Crowe e Albert Finney
Um horror !!!!! O livro de Peter Mayle ( que me fez adorar todos os seus livros. Eu lí todos eles. ), é uma alegre e saborosa ode à Provence, terra de prazeres sensoriais. O personagem, no livro, é um homem meio insípido, que d escobre o prazer na mesa provençal. No filme ele é um hiper-yuppie, hiper ambicioso, hiper-chato. O filme é uma bomba!!!!! Scott e Crowe se tornaram amigos ao fazer Gladiador. Ambos adoram a Provence e seus vinhos e comidas. Tal região merecia algo melhor. nota 2.
REGEN de Joris Ivens
A vida transcorre na Holanda. ( Amsterdã ? Rotterdã ? ). Chove na cidade. Volta o sol. O filme ( 30 minutos ) é apenas isso. A chuva caindo e gente se abrigando. Água nas telhas e nas ruas, nos rios, no chão. Mas há tanta poesia aqui que chega a comover. Ivens foi um dos criadores do cinema holandês; este pequeno filme é mitológico. Merece sua fama. Nota 9.
JUAREZ de William Dieterle com Paul Muni, Brian Aherne e Bette Davis
O roteiro é de John Huston. Eis um fato raro : o filme é sobre Juarez, libertador do México, mas ele exibe seu rival, Maximiliano, como um homem tão fascinante quanto ele. Ambos erram, ambos têm boas razões. O filme é exemplar em sua visão multi-facetada da história. Faz o que CHE não faz, olha com coragem e isenção. Nota 7.
SALOMÉ de Ken Russell com Nickolas Grace e Glenda Jackson.
Russell foi diretor famoso nos 70/80. Famoso por sua ruindade e sua pretensão. Todos os seus filmes fazem força para chocar, para serem esquisitos. Se tornam "Joãozinho Trinta". Aqui vemos Oscar Wilde assistindo em sua sala a uma apresentação de sua peça Salomé. O ator que faz Oscar está ótimo, mas o filme é lixo oitentista da pior espécie. É afetado, metido, fake luxuoso, hiper gay e muito chato. Nota Zero!!!!!!
INFERNO NO PACÍFICO de John Boorman com Lee Marvin e Toshiro Mifune.
Atenção !!!!! Este filme mostra tudo aquilo que um diretor deve saber ! Dois soldados, um americano e um japonês, estão sós numa ilha do Pacífico. Brigam por água, por comida, por tudo. Conhecem o inferno máximo e acabam se aceitando ao tentar fugir da tal ilha. O filme é só isso : sem nenhum diálogo, os dois atores grunhem, brigam, sofrem e enfrentam o mar. Boorman, diretor inglês da brilhante geração de Anderson, Richardson e Schlesinger, dá uma aula de movimento de câmera, de ação, de clima. São duas horas que nunca cansam, que emocionam. Ele faz tanto com tão pouco !!!! Quanto aos atores... repito o comentário de Pauline Kael - " Um filme cheio dos lamentos de Lee Marvin e dos grunhidos de Mifune é como algo parecido com o paraíso de todo fã de cinema. " O filme é cheio de Lee e de Toshiro. Não precisa de mais nada. Viril, belamente fotografado ( Conrad Hall ) e com boa trilha de Lalo Schifrin. Nota 9.
DISQUE M PARA MATAR de Hitchcock com Ray Milland e Grace Kelly
O mestre pega uma peça de sucesso e a filma. Simples, sem ambição. Ele precisava de um sucesso e o conseguiu. O filme é perfeito em seu tom. Milland esbanja maldade elegante, Grace está linda e assustada e a câmera de Hitch desliza pelo cenário único sem nunca nos cansar. Entramos na trama, torcemos por Ray, depois por Grace, por Ray de novo e afinal aplaudimos o mestre por sua alegre genialidade. Alfred Hitchcock, como aqui, dirigindo sem esforço, só pra relaxar, coloca 99.999999% dos outros diretores no bolso do colete. Um filme para se ver, rever e sorrir de prazer. Nos extras, belo comentário do fã M. Night Shyalaman. Nota 9.
A VERDADE NUA E CRUA de Mike Chadway com Katherine Heigl e Gerard Butler
O roteiro poderia ter sido escrito por qualquer semi-analfabeto do Arkansas ( e creio que foi ). Tudo é falso, tolo, forçado e o pior, sem graça. Esse tal de Butler é tão mal ator que chega a ser cômico seu esforço para fazer alguma expressão. Não consegue. Tudo o que consegue é posar como se um anúncio de desodorante fosse o tema do filme. Para quem se dirige esta coisa ? Com certeza para aqueles que vivem em anùncios de desodorantes e de cervejas. O filme tem o valor de um copo de cerveja quente e passada. A atriz é bonitinha mas inócua. Nota menos mil.



O VIRUS DO TEMPO

Retirando a frase de seu contexto, e lhe dando outro sentido, um cara que escreve na Folha cita Nick Hornby : " este é o melhor tempo para quem gosta e se interessa por música". Sem dúvida que é ! Em nenhum outro momento eu teria acesso a tanta coisa ! De Cameron de la Isla à Marie Laforet; do blues mais obscuro ao pop mais despudorado, tudo pode ser conhecido, escutado e consumido. E lógicamente, prontamente esquecido.
Uma coisa muito estranha, e que jamais esperei, está ocorrendo : um vírus se espalhou entre pessoas com menos de vinte anos e com algum grau de informação e inconformismo ( os meninos não contam- tudo para eles é informação conformista ). Esses jovens são ferozmente saudosistas. Mas, ingenuamente, sentem saudade do que nunca conheceram. Idealizam.
Usam óculos grandes tipo Carnaby Street, calças modelo 70's e camisetas tipo rock'n'roll. Dançam como se dançava no Soho em 1967 e usam drogas que "expandem a mente", tipo Ken Kesey ou Ginsberg. Seus gurus são Che, Gandhi, Reich e Jung, e falam de Nietzsche como se ele fosse novo. O principal, escutam Led, Velvet, Sabbath e Iggy...
Desse modo, uma amiga minha de 20 anos adora Keaton e Murnau, e uma de 21 sente pena por não ter sido jovem em 1922. Outra queria ter sido fotógrafa de Warhol e outro queria ter pintado na Paris de 1900. Nunca o jovem foi tão saudosista ! O que aconteceu ?
Eu adoro Led ( embora não consiga mais o escutar. O Led só faz sentido enquanto vivemos no auge da euforia juvenil, depois é uma triste lembrança morta ), e ainda me emociono com Iggy e Velvet ( que são atemporais ). Mas eu vivi isso. Eu recordo deles alternativos, incompreendidos, como lembrança viva e maldita. Porém, quando um garoto de 15 anos tem por Dylan uma relação de guru e discípulo... bem, é como se nos meus 15 anos eu tentasse ser como Louis Armstrong ou Bing Crosby. Não dá !
Mas é aí que nasce o problema. O jovem informado vai escutar White Stripes, Primal Scream, Franz Ferdinand ou Artic Monkeys, e se tiver um pouco de senso perceberá que entre eles e o que se fazia quarenta anos atrás a diferença é quase nenhuma. Do primeiro disco dos Stones em 1964 para Sticky Fingers, seis anos mais tarde, a diferença é brutal. Mas entre algo gravado em 2003 e algo gravado hoje... onde a evolução ? Os Stooges de 1969 são tão diferentes de uma nova banda sueca de 2010 ? Iggy Pop, com 18 anos, em 2010, quarenta anos depois dos Stooges, seria um garoto em seu tempo. Mas Iggy em 1929 ( quarenta anos antes de sua época ) é impossível !!!!!
Quando eu era moleque me decepcionava com cada disco ( raro ) que conseguia comprar dos distantes anos 60. Eram cheios de chiados, mal gravados, não se ouvia a bateria. Ouvir o Cream, Yardbirds ou Kinks era um sacrifício. Mas veio o cd, e então veio o grunge que revitalizou as velharias. A molecada podia ouvir rock antigo com som de música nova. No cd dava para se comparar Ginger Baker com novos bateras, se podia finalmente ouvir direito Small Faces e Them. Tudo se reviu. Começaram então a compor novas músicas velhas e a montar modernas bandas retrô. O cd foi injusto com quem faz uma banda hoje : a informação mata toda novidade, o cara precisa concorrer com seus contemporâneos e ainda ser comparado com o passado que se tornou presente. É desumano. Cínicamente, o artista entrega os pontos. A repetição da repetição se refaz.
No cinema, com o dvd, a coisa é ainda pior. Um novo diretor podia chupar Renoir e Bresson à vontade. Onde assistir Renoir e Bresson ? Mas agora, nesta abençoada era de revivências, qualquer leigo conhece Renoir e Bresson. E esse jovem amante de cinema, que ao contrário de seu pai, pode ver TUDO e quantas vezes quiser, se torna um saudosista. Pois Renoir era antes um monte de manchas e riscos na tela, e hoje é, que bom!, um brilhante preto e branco. Mas a coisa é ainda mais complicada...
Harry Potter vive numa escola vitoriana cercado por magia medieval; a saga dos anéis já era coisa velha quando Plant gravou Stairway to Heaven; o Shreck é um ogro e Titanic é de um romantismo rosado típico da pior ópera dos idos de 1820. Se essa geração não é saudosista... e ainda vem Batman, com seu clima gótico/Alemanha, o Homem-Aranha, herói típico de 1964 e o eterno Bond, que teve como grande evolução diminuir o sexo e aumentar a violência ! Que moderno!!!!!
Leio que Paul Thomas Anderson, enquanto filmava Sangue Negro, assitia O Tesouro de Sierra Madre todas as noites. Foram sessenta vezes. Sierra é de 1948...
Tim Burton fez refilmagens de filmes velhos ( Planeta dos Macacos e Fábrica de Chocolate ), filmes de época ( Cavaleiro sem Cabeça e Sweeney Todd ), ficção científica antiquada ( Marte Ataca ), um poema de amor ao cinema antigo ( Ed Wood ) e outro a magia do tempo ( Peixe Grande ). Alice é a "nova" idéia.
Um filme sobre piratas, uma refilmagem de série de tv antiga, um filme independente gracinha que nada mais é que um filme hippie careta. Onde a novidade ? Mais um western que não dá certo, mais uma bio sobre alguém que viveu nos "bons tempos", mais um samurai...
Todd Haynes fazendo mais um filme sobre o passado, mais um Tarantino com cara de 1972.
Um filme inglês que imita o Scorsese do começo dos 70's, mais um musical fora de hora, um novo Bergman e um novo Cassavettes ( são os dois mais imitados hoje ). Um novo James Dean e uma nova Audrey. E Kane continua ganhando...
Que louco : as novas tecnologias trouxeram o passado para o presente e consequentemente sufocaram o futuro ! Se em 1959 existisse o dvd, as pessoas saberiam que Acossado de Godard era uma refilmagem "esperta" de velhos policiais baratos americanos. Com essa informação as pessoas veriam "Acossado" como o que ele é : excelente diversão, mas não como nova revolução.
A revolução acontece nos buracos negros da não-informação. No mundo onde o jovem sabe e olha tudo, a revolução se torna impossível, a originalidade torna-se inviável, a ingenuidade morre. A saudade daquilo que jamais existiu se faz rainha.
A minha foi a última geração "moderna". E falo isso com vergonha. Pensávamos que nunca mais haveriam bandas com guitarras, que ninguém nunca vestiria jeans e que tudo o que fora gravado antes de nossos vinte anos seria jogado ao lixo do esquecimento. Acreditávamos realmente que éramos a mais brilhante geração, os mais ousados, os mais doidos, os heróis do futuro. Queríamos zerar o mundo, começar de novo, esquecer. Sinto vergonha por termos sido tão pretensiosos e por termos desprezado tanta coisa boa ( odiávamos bandas que não mereciam ser odiadas ). Mas o tempo passou, rápido, e o que veio...
Suprema ironia : Nós e nossos filhos, hoje, idolatramos tudo aquilo que matamos. Eu não esperava...

DIAMOND DOGS- DAVID BOWIE. vocês são todos filhos disto!

O japão tentou se firmar no ramo de grandes magazines com as lojas Yaohan. Na inauguração até disco com o hino da loja eles deram. Tinha 3 andares e um playground no teto. No melhor Natal da história, meu irmão, um precoce, aos 9 anos ( inacreditável ) comprou Diamond Dogs. Eu, careta radical/ romântico melancólico, fui de Caribou, do Elton John, disco que tem ainda, a pior capa da história.
Uma criança de 9 anos escolher Bowie é fantástico. Mais fantástico é adorar o disco ! E na verdade, até o romântico/ caretão adorou mais os Dogs de David que o Don´t let the sun go down on me de Elton. Velvet Goldmine é biografia de uma estranhíssima geração.
Primeiro a capa. A primeira vítima do cd foi a capa de disco. Antes pensada em termos de pintura, de poster, de tela. Com o cd, tornou-se embalagem, maço de cigarros, envelope de carta. Como aconteceu com o cinema, que com o vhs deixou de ser pensado imenso e se tornou tela de tv, cheio de closes, uma pessoas filmada por vez e com poucos planos gerais. Pequeno...
Pois a capa de Diamond traz Bowie, muito andrógino, travestido de homem-cão, homem-besta e pelado. A capa é em sí um manifesto, mas o mais inteligente astro da história do pop, o mais culto e o maior dos aproveitadores, traz aqui um disco pesadelo, uma ópera do apocalipse, um disco dark e gótico, mas acima de tudo : muito rock'n'roll.
Sons absurdos de synth e o artista narra um futuro onde cães de diamante comem pessoas. Uma platéia fake ( tirada de um show de Gary Glitter, logo quem...) anuncia : isto não é rock'n'roll, isto é genocídio ! _ _ Pois em 1974 Bowie já anunciava a morte do rock, coisa que ele reafirmou pelos anos, muitos, seguintes. Só não acreditou quem não desejou saber.
A primeira é Diamond Dogs. A música, um rock tipo Stones, porém com guitarras fora de tom, barulhos dissonantes de fundo e letra de fim do mundo, não entrega o que será o disco. Pois a segunda faixa, Sweet Thing, é que mostra a que veio : melancolia glitter, arranjos que são de uma riqueza sinfônica, e Bowie cantando como nunca cantou. A música cresce como fogo entre ruínas, tem uma outra melodia dentro de sí-mesma, e volta num fim que é de uma complexidade espantosa. Após um minuto de ritmo sem sentido e hipnóticamente sexy, vem Rebel. Rebel.
Eu poderia escrever um livro sobre o que essa Rebel, Rebel significa. Ela anuncia as décadas seguintes. Tem um riff digno de Keith Richards, mas não faz parte do mundo de pirata cigano do deus stoniano. Rebel, Rebel é o que Oscar Wilde faria se nascido cem anos mais tarde, ou o que Lou Reed teria feito se fosse ´fã de Wilde. Na letra a frase : " quando você nasceu seu pai não sabia se você era menino ou menina... rebel, rebel, eu amo quando você dança... " A música anuncia a geração ( simbolista, bando de Wildes, Pessoas, Rimbauds ) que não se definiria mais. Os indefinidos, que jamais saberão ( e não querem saber ) se são caretas ou loucos, homens ou mulheres, idiotas ou geniais, bons ou maus. Felizes por serem tristes ou infelizes pela alegria.
A segunda parte do disco enterra de vez o rock'n'roll.
Rock'n'roll with me não é um rock. É uma melancólica balada de amor onde Bowie entrega uma de suas referências : Jacques Brel. Pois Bowie ama o pop romântico nada rock de Brel, de Dietrich, de Piaf e de Gainsbourg. Depois...We are the Dead. Tétrica e linda, com arranjo de sutileza imensa ( o disco todo é rico. Sons de synth, saxes mal tocados, percussõa que vem e desaparece e as vozes, afinadíssimas, de Bowie, triplicadas por mil ). We are the Dead é a filosofia de David : o que na voz de outro seria dor e desespero, com Bowie, inteligente demais para levar algo a sério, é comentário frio- discreta descrição.
1984 descreve, em ritmo de dança, o futuro. Que veio, acabou vindo, com vinte anos de atraso.
E nasce então Big Brother. Bowie foi acusado de nazista por falar a verdade na letra : " Você precisa de alguém para te liderar/ de alguém para seguir/ alguém que te domine/ você quer um big brother..." Melhor retrato de nossa era é impossível. Hoje, as pessoas pagam para serem comandadas, dissecadas, expostas, ridicularizadas, vendidas, desumanizadas. O som é de pesadelo de zumbidos, synths em sonho barroco, apocaliptico desbunde. O disco se encerra em frenesí de umbanda branca. Voodoo.
Diamond Dogs foi o primeiro objeto de arte com o qual tomei contato. Como os macacos em 2001 diante do monolito, em Dogs se anunciava tudo aquilo que eu iria amar por toda minha vida. Mais que um disco, Diamond Dogs é retrato de um mundo de absoluta confusão, de loucura. E é manifesto da genialidade do maior dos "gênios" do rock'n'roll. Bowie sempre soube tudo. Diamond Dogs é completa genialidade erudita.

JOHNNY GUITAR/DE MILLE/JOHN FORD/THELMA E LOUISE

HOMEM SEM RUMO de King Vidor com Kirk Douglas
Uma quase comédia num quase perfeito western. Kirk está exuberante e o filme, de beleza deslumbrante, seria perfeito não fosse seu final apressado. Vilões muito bem construídos e ação constante fazem deste um filme classe a. Vidor, diretor mito, saiu-se bem, mais uma vez. nota 8.
KISMET de William Dieterle com Ronald Colman, Marlene Dietrich
Ver Colman na tela é sempre um prazer e Marlene é mais que isso. Dieterle foi ator na Alemanha e é mais um desses emigrados que fizeram a glória de Hollywood ( Lang, Wilder, Preminger, Zinnemann, Wyler, Ulmer, Sirk e tantos fotógrafos e maestros ). O filme, fantasia árabe sobre o rei dos mendigos, é encantador. Cenários imensos e bem fakes e um roteiro que é uma bobagem divertida. nota 6.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS de Luiz Villaça com Maria de Medeiros
O neo-realismo ainda rende bons frutos. Movimento mais importante de toda a história do cinema, o neo-realismo de De Sica, De Santis, Rosselini, Visconti, Lattuada, Germi e tantos mais, dá o tom neste simpático filmezinho. Medeiros é além de boa atriz uma figura simpática e o filme agrada por sua verdade. 6.
O GÊNIO DA MÚSICA de Karl Hartl
Feito na Austria durante a segunda guerra, esta bio de Mozart o mostra mais real que o histérico filme de Forman. Em Amadeus tudo brilha, mas tudo é falso. Mozart não foi aquele tolo adolescente futil, e Salieri não era vilão. Neste filme, o gênio está próximo do que deve ter sido : um dandy. Os cenários são belíssimos e sua morte é como deve ter sido. De estranho o fato de mostrarem poucas obras do mestre. Para quem gosta de música, é obrigatório. nota 6.
JOHNNY GUITAR de Nicholas Ray com Joan Crawford, Mercedes MacCambridge e Sterling Hayden.
Não é um western. É um dramalhão, gaysíssimo, afetadíssimo, operístico, passado por acaso entre cowboys. Joan, dona de saloon, é insanamente odiada por Mercedes, lésbica de paixão mal resolvida. Todos os homens no filme são fracos, as mulheres mandam. Johnny é um homossexual arrependido e as falas são hilárias. Nicholas filmou com ousadia e espírito de sacangem, os franceses levaram a sério, e na época, Godard à frente, o chamaram de obra-prima. Os americanos, que entendem de western, nunca entenderam este filme. É uma deliciosa brincadeira entre pervertidos talentosos. Filme amado por Almodovar. Inacreditávelmente cara de pau. Exagerado, escandaloso, todo errado e de talento bizarro. nota 7.
PAGAMENTO FATÍDICO de John Farrow com Glenn Ford, Patricia Medina e Diana Lynn.
Outro talento esquisito é o de Farrow. Este muito divertido noir feito no Mexico, entre ruínas indígenas, tem todos os clichés. Tudo soa a falsidade, mas tudo é hilário. A fotografia é um manual de foto noir, as falas são tiradas de Bogart. Mitchum ou Ladd; as situações são Hammet ou Chandler de terceira. Mas o filme prende. Tem cenas inacreditáveis em sua cara de pau, mas são fluidas, leves, elegantes. O tipo de filme pop adulto que os americanos pararam de fazer. nota 7.
MULHERES E HOMENS de Cecil B. de Mille com Claudette Colbert e Herbert Marshall.
Dois casais se perdem em floresta. Assistimos sua fuga entre feras, pântanos e selvagens. Colbert era de uma beleza exótica, magérrima, elegante. O filme, feito antes do código de censura, tem até banho em cachoeira ! De Mille, inventor do filme espetáculo, do filme circo, oferece aquilo que o povo quer : romance, aventura, violência e sexo. Mas ele pode ser melhor que isto. nota 6.
O SINAL DA CRUZ de Cecil B. de Mille com Frederic Marsh, Claudette Colbert, Elissa Landi e Charles Laughton.
Inacreditável. E maravilhoso!!!!! Diversão gigantesca sobre cristãos perseguidos por romanos. Tem feras comendo gente, um gorila atacando moça nua, jacarés atacando outra cristã nua, gladiadores, elefantes pisoteando gente, dúzias de leões e romance proibido. Tudo filmado com ritmo, competência e falta de vergonha. Marsh sofre por amar cristã, Landi é a cristã; Laughton, o grande ator, cria um Nero hiper bicha-louca: seus gestos, olhares, a barrigona sobre almofadas, se contorcendo no coliseu com seu escravo nú, comendo uvas fazendo biquinho, ateando fogo à Roma entre gritinhos de tédio...é hilário e genial. Seu Nero criou tudo o que entendemos por camp. Claudette toma banho em leite de burrinhas e desfila, linda e meio nua, pelo filme. A rainha que faz se parece com uma dondoca mimada. De Mille é o diretor que criou a imagem cliché do que é ser um diretor : megafone na mão, botas, cadeira escrito "diretor" e gritos no set. È dele a imagem do hiper-diretor que pede : quero amanhã cedo: trinta girafas, cinquenta elefantes e cem leões. E também trezentos cavalos e cinco mil figurantes. A Paramount lhe dava tudo. Ele foi o inventor do super-espetáculo: circo para o povo. Religião e sexo, mistura infalível. Este filme é totalmente delicioso!!!!!!! nota 9.
WAGON MASTER de John Ford com Ben Johnson, Harry Carey jr, Joanne Dru e Ward Bond
Por que Ford fazia filmes ? Fazia filmes para juntar seus amigos e ir para o campo. Alojado por lá, longe de estúdio e de pressões, ele jogava cartas, cantava, cavalgava, e filmava nas horas vagas. Seus amigos eram seu elenco. John Wayne, James Stewart e Henry Fonda eram as estrelas que às vezes ele usava. Mas seus amigos eram os atores secundários. Gente como Victor McLaglen, Ward Bond, Harry Carey, Jane Darwell, Andy Devine e tantos mais. Irlandeses de alma, como Ford. Este era seu filme preferido. Sua história ? Dois cowboys ajudam caravana de mormons a chegar a seu destino. No caminho encontram troupe mambembe e bandidos. O filme despreza a aventura, seu interesse é a imagem pura : carroças sendo puxadas por cavalos, paisagens gigantescas, fogueira com música, silêncio. Há uma cena em que vemos o deserto e as carroças... voce pensa que Ford vai cortar, mas ele deixa a cena se esticar e esticar... e nós aplaudimos sua genialidade discreta. A trilha sonora, canções folk, é coisa de arrepiar. Os atores são nossos amigos, amamos seus rostos. O filme é de gênio, é viril, simples, puro, poético. Curto, modesto em sua pretensão, ele é imenso em seu resultado. Ford é rei. Enquanto houver cinema será rei. Este filme é como uma epopéia. nota Dez.
OS ÚLTIMOS MACHÕES de Andrew Mc Laglen com Charlton Heston e James Coburn
Péssimo. Tenta ser Peckimpah. Violento e amoral. Mas é um Peckimpah sem a loucura genuína de Sam. È forçado. nota 2.
O MUNDO DE APU de Satijajit Ray
Chegamos ao final da trilogia de Apu. Ray criou com eles o cinema artìstico indiano. Antes dele, tudo era Bollywood. Na parte um, Apu é criança. Na 2 é adolescente e aqui é jovem adulto. Este filme me lembrou Truffaut ( Ray filmou este um ano antes da estréia de François ). Apu ama, tenta empregos e sofre uma tragédia. O filme é o menos bom dos três. O problema da trilogia é que o primeiro é tão original, tão belo, tão forte, que os outros sofrem na comparação. Este é o mais comtemplativo. nota 7.
LASSIE COME HOME de Fred M. Wilcox com Roddy Mc Dowall, Donald Crisp, Elsa Lanchester, Elizabeth Taylor, Dame May Whitty
Este é o filme que inventou o gênero "filme de cachorro". É de longe o melhor. Por vários motivos : por ser assumidamente romântico, pelo fato do cão se comportar como um cão, por fazer chorar sem apelar, por não ser bonitinho e fofinho. Ele é belo e sincero. O elenco é fantástico e vemos Elizabeth aos 11 anos, já linda e cheia de carisma ( o que é carisma ? como pode isso ? Ela é uma star há sessenta e seis anos !!!!!! e sobreviveu a Michael Jackson, seu amigo.... como pode ? Elizabeth é pré Sinatra, pré Gene Kelly, pré Elvis ! E está viva ! Sã e lúcida. É uma força da natureza, uma heroína e talvez a melhor atriz que o cinema já teve. Basta ver "Quem tem medo de Virginia Wollf" e aplaudir. ). Lassie é adorável, puro, comovente e encantador. O molde do que veio depois ainda é o topo do gênero. nota Dez!!!!!!!!
THELMA E LOUISE de Ridley Scott com Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel, Brad Pitt e Michael Madsen.
A primeira hora é um pé no saco. Um banal filme amarelado de estrada com crime. Mas de repente o filme vai enlouquecendo, se tornando livre, inconsequente e nos pegamos rindo. Torna-se comédia, maravilhosa comédia. Scott foi sábio, nos faz mergulhar no mundo surreal em que elas mergulham. Ao final, o mundo se torna um tipo de "Alice no país das maravilhas" adulto. Elas assumem a loucura, e nós nos apaixonamos por elas. Não vou falar de Susan. Ela é sempre divina. Mas Geena tem aqui seu grande momento: seu rosto ao contar à amiga a transa com Pitt é fantástico. Alegre, boba e desamparada. O cinema deveria ter olhado Ridley com mais reverência. Não é qualquer um que faz isto e ainda Blade Runner, Aliens I e Os Duelistas. O final deste filme, um vôo rumo à liberdade é de antologia. nota 8.

primavera de poesia- stevens, heaney e auden

De todos os autores que recentemente ganharam o Nobel, creio que nenhum se tornou menos conhecido que Seamus Heaney ( prêmio em 1995 ). Esse poeta irlandês ganhou o Nobel muito cedo em sua vida, precipitadamente, e permanece tão pouco lido como o era antes da honraria suéca. Talvez o motivo seja o próprio fato de ser poeta. Derek Alcott também venceu nos anos 90 e está ainda mais esquecido. Pois Heaney é um bom artesão da palavra. Fala sobre a terra úmida da irlanda, sobre sinais de tempo, a mudança das eras, o simbolismo da ruína. Longe de ser um gênio, e às vezes exagerando numa realidade "real" demais, ele deve ser lido por aqueles que pensam erroneamente que a poesia não cabe mais neste universo tão pé no chão. Heaney é pé no chão. Adora descrever minerais, raízes, solos, pântanos. Sua poesia é sólida.
Menos sólido é Auden, um não premiado inglês, mas de longe, o mais lido dos três. Auden foi moda nos anos 30/40 e viveu até os anos 60. Fez parte da boa geração de poetas ingleses que teve além dele, Spender e Day-Lewis ( pai do ator ). Políticos ( todos foram radicais de esquerda, embora Auden se tornasse mais conservador com a idade ), Auden tem o dom da mais refinada musicalidade, do brilho que jamais se torna brilhareco e de criar versos que grudam na mente, que são cheios de beleza, mas nunca de pieguice. Auden é obrigatório para quem gosta de poesia. É um dos grandes. Permanecerá. Mas não é gênio.
Gênio é Wallace Stevens. Gênio puro, gigantesco, titânico.
Pouco, muito pouco conhecido fora dos países de língua inglêsa, é considerado por autores e críticos o melhor poeta do século vinte, superior a Eliot, Pessoa, Lorca, Rilke ou Neruda. Seu único igual seria Yeats, mas Yeats não é bem século vinte, apesar de ter morrido só em 39, Yeats tem espírito típico de 1890. Para mim, Yeats fora, Stevens tem como rival apenas Eliot, e talvez Fernando Pessoa. E como os dois citados, Stevens não parecia poeta ( e quem parece poeta ? Só os charlatães se parecem com poetas. Eles usam o molde Byron-Shelley-Keats até hoje. Excessos, sofrimentos e rebeldia, a imagem apropriada pelo rock ).
Wallace Stevens nasceu em família rica do leste americano. Trabalhou em firma de seguros na qual se tornou vice-presidente. Foi casado com uma única mulher que tinha sérios problemas mentais. Jamais viajou a Europa e não frequentava escritores. Esnobou a fama e sua única diversão era jantar em bons restaurantes. Tinha a aparência de um executivo e era frio e formal. Mas escrevia, nas horas livres, como um mestre. Tinha o talento, raro, de escrever racionalmente sobre o inefável. De tocar o eterno com ferramentas lógicas, voar às alturas sem nunca perder o controle. Viveu 79 anos, até 1955. Já era cultuado em vida, mas nunca foi uma estrela. Não queria. Poesia era para ele um compromisso sério. Consigo mesmo.
POR QUE LEGAR AOS MORTOS O QUE É SEU ?
O QUE É DIVINO, SE SE MANIFESTA
SÓMENTE EM SONHOS, SOMBRAS SILENCIOSAS ?
POR QUE NÃO ENCONTRAR PRAZER NO SOL
NO ODOR DAS FRUTAS, BRILHO DAS ASAS VERDES,
EM QUALQUER OUTRO BÁLSAMO TERRENO,
TÃO CARO QUANTO O PRÓPRIO PARAÍSO ?
É NELA QUE O DIVINO HÁ DE VIVER...

Tudo em Stevens tem essa valorização do simples, do cotidiano, da vida agora, um agora que é atemporal.

TENS DE VOLTAR A SER IGNORANTE
E VER COM OLHO IGNORANTE O SOL
E VÊ-LO COM CLAREZA EM SUA IDÉIA.
JAMAIS SUPONHAS UMA MENTE INVENTIVA COMO FONTE DE IDÉIA
NEM CRIES PARA ELA UM SENHOR VOLUMOSO ENVOLTO EM FOGO.

Estes são versos de "APONTAMENTOS PARA UMA FICÇÃO SUPREMA", o único poema comparável a "QUATRO QUARTETOS" de Eliot. Um poema que mostra, em imagens de suprema elegância e aterradora beleza, o segredo e o abismo da vida. Mas há mais...

SEMPRE PODE HAVER TEMPO DE INOCÊNCIA,
NUNCA LUGAR. OU, SE TEMPO NÃO HOUVER,
NEM POR NÃO SER COISA DE TEMPO NEM LUGAR,

EXISTENTE COMO IDÉIA APENAS, CONSCIÊNCIA
QUE REPELE O DESASTRE É MENOS REAL.
PARA FILÓSOFO O MAIS VELHO É GÉLIDO,

HÁ OU PODE HAVER TEMPO DE INOCÊNCIA
PURO PRINCÍPIO, CUJA ESSÊNCIA É SEU FIM....

Em sua fase final, Wallace Stevens nos diz:

... E NO ENTANTO NADA MUDOU ALÉM DO QUE É IRREAL,
COMO SE COISA ALGUMA TIVESSE MUDADO.

Nada define melhor o que é a genialidade, que a capacidade de dizer com objetividade aquilo que nós não sabemos "já saber". O gênio é um farol que dá luz às rochas e recifes que sabíamos estar lá, mas que não poderíamos ver sem sua luz.
Wallace Stevens é um gigantesco farol. O mundo ansia por sua luz. Ele hoje me vicia, fala aquilo que creio, conversa comigo ao sol. Existe maior elogio a um escritor que este ? Ele conversa comigo revelando a mim mesmo o que não conhecia sobre eu. Stevens, que eu lí em 2000 pela primeira vez e entendí pouco, se mostra à mim inteiro, agora, em 2009. Neste começo de estação que me promete vida livre e nobre, compreendo tudo o que ele diz. Seu amor ao sol, às plantas, aos dias que passam, a tudo que é real. "E o que é real nunca muda."
Wallace Stevens é real. Sólido e superior a quase tudo que há para ser lido. Compreendeu a vida, profundamente. Entendeu que um paraíso onde os frutos não se tornassem podres e onde tudo fosse para sempre vivo, seria o pior dos pesadelos. Ele compreendeu que o que entendemos do homem e da vida é ficção. Que o real nos é interditado. E acima de tudo, ele revelou o sentido da poesia, única língua que ilumina a verdade e que fala como o sol, a grama e o mar falam. Pois são eles que falam a verdade.
Lerei e relerei Stevens pelo resto de meus dias. È bálsamo, é quente, é pra sempre.

SHOPPING CENTER E SERRA DO MAR

Neste ano o Natal no shopping vai ser como sempre é : nem frio nem quente. Não vai chover e nem irá fazer sol. Todas as lojas terão a idade que sempre tiveram : idade nenhuma. E as pessoas serão exatamente as mesmas. No shopping não existe tempo. Tudo parece ser eternamente novo, limpo, sem cheiro. O shopping não fede e nem cheira. O futuro deve ser assim : clima, luz e tempo estáveis. Vitrines e praças de alimentação. Gente andando sem sair do lugar. Sorrisos ocos e filmes frios. Seus olhos, vendo uma diversidade que é sempre a mesma, adormecem e seu cérebro nada indaga.
Estive em Paris três vezes. E em cada vez que fui fiquei mais chateado. A cidade tornou-se plástico saneado. Perdeu sombra, perdeu odor, perdeu seus dentes sujos e sua roupa rota. Deixou de ser poesia e virou Miami. O mundo vira Miami e Miami é um shopping. Ainda existe a Sacre Coeur, ainda há Notre Dame e o Bois, mas Pigalle virou piada e Montmartre é ficção. O que lembro são túneis de metrô, avenidas com lojas e o horizonte com prédios banais. Minha Paris é morta.
Mas a Serra do Mar não.
Ela é a serra que conhecí aos 6 anos, dentro de uma kombi, chovendo, descendo pela estrada velha e rindo rindo rindo... Ela está alí, gigantesca, pronta para ser admirada. ( Não me diga que voce é desses idiotas que passam por ela correndo e de olho somente no carro da frente... voce não vive então... ).
Ela é a mesma de quando meu pai veio do Rio, via Santos, em 1950. Os mesmos contornos, os mesmos abismos e o mesmo verde. ( Talvez mais verde que hoje, mas a arquitetura é a mesma ). O ar que ele respirou continua lá e suas cachoeiras viram meu pai as admirando. Agora eu as olho também e me apaixono por elas.
A serra me chama. Quando passo por ela não há amigo ou amor que me distraia. Meus olhos são dela e sinto um apelo de me jogar em seu mato e me perder para sempre. Morrer na serra seria belo. Mas não no asfalto que não é serra, e sim na mata, que é vida.
O tempo inexiste alí. O que viram os bandeirantes eu vejo agora e sei que todos eles se apaixonaram por sua cor. O pássaro que voa e o outro que canta são desde sempre os mesmos. E meu espírito se agiganta quando vê o sol sobre o vale onde toda a paz é possível.
Você jamais entenderá o que sinto. É meu lugar. Tenho a sorte de ter meu lugar mais precioso, tão perto. Não há Bahia, Paris, Ibiza ou Berlin que lhe façam frente. Nada é mais mistério intricado. Vejo em sua trilha o nascimento da vida. Vejo um primata que sou, um mamifero que capturei, uma árvore que adorei. É minha mãe, meu deus e meu túmulo. Pois minhas cinzas para lá serão deitadas. Para sempre estarei aos pés de suas árvores e alimentarei sua vida e serei chuva. Até o para sempre.
Mas tem o mangue, lá embaixo. E preciso me conter, dentes cerrados, para não me jogar feito louco mangue adentro. O cheiro e os caranguejos. Os urubus que eu adoro. Menino vendendo banana, bicicletas... eu amo tanto tudo isto que chego a enlouquecer de alegria. Se tivesse coragem eu faria um barraco e viveria na encosta. Ouvindo a chuva na telha. O cheiro do mato e da terra molhada. Nada é mais bonito.
A serra do mar é a coisa mais sagrada do mundo. Quando Platão esteve por aqui ela lá estava. E quando Shakespeare morreu ela era o que vejo hoje. Um pássaro negro enorme que voa e pousa e canta. É aquele. É o mesmo. Quando desço no amanhecer e sinto o calor do novo dia. Ou quando o frio do inverno invade gelado minha roupa. A neblina úmida e a garoa que nunca passa. O trem e as fontes. E lá, o mar...
Tirem a serra do mar, tirem o mar da serra, tirem deste mundo este lugar e nada mais me consolará. É o seio cheio de leite. Eco do meu riso. Nada foi meu amor maior e nada me é mais precioso. Eu morreria e mataria por ela. Pois eu vivo, sempre, com ela.
Então deixe que isto continue a ser um anti-shopping. Pois aqui o clima é sempre o que não se controla. E aqui as peruas e os playboys não sobrevivem. Tudo é gasto, sem brilho e com cheiro. Paraíso de insetos e de febre, úmida fonte de inesperado. Anti-shopping. Anti-Paris. Nada é racional em sua mata e nada foi nunca replanejado. O que ví aos 6 vejo aos 40 e verei aos 80. As ruas de suas árvores são indomáveis e seus habitantes insistem em não se mudar. A serra repele o plástico e não ambiciona Miami. Por mais que você judie dela, é a mesma.
Me deixe pensar na Serra do Mar. Sonhar com a Serra do Mar. Respirar seu ar e sentir sua chuva. Um dia terei a coragem de me jogar em seu verde, de viver em seu mundo e de me deixar ficar em seu calor. Nada me é mais precioso. Nada me faz mais feliz. Nada é melhor. Minha Irlanda tropical, meu cinema de verdade, minha sinfonia sem dono. Amar a serra é amar a vida. Deixe-me lá então. Esqueça-me lá. Quero ser ela e que ela seja eu. Correr até dormir nela. Ter seu cheiro meu. Crescer nela e chorar por ela. Me deixe ser a serra. Me deixe. Pois a serra é meu mundo, meu mar e meu sempre. E ela me chama. Escuto sua voz sempre. Eu vou. Já.

AUSTERLITZ - W.G. SEBALD

Dois meses atrás, mais ou menos, lí e comentei outro livro de Sebald, "Vertigem". Contei que o descobri numa muito entusiástica coluna de Marcelo Coelho em que ele dizia ser o autor alemão " o único grande autor da atualidade ". Com este segundo livro que leio, "Austerlitz", descubro, afinal, o porquê de tão grande conceito. Sebald é gigantesco. Em tempos de formigas que escrevem sobre seu diminuto umbigo, Sebald alça vôo e encara de frente o cosmos da existência. Ele é o autor central dos últimos trinta anos, talvez quarenta. Pode ser colocado ao lado de Thomas Mann ou de T.S. Eliot como antena de seu tempo, autor de uma preciosa radiografia de nossa alma.
O livro tem fotos que ampliam a narrativa e não tem nenhum parágrafo. Um homem, Austerlitz, conta ao autor, em encontros esparçados, em Paris, em Londres, em Praga, sua história, a história de sua família, a história da Europa, a nossa história ocidental. Pois sutilmente percebemos que Austerlitz é a consciência européia, a alma do ocidente. E assim, cada paisagem encontrada, cada nome citado, cada viagem feita é uma epopéia, uma odisséia, uma guerra e uma paz. Tudo vai se encaixando como um vitral : Napoleão, Aldous Huxley, Evelyn Waugh, O País de Gales, a feiúra belga, o colonialismo, Fred Astaire, Bergman, Alain Resnais, os mochileiros, Balzac, cemitérios, museus, estações de trem, metrô, judaísmo, memória, tempo, morte, mariposas, escadas, bibliotecas, guerras e mais guerras... Na narração não existe tempo. Sebald não crê no tempo. Para ele, passado, presente e futuro estão todos vivos aqui, agora, e para sempre.
Não pense que o livro cheira a lição de história. A narrativa é muito íntima, pessoal, discreta. Você precisa pescar os significados maiores, interagir com o autor, trabalhar e se tornar ativo. Se você nada souber sobre a história ( não é vergonha, você é apenas uma vítima, diz o livro ), mesmo assim Sebald o impressionará. Seu estilo, uma espécie de Proust da era insensível, é hipnótico, possui uma voz de sonho, de delírio e de pesadelo. Sebald consegue unir Proust à Kafka, Mann à Joyce. Um mestre. Austerlitz é um labirinto.
Toda a peregrinação sem rumo de Austerlitz ( ele é um mochileiro ) se revela uma cega busca pela memória. Austerlitz tem sintomas. Ansiedade e uma sensação de não existir, vaga e cada vez mais insistente. Existem lapsos em sua mente, coisas que ele não quer encarar. Austerlitz luta contra sua memória. Austerlitz quer esquecer. Ele quer não-ser.
Mas o seu legado lhe assombra em fotos, em quase-recordações, em revelações. E ele persevera. Precisa remendar sua alma, unir o que foi rompido, olhar as chagas para poder superá-las. Austerlitz precisa existir. Nós vamos com ele. Árdua jornada. O livro é um poço.
A Europa que nos é mostrada é casa de horror. Gente em constante mudança, desenraizada, sem identidade, com suas paisagens virtuais, sua Novaiorquisação, seu histérico pavor de tudo o que é real. Pois os europeus vivem, ainda e para sempre, a loucura da segunda-guerra, o gueto em que se tornou o continente, confinados em hiper-funcionais zoos, com sua racionalidade falível, fugindo de tudo que lhes desperte a memória, fugindo e se imbecilizando, se acovardando mais e mais, sendo vaquinhas em fazendinhas alemãs, sendo anti-literatos em Paris, sendo mortos-vivos em Praga, sendo fantasmas em Gales. Mariposas secas. A Europa é um quadro de borboletas secas.
Sebald é católico. Não é mais um autor judeu nos recordando o holocausto. Ele vê esse crime, um crime que define tudo o que somos e seremos, não como vítima direta, mas como alguém que paga pelo erro cometido. O homem chegou a um nível tão hediondo de maldade pura, produziu um pesadelo tão perfeito, tão racionalmente bem feito, revelou-se possuidor de um instinto tão destruidor e sádico, que nunca mais poderemos olhar para nosso ser com a inocência que havia até antes dessa trágica noite. Somos, todos nós, espectros que nasceram nesse mundo assombrado. Não podemos olhar para trás. O medo nos paralisa. Derrubamos tudo o que é passado. Fazemos de novo. Negamos e interiorizamos. Neurotizamos e transformamos em sintoma. Fugimos da terapia.
Negando 1939, matamos 1900, 1870, todo o passado. A bela Europa se vai. Para não encarar o trauma, perversamente, matamos tudo de melhor também. Austerlitz esqueceu ser judeu. Esqueceu ter nascido em Praga. Esqueceu seu pai verdadeiro. Austerlitz anda de mochila, sem rumo, mundo afora. Nada constrói, nada deixará, seus passos não se gravam no solo. Austerlitz ao não rememorar deixa de existir. A Europa é uma sombra. E nós, ocidentais, nos guiamos por fumaça. Tudo que nos encanta é ilusão. Nossos passos não ecoam. Ninguém lembrará desta geração. Nossa época será vergonha do futuro. Treva medieval. Sebald descreve a arquitetura européia com detalhes que nos fazem tremer. Seu olhar pode dissecar tudo. O amor nesse mundo é apenas um consolo. Tornou-se um ambulatório. Amamos para esquecer quem somos. Tudo neste mundo é esquecimento. O amor que foi fonte de coragem tornou-se usina de covardia. Quem ama deseja nada sentir. Viver no colinho quente. Entregar sua vida a outro. Deixar de ser.
Sebald morreu em 2001, acidente de carro. Um homem com tal mente ter encontrado a morte na estrada é de uma assustadora coerência. Foi um quase-gênio. Num mundo que detesta toda originalidade ser um quase é o máximo a que se pode chegar. O futuro esquecerá nossa medíocre arquitetura, nossa futil música e nossos livros umbigos. Mas se lembrará de Sebald e deste livro. Seu nome sobreviverá.

buster keaton e fred astaire, anjos em tela de prata

Creio que foi Roger Ebbert quem fez a comparação entre Chaplin e Keaton. Enquanto Chaplin ( que é genialmente humano ) pede todo o tempo nosso afeto, Buster Keaton simplesmente trabalha. O vagabundo de Chaplin nos chantageia. Ele sofre e se encolhe, e é alguém que poderia ser um carrapato em nossa consciência. Keaton nunca nos chantageia. Não sentimos pena e jamais choramos por ele. Buster nunca desiste. Seu "cara de pedra" luta pelo amor, luta pela vida e trabalha arduamente por seu objetivo.
Todos os seus filmes mostram um homem construindo seu destino. Ele começa o filme numa situação X, e o encerra em situação nova, obtida por esforço e uma fé ingênua na vida. Buster Keaton, ao contrário do muito pessimista Chaplin, é um otimista nato. Seu rosto jamais sorrí, mas sua alma é feliz.
Seus filmes sobrevivem então, porque atrás de seu maravilhoso ritmo circense, atrás da bela presença atlética de um ator de carisma imenso ( houve ator mais fotogênico ? ), persiste o testemunho de um herói, de um lutador, de um teimoso. Assistir seus filmes é observar um anjo, real e possível, em ação.
Amar Buster Keaton É AMAR O QUE EXISTE DE MELHOR NO SER HUMANO.
Como acontece, em outro universo, com Fred Astaire.
Astaire tinha tudo para não ser uma estrela. Era feio, envelhecido precocemente, pouco sensual e com um jeito meio snob de ser. Mas exatamente por ser tão fora dos padrões, tão etéreo, ele se fez uma imagem irreal. Fred Astaire é ficção. Ele e seus filmes são fantasias tão distantes da vida crua e sólida como o são os sonhos e os delírios de amor.
Os cenários são sempre brancos. Paredes, móveis, tapetes, tudo é branco e prata. Os personagens dormem em cetim e seda, passam o dia com champagne, caviar e limousines. O único objetivo é seduzir ou ser seduzido. E todos falam como brilhantes autores de comédias de situação dos anos 30. É um mundo sem dor, sem dinheiro, sem tempo e sem mágoa. Mas nos seduz, por ser o mundo em que vivem nossos sonhos mais persistentes, nossos desejos atemporais.
Não nos vemos em Fred. Mas adoramos observar aquele ser inefável falar, cantar e dançar. Quando ele dança, voa. Quando canta, ensina. Astaire ensina um refinamento de sentimentos possível, ele ensina um modo de se viver com prazer sem hedonismo futil. Fred Astaire dá lições de filosofia sem jamais afetar intelectualidade. E é outro anjo. De inocente sedução.
Quando Wenders fez em 1987 ASAS DO DESEJO, ele usou Columbo, o personagem de tv de Peter Falk, como símbolo de um anjo contemporâneo e possível. Pois Buster Keaton e Fred Astaire ( e também Audrey Hepburn, mas Spielberg a fez "anja" em Always de 1991 ), seriam anjos de verdade. Ambos não parecem deste mundo. Parece que jamais existiram, que não tiveram biografia, que não morreram. Imaginar Keaton mau e vaidoso ou Astaire vingativo e mesquinho é impossível. São afáveis como bons pensamentos e possuem um segredo que se foi com suas vidas.
Assistir seus bons filmes ( e são dezenas ) é entender até onde o homem pode alcançar. Não compreendê-los é como perder um sentido, é como ser cego para aquilo que é melhor. Vive-se menos sem esses alados seres de prata.
Uma nova geração, gente de 18, 19 anos, os cultua.
Nem tudo está perdido.... Viva !

BRAZILYA, ALEMANHA E A RAZÃO

Lendo um livro de Peter Gay sobre Mozart ( Peter é o cara que escreveu a melhor bio sobre Freud. ), descubro que a Alemanha que conhecemos não é a Alemanha de verdade. É virtual. Até o fim do século XIX, Alemão eram os habitantes de lugares como Munique e Frankfurt, e que Praga e Viena eram parte desse germanismo. Ser desse mundo era ser parte da terra do romantismo, da filosofia e da música. O caráter alemão era aquilo que hoje entendemos como grego-clássico, uma incessante busca por beleza e por conhecimento. Era um mundo de muito otimismo, de alegria exaltada e de romance. Cafés, cervejarias, montanhas, rios azuis, bailes e poemas. Esse universo é que nos deu Goethe, Bach, Beethoven, Mozart, Schiller, Kant, Novalis e Wagner. Quando surgem Freud, Nietzsche e Rilke esse país já está agonizante. Como ?
A unificação da Alemanha, a união da Baviera, da Saxônia, de Weimar e de todos os seus estados foi feita sob a liderança de Bismarck e com dinheiro da indústria pesada. A Alemanha nasce para ser líder, nasce em modelo Prussiano, e a Prussia, estado de competição, de disciplina, estado militar, sufoca e mata as outras Alemanhas, nações que nós jamais conhecemos. ( E sob sua influência a alegre Viena e a sensual Praga se afogaram em burocracia e preconceito. ) O estado Prussiano só poderia desembocar em duas guerras e numa esquizofrênica divisão.
Falo isso para dizer que Brasília é a Prússia do Brasil. Nestes dias de Sarney e Renan, Lula e Collor, vejo na tv aquele corredor que percorre o congresso nacional. É um túnel arredondado, feio, labiríntico, Stalinista. Lembra um bunker, um metrô, um esconderijo anti-povo. Herr Niemeyer criou uma pequena Prussia árida, onde todo seu concreto lembra opressão, retidão de uma marcha rumo ao futuro, a um futuro prussiano. Nada em Brasilya lembra o Brasil. Nada de carioca, de baiano, de mineiro ou de bandeirante. Nada. Brazilya tem a retidão da ordem unida, do uniforme, do inumano, do nada absoluto. E o país, pobre Weimar, se entristece nesse bunker subterrâneo. O Brasil morreu. Hoje é Brazilya.
Gosto de me dizer iluminista. E sou. Foram eles que me forjaram. Mas ao matarem a ingenuidade da religião e colocarem a razão em seu lugar, jamais imaginaram que a razão se mostrasse tão incompetente para dar ao homem aquilo que a religião sempre deu : paz.
Acreditaram na ciência e apesar de se chamarem pessimistas em tudo, foram de cego otimismo em sua fé científica. Pensaram que a razão fosse naturalmente justa, pacífica e democrática. A Alemanha é o estado da razão. Brazilya é uma cidade construida racionalmente. Ela nada tem de barroca, romantica ou rococó. Assim como a Alemanha matou a romantica Munique e a gótica Mannheim.
Hoje sabemos que o desencanto da razão começa com a crueldade da revolução industrial, passa pela primeira guerra com seus aviões e bombas científicas ( e gases tóxicos ) e deságua nos campos de concentração onde se matava racionalmente e se planejava um mundo de super-homens forjados por ciência e filosofia. O auge da criação científica ainda é a bomba atômica. Como confiar na ciência ?
Você consegue, com sinceridade, me dizer que confia na engenharia genética ? Será que não veremos a extinção de seres humanos indesejados ? O fim de pessoas com " defeito " e portanto, o fim da diversidade ? Quem definirá o que é normal, saudável, padrão ? Realmente vale a pena não ter mais nada de natural em troca de brinquedinhos eletrônicos e maquininhas engraçadinhas ? Vencemos a varíola. Adquirimos medo como nunca houve, e doses cavalares de tédio. Valeu a pena transformar todo campo em caminho asfaltado e toda cidade em estacionamento ? O que lhe é mais agradável : o berço onde você abriu os olhos, com suas cores e tecidos macios, ou o moderno prédio da nova estação do metrô, com seu prussiano concreto e o árido frio de toda estação ?
Nós vimos a mais racional forma de administrar uma nação ruir ( o comunismo ). E assistimos coisas anti-racionais como terrorismo, racismo e vicios vicejarem. Porque ? Onde aconteceu o erro ? O iluminismo nos livrou da inquisição, da bruxaria e do charlatanismo, mas abriu caminho para o medo, o tédio e o absurdo. Pois o mundo, basta saber algo de história para perceber, nunca esteve tão apavorado ( daí o consumismo, as distrações, os desesperos ), tão entediado ( voce adquire hoje aquilo que amanhã não te interessa mais ) e tão confuso ( você faz um imenso esforço para não pensar, não sentir e ser sempre jovem. Pra quê ? ). Assustado por saber, pela primeira vez, que toda pergunta respondida traz mais duas sem resposta; entediado por já ter visto tudo na tela da tv aos 11 anos de idade, por se tornar competitivo aos 7 e começar a temer o tempo aos 13. Entediado por não encontrar mistério em nada, pois tudo foi dissecado pelo cientista, por não conseguir criar nada de seu, pois tudo que seria seu tem um preço, e entediado por ver tudo numa vitrine e imaginar que nada mais existe fora dessa vitrine. Confuso por não enxergar a armadilha. Condicionado a não perceber mais as grades que o cercam. Amando o zoo onde foi posto. Pensando que viver é comer e ter , e que o mundo e a história se restringem a sua jaula e seu pátio de exercícios.
Sabemos que a razão errou. Que este computador onde escrevo é quase nada. Que meu celular não me fez melhor ou mais feliz. Que o novo Mercedez me dará a satisfação de ter um novo Mercedez, e que todas as outras insatisfações continuarão insatisfeitas. Que todo desenvolvimento científico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano. Que continuamos matando, roubando, mentindo, destruindo, e pior, nos iludindo. Mais que antes. E que ainda tememos a morte, o tempo e a solidão.
Mas o irônico é que somos a razão. Não podemos mais ser de outro modo. Indagaremos sempre, desejaremos sempre, estaremos insatisfeitos eternamente. Ingenuidade só se perde uma vez, e quando a perdemos, definitivamente em 1945, nos jogamos à ciência, único consolo ainda possível. Sem perceber que o defloramento de 1945 fora causado pela própria ciência.
Jamais voltaremos a valsar em Viena. A cidade é hoje antro de racismo hipócrita. Jamais teremos uma capital entre sambistas e igrejas barrocas. O Rio se tornou capital da futilidade hedonista. Jamais escutaremos Beethoven como nosso igual. O mestre era um homem natural, hoje eu sou um pré-coisa. Oh ! Admirável mundo novo onde tudo é possível e nada nos faz satisfeitos! Onde tudo acontece e nada nos importa ! Onde todos são alegres e ninguém conhece a felicidade ! Enjoy it !

WYLER/GROUCHO MARX/AVANT-GARDE/RAY

INFÂMIA de William Wyler com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine
Numa escola feminina, aluna acusa as sócias da tal escola, de terem um caso gay. Está feita a tragédia. Filme levado com bela discrição e grandes atuações. Mais um acerto desse venerável Wyler, o mais premiado diretor do cinema americano. Voce se envolve, torce e fica chocado com seu final absolutamente pessimista. nota 7.
ANDREI RUBLEV de Andrei Tarkovski
Não consigo assistir Tarkovski. Percebo sua originalidade, sua nobreza e seu realismo. Mas me irrito com sua lentidão, me perco em seus devaneios, adormeço com sua frieza. Nota 1.
ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA de Roberto Farias com Roberto Carlos, Reginaldo Farias, José Lewgoy
Há uma cena em que vamos dentro de um helicóptero em vôo rasante pelo Rio de 1967. É de doer : que bela cidade ela foi ! Quase sem favelas, muito verde e um trânsito ainda civilizado. Quanto ao filme : é um Help tupiniquim. Um Roberto, muito jovem e cheio de alegre ingenuidade, vive aventuras moderninhas em ritmo de nouvelle vague. Suas roupas são fascinantes e Reginaldo está hilário como o diretor de cinema doido. A trilha é uma brasa, mora! Tem desde "Eu sou terrível " até "Negro Gato". Roberto era um tipo de bom menino com roupas bacanas. Funciona, o filme é o retrato de um país que não existe mais : jovem e inocente. nota 6.
APARAJITO de Satijajit Ray
Segunda parte da vida de Apu. Ray, com dinheiro de amigos e de imóveis, criou o cinema indiano realista. As 3 partes da vida de Apu dignificam o cinema. Aqui vemos Apu adolescente, indo para a cidade grande e se tornando bom aluno. Mas o foco é sua relação com a mãe : dolorosa. O filme é menos emocionante que "O mundo de Apu", mas ainda assim é fascinante e hipnótico. Ray foi um grande poeta e suas histórias têm o encanto de fábulas. Nota 8.
UTAMARO E SUAS CINCO MULHERES de Kenji Mizoguchi
Dos três gigantes do cinema japonês, Mizoguchi é o mais nipônico. É fascinado por sexo e morte, e tudo em sua obra exibe cuidado plástico e tradição. Porém ele se perde neste confuso e inconvincente drama sobre erotismo, arte e mentira. O roteiro é mal desenvolvido e a ambição está acima da realisação. O mais fraco Mizoguchi. Nota 4.
A AVENTURA de Michelangelo Antonioni com Monica Vitti e Lea Massari
Excelente filme para quem sofre de insônia. Após 30 minutos é impossível não se adormecer. O filme tem o pior dos defeitos : fala do tédio da burguesia. E nos entedia. Nota Zero.
OS 4 PRIMEIROS FILMES DOS IRMÃOS MARX : THE COCOANUTS, OS GÊNIOS DA PELOTA, OS 4 BATUTAS e OS GALHOFEIROS. Diretores : Victor Hermann, Norman Z. McLeod e Robert Florey. Com Groucho, Harpo, Chico e Zeppo. Mais Lilian Roth e Margaret Dumont.
Uma das alegrias da vida é poder assistir os filmes dos irmãos Marx. Não é cinema, como WC Fields não o é. É mais que isso. Assistimos seus filmes como se neles encontrássemos um segredo : são uma religião. Por isso que com eles não há meio termo, ou se ama, ou nada se entende. Não existe o mais ou menos, não existe a meia fé. E minha fé é grouchoharpochicoana. Graças ao vaudeville. Seus filmes não têm história, não têm evolução. Assistimos para comungar com sua felicidade. Pois o mistério dos irmãos é esse, eles exibem uma profunda felicidade. Amar os irmãos Marx não é sinal de inteligência ou de bom gosto. É sinal de saudável espirito brincalhão. São um topo inatingível de descompromisso com tudo, de criatividade anti- correta, de brilho hedonista. Groucho fala o que pensa e o que ninguém entende, Harpo anda pela vida como um cachorro no cio e Chico é o mal-humor feliz. E nós, crentes na Marxilandia do espírito anarquista, sorrimos gratificados com o fato do cinema nos ter dado tal clarividencia. Para o mundo dos Irmãos, a vida é uma bosta e para viver bem é preciso nada se levar a sério. Os quatro primeiros filmes, da fase da liberal Paramount, são meus favoritos por serem os mais toscos. Na Metro eles ficariam um pouco presos. E palmas para Margaret Dumont, a vítima perfeita de Groucho, e atenção para Lilian Roth, símbolo belíssimo e sapeca das estrelinhas dos anos 30. Nota Um milhão quatrocentos e setenta e oito mil e sete.
A ARCA RUSSA de Alexander Sokurov
Crítica abaixo. Dizer mais o que ? Um diamante, uma porcelana de Sévres, um quarteto de Haydn, um conto de Voltaire. O filme brilha e é uma obra-prima dos anos 90. Nota Dez.
ELMER GANTRY de Richard Brooks com Burt Lancaster e Jean Simmons
O filme ataca um dos calcanhares de Aquiles da América : a religião. Deu o Oscar de ator à Burt e ele brilha como um malandro que se torna pastor. Nos irritamos com sua falsidade, mas ao mesmo tempo, nos apaixonamos pelo seu carisma. Burt lhe dá várias facetas, o que faz de seu desempenho exercício fascinante. Mas a direção de Brooks é crispada, séria demais, veemente em excesso, pesada. O prazer em se ver o filme se esvai na direção dura de Brooks. Nota 5.
HANGMAN'S HOUSE de John Ford
Filme pseudo irlandês, da fase muda de Ford. Tem belo trabalho de fotografia e se assiste com belo interesse. Mas está longe das obras-primas do mestre maior. Nota 6.
LES AMANTS de Louis Malle com Jeanne Moreau e Alain Cuny.
E Malle continua sua obra sobre a culpa. A não-culpa, no caso. Uma chatíssima burguesa entediada tem um amante. Diverte-se com ele como quem compra um novo casaco. Mas o marido, esteta chato, convida o amante e a amiga da esposa a passarem um fim de semana na mansão do casal. No caminho a esposa infiel conhece jovem e arruma um novo amante. Nada de culpa e nada de drama. Malle é um grande diretor : mostra o tédio e jamais nos entedia. O filme flui lindamente e tem uma fotografia em p/b brilhante ( de Henri Decae ). Moreau, atriz que não me agrada, está aqui sensual e muito bem. O filme arrisca em seu final : o apaixonar-se dos dois tem todos os hiper clichês de uma nova paixão. Sentimos enjôo. Mas funciona, vemos toda a tolice do se apaixonar por tédio. As cenas são plasticamente belíssimas, mas o que eles dizem é chocantemente tolo. O filme se faz comédia estratosférica. Malle sabia tudo. Nota 7.
PAL JOEY de George Sidney com Frank Sinatra, Kim Novak e Rita Hayworth
O azar de Kim Novak foi seu contrato com a Columbia. Ela era muito mais do que o studio acreditava. De qualquer modo ela esteve em dois anos em Vertigo e em Pic Nic. E neste Pal Joey, onde ela rouba o filme. Linda e vulnerável. Sinatra é um cantorzinho mulherengo fracassado, que tem sua grande chance ao conquistar viúva rica ( Rita muito abatida ). O filme tem na trilha "My funny Valentine", "The lady is a trammp" e "Bewitch", todas de Rogers e Hart. Precisa mais ? São três das maiores canções já escritas. Mas o filme sofre de um roteiro pouco inspirado, bobo. Melhora quando Kim aparece mais e Sinatra se humaniza. Em tempo : no filme Frank conquista toda mulher que deseja. Sua teoria é : trate a mulher sempre como ela não espera. A bonita como se fosse feia, a feia como bonita; a deusa como vagabunda, a vagabunda como deusa; a séria como palhaça e a palhaça com seriedade. Isso é puro Sinatra ! Nota 6.
A PARTIDA de Yojiro Takita
Fuja deste chatíssimo exemplo de filme vazio e sem porque. Deve agradar ao tipo de público bonzinho. Mas é exemplo do vazio absoluto de idéias e de projetos do atual cinema japonês. Chato pacas!!!!! nota zero.
A FRONTEIRA DA ALVORADA de Philippe Garrel com Louis Garrel e Laura Smet
O diretor, séculos atrás, foi namorado de Nico. Este filme recorda isso. Tem os piores tiques moderninhos dos anos 70 levados aos xoxos anos 2000. O filme é uma imensa crise existencial que só pode interessar a quem a vive e nunca a nós que a assistimos. Exemplo de filme masoquista. nota zero.
AVANT-GARDE
Houve um momento na história do cinema em que ele precisou se definir. Ou se assumia literatura, ou se fazia arte plástica. Venceu a literatura, e o cinema que hoje conhecemos tem história. Tem enredo, personagens e narrativa pessoal. Esta coleção de dvds, mostra a vertente derrotada, a turma que via no cinema algo próximo a fotografia e a pintura, imagens, puras imagens em movimento. Se alí fosse percebido algum sentido literário seria por mero acidente. ( Aliás, uma pintura pode contar uma história. Mas não é o principal. O que define a pintura é sua realidade como imagem, como puro visual. E isso lhe justifica, lhe basta. )
O que vemos nestes videos são curtas de artistas que filmaram imagens em movimento. Alguns são completamente aleatórios, outros possuem enredo, mas todos têm o fascínio da imagem solta, livre, sensual. Se os video-clips tivessem alma seriam assim. ( E a gente nota que todo diretor de clips assistiu e estudou estes filmes ! ). Que filmes são estes ?
Man Ray é o que mais me tocou. São quatro curtas desse irriquieto fotógrafo americano, que viveu a boemia francesa como poucos. A ESTRELA DO MAR é uma das maiores obra-primas que já assisti. São cenas de um prazer imenso, de absurda sensualidade, onde toda imagem é uma nova surpresa. Mas os outros três mantém o mesmo nivel : maravilhosamente surreal. Mas há mais. Hans Richter com cenas de força e de ritmo vertiginoso, Charles Cheeler e suas tomadas de Manhattan baseadas em Whitman, BALLET MECANIQUE de Léger, famosíssimo curta que merece a fama que tem, há ainda a obra-prima de Germaine Dullac LE COQUILLE ET LE CLERGYMAN, filme encantador como sonho e como viagem de ópio, BRUMES D'AUTONNE de Dimitri Kirsanoff, com imagens de melancolia obsedante. E esse burlesco CHATEAU DE DÉ de Man Ray, que é um monumento ao nada. Todos são fantásticos, como continentes perdidos, um mundo cinematográfico abandonado, porém é mundo vivo, moderno, instigante e transgressor. Conhecer estes filmes é ver aquilo que esta arte poderia ter sido, aquilo que em seu inconsciente ela quer ser : livre. Impossível dar nota a tal monumento. Assita e se surpreenda.