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A METAFÍSICA DA AÇÃO- PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO ESCREVE SOBRE HENRI BERGSON

   Operar com o real obriga nossa mente a separar artificialmente os objetos de nós mesmos. Para usar e agir sobre a matéria temos de isolar as coisas-objetos em entidades separadas. Essa "ilusão" utilitária, faz com que nossos estados emocionais sejam também vistos como acontecimentos independentes. Como pérolas num colar, cada estado emocional se torna um mundo em si-mesmo. Mas para manter essas "pérolas" unidas é preciso um fio, esse fio se torna o tempo, e assim caímos em mais uma ilusão, aquela que diz ser o tempo uma linha que une fatos da vida.
  Bergson dá uma visão inversa: o tempo é a própria substância onde os acontecimentos ocorrem. Sem o tempo nada haveria. Ele não une nada, não pode ser utilizado para nenhum fim, não pode ser percebido, contado ou medido; é onde estamos, o que nos envolve e dele só temos consciência no tênue momento da intuição.
  Eu jamais escreveria sobre Bérgson se não tivesse tido essa intuição. Duas ou três vezes em mais de 50 anos de vida eu a senti. E por mais que tente a descrever eu não posso. Isso porque as palavras, ferramentas uteis, nada têm a dizer sobre o tempo. Palavras falam de coisas e de atos uteis. Palavras falam da nossa ação sobre o real. A vida, a realidade, são construídos enquanto são vividos, estão no tempo. Portanto não há como sairmos dele para o observar. Palavras nos aprisionam em esquemas asfixiadores, fechados, lutam para acalmar a razão. A razão, o mais útil dos instrumentos, precisa agir sobre aquilo que é real. O homem, único ser que consegue analisar com palavras a própria palavra, que pode pensar o pensamento, que consegue não reagir aos estímulos do corpo, não consegue sair do tempo, cessar o tempo, medir o tempo. É aí que Bergson situa toda sua filosofia da ação e da liberdade.
  O corpo é real. O corpo é presente. A memória não. Daí um dos nossos nós. A memória está e não está, existe e não existe, vem e vai, some e renasce. O cérebro, que para o filósofo francês, é antes um fio condutor e nunca uma máquina produtora, recolhe da memória aquilo que nos é prático, aquilo que serve para uma ação. O resto, memória que jamais desparece, fica em reserva, no sonho, no delírio, na intuição.
  Algumas frases de Bérgson são admiráveis: " Para deixar o espírito agir a liberdade faz do corpo um intermediário". " O cérebro não teria por função pensar, mas fazer com que o pensamento não se perca em sonho."
  Ele vai de Darwin á Kant, e aqui neste livro é Bérgson comentado por Merleau-Ponty e Lebrun. Se fala de William James, Barthes, Jankélevitch e Deleuze. Não se fecha nada, tudo fica em aberto, nenhuma verdade é revelada. Pode-se dizer que é o filósofo da ação, do agir, do fazer.
  O autor, Pablo Enrique Abraham Zunino, tenta abarcar amplas fatias do pensamento de nosso filósofo, quase consegue. Melhor ler diretamente Bérgson. Ele escrevia muito bem. Ganhou até o Nobel. Escrevo mais abaixo.

ESPAÇO E TEMPO

   Tempo não é espaço. O espaço nós o podemos ver. O espaço nós o medimos. A matemática trata do espaço. Nossa razão, precisando lidar com o Tempo, trata-o como se fosse Espaço.
   Tempo não se mede. O relógio nos engana. A idade nos engana. Envelhecemos, claro, o Tempo existe, é real, mais: o Tempo é a Realidade. Mas ele não passa como se fosse uma reta. O Tempo NÃO PODE SER DIVIDIDO. Não se parte o tempo em pequenas porções. Ele transcorre como Coisa Inteira.
   Não existe no mundo real o Tempo como divisão. É uma invenção, empobrecedora, da razão. Uma confusão entre espaço e tempo. O tempo é ação e a Ação não pode ser repartida. Vamos aos fatos:
   Um atleta corre numa pista. Achamos que podemos dividir sua corrida, que é ação, que é tempo, em frames. Achamos que podemos fotografar a Corrida em divisões de tempo. FALSO. Ao dividir a corrida em frames, em pedaços de ESPAÇO, ela deixa de ser ação-tempo e passa a ser COISA-MORTA. Naquela foto não se acha o movimento, o que se acha é um corpo morto parado no espaço. E mesmo que se grave em filme esse atleta, tudo o que teremos é um pedaço de COISA-MORTA em falso movimento.
  Isso porque a ação só é ação no presente. E o presente JAMAIS SE REPETE. O atleta que correu aquela corrida continua sua ação dentro do Tempo. Ele correu, venceu, acenou, descansou, recebeu aplausos, acenou, bebeu, tudo numa ação indivisível. Não se trata de espaço, é VIDA, e assim é ação no Tempo. Melhor dizendo, é Tempo. E como tal, não pode ser apreendido.
  Ou poderá... A intuição sabe o que ele é e vive e respira dentro dele. Mas a intuição só se faz quando agimos sem nenhuma preocupação com tempo, espaço ou consciência. ( Ação não é apenas correr ou falar. Ação também é pensar, respirar, sonhar, digerir, bombear ). Quando não pensamos em nosso EU e agimos com toda nossa vontade, única e individual, estamos ao lado e dentro do Tempo, e nesse fluir intuímos o que o Tempo é.
  Nosso corpo, instrumento feito para se lidar com o espaço, instrumento que evolui e existe como AÇÃO, é uma espécie de filtro, coisa que recolhe o pensamento e lhe dá direção enquanto represa tudo o que não seja útil para aquela ação.
  Mas isso é assunto de outro post...

HENRI BERGSON

   Pessoas costumam confundir Tempo e Espaço. O espaço pode ser medido, o tempo não. Pois assim como podemos situar uma coisa e nos situar em um espaço, não podemos situar nada e principalmente a nós mesmos no tempo. O presente se torna passado assim que percebido e o futuro está sempre em um ponto vago no porvir. Não há ponto no tempo. Nem reta e nem espaço.
   Dentro do nosso ser mais profundo sabemos que a vida é movimento. Que estamos sempre em ação. Pensar, sonhar, querer, andar, fazer, tudo é ação. E o tempo é vida e vida é liberdade. No mais profundo eu a liberdade é plena. Pelo simples fato de que nos modificamos sem parar por toda a vida. Na intuição, que é ação criativa, tomamos posse de nossa liberdade. Fazemos sem pensar, somos sem questionar, vivemos sem querer, essa a liberdade. Ao contrário dos bichos, presos na necessidade, na utilidade de sobreviver, nós fazemos atos sem utilidade, sem necessidade, atos livres.
   Mais além, tentamos, para manter a lógica, crer na objetividade, no objetivismo, na causalidade. Não há causa e efeito no homem. O que fazemos e o que queremos não tem um porque. Ou, dizendo melhor, o que fazemos, nossas ações, são transformações. Mas atenção! Eu não sou um homem que muda. Eu mudo desde sempre. Jamais cheguei ou chegarei a ser.
   Para poder viver em sociedade usamos a memória. Ela nos diz aquilo que fizemos. E assumimos que o que fizemos é o que somos. Uma energia imensa é gasta nessa missão social: manter a ilusão de que se é um ser definido. Manter uma cara, um posto e uma personalidade. Sim, eu sou um indivíduo, mas isso que sou se define em um movimento. Lembro do que fui, mas o que sou NADA deve a esse que fui. Nem mesmo consequência do que fui eu sou. Vou me modificando na vida e no tempo. Parar de mudar é a maior das ilusões.
   Amamos esse ato criativo, a liberdade de agir gratuitamente. Admiramos profundamente quem muda. Superficialmente temos nossa personalidade social. E a maioria de nós crê e quer crer ser isso em totalidade. A maioria não chega a perceber a liberdade que é. Porque nós não temos a liberdade, não somos livres, a liberdade só existe em nós. O homem é a única coisa no universo que é livre. Tudo está preso a leis físicas e apelos da necessidade. O homem cria. Dentro de seu corpo físico, preso, banal, mora o espírito livre, intuitivo, que age e se modifica modificando.
   O Paulo de 1981 nada teria a ver comigo. Lembro dele, conheço ele, mas ele foi. Eu sou. Assim como este bairro, onde nasci, nada tem a ver com aquele que lembro. Nada conheço na verdade. Apenas estou junto no mesmo movimento. Sucessivo. Os atos que fiz não me trouxeram aqui. Não há motivos conhecidos que respondam como e por que estou aqui e sou isto. Apenas o movimento criativo.
  

SAUDADES DO CINEMA

   Tenho escrito pouco aqui. Ando sem tempo. Mudança de casa, rolos, estudos...
   Vi apenas 5 filmes no mês de abril. Faz anos que não vejo tão poucos filmes. E ontem de noite senti saudades do mundo do cinema.
   Saudades de Marcel Carné e suas sombras, a neblina nas ruas feitas em estúdio. Senti falta da cara de Jean Gabin, dos sobretudos mal amarrados, dos Gitanes fumarentos.
   Saudades da voz de Cary Grant. Dos décors de suas salas em histórias feitas para entreter. Os longos automóveis azuis e os drinks com gelo.
   Houve um tempo em que Robert Mitchum e Charles Laughton faziam parte da minha vida. E sinto falta do tempo em que a vida era filmada por Howard Hawks. Vida com tempos mortos que eram cheios de alma.
   Sei que dificilmente voltarei a minha rotina de um filme por noite, às vezes dois. As descobertas foram feitas, os deslumbramentos sentidos.
   Mas sinto falta desse amor. Que como todo amor verdadeiro vira saudade, deixa um vazio e a lembrança de alegria.

BACH HOJE.

   Bach faz aniversário hoje. Ele é tão antigo que agora parece um ET.
   Certas características do homem Bach nos são incompreensíveis. Podemos nos esforçar e as aceitar. Podemos, eu sou desses, as admirar. Mas seu modo de ver e de viver nos é tão distante como seria a vida de um plutoniano.
   Ele não vivia para os homens. Não pensava em seu tempo. E não fazia arte.
   Sua música era um trabalho. Ele tinha de justificar sua vida e sua vida era trabalho. Tinha uma habilidade, a de compor, e por isso compunha. Uma nova partitura por dia. Ele se via como um bom sapateiro.
   Seu tempo era a eternidade. Lhe era natural saber que sua vida começara antes e que sua morte não seria seu fim. Qualquer outro modo de pensar seria impossível para ele. Desse modo, "perder" um dia ou "ganhar o dia" era-lhe indiferente. Ser jovem ou velho, viver ou desperdiçar a vida, nada disso lhe era conhecido. O tédio não havia sido inventado.
  Por fim, em vista da eternidade, ele compunha para Deus e só para Deus. Isso o mais difícil de entendermos. Podemos experimentar a criação para Deus como vaidade ou como sarcasmo, mas a humilde oferenda nos é estranha.
  Todo artista vaidoso cria para a eternidade. Bach criava para Deus. É um universo diferente. Ele cria e dá, quem faz não é ele, é o dom dado por Deus. Quando Bach compõe ele devolve a Deus o que é Dele.
  A música de Bach, às vezes estranhamente fria, abstrata, foi criada nesse mundo.
  Nunca poderemos a compreender. Mas somos livres para a amar.

MEMÓRIAS DE M'BOY- JOAQUIM GIL PINHEIRO

   Estava eu andando pela USP quando encontrei jogado na rua, um livro. Sem capa, judiado. Editado em 1911, março. Uma raridade portanto! E mais incrível, fala da minha região!
  O autor tinha na época um chalé em M'Boy. E resolveu pesquisar e escrever sobre os caipiras que viviam na mais atrasada região da cidade. Em 1911 SP, segundo o livro, crescia rumo a zona norte e sul. As zonas leste e sudoeste eram muito, muito atrasadas. Agora uma revelação, essa tal de M'Boy é aquilo que hoje chamamos de Embú das Artes, uma região que ia, na época, de Embú, Itapecerica, até o Butantã. Estamos falando da região que mais cresce hoje. Uma malha de ruas, avenidas, rodovias, fábricas, bairros pobres e ricos. Estamos falando da USP, do Morumbi, do Campo Limpo, do Taboão, do Jardim Guedala, do Caxingui. E como era tudo isso em 1911...
  Nessa imensa floresta viviam pacas, cobras muitas, onças, veados, cotias e raposas. Apenas 900 pessoas em imensa área. Caipiras rudes, sujos, diz o autor "preguiçosos" que plantavam milho, mandioca e feijão. Galinhas, bois e porcos. Matas virgens e extração de madeira. Carvão.
  É uma viagem no tempo. Tempo recente na verdade. 1911 foi ontem. E como mudou tudo!!!! Não havia estrada, não havia trem, não havia nada. Algumas casas históricas, de 1650, ainda existiam. Casas dos fundadores, dos jesuítas. Foram ao chão. Restou só uma, fica no Caxingui. ( Onde também fica a mais antiga árvore da cidade ). Para quem como eu ama história, esse livro, com a "grafia" antiga e fotos muito estragadas, é um tesouro!

O MAIOR SHOW DA TERRA

   Eu estava no berço. E minha mãe deixava o rádio ligado, perto. Naquele tempo tocava Roberto, Tom Jones, Hollies e claro, Beatles. Lady Jane eu escutei nesse tempo. Assim como Ruby Tuesday. Eu sei, porque eu as cantava antes de aprender a ler. Eu sei cantar essas músicas desde sempre. São parte de minha vida.
  Minha casa ficava no alto do bairro e lá de cima a gente podia ver um pedaço do estádio do Morumbi. Em dias de jogo a gente ouvia a torcida. E ficava assistindo os carros que passavam. Eu continuava, entre córregos e pastos, a cantar Lady Jane, Ruby Tuesday e uma outra da qual só lembrava o refrão. Eu não sabia que todas eram dos mesmos caras.
  Passaram quase 50 anos desde então. Guerras acabaram, a Lua foi tocada, modas se foram, o tempo acelerou. Hoje os jovens são apressados. E eu continuo aqui, no bairro, e décadas depois eu sei quem eles são. Eles são os caras que criaram 50% do que se entende como rock. O lado sujo, tosco, sexy e infame da coisa. O lado de Dionisio. E assim, eles têm enterrado todos os concorrentes. São eternos. Estão além do tempo.
  Quando toca Simpathy For The Devil, em arranjo que faz tudo o que os Primal Scream levaram dez anos para fazer, eu saio de onde estou. E olhando as pessoas vejo almas que vagam além do tempo. Na verdade não são os Stones que estão além do tempo, todos estamos, eles apenas usam isso melhor. Jagger estar sobre o palco é a atualização do mito de Mefisto. Ele jogará flores para todos nós.
  Keith tem se apagado. Ele se obscurece gentilmente. Nessas horas é bom ser inglês. Eles sabem ser velhos. A velha cara sacana está lá. Os trejeitos. Mas é outro. Sua dimensão é a mesma de velhos curandeiros.
  Minha primeira lágrima foi ao ver Ronnie solar. Porque Ronnie é um cara possível. Ele é daqui, deste mundo. Ele vai no buteco. Ronnie é um face pra sempre.
  Mas Mick é impossível. Ele se fez. Tudo foi um plano feito por volta de 1968. E foi aí que Simpathy nasceu. Andando em Londres ele teve a antevisão de sua vida. E a viveu.
  Eles tocaram a dois quilômetros de meu berço. Eles vieram até mim. Eu fui até eles.
  Continuo careca. Continuo com mamãe. Continuo cantando She's a Rainbow.
  E Brian....bem, tinha um cara na pista vestido de branco com uma cartola preta. A banda ainda é dele não é...

...MAS EXISTE A VIDA...

   Teve um peixe que foi o último. Quando me mudei pra este bairro, em 1972, ainda viviam alguns peixes nos córregos desta região. Nasci perto, no bairro vizinho, mas como esse bairro onde nasci fica no alto de um morro, o segundo morro mais alto da cidade, não conheci córregos até me mudar em 1972. Fui para um bairro mais baixo e me vi cercado por córregos e até mesmo riachos.
 Esses cursos de água ainda existem, nenhum secou. Mas, claro, os peixes se foram faz muito tempo. Não se deve dizer que estão mortos. Sapos ainda resistem. Pássaros brincam às margens. Mato e árvores crescem. Mas a água, imunda, está muito mais baixa. Lembro que havia uma profundidade de um metro, dois, e que agora mal chega a um palmo. O maior dos cursos de água tinha três metros, dava para nadar nele. E tinha peixe.
 Sábado no fim da tarde a gente andava pelo bairro. E a vida rodopiava ao redor da nossa mente. Bandos de passarinhos minúsculos se apoiavam nas cerdas de capim e se balançavam na brisa quente de janeiro. Cigarras cantavam alto e gafanhotos pulavam na estrada. Longas carreiras de formigas abriam caminho na terra seca e girinos escureciam as margens dos riachos. E mais ao centro da correnteza nadavam os peixes cor de prata, esguios, frios, condenados.
 Não sei quando eles desapareceram. Mas deve ter sido em um ou dois anos. Talvez o riacho tenha secado e depois voltado a ser o que é hoje, raso e pobre. Talvez uma carga pesada de esgoto tenha vindo, e como maldição tóxica, varrido a vida da água. Eu não sei. Mas o último peixe soube.
 Engraçado pensar que eu conheço um cara, vinte anos mais velho que eu, que caçou pacas onde agora é o estádio do Morumbi. O lugar era cheio de tatús, de gambás e de gatos do mato. Era 1960, e na boa, 1960 foi ontem! Eu lembro bem de 1980, e em 1980 tudo já era mais ou menos como agora, a única diferença é que tinha mais espaço, muito mais espaço, e muito menos barulho. Sapos e pássaros. O último gato do mato há muito fora embora. Em 1980.
 A vida é nossa casa e parece tolo dizer isso. Estou lendo um livro de uma nipo-americana chamada Ruth Ozaki. Houve um tempo em que havia mariscos em Manhattan. Como meu pai um dia viu peixes no rio Pinheiros. E nesse dia ele, imigrante solitário, sentiu que o rio Pinheiros era sua casa também. Ninguém hoje sente que o rio sujo é sua casa. Na verdade ninguém hoje olha para o rio Pinheiros.
 A gente vive e a vida é tudo. Desacredito da morte. Religioso que me tornei, vejo a vida como vencedora. Ela existe e fora dela nada pode ser. E a vida, onde ela está, é nosso lar.
 O último peixe do último córrego limpo sabia que era um peixe pra sempre vivo. E toda a filosofia de que me sirvo vive nos olhos do meu cachorro. Ele respira. E eu dou graças por isso.
 Até o fim.

A TORRE COLORIDA

   Estou lendo o livro de memórias de Jung. Deve ser meu sétimo ou oitavo livro do guru. Jung tem o poder de me liberar. Apesar do capítulo 3 me ter incomodado muito, onde ele fala das doenças de seus pacientes, o livro possui maravilhosas coincidências com minhas próprias experiências. Jung me convence porque o que ele viu foi visto por mim também. Antes de o conhecer. Bem antes. Ele valida as impressões que senti e as dores que não compreendi.
  Mas não estou escrevendo isto como comentário à obra. Quero apenas falar com você e com meu amigo Léo. O capítulo onde Jung descreve sua casa foi escrito especialmente para pessoas como Léo. Basta dizer que Jung construiu ao fim da vida uma Torre de Pedra. Com as próprias mãos. E que essa torre não tinha eletricidade ou água encanada. Tinha fogo, lampiões e um poço. Ele gostava de pensar que um antepassado seu, se lá surgisse, se sentiria em casa dentro daquela casa. A torre era o ambiente onde Jung era livre para ser ele. Onde seu eu número dois podia existir.
  Ele fala da necessidade de termos um canto só nosso. Onde ninguém pode entrar. Onde tudo é eu. Ele pintou as paredes com símbolos. Fez objetos. E ouviu o silêncio que dizia.
 Eu tive dois cantos meus. E faz vinte anos que os perdi. O primeiro foi o porão da casa onde nasci. Cheio de teias, insetos, trapos, móveis velhos, rachaduras e vidros quebrados. E o segundo foi meu quarto número dois. O "quarto da bagunça". Onde ninguém entrava. Onde rabisquei peixes, plantas e sóis nas paredes. Onde eu cantava, dançava, pulava, gritava e dormia com meus cães. Foi minha torre. Minha Torre Colorida.
 

O ESPÍRITO DA NAÇÃO

   Existem pessoas que marcam uma nação. Nação, não falo de país. A pessoa morre e sua morte marca o final de uma época para aquele povo. Ela se vai. É como se as coisas fossem sincrônicas. A morte do símbolo em carne levando com ele todo um espírito que habitava aquele ambiente.
  Quando Mark Twain morre, em 1910, toda uma América se ia com ele. O país do futuro, ainda então ingênuo, inconsciente de sua violência, cheio de espaço e de ideias, morria e se tornava outra coisa. Essa morte, de Twain, de Tom Sawyer e de Huck, começa antes, começa por volta de 1890, e 1910 a cristaliza.
  Assim como a morte de Heminguay, em 1963, é a morte do americano como macho arrogante, do país aventureiro, solto, desimpedido e mandão. Do país que nunca duvida de si-mesmo. Essa queda começa já em 1953, com a paranoia comunista, e a partir de 63 vai se transformando no país confuso, perdido, mentiroso, vago, do Vietnã.
  Escrevo isso porque li Yeats falando do fim da Irlanda alegre e simples. Quando é enterrado seu líder, toda essa velha nação termina de cair com ele. O país irado, anti-inglês, irrompe de vez.
  Penso que o Brasil começou a terminar, o país que ainda achamos ser, por volta de 1989. A crueldade da inflação, a queda das ilusões com a imprensa finalmente livre, a desilusão com a democracia, o aumento do tráfico de drogas e da competitividade capitalista, levou de roldão toda aquela brasilidade preguiçosa, suave, da fala mansa, da conversa de boteco, dos passeios ao fim de tarde. Foi o tempo, entre 89-95, que levou alguns desses símbolos. E em 1994, em dezembro, foi-se Tom Jobim, o símbolo do brasileiro fino, calmo, preguiçoso, suave, gentil. O símbolo virava pó. Ainda havia Caymmi. Mas Chacrinha, Grande Otelo, Drummond, Vinicius, Garrincha, Cartola, já se iam juntos ou não.
  Não venha me falar que Chico ou Caetano, Jorge ou Paulo Coelho são símbolos daquele Brasil. Nunca. Esses já possuem a ironia, o distanciamento, a máscara do país de hoje, do país que nasceu nos anos 70-80, do Brasil miragem, apressado e sem eficiência, moderno e velho, o país que não acha lugar para estar. Desconfiado.
  O moreno deitado à rede virou um moreno na fila do metrô.

O PODER DA ESCRITA

   Uma aula que consegue unir rigor a bom humor, informação e domínio daquilo que se diz. A professora Andréa Daher veio especialmente do Rio para cinco horas de prazer cerebral. É muito bom observar o modo como ela conduz a sala inteira para os lugares e conhecimentos desejados. Segredo do grande mestre, fazer com que os ouvintes sintam o desejo de saber que ela sentiu desde muito antes.
   O tema poderia ser árido, e é, mas a voz leve e clara e o rosto de atriz, expressivo, levam as horas a parecer minutos. O tema é o modo como os textos eram escritos e divulgados no século XVI, textos escritos sobre a Terra de Santa Cruz, vulgarmente chamada de Brasil, textos escritos por portugueses e por franceses, documentos de jesuítas e de capuchinhos, o modo como eles pensavam, o que sentiam, como a Europa nos percebia.
   A professora Daher, pesquisando na França, onde viveu décadas, mostra gravuras e textos de franceses que levaram tupinambás para Paris. Índios brasileiros, cruzando o oceano e aportando na Europa, conhecendo o rei Luis, aprendendo modos franceses, usando roupas complicadas, sendo exibidos em palácios. Tudo isso com o fim de provar que Tupinambás tinham uma alma e que por terem alma podiam ser civilizados. 
   Montaigne não concordava com isso, mas Rousseau, séculos depois, usará esses brasileiros para criar o tal do bom selvagem.  O Brasil não nasce aí. Não nasce com esses frades franceses, huguenotes, ou com os jesuítas. Daher fala que a história é feita por dinheiro e escrita, pelas letras. A Itália existia antes de Dante, mas é a Comédia Divina que a faz tomar consciência de si e começar a se historiar. É sempre uma escrita que inscreve o país ao mundo. Nos EUA foi a constituição, na Inglaterra foi Bacon e na Espanha o Quixote. E nós? 
   O Brasil começa se ver como um país apenas no século XVIII. O parto durou três séculos, três longos séculos em que este espaço era uma terra `a procura de quem a amasse. De quem a tomasse nas mãos como nação e não como passagem. Três séculos em que aqui era um caminho, um meio e jamais um fim. O fim era Lisboa, o fim era Paris.
   Em sua aula, que engloba o time do Flamengo, os paulistas, monstros em São Vicente e a beleza da imaginação, ela consegue nos passar seu amor as letras, a palavra dita, impressa, cantada, pensada, levada. O amor ao livro velho, ao texto esquecido, raro, perdido, incompleto. 
   A vida é imaginação. A vida é ficção. Texto, e todo texto é imaginação.
   PS: Já no pós aula ela lembra que nos anos 80, nessas listas mentirosas de livros mais lidos ( mentirosa porque não há como saber se eles foram realmente lidos ), no Rio o mais lido foi durante meses o Ulysses, de James Joyce. Livro segundo ela ilegível. Como isso então? Bem, ela lembra que nos anos 80, época de pose, era chique ir à praia com um livro debaixo do braço. Milan Kundera era Ok, Umberto Eco, legal, Joyce era o máximo!
   Risos? Sim, risos, mas isso demonstra o poder que um livro tem mesmo entre aqueles que não o abrem.
    Aplausos.

VIENNA=ULTRAVOX. O TEMPO PASSA...

   Estranho. Para onde foi a emoção? Aos 22, 23 anos eu me emocionava profundamente com este disco. Agora eu o acho bonito, mas não arrepiante. Seria porque eu evolui? Mas então porque um disco como Magic, de uma cantora chamada Cheryl Dilcher, um disco pop, comum, que eu amava aos 15 anos, hoje me comove como sempre comoveu? Magic não é melhor que Vienna. Será que encontro uma resposta satisfatória?
   Acho que sim. O garoto que amou o disco de Cheryl aos 15 anos era um garoto que desejava de um disco apenas aquilo que Magic tem, música e diversão. E isso ele sempre vai ter. Músicas de um pop festivo, às vezes tristonhas, sempre simples. O que eu buscava em Magic no ano de 1978 continuo obtendo em 2015. Vienna não. Porque?
   Em 1984, ano em que comprei Vienna ( ele é de 1980 ), os críticos mais interessantes se chamavam Pepe Escobar, Matinas Suzuki e Luis Antonio Giron. Nos textos de Pepe ele citava Keats, Huysmanns, Cocteau e Miró. Matinas falava de brumas londrinas, chá na madrugada e dores suicidas de amor. Já Giron escrevia como quem pinta porcelana, com extremo cuidado. Essa é a chave. Todos eles partiram, à partir de 1989/90 para outros campos. Giron foi escrever sobre música erudita e literatura, Matinas se debruçou sobre tecnologia e futurologia e Pepe foi viver fora, escreve sobre tudo, menos rock. Os três eram apaixonados pelo rock e pelo pop mais britânico dos anos 80, pop do qual Vienna é um belo representante. O que houve?
  Aos 22 anos eu tinha em Vienna a porta de entrada para um mundo novo. O mundo que ia da primeira geração romântica até Andy Warhol. O disco prometia o acesso, fácil e simples, ao mundo da Arte. identifiquei isso na primeira vez em que ouvi, anos depois, uma banda como Radiohead. Ele facilita a entrada na Arte, mas sem ser Arte. O ouvinte sente toda a emoção de coisas como poesia, pintura abstrata, cinema japonês e romances modernistas, SEM PRECISAR TIRAR OS FONES DO OUVIDO. ( Basta dizer que em todo o ano de 1984 eu li apenas 5 livros ). O que acontece então?
   Com o tempo eu conheci a fonte, o artigo genuíno, a tal Arte, e as emoções refinadas que Vienna parecia conter empalideceram. O que eu sentia escutando o disco agora sinto, de uma forma muito mais complexa, lendo, vendo ou ouvindo outras coisas. Vienna ficou lá. Foi trocado.
   Isso não pode acontecer com, por exemplo, o Led Zeppelin. Ou mesmo Bowie. O que eles dão só em música pop ou rock podem dar. O meu amor por eles sempre foi puramente musical e rock`n`roll, no caso do Led, e no caso de Bowie, musical e estilosa. Bowie era um dos artigos autênticos que Vienna anunciava. A emoção de ouvir Beatles ou The band permanece porque amamos ""apenas""suas canções. Em Vienna eu amava a música, mas essa música simbolizava e anunciava mais do que ela era. Essa é a tragédia de tudo que se torna passado sem volta.
  Mas é bonito. 

VERMELHO AMARGO- BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS

   Naquela tarde gelada meu pai e minha tia voltaram do hospital onde minha mãe estava. Eu tinha 13 anos e de nada eu sabia. Mas percebi a febre que infectou as paredes da casa. No rosto de minha tia, a sempre sorridente Noémia, o assombro de um brinquedo quebrado antes do Natal. Ela foi para o quarto sem falar comigo, e lá ficou. Meu pai se sentou em sua poltrona de sempre e assistiu o jornal. Mas não era mais meu pai. Era outro. O silêncio absoluto era diferente de seu silêncio balbuciante. O rosto dele estava rígido. Para eles dois, soube muito depois, minha mãe estava morrendo. E a febre eu a sentia na casa.
 O que meu pai faria? Ele foi jovem durante a segunda guerra, sua geração foi a última a admitir que a vida não é um prazer. Como meu pai daria uma familia para dois filhos se ele sabia que ser pai nunca pode ser mãe? Meu pai foi da geração que admitia não ter e deixar então de querer. Meu irmão brincava naquela noite, no tapete. A sorte de se ter apenas 10 anos. 
 Minha mãe foi salva. O desvio que haveria em minha vida nunca se fez.
 Hoje leio este livro. Que nada fala de mim, mas que dialoga com meu pai. Porque ele perdeu a mãe cedo e viu cada um da casa partir. Um de cada vez. Primeiro o pai, que se calou para sempre. Depois os irmãos, ao Brasil, à África, ao mato, à serra. A pedra era o tomate de sua vida. As paredes de pedra, o choro calado de cara à parede, as tardes de neblina sem fim. Pedra não se fatia, se engole inteira. 
 O livro é triste como um fado. Triste como a outra margem do Rosa. A prosa é poesia que se come e amarga a boca. A prosa do centro do Brasil. Do norte pedroso de Portugal. Terra dura e gelada que é pedra, cada enxadada uma dor nas mãos. E o vento que venta sem nunca aquietar. Fome.
 Meu pai....que saudade....

O AMOR SE GUARDA DO TEMPO. CHRIS ISAAK- FOREVER BLUE

   ...Heminguay disse um dia que o ódio termina mas o amor é para sempre.
   Eu amo para sempre aquela menina e com ela eu amo este disco. Que foi e é sua trilha sonora. E Heminguay combina bem porque este disco e este amor tem cheiro de camisa de flanela e de eucalipto e ele é frio, é sopro de vapor e mãos que se esfregam. Touca de lã.
  Ela é frágil como se fosse feita de promessas dificeis de serem cumpridas. A voz de Chris é de cristal? Não, acho que melhor dizer orvalho. E ele canta o amor todo o tempo. Ele realmente crê no amor. E te digo amigo, neste mundo a gente tem de crer no amor e mais ainda, a gente tem de bradar e exercitar o amor. All the time.
  Como pode isso? É um milagre e o fato desse amor existir prova que milagres só acontecem para quem crê neles. Oh God! Eu crio no amor e creio nela. Porque ela é linda.
  Como é este disco com seus solos de guitarra curtos, delicados e viris, com sua luz de estrada de quem vai voltar. com sua tristeza esparramada, mas não desespero, porque desespero só vem para quem deixou de acreditar.
  Este disco me foi proibido por anos e anos. Doía demais escutar a trilha dela. E minha alma, saudosa, guardou esse disco como quem guarda cinzas. Agora ele toca porque chegou a hora de tocar de novo. Ela é agora como sempre foi. O amor guarda e protege do tempo da vida.
  Tão bom ouvir a voz de Chris novamente. E tocar o corpo conhecido que se encolhe.
  Ela é linda. E eu sou bom.

JUDEUS RUSSOS, CATÓLICOS PAULISTAS, VITEBSKI E SP. CHAGALL LIDO AQUI.

   Talvez pelo fato de meus olhos serem muito mais refinados que meus ouvidos eu veja nas biografias dos pintores uma beleza maior que nas dos escritores. Começo a ler a biografia de Marc Chagall e imediatamente me apaixono pelo texto que leio. Fico bêbado com as palavras judaicas que descrevem o colorido da vida na cidade de Vitebske, em 1900. Reunidos dentro do império russo, na região que hoje é a Lituânia, a Ukrania, os judeus vivem sua vida que se pauta pelas datas da religião. Isso tudo é fascinante. A tribo que sobrevive a todas as tribos. A sujeira extrema dos pobres na ruas enlameadas, entre bichos e barracos de madeira, e o refinamento dos ricos, homens eruditos e mulheres que trabalham. O Chagall menino, bonito e mimado pela mãe dominadora, vive na baixa, bem baixa burguesia. A mãe é analfabeta, o pai trabalha como um animal de carga. As irmãs, muitas, são quase sombras. O menino Chagall ama a mãe e é correspondido em dobro. Um idilio. Tímido, ele fracassa na escola. Desenha bem. Estuda pintura. 
  Jovem, 18 anos, vai para São Petersburgo. Aguenta apenas um ano e meio lá. Sonha com comida. Dorme em um quarto imundo com seis outros. Divide cama com operário, pulgas e percevejos. Judeus não podem viver em Petersburgo. Ele é ilegal, sente medo. A cidade, construída sobre um pântano pelo czar Pedro, é uma joia de beleza colorida. Uma joia que enlouquece muitos. E por trás dessa beleza vive a favela. Vive o saudoso Chagall. 
  Ele volta a sua cidade e nela vê beleza. Chagall é dos primeiros artistas a perceber beleza na miséria. Sem folclorizar, ele dá a sujeira vida. Ele ama Gauguin, mas cria um modernismo único. Sem contato com Picasso e Matisse, Chagall cria um estilo que é só dele. Se Matisse é um fauve e Picasso cubista, Chagall é chagaliano. Ele vive revivendo cores e sombras de sua infancia. Na cidade feia onde nasceu ele guarda inspiração para toda a vida. É ainda 1909, e Marc Chagall, que lindo, viveria até 1985. Serão 98 anos de vida onde sua Vitebske jamais irá morrer. 
   Estou no trecho onde ele conhece Bella, a filha silenciosa de um rico joalheiro. Vejo as fotos de Bella. E recordo...
  Em junho de 1984 a TV Manchete, uma TV que queria ser chique, passou uma série chamada Conexão Internacional. Roberto D`'Avila viaja à St. Paul de Vence onde vive Chagall. Aos 97 anos ele dá uma entrevista que eu assisto. 1909-1984...Rússia - Brasil...No ano mais decisivo de minha vida eu vejo Chagall e fico emocionado. Após décadas ele parece um anjo.
  1966.
  Conheci também quintais imundos. Milhares de imigrantes europeus vinham para São Paulo e recriavam em suas casas o mundo onde haviam nascido. Nesses bairros de portugueses, espanhóis, italianos, turcos, libaneses, japoneses, judeus, poloneses, sempre havia quintais. Com galinhas, patos, coelhos, pombos, cabras, e às vezes até um porco. Videiras, laranjas, limões, tomates, alfaces, feijão. E rosas, rosas de toda cor. Ao lado dessa vida se tinha o sangue dos bichos sacrificados para serem assados. As tripas, os restos. As fezes que a gente pisava. Uma multidão de cheiros, de cores, de lixo, de coisas vivas, dos caramujos, ratos, sapos e pardais. Lama, porões e as velhinhas andando na rua com véu preto na cabeça. Esse universo de coisas fertilizam uma alma, criam espírito, enchem a cabeça de ideias. 
  Um garoto judeu nos cafundós da Rússia de 1900 pode então unir mãos a um garoto católico dos cafundós do terceiro mundo de 1966. E com mãos unidas vemos a morte de todo esse mundo. E usamos nossa memória e nossa vida para não esquecer. E nesse ato fertilizamos o agora. Alegramos a noite dura. E sorrimos dentro. 
  Entendo.

CARTAS EXTRAORDINÁRIAS, ORGANIZAÇÃO DE SHAUN USHER. UM MONUMENTO À HUMANIDADE

   É inestimável o valor deste livro. Parabéns à Companhia das Letra por mais este lançamento. Livro grande, poderia ter uma capa dura, mas isso o deixaria ainda mais caro. Tudo bem.
   Falei deste livro hoje, na USP, numa aula excelente sobre Bergson, Proust e Benjamin. Citei a forte impressão de tempo que ele me causa. Vou repetir o que disse à classe: - Lí duas biografias de Heminguay. Adorei. Mas nenhuma delas me deu uma sensação tão forte de PRESENÇA, de realidade viva, quanto uma carta contida neste livro, carta que Ernest mandou à Scott Fitzgerald comentando SUAVE É A NOITE, novo livro de Scott. A gente sente o bafo de Heminguay!
  E o livro todo é assim. Como se vozes brotassem das folhas. Cartas, cópias das cartas, as caligrafias, os erros, os riscos, os carimbos. Aqui há uma intimidade sublime, o particular, a pessoa em alma, nua. E o melhor, as cartas que mais me tocaram não são aquelas de famosas. São as cartas de anônimos, cartas que, devo dizer, eu que nunca choro com texto escrito, sou um chorão, melhor, fui um chorão, com música e filmes, mas jamais chorei lendo um livro. Pois aqui eu chorei quatro vezes, as quatro por ser tomado por beleza, por tomar contato com a maravilhosa beleza do ser humano, mais e além, com sua gigantesca dignidade. Nobreza.
  As quatro, que jamais ousaria transcrever são:
  Francis Carr-Gonn, um perfeito anônimo, escreve para o jornal The Times, na Londres de 1850, para pedir ajuda, caridade da população em pró do Homem Elefante. Francis trabalha no hospital onde ele vive, isolado, e roga por dinheiro para que o pobre homem possa ser tratado. A população prontamente enviará dinheiro ao jornal e temos uma segunda carta de agradecimento.
  Jourdon Anderson para seu antigo dono. Um ex-escravo, agora livre e trabalhando, recebe uma carta de seu antigo dono. Este pede que ele venha trabalhar com ele, como empregado pago e livre, para o ajudar a reconstruir a fazenda destruída pela guerra de secessão. Jourdon dá a resposta. De uma elegância e de uma inteligência desmoralizante para qualquer racista. É uma das mais belas coisas que já li.
  Dama Shigenari para Kimura Shigenari. Ela escreve ao marido que morreu. Confessa que irá cometer harakiri para poder o encontrar. A dor que ela descreve, em poucas palavras, é absoluta.
  Tio Lynn para Chuck e irmãos. Essa foi a que mais me fez chorar. E não porque fala de um cão, mas sim por exibir o tio que todos nós precisamos ter. Com extrema poesia e tato, o tio Lynn consola seus sobrinhos que tiveram o cachorro Ted tirado deles. Ted morreu. Tio Lynn inventa uma história e consegue transformar a dor em esperança. Detalhe: o menino Chuck, na época com oito anos, dono do Ted, seria no futuro Chuck Jones, criador do Road-Runner, diretor dos melhores cartuns do século.
  Mas há muito mais. A carta de Dostoievski, escrita para o irmão, a de Beethoven, onde ele confessa sua surdez. A nota de despedida de Virginia Woolf. A despedida de um kamikaze. Da Vinci pedindo um emprego. Uma hilária carta de Steve Martin para um fã. Uma genial de Groucho Marx para Woody Allen. Cartas de mães obrigadas a largar os filhos, uma carta aterrorizante de Jack o Estripador. Einstein, Reagan, a Rainha Elizabeth...Não uma só carta não interessante, e quase todas emocionam.
  É um livro muito obrigatório, quase sagrado, humano ao extremo. Uma viagem por entre espiritos, testemunhos, verdades. Palavras, palavras como coisas sagradas. Um privilégio poder ler.

AQUELE TEMPO PASSOU... ( FRAGMENTOS DE MEMÓRIA. SANTOS NAS DÉCADAS DE 40 E 50 )- LYGIA LOLO SILVA DE CARVALHO

   Lygia tenta, como eu, capturar em palavras escritas, o tempo que foi. Como eu, há a alegria de se conseguir solidificar em letras aquilo que parecia morto. A frustração ameaça, mas o gosto é mais forte. Somos, eu e ela, proustianos conscientes. Sabemos de nossa nostalgia por aquilo que foi vivido e principalmente por aquilo que poderia ter sido vivido. O mundo era melhor antes? Sem nenhuma dúvida. O simples fato de vivermos menos nas ruas, o silêncio aterrador que vivo hoje antes das aulas na USP ( como pode tanta gente de 19 anos ficar calada e parada ? ), a histeria depressiva que toma as cidades e essa solidão compartilhada que define nosso tempo, provam que na época da janela aberta, porta destrancada e fofocas entre muros baixos, tudo era mais ""gostoso"" porque tudo era mais lento.
  Mas o tempo de Lygia não é o meu. O tempo dela se faz entre 1938/1950. São seus anos de primário e ginásio. E de colegial. Viva ainda hoje, em 2014 ela lança, em novembro, seu primeiro livro. Gostaria que houvesse um próximo. Me identifico com ela porque o tempo de minha escola ( 1969/ 1980 ) via morrer o que restara de seu tempo. Ainda havia lentidão, espaço livre e alegria nas ruas. As pessoas andavam para fazer amigos e saíam para conversar e dançar. A azaração nascia numa conversa e se completava numa dança. Ainda tive aulas de francês, de desenho, de música e de boas maneiras. Ainda nos orgulhávamos de ser civilizados. 
  Santos era a terceira cidade mais importante do Brasil. Por causa do porto, em seu auge. Santos era limpa, era civilizada. Tinha campo de golfe, clubes de filatelia. Cinemas enormes, teatros de ópera e jardins, muitos jardins. Em Santos ficava o mais luxuoso hotel depois do Copa do Rio. E acima de tudo, Santos tinha a mania de ser inglesa. Empresas inglesas, de bondes, de trens, de comunicação, deixaram e davam esse caráter à cidade. Andava-se a pé, tomava-se chá e se prezava a educação e a pontualidade. 
  Lygia, vejo pelas fotos, era bonita. E tinha um rosto alegre. Na foto de hoje vejo que ela ainda é uma bela senhora. E sorri. Lia-se muito naquele tempo. Lygia sabe que hoje se vende mais livros, mas se lê menos. Os livros eram mais lidos então. Eram emprestados, divididos, usados. Todos liam em tempos sem TV. Claro que Lygia é da classe média. Mas vejo nas fotos de sua escola que seus colegas parecem pobres, e muito bem vestidos.
  Ela estudou numa escola estadual. E causa surpresa o excelente nível dessas escolas. Era dificil ser admitido numa escola do estado. Os mais preguiçosos estudavam em escolas particulares. A autora consegue nos fazer viver dentro dessa risonha escola. E muito do que eles faziam eu ainda fiz, mais de trinta anos depois. Uma ingenuidade boa, doce, que fazia o tempo parecer amigo. 
  A linguagem usada por Lygia é deliciosamente demodèe. Vários termos em francês, em inglês e gírias dos anos 40. E latim, claro, todos tinham latim na escola. E grego. Havia aulas aos sábados. E as férias eram longas. Sol, passeios, livros, bailes a rigor, namoricos, mais sol, idas a Águas da Prata, à São Paulo, chá no Mappin, rua Direita, chapéus e perfumes, estolas e smokings. E filmes! Três vezes por semana se ia ao cinema. Lygia amava filmes, amava Gene Tierney, Tyrone Power, William Powell. Impressiona, e eu ainda vivi isso, o modo como se via a América. Todos queriam ser americanos. Se adorava a cozinha americana, as roupas, os carros, as festas. Os EUA eram o céu na Terra. Eles eram ricos, bonitos e educados. Os EUA eram perfeitos. Era o tempo do soft power, a América conseguia vender ao mundo uma ideia de liberdade e de retidão perfeitas. Isso seria destruído a partir dos anos 50, mas na década de 40 o mundo americano ainda parecia perfeito. Lygia viveu isso. Meu pai morreu achando isso. 
  Adorei a descrição de Lygia do que foi a segunda-guerra.  E do medo que havia de uma terceira guerra entre EUA e URSS, nuclear. Lygia é, claro, anti-comunista. Também sou. Mas ela é um pouquinho exagerada. Well...
  Ela recorda TODOS os professores. E, como era comum então, compara-os a atores de Hollywood. Filha única, sua vida idilica é usufruida nesse universo de sol e de fins de tarde. Professores duros, bons, suaves, misteriosos, amigos, distantes, quentes, bonitos, esnobes, próximos.
  Ela deixa para o final as palavras sobre seu pai. Admirava-o muito. E, como todo pai de então, ele era amoroso e distante, correto e contido, protetor e rigoroso. 
  Não deu tempo de minha geração tomar sucos em hotéis decorados com cristais e veludos, ou marcar um chá das cinco em casas de tapetes macios e serviço impecável. As classe mais favorecidas eram muito mais classudas e sabiam viver em finésse e cultura. Hoje se gasta o dinheiro do teatro ou do museu em mais um carro ou numa balada regada a pó. A diferença de classes se dava mais pelos modos e pela cultura do que pelo simples dinheiro. 
  É um bom livro? Não para todos. É um ótimo presente para aquela tia que foi rica e não é mais. Ou para a sessentona de bom gosto. E para proustianos como eu. E voce?
  Feliz Natal. E não se esqueça que um só momento de beleza é uma alegria para sempre.
  Obrigado Lygia.

O MUNDO DE HOJE? É DE PROUST E EU NÃO SABIA! ou SOMOS TODOS UNS MARCEIS.

   Aula de Teoria Literária ministrada por uma leve professora alemã. Uma das melhores coisas em voltar a estudar é quando voce pode desenvolver, em classe, em grupo, aquilo que voce absorveu sozinho ao longo da vida. Nesta manhã falamos de Benjamin, de Bergson, de Adorno e de Proust. Primeiro fato que nunca eu havia percebido: A valorização da memória é um fato moderno. Na poesia e na prosa de antes inexiste fascinação pela memória. O romance do século XVIII caminha sempre adiante. É no fim do século XIX e principalmente por todo o século XX, e cada vez mais, que se instaura a adoração do passado, a valorização da memória, da lembrança individual, daquilo que só voce viveu, viu e sentiu. Freud é apenas um sintoma desse novo sentimento. O mergulhar dentro de si e fora do mundo para achar sua memória.
  Antes não era assim. A memória era coletiva e pouco importava a memória de cada um. Mesmo obras confessionais, como as de Montaigne ou de Rousseau, falam do tempo avante, a lembrança sendo apenas um rápido apoio para o passo à frente. A memória se instalava na igreja, nas festas profanas ou religiosas, nos contos populares e no culto aos heróis. A memória compartilhada, de todos, a memória, mesmo que familiar, sempre inserida no conjunto de outras histórias. Teia de fatos que dizem respeito a todos.
  Hoje todos somos Proust. E se todos somos Proust, então a memória hiper-particular de Marcel se tornou a memória compartilhada por todos. Afinal, o francês sensível e nervoso influenciou mesmo aqueles que nunca o leram. Sim? Mais ou menos. Vamos ressaltar que Proust parte de si-mesmo e tem por alvo o mais si-mesmo possível. Se somos proustianos é porque vivemos a mesma ansia que atingiu Marcel e não porque temos as mesmas lembranças que ele. Proust intuiu aquilo que o mundo se tornaria, o mundo da rua negando e violando a matéria e nossa alma correndo para casa a fim de sobreviver. 
  Somos pessoas que dividem fotos de nossa infância com estranhos. Homens que produzem memórias sem parar. Olhamos e fotografamos incessantemente nosso rosto, observando as mudanças do tempo, analisando o que ele é. Nossa arte produz citações de citações, olha e reflete sem parar sobre tudo o que foi feito e parte dessa memória na tentativa de anular a memória. Colecionamos cacos de lixo na esperança de recordar algo. Damos valor a brinquedos sujos, livros rasgados, casas úmidas, mobilia riscada, esperando que esses objetos nos dêem uma narrativa, que eles nos contem uma história que fomos incapazes de viver.
  Procuramos em sites, lojas, museus, nossas madeleines. Um objeto que nos desperte. Que nos tire da surdez, da cegueira. Viajamos não para encontrar algo de completamente novo, mas viajamos para recordar alguma coisa que nunca vivemos. Ansiamos por histórias, por memórias, por tempo. Olhamos o Partenon como se ele fosse parte de nós. Não é. O Partenon, assim como New York ou Londres ou Tokyo ou Vienna nos recorda coisas que vimos de terceira mão. Não são memórias nossas, são madeleines que jamais nos cantarão um segredo. Paris irá nos lembrar a Paris de um filme, de um livro, de um sonho de outro. 
  Nossa memória nos obceca, mas ao mesmo tempo a tememos. Sentimos que nela perderemos algo. Perderemos a vida. Estranha condição pós-Proust. O francês aceitou o mergulho sem medo, nós nos paralisamos em medo. Memórias pela metade, lembranças fingidas, recordações compradas.
  A menina bonita usa um cabelo Chanel com saudades dos anos 20. Ela nasceu em 1995. O carro é anos 70. Quem o dirige nasceu em 1990. No rádio uma balada tipo 1966. Tudo lembra algo que não foi vivido, tudo faz esquecer, lembrando, a verdadeira lembrança, individual. Porque mesmo que se lembre e se reviva maio de 68, esse aparente coletivo não é coletivo, pois cada um ali vive um sonho particular em meio a uma massa sem rumo. A estranheza é tanta que já há no Brasil ou no Niger quem tenha saudades e memórias dos tempos celtas dos druidas e bruxos. 
  Nunca a infância foi tão adorada. As lembranças se espalham por desenhos, roupas, e pelas salas de terapia. Mas ao mesmo tempo, nunca se lembrou tão pouco da verdadeira infância. A vontade é de reviver e recordar como Proust, mas o que recebemos são apenas lembranças vagamente coletivas, redutoras, pobres. Queremos adentrar outra vez as portas do quarto de brincar e poder sentir, mesmo que por um segundo, a pureza dos dias e das palavras livres. Mas o que compramos é apenas um brinquedo enferrujado que balbucia uma frase gasta e sem valor. 
  O tempo só vale quando tem durée, valor, quando não pode ser medido. É isso o que queremos. É isso o que respira no ciclo da natureza, na semente e na colheita. É isso que respira nas festas. No nascimento e no enterro. Isso é dramatizado na missa, no canto ao redor da fogueira, no mito. É isso o que tentamos resgatar, é isso que Proust resgatou. Para si. Só para si. E para mais ninguém.
  O tempo, domado, contado, estudado, comprado, planejado, morto, é nossa obsessão. Olhamos para nosso passado na esperança de o salvar. Esquecemos o que Proust diz logo no começo de sua obra: Esse reencontro é acidental. Casual. Ele é pura sorte. Ir atrás dele é matar sua chance.
  Toda foto tirada com a intenção de servir como memória de um momento, está fadada a nada significar no futuro. O momento será capturado no acaso. Ou melhor, na Arte. Capturar o tempo sem o assassinar. Eis a tensão da arte moderna.
  Cèst Tout.

SUPER INTERESSANTE, NOVEMBRO DE 2014.

O Universo inteiro numa cabeça de alfinete. Tudo o que haveria de um dia haver todo ali. Mais que isso, o futuro-tempo todo ali. E então, no tempo de um pensamento, em meio a escuridão absoluta, a explosão. E nesse micro micro micro segundo, nasce o universo, nasce o tempo, nasce tudo o que um dia seria. 
E FEZ-SE A LUZ.
Cinco ingredientes: quarks, fótons, e mais 3. Na infinita combinação desses tijolos, o tudo. Isso faz de todos nós, irmãos. Não apenas irmão do macaco. Irmão do gorila, da flor, da pedra, da mesa, da Lua, de Plutão...do cosmos inteiro e da zona negra também. Viemos do céu.
Há mais. 
No limite do Universo, do Universo que foi nosso pai e nossa mãe, há uma rachadura. A pergunta que mais incomoda: e além? Cientistas já aceitam a tese, além existem outros cosmos. Onde nossas leis da física não se aplicam. Um mundo bizarro. E além dele mais outros mundos...
Mais ainda.
Se o Tudo é infinito, se mundos fazem vizinhança com mundos, o infinito também existe para dentro. O pequeno mais pequeno. A fração de milimetro elevada a bilhão. E nesse micro mundo quântico, tudo se move para onze dimensões. Onze dimensões. E nossa mente só consegue entender três... Um universo invisível, apenas intuído. Cordas, micro cordas que vibram em onze sentidos. Cordas que estão e ao mesmo tempo não estão. Vibram e criam uma incerta e caótica harmonia. E tudo isso pode se desfazer e desaparecer....agora....ou ainda não...
NO CAMPO.
Ao sol e cercado de cabras que berram. O vento contou a eles. Pitágoras intuiu. O universo é uma corda. Dividindo essa corda fazemos uma harmonia. O universo vibra. O universo é música das esferas. A música é a lingua do tudo. O segredo reside nela.
NA CAVERNA.
Platão intuiu. Nossos sentidos sentem apenas a sombra. A verdade está nas ideias. Dentro de nós está o mundo. Somos aquilo que não vemos. 
NO BOSQUE.
Caímos do céu. Em sete dias tudo foi criado. Deus vive dentro e fora de nós. O Criador está em tudo o que há.  Somos filhos. 
HOJE.
Somos pó. E ao pó voltaremos. Aquilo que eu sou sempre foi. E será sempre. Pó das estrelas. Sou cosmos. 
XAMÃ. 
Eu posso ir para outros mundos. Mas deles não posso falar. Posso sentir, posso até desenhar, mas não falar. Posso cantar. Mas não falar. Em mim, bem dentro, há fagulhas que estiveram na nascença de tudo. E que estarão sempre. Eu sou o infinito. 
Infinitamente pequeno. Infinitamente infinito. Afundo em mim e descubro mundos. Vou para fora de mim e reencontro universos. 
As cordas vibram e todos os poetas sempre souberam.
As coisas caem e todas os deuses sempre existiram.
A vida TINHA de ser criada, e nós sempre soubemos.
Além não ao nada. Porque o nada também é. 

O NASCIMENTO DO PARAÍSO ( UM TEXTO PARA 1974 )

Eu me mudara a dois anos. O bairro do Caxingui, mundo dos espaços sem fim, fora trocado pela Vila Sônia, terra de ruas asfaltadas, de casas sombrias e de vielas misteriosas. Agora, em 1974, o Eden se descortinava para mim. Vivi alguns bons anos até agora, 2014, mas 1974 foi um ano muito especial. O ano em que eu descobri quem eu era e quem eu seria.
E tudo se liga à vaidade. Eu havia descoberto ser um menino bonito. Mais que tudo, eu pensava ser já um adolescente. Não era. Continuava uma criança. Foi em 74 que eu começara a andar com o peito estufado. Finalmente a bronquite se fora e agora meu peito, inimigo desde sempre, se tornara meu aliado. Eu me sentia forte. 
Minha mãe resolver reformar o jardim de casa e contratara um jardineiro. Foi na casa desse homem, ao ir com ela tratar do trabalho, casa enorme, cheia de cantos úmidos e plantas esquisitas, que eu vira uma pilha de gibis antigos. Nasceu aí a primeira flor desse Eden. A cor das capas, o formato grande, os títulos chamativos, tudo nessas capas me seduziu. E por uma dessas coincidências descobri que meu amigo José Juscelino tinha uma enorme coleção de gibis. Fizemos uma troca, meus gibis da Abril por esses gibis da Ebal. A troca foi feita em casa. Pronto, eu começava minha coleção de Superman, Tarzan, Batman e Homem Aranha. Por todo esse ano, nas segundas de manhã, haveria o ritual de ir à banca do Negrito, onde cheio de ansiedade feliz, eu compraria meus gibis semanais. Nunca mais, até hoje, eu sentiria tanta alegria ao gastar dinheiro. Nenhuma compra me traria tanta euforia. Ao voltar pra casa, as novas revistas na mão, sentindo o cheiro da tinta e do papel, eu iria ler duas, três vezes todas as 64 páginas. 
O paraíso não pode ser feito só de uma flor. Nesse ano eu descobri o rock também. Certo que desde sempre eu amava os Monkees. Certo que fora ninado ao som dos Beatles e dos Stones. Mas foi em 1974 que eu entendera que havia uma coisa chamada rock e que esse tipo de som me deixava estranhamente excitado. 
Meu pai tinha um restaurante em Pinheiros e aos sábados eu ia até lá, com meu irmão e minha mãe. Meu pai nos comprava carrinhos da Matchbox, umas maravilhas de ferro pesado e rodinhas macias de borracha. Mas meu interesse havia mudado e eu queria discos. O primeiro foi um single do Elton John. Goodbye Yellow Brick Road. Eu já era um romântico sonhador. Meu irmão, um moleque de 9 anos, comprou Alice Cooper. Nosso caminhos se definiam aí. 
Uma coisa muito legal desse tempo é que se ouvia rádio. E ao ouvir rádio, AM, voce era exposto a muita informação. Não existia a segmentação, então voce era obrigado a escutar um pouco de tudo. Sábados de manhã ouvíamos a rádio Difusora. E nela tocava soul, funk, mpb e rock. O que a gente queria era ouvir Bowie, Elton, Paul e Bad Company, mas esperando que tocasse tudo isso éramos obrigados a ouvir Harold Melvin, War, Barry White ou Jackson Five. Isso aumentou nossos limites. Com a segmentação de hoje um cara que goste de Death Metal vai ouvir só isso e um outro que goste de Dance ouvirá só Dance. Chato e pobre...
Na Excelsior tocava outro play list. Slade, Suzi Quatro, Wings e  Shariff Dean. E os bregas de então, Steve MacLean, Roberto Carlos, Benito di Paula e Martinho da Vila. A gente ouvia tudo. Sorrow de Bowie à Onde a Vaca Vai. Odair José e Ronnie Von. Ganhamos um gravador Aiko. Era uma festa! Ainda lembro da primeira música que gravei do rádio: You Won`t See Me, versão com Anne Murray. Houve uma gloriosa manhã em que acordei com Flores Astrais dos Secos e Molhados tocando alto em toda a casa. Era minha mãe. Ela gostava muito dessa canção.
Feira livre, lojas de departamentos, mercado municipal, Ceasa, nada de Shopping Center. 
A TV tinha só cinco canais. Era o bastante. Na Record tinha um monte de desenhos toda a tarde. Kimba, Super Dínamo, Fantomas, Samurai Kid. Na Bandeirantes tinha um cara chamado Titio Molina. Josie e as Gatinhas, Herculóides, Moby Dick e Shazam. Archies. Na Globo, claro, minha mãe via novelas. O mundo parecia ver novelas. Eu via as 5 horas Os Mozzarelas, Os Caretas, Push Cassidy e O Poderoso Cachorrão. Eram modernetes e prafrentex. Mary Tyler Moore estranhamente eu já amava. Porque? Eu nada entendia mas gostava de ver. A voz da dubladora era linda! Hoje sei que Mary foi um marco na TV americana, mas naquele tempo que sabia eu? 
Tinha muito enlatado na TV. Meu pai adorava Cannon e San Francisco Urgente. Foi a época de Columbo, Kojak, MacCloud. Grande era da TV ( uma das várias eras de ouro ). Estranho que as duas melhores nunca passaram aqui: All In The Family e Monty Python. Ainda tinha Os Waltons, Vila Sésamo e Persuaders. E umas esquisitas séries inglesas de sci-fi.  O Mundo do Amanhã, Espaço 2020...E longas novelas da BBC, lembro de Jane Austen na Globo as quatro da tarde.
A Copa da Alemanha foi nesse ano. E eu e meu irmão jogávamos bola no quintal. Alguém falou que aquele que não teve um quintal nunca foi feliz. Além da bola a gente fazia guerras memoráveis. Era um mundo completo. Como completa era a escola. Minha velha escola de corredores escuros, salas com chão de madeira que rangia, carteiras pesadas e professores sérios. As meninas de saias curtas, os meninos cheios de caspa e cheiros ruins. Handball era dado todo dia. Tinha fanfarra. E amigos. Amigos que eu adorava, brigava e fazia as pazes. Cabeludos como eu, sujos como eu, desleixados como eu, sem noção, burros, vadios, andarilhos, como eu. O mundo era uma enorme rua. Com cães no cio, restos de feira, vendedores de livros, bikes enfeitadas e moças de bunda grande. Os caras com seus imensos sapatos de salto alto, calças cor de rosa, boca larga e camisa listrada justa. O peito nú com correntes de ouro.  E as moças de saia curta, sandálias ou botas enormes, blusas de costas nuas e cabelos longos, ondulados, soltos. Cheiros fortes de perfume doce, de shampoo, de sabonete. E muito cigarro, muito whisky, feijoadas, dobradinhas, virados, bife a cavalo, frango a passarinho. Risoto a Catarina. 
Eu via tudo. Não sabia que o cinema tinha O Poderoso Chefão 2, Chinatown e American Graffitti. Não sabia que o Oscar fora disputado por Jack Nicholson, Al Pacino, Robert Redford e Jack Lemmon. Mas queria ver Terremoto, Inferno na Torre e Banzé no Oeste. Nada sabia de Roxy Music, Kraftwerk ou de Lou Reed, mas já ouvia Rebel Rebel. 1974 terminou na praia, onde me apaixonei pela primeira vez. Emerson ganhou o campeonato, Zico era a promessa e o governo de Geisel nos fazia crer que o Brasil era o melhor país do mundo. Não era. 
Mas a rua Dr. Silvio Dante Bertachi era a melhor das ruas.  Recordo tudo isso, 40 anos depois, e sei que o que me resta de melhor está vivo e vindo daí. 1974 nunca morreu. E se tenho saudade, que bom, é porque foi o que foi. Uma afirmação, um abrir de olhos, um aceitar e um grande coração.