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O QUE SIGNIFICA O NATAL.

   A base de uma civilização saudável é o costume. A raiz está no amor, amor que cria a família e que daí se espalha formando a vizinhança. O amor ao seu lugar é o que constitui a identidade. Uma nação é o conjunto de pessoas que se protegem por compartilharem a mesma raiz: a família. A verdadeira democracia garante o respeito a essa base. Familia, bairro, praça, igreja, clube, time, festas populares. Por maior que seja a cidade, ela é habitável quando constituída por essa células. O estranho é que há uma intelectualidade que detesta toda essa rede amorosa. Chama-a de hipócrita, falsa, doente, cínica. Na verdade esse intelectual vê sua face em tudo aquilo que olha.
   Ditaduras começam por atacar alguns desses costumes. Mudam escolas, mudam ruas, mudam nomes de lugares, mudam festas, proíbem encontros, amizades, religiões. Mantém apenas a família porque precisam de filhos. Mas se pudessem fariam fábricas de crianças. O ideal de toda ditadura é a indústria. Um mundo industrial.
   Por isso o natal é sagrado. De todas as festas do ocidente é a mais vital. Ela festeja a família e o nascimento. Ela festeja o milagre. E essa festa é atacada, e já faz algum tempo, em duas frentes: na comercialização, que retira toda a interioridade da noite de natal; e na simples negação, que tem orgulho em dizer que o natal não existe. ( Para esses estou aqui a falar do nada. O que prova apenas a burrice desses seres vaidosos ).
  Toda civilização precisa preservar seu legado. Respeitar os que morreram fazendo viver aquilo que ele nos deixaram, e garantir aos que não nasceram a herança que vem desde sempre. Quando essa corrente se rompe a civilização perece.
   Tenha um bom natal. Olhe uma estrela e pense no tempo transcorrido, nas gerações e mais gerações que o comemoraram. Respeite-as. Ame. Conserve seu mundo.

AS VANTAGENS DO PESSIMISMO - ROGER SCRUTON

   Tive aulas sobre Rousseau na USP. E por ser uma professora de exatas, tive a chance de não ser colocado sob o endeusamento da teoria do "bom selvagem". Segundo Rousseau, todo homem é por natureza bom e pacífico, a sociedade, vil, é que o corrompe. Scruton, esperto, diz não saber se o homem Rousseau era um otimista. Parece que não. Mas essa teoria deu estatuto à uma ideia que não morreu em dois séculos, a ideia de que todos são bons, a sociedade é que nos faz ruins. Esse, para Scruton, é o otimismo nocivo, aquele que deu vez ao nazismo, ao fascismo e ao comunismo.
  Sob esse pensamento, simplório, pode-se concluir que se a tal sociedade faz tanto mal ao bom homem, que se destrua então a sociedade. O fim da sociedade daria vez à bondade na Terra. Eis a UTOPIA. A crença de que neste mundo se pode ter a perfeição. Seja via seleção genética, ódio ao estrangeiro, ódio aos que possuem bens, ódio aos infiéis. Toda utopia tem em seu oposto um foco de ressentimento, um culpado a ser exterminado. E esse crime é alegremente aceito, pois decapitações, campos de concentração ou fuzilamentos são cometidos em nome do bem maior: a Utopia.
  Não se pode criticar a Utopia. Ela é perfeita, pois vive no mundo das ideias. Um socialista te dirá que a URSS não era socialista, que Cuba foi maculada pelos EUA ou que a Coreia do Norte é um segredo. Sua crença sempre estará salva pois ela não existe. E na verdade nunca poderá existir. É da natureza da utopia ser sempre um sonho. É a cenoura na frente do cavalo. O capitalismo é facilmente criticável por nunca ter sido utopia de ninguém, ele nasce já como prática, e por ser real, é falho, sujo e corrupto. O capitalismo é uma realidade.
  Na raiz de toda utopia há essa crença de Rousseau. O homem bom, camarada, companheiro. E, na vida real, é claro que esse homem não existe. Quem observa uma criança brincando sabe que há nela um egoísmo nato, um desejo em se destacar, em ser mais amado, mais percebido, mais protegido. O mesmo vale ao selvagem aborígene. Não há sociedade primitiva que não faça guerra, não mate, não lute por mais terra. Mais caça e mais mulheres. Somos assim. A utopia ODEIA nossa natureza.
  Scruton diz que na verdade é a sociedade que melhora o homem. A manutenção do costume, da lei, do interesse comum, do bom senso, faz do homem um ser melhor. Pois na sociedade há a prevalência do NÓS e não do EU. A sociedade só funciona na relação do eu com voce. Cada um em sua função, em seu papel, não sendo igual, pois a igualdade só existe como Utopia, mas tendo seu devido RESPEITO.
  A análise de Scruton sobre os fundamentalistas árabes é certeira. O que eles mais odeiam nos EUA é o fato de que lá judeus e islamitas vivem lado a lado. Isso vai contra toda sua utopia. É inaceitável. Um escândalo.
  Admirável livro de um grande pensador.
  Voce pode estar pensando: mas Scruton defende o cristianismo, essa grande utopia.
  Sim, Deus pode ser uma utopia, mas essa utopia aceita a imperfeição da vida, vê os defeitos do homem como indivíduo, prega uma prática diária. É uma utopia do aqui e agora, uma utopia que existe para quem crê, existe no mundo real. Os cristãos não esperam a construção de um outro mundo, isso seria heresia, eles aceitam este pobre mundo doente, e dentro dele tentam fazer o bem. Ao contrário dos utópicos, os meios são tudo que importa. O dia a dia é o objetivo.
  Um obrigatório autor.

UMA HISTÓRIA DA MINHA VIDA

   Minha relação com a igreja começa já estranha desde cedo. Meus pais não eram casados no religioso e portanto achavam que entrar numa igreja, "solteiros", seria uma afronta à religião. Mas me faziam ir à igreja, aos domingos, com minha tia e meus primos. O que lembro dessa época é o calor, a igreja lotada, pernas de homens de pé, paletós e mulheres com véu. A igreja era a de Santo Antônio, no Caxingui, e a família toda sempre estava lá. Menos meus pais. O Caxingui era um bairro de casas grandes e chácaras, havia um sentimento de pioneirismo. Comunidade. Na calçada, na saída do culto, uma pequena multidão dava abraços e beijos e partia para o almoço do domingo.
  Eu não entendia absolutamente nada.
  Meu quarto era um horror. Quase uma cela da inquisição. Minha mãe o enchera de santos nas paredes. Havia um Cristo com o peito aberto, o coração vermelho exposto, sorrindo; havia uma Nossa Senhora em um altar de gesso, uma lâmpada vermelha acesa noite e dia iluminando sua figura azul. Eu sentia medo. Um medo inconfessável. A luz vermelha me apavorava.
  Fiz a primeira comunhão, fiz a crisma. Gostava do cheiro da Bíblia nova. Gostei de ser o leitor do versículo lá no altar. Mais nada. Um incômodo me cutucava. Eu não conseguia amar à Deus. Mal pensava nessas questões.
  Descobri a morte aos 12 anos, tive minha crise de finitude aos 16, e meu consolo não havia. Por mais que minha mãe falasse de Deus, eu sabia que Deus era somente um consolo para os fracos. E eu era forte. Havia lido Nietzsche. Era socialista. Sabia que a vida era um nada. Lera Sartre.
  Entrei em contato com Freud, e assim sabia o que nós éramos: apenas um ser que deseja. Me acostumei com esse modo de viver. Sentia superioridade perante os bobos. Eu era racional.
  Mas... eu queria crer em amor. Não para crer em Deus, não para vencer a morte, mas para ser feliz. Queria crer que o amor não era apenas vontade de procriar. Tinha de ser mais que isso.
  ...
  O tempo passa então. Décadas. E me encontro numa certa idade. Impossível precisar. E nada tenho para contar. O que devo dizer é que passei para o outro lado. E fazendo isso não me sinto mais feliz, e continuo temendo a morte como sempre temi. O que mudou em mim então que me faz ver a vida sob outro ponto de vista...
 Não tive  nenhuma experiência de quase morte. Não tenho nenhum amigo, namorada, parente, professor ou guru que me falem de religião. De concreto houve a morte de meu pai, brigado comigo. Mas antes de sua morte, oito anos atrás, eu já vinha num caminho que, lento e constante, só tem se tornado cada vez mais claro.
  Eu questiono. Eu me sinto fora de lugar. E ao mesmo tempo sinto fazer parte de algo. Mas jamais fui tão só. Sozinho e sendo parte.
  Continuo longe de Deus. Não sinto amor. Mas ao mesmo tempo sinto um profundo compromisso com a vida, com este mundo, com a continuidade. E sinto, profundamente, o quanto toda verdade não mora na razão.
  Caminho. Apenas isso, caminho uma estrada que não escolhi, vivo uma vida que não construí e sinto uma vontade da qual não dependo para ser. Vejo a vida como um dom. Tento a namorar.

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES- C.S. LEWIS.

   O mal considera que seus atos são o bem. O bem pode às vezes ter dúvidas, teme que o bem que pratica possa ser o mal. Lewis sabe que o homem verdadeiramente bom duvida sempre de sua bondade. Lewis diz que Deus nos deu o livre arbítrio exatamente para isso: o amor e a bondade só podem ter valor se forem conquistas, e não algo dado. Não há valor algum naquilo que em nós é natural. O homem cristão é aquele que nega o que é natural. ( E só nessa frase já cai por terra todo argumento que diz que o erro dos cristãos é serem não naturais. Ora, essa é a própria razão de ser do cristianismo. Sair do que é natural. )
  O homem só pode começar a ser feliz quando abre mão de seus desejos e de suas posses. Essa é mais uma verdade que costuma ser mal lida. Não significa virar escravo ou cair na mendicância. No livro de Eric Clapton isso é bem explicado. É o momento em que reconhecemos que nada sabemos, que não temos mais força, que nada mais podemos fazer. É o momento além do desespero. É quando depomos as armas. Há quem chegue a esse momento de forma gradual, mas os vaidosos costumam chegar apenas após um imenso sofrimento. Foi o caso de Eric. Ele entregou tudo a Deus como forma de dizer: "Chega, nada mais sei e nada mais sou". E então ele iniciou sua caminhada rumo a paz. Imperfeita paz, pois Eric continua sendo humano, claro, mas um humano melhor.
  Lewis diz que não é preciso ser cristão para seguir as pegadas de Cristo. Há quem as siga pensando ser budista, ateu ou até mesmo pagão. Como existem fiéis que nada têm de cristão. O grau de comprometimento está no tanto de descompromisso com sua vaidade e seu orgulho. Quanto mais um homem preza seu ego mais ele sofre. Simples assim.
  Durante a segunda guerra CS Lewis falava dez minutos por noite, na BBC, sobre o cristianismo. A igreja dele era a inglesa, mas ele sabia que as mensagens do bem são dadas em várias fés. Este livro é um apanhado daquilo que ele falou no rádio. Por isso o texto é simples e conciso.
  Lewis explica o mal como um ato de orgulho. Toda maldade tem como raiz esse pecado, o orgulho. O diabo, anjo caído, é aquele que se achou melhor que todos. Toda alma começa a se perder ao se considerar especial, e termina presa na cela da solidão dos vaidosos. Mas não é preciso ser crente para ler este livro. A moral que ele advoga é inatacável. A única derrapada se dá quando ele fala das mulheres. Mas é uma pequena derrapada. Lewis se esforça para suavizar o machismo, e até se sai bem. No resto não há como atacar alguém que crê na bondade, na vida como aprendizado, e na evolução das almas rumo a perfeição.
  Penso que todos vocês, mesmo os ateus, deveriam ler este livro. Não pense que ele vai os irritar ou tentar os converter. Talvez vocês se surpreendam ao perceber que desde sempre suas estradas são as mesmas de Lewis.

...MAS EXISTE A VIDA...

   Teve um peixe que foi o último. Quando me mudei pra este bairro, em 1972, ainda viviam alguns peixes nos córregos desta região. Nasci perto, no bairro vizinho, mas como esse bairro onde nasci fica no alto de um morro, o segundo morro mais alto da cidade, não conheci córregos até me mudar em 1972. Fui para um bairro mais baixo e me vi cercado por córregos e até mesmo riachos.
 Esses cursos de água ainda existem, nenhum secou. Mas, claro, os peixes se foram faz muito tempo. Não se deve dizer que estão mortos. Sapos ainda resistem. Pássaros brincam às margens. Mato e árvores crescem. Mas a água, imunda, está muito mais baixa. Lembro que havia uma profundidade de um metro, dois, e que agora mal chega a um palmo. O maior dos cursos de água tinha três metros, dava para nadar nele. E tinha peixe.
 Sábado no fim da tarde a gente andava pelo bairro. E a vida rodopiava ao redor da nossa mente. Bandos de passarinhos minúsculos se apoiavam nas cerdas de capim e se balançavam na brisa quente de janeiro. Cigarras cantavam alto e gafanhotos pulavam na estrada. Longas carreiras de formigas abriam caminho na terra seca e girinos escureciam as margens dos riachos. E mais ao centro da correnteza nadavam os peixes cor de prata, esguios, frios, condenados.
 Não sei quando eles desapareceram. Mas deve ter sido em um ou dois anos. Talvez o riacho tenha secado e depois voltado a ser o que é hoje, raso e pobre. Talvez uma carga pesada de esgoto tenha vindo, e como maldição tóxica, varrido a vida da água. Eu não sei. Mas o último peixe soube.
 Engraçado pensar que eu conheço um cara, vinte anos mais velho que eu, que caçou pacas onde agora é o estádio do Morumbi. O lugar era cheio de tatús, de gambás e de gatos do mato. Era 1960, e na boa, 1960 foi ontem! Eu lembro bem de 1980, e em 1980 tudo já era mais ou menos como agora, a única diferença é que tinha mais espaço, muito mais espaço, e muito menos barulho. Sapos e pássaros. O último gato do mato há muito fora embora. Em 1980.
 A vida é nossa casa e parece tolo dizer isso. Estou lendo um livro de uma nipo-americana chamada Ruth Ozaki. Houve um tempo em que havia mariscos em Manhattan. Como meu pai um dia viu peixes no rio Pinheiros. E nesse dia ele, imigrante solitário, sentiu que o rio Pinheiros era sua casa também. Ninguém hoje sente que o rio sujo é sua casa. Na verdade ninguém hoje olha para o rio Pinheiros.
 A gente vive e a vida é tudo. Desacredito da morte. Religioso que me tornei, vejo a vida como vencedora. Ela existe e fora dela nada pode ser. E a vida, onde ela está, é nosso lar.
 O último peixe do último córrego limpo sabia que era um peixe pra sempre vivo. E toda a filosofia de que me sirvo vive nos olhos do meu cachorro. Ele respira. E eu dou graças por isso.
 Até o fim.

PONDÉ

   Houve um tempo em que eu lia e escrevia sobre Pondé. Mas me desinteressei. Tive uma sensação de que ele começava a se repetir e pior, parecia querer criar choque. O texto sobre o Natal, acho que em 2012, me deixou chateado e desisti.
  Agora vejo uma entrevista com ele e fico impressionado. O caminho que ele segue é muito parecido com o meu. Ele vê a absurda pretensão dos "puros", o perigo dos grupos e que, como filosofia, o cristianismo é muito mais sofisticado que qualquer outra corrente de pensamento. Pelo simples fato de que o cristão sério, verdadeiro, se entende como ser imperfeito, falho, e assim ele não pode se guiar por sua própria opinião. A vaidade se coloca como mal maior e o ego como a grande infelicidade. Esse, modo de viver que confesso ainda estar longe de alcançar, seria o caminho virtuoso.
  Me impressiona também o fato de Pondé perceber que ciência é também questão de fé. Você crê no big bang ou na evolução e assim joga todo o resto fora. A dúvida se desfaz. Crer em Darwin ou em Freud se torna um consolo. Idêntico a fé em Deus. Consolo e modo de não se inquietar. Com a diferença de que o cristianismo te dá um código de postura perante a vida, a dor e o próximo. A ciência não.
  E para minha grande satisfação Pondé cita Chesterton, o mais belo dos pensadores! Bem vindo de volta a meu coração homem!

C.S.LEWIS, O HOMEM NÃO É NATURAL

   Estou lendo um grande livro sobre o autor C.S.Lewis. Cerca de 50 filósofos, historiadores e escritores escrevem textos sobre os pensamentos e ideias de Lewis. Quando terminar de ler escreverei algo sobre a obra. O que desejo falar agora é sobre uma ideia central de Lewis que é muito próxima a certas coisas que acredito.
  Ele diz que o Homem não é parte da natureza. Natureza é tudo aquilo que nos cerca. O mundo, o universo são naturais. O homem, sempre intuitivamente sentindo-se fora de lugar, está em meio à natureza, mas nunca faz parte dela. Lewis então desenvolve essa ideia e chega à moral. Explico.
  Se o homem fosse apenas um grupo de células, e se a vida fosse somente um acidente, nada teria nos levado à moral. A hipótese de um costume histórico ou de uma invenção não se sustenta. Nosso mal estar perante o sofrimento, nosso apego a animais, nossa ideia de bem e de mal não se explicam se a vida for vista como acidente. Assim como a razão não se encaixa em um universo acidental. Se fosse o universo apenas uma explosão sem sentido, a razão não teria lugar nesse absurdo inconsciente de sua condição absurda.
  Todos esses pensamentos vão radicalmente contra o mundo pós Darwin. Lewis tem total compromisso com o sentido. E sua mais bela ideia é a que diz que a história tem sido, desde o renascimento, um caminhar reto e resoluto rumo a transformação do homem em desumano. Tudo aquilo que define um homem : moral, razão, alma, imaginação, história, tem sido cruelmente destruído. O homem se faz como um adorador da ciência, e ciência é voltada apenas e tão somente à natureza, àquilo que nos é dado pela vida lá fora. Para poder estudar o homem ela faz do homem mais uma parte da natureza, mais um acidente.
  Lewis diz que nesse mundo sem humanidade, só podem existir 3 modos de viver ( ou de estar ): o absoluto niilismo. O hedonismo radical. E a convivência angustiosa onde se procura desesperadamente um sentido onde ele foi negado. Mas haverá saída...
  Para cima e para dentro. Esse o mote de Lewis. E deixo com você esse mote para ser pensado. Para cima e para dentro.

E O PROFESSOR FALA DO SÍMBOLO.

   E não é que o professor que tanto entende de Freud, de alemão, de holandês, de dinamarquês, também se revela alguém que compreende e consegue fazer o mais materialista dos alunos entender o que seja o "símbolo" ...
   Quando uma obra de arte, seja texto ou imagem, tem um significado oculto, mas que é revelado aos poucos e para alguns escolhidos, temos uma "alegoria". O Paraíso Perdido de Milton é uma alegoria. A Divina Comédia de Dante é uma alegoria.
   Porém, quando uma obra tem uma linguagem, uma imagem, que nem mesmo seu autor consegue a explicar, essa imagem se explica por si-mesma, e acende em cada pessoa um significado particular, aí temos o "símbolo". O símbolo não pode ser explicado. Ele diz uma coisa, simples e secreta, a cada um. Digamos que ele fala aquilo que as palavras não conseguem dizer. Ele se situa além da linguagem e antes da história.
   Baudelaire fala por símbolos. Assim como Rimbaud. Você pode os traduzir, mas a sua interpretação nunca é a definitiva. O símbolo é inesgotável.
   Isso não significa que o símbolo é superior à alegoria. Milton é maior que o simbolista Verlaine. Mas Verlaine rende mais discussão. Whitman nunca é simbolista. Mas o americano é maior que Leopardi, que usa símbolos. ( Aliás, americanos têm uma enorme dificuldade de lidar com símbolos ).
  A religião é toda símbolo. Mas a igreja é alegoria. Ela tenta dar sentido único a coisas inesgotáveis como a cruz, a pomba ou o milagre. Toda a história de Jesus Cristo é um símbolo, portanto atemporal, inesgotável e particular. Não se traduz em discurso, ela é como um suspiro. A igreja a toma para sí e a traduz. Faz do símbolo uma alegoria e mata sua evolução.
  O marxismo fez o mesmo com a história, a psicanálise com o inconsciente, a crítica literária com a prosa. Pegaram o particular e o transformaram em alegoria universal.
  O símbolo é a prova de que o tempo nada é daquilo que achamos saber. Ele flui através do futuro ao passado e reflui ao presente, renasce a cada nova leitura e nega o certo e o errado. Como diz Gregory Wolfe, a arte abstrata, Kandinsky, Klee, são os verdadeiros artistas, porque eles criam aquilo que passa a existir a partir do nada. Quando Klee pinta uma "coisa" ele a cria do absoluto vazio. Ao contrário de Rembrandt ou de Vermeer que nada criavam, na verdade copiavam, genialmente, aquilo que já existia no mundo, artistas com Marc ou Miró inventam símbolos que surgem do nada e com nada anterior se parecem. São criadores de fato, como criadores foram os homens que desenharam mandalas, símbolos celtas ou intrincados labirintos hindus. Nesse sentido, que não julga mérito, julga criação, Cézanne é o primeiro criador a surgir desde o século XV. Entre Giotto e Cézanne todos foram imitadores.
  Entendeu my friend.

ARCABOUÇOS SIMBOLICOS

Aula sobre ANTONIO VIEIRA. Século XVII. Havia uma construção cristã que conformava o modo de ver a vida. Exemplo. Um evento da natureza era visto sempre como uma manifestação divina. Mais que isso, a espuma do mar era um manto de um santo, uma flor vermelha o coração de Cristo.
A partir do iluminismo tudo passa para a razão. A razão não obriga a negação da existência de Deus, mas transforma Deus em Ser Super Racional. Um novo arcabouço, agora tudo é prova da racionalidade do universo.
Outra construção. Com Darwin e o capitalismo, tudo passa s ser uma luta. A espuma é palco de uma briga, a flor é chamariz de insetos, o mundo é uma disputa.
Os freudianos construirão um edifício alicerçado em libido e sexo. Cada imagem da vida será sexualizado. O que podemos dizer com certeza? Há hoje um menu onde você escolhe seu simbolismo. Única verdade é que precisamos simbolizar, ler a vida. 

E NASCE A LUZ INTERIOR!

   Primeiro foi Platão. Dois mundos. O mundo onde vivemos e o mundo perfeito das ideias. Aprender, viver, é relembrar onde já estivemos um dia, o universo onde a inteligência manda e tudo é ideal. Aqui, sombras. Lá, a luz.
  No ano 470 de nossa era, o fim de Roma. O começo da Idade Média. Bárbaros invadem a Itália. Seitas hereges brotam. Surge Agostinho. Pagão, aos 30 anos ele se faz cristão. E tem, para salvar o cristianismo, uma ideia genial. Unir à fé cristã, a lógica grega. O ocidente nasce exatamente nesse momento. Este nosso mundo onde lutamos para unir crença e razão, dogma com liberdade, espírito e carne.
  Agostinho criou a interioridade. Foi o primeiro autor a falar em vida interior. Surpreso? Explico.
  Talvez voce já tenha lido Homero. Ou Ésquilo. Sófocles. Virgilio. E tenha sentido que em meio a toda aquela beleza, criação, filosofia, falta alguma coisa. Parece que há uma certa superficialidade estranha. Como superficialidade? Eles falam sobre coisas graves, sérias, reais! Sim, é vero, mas...não há vida interior. Tudo neles é para fora, é ação, ato. As coisas só existem se forem ditas, discutidas, feitas, o ser só existe no convívio com a comunidade. Na dialética, no diálogo, na conversa. Impossível nesse mundo a criação do romance. Tudo é para fora.
  Agostinho cria um raciocínio que salva a igreja e que nos cria, mesmo a voces, amigos ateus. O pensamento é tão arraigado em nós que lhe parecerá óbvio, mas creia-me, foi uma revolução!
  Ele disse: Se Deus criou o homem, e esse homem foi feito à Sua semelhança, então, lógico, cada homem tem em si algo de divino, possui em seu INTERIOR uma fagulha divina. 
  As consequências dessa afirmação foram tremendas! Vamos à algumas:
  Todo homem merece o respeito. Todo homem faz parte da criação divina. 
  Um homem pode ser destruído fisicamente, mas sua fagulha não. Voce pode prender um corpo, mas nunca uma alma.
  A sabedoria está dentro de cada um e não lá fora. Deus vive dentro do ser. 
  Aprender é encontrar um caminho para essa fagulha. 
  Agostinho dava assim toda a direção para onde fluiria a filosofia e a igreja dos próximos mil anos. Santo Tomás de Aquino faria alguns acréscimos, mas as fundações estavam dadas. A partir da renascença, com a ciência experimental, começaria a se procurar a verdade no mundo lá de fora, mas até hoje, em 2015, mil e quinhentos anos mais tarde, ainda pensamos em iluminação interior, seja via arte, fé ou descoberta científica. 
  Tudo isso me foi passado num curso de filosofia que tenho feito. Diz a professora que Agostinho remete direto à Descartes e Wittgeinstein. Como pode? Digo para ela que isso foi uma...revolução! Que estou pasmo! Ela responde, Sim, é uma revolução, ele inaugura a interioridade na história do pensamento. Cada um passa a ser responsável pela sua fé. Ele não podia prever, mas isso abriu caminho para a Reforma Protestante e para o agnosticismo. Se cada um deve olhar para dentro de si à procura de Deus, nasce a possibilidade de nada se encontrar ou de se encontrar um Deus novo. 
  Estava feita a cisão. Nascida dentro do próprio cristianismo. O homem como o reconhecemos começa a partir daí. De certo modo Agostinho foi o primeiro contemporâneo.

PADRE SÉRGIO- TOLSTOI

   Esta novela de Tolstoi, apenas 70 páginas, foi chamada de patética, fraca, errada, durante décadas. Começou a ser reabilitada no fim do século XX e hoje é chamada de obra-prima. Claro que não é. As melhores novelas de Tolstoi estão muita à frente deste Padre Sérgio. Na verdade ela é uma peça de propaganda religiosa. Uma parábola. E lembra bastante os contos diretos e filosóficos de Voltaire. 
   Um nobre é humilhado por um rival. Se isola do mundo em uma caverna. É tentado por uma mulher fútil. Ao resistir à ela, faz com que essa mulher, arrependida, se torne freira. Sua fama se espalha. Cura doentes. Uma segunda mulher surge. E à essa ele não resiste. Cheio de culpa, foge outra vez. Vai visitar uma velha amiga. E lá ele tem uma revelação. Esse é o enredo. Tolstoi conta tudo isso de um modo que muito agradava Heminguay, direto, objetivo, seco, simples até o osso, sem firulas. Parece fácil escrever assim, puro engano. Escrever muito, descrever demais, isso é fácil, conseguir contar de modo limpo e claro, sem perder o encanto e o estilo, isso é bastante árduo. Requer exercício, prática. 
   O sentido de Padre Sérgio é transparente. Toda sua fé é baseada na vaidade. Por mais que ele tente, ele nunca se livra do orgulho de ser um religioso. Todo seu ato parece ter uma platéia, Deus. Quando ele encontra sua velha amiga, mulher atarefada, que sustenta sozinha várias pessoas, ele percebe ser esse o sentido da vida. Ela diz que se acha uma pessoa má, e que Sérgio complica tudo. São essas duas frases que resumem o livro. Sérgio se acha bom, amante de Deus, e isso é vaidade. Posso dizer que ele não sai de seu mundinho regido pelo eu. A amiga faz o bem todo o tempo, quando pensa em si mesma é para se condenar e acha estar longe de Deus. Essa é a verdadeira religiosa. 
  Tolstoi ao fim da vida fundou uma seita cristã que pregava o fim de toda violência e o fim da igreja. Ele queria o cristianismo de Cristo, sem a carga de teoria e de cerimônias criadas pelos homens. Todos movidos pela ambição e pela vaidade. Gandhi bebeu nessa fonte tolstoiana. 
   Este livro foi filmado no final dos anos 80 pelos irmãos Taviani. Um belo filme. Mas a novela é bem diferente. No filme o padre é quase um santo ingênuo. Aqui ele é um perdido. No momento em que ele perde a fé ele começa o longo processo de encontro com Deus.
   Um passarinho o encontra. Um besouro tromba com seu corpo. Sérgio entende a mensagem.

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA, TODOS OS SETE LIVROS- C.S.LEWIS. O PRAZER DA LEITURA.

   Lembro bem. Lembro do prazer que eu senti ao ler A ILHA DO TESOURO, de R.L. Stevenson pela primeira vez. Consigo ver o sol que iluminava as páginas e sentir o cheiro que o volume exalou quando livre do plástico que o aninhava. E esse prazer nascia da narrativa. Eu lia por causa de Jim, o personagem principal e não por causa de Stevenson. E eu estava lendo em Bristol e depois no mar e não em minha casa. A narrativa me levava a ler. Era a fé naquilo que é narrado. Eu não lia um autor escocês chamado Stevenson. Lia o que um garoto de Bristol me contava, Jim. 
   Esse é o prazer que reencontro em Lewis. Vamos tentar falar dessa obra imensa e magnífica. Li todos os sete livros. E digo, foi um tremendo prazer. 
   AS CRÔNICAS DE NÁRNIA começaram a ser publicadas em 1950, na Inglaterra. Nessa altura Lewis tinha 50 anos e era um homem conhecido. Professor em Cambridge, tinha programa de rádio e publicara diversos livros. Seu interesse central era o cristianismo. Nárnia seria portanto um livro cristão? Com certeza. Mas mais que isso ele é platônico. Para Lewis nosso mundo racional é apenas uma possibilidade. Mundos dentro de mundos, quanto menor, quanto mais dentro das coisas maiores elas ficam. Tudo o que vemos são pontas de icebergs. Perceber que isso tudo foi escrito na casa ao lado daquela onde Wittgenstein vivia e nas imediações dos físicos que criaram a teoria quântica faz todo o sentido do mundo.
   Logo se tornaram um sucesso e foram premiados. Como literatura infantil. E digo que uma das boas coisas de nosso tempo, 2015, é o fato de que a literatura infantil, assim como o cinema de animação, tem deixado seu gueto de lado. Existe boa e má literatura, não importa se para meninos, velhos, crentes ou ateus. Não importa se escrita por mulheres ou por indios. A literatura infantil tem duas coisas que a literatura ""mais séria"" tem temido tocar: a criatividade despudorada e a crença naquilo que se narra. Lewis acredita no que escreve.
   Será preciso falar da história? Do portal que une mundos? Um desses portais é um armário, outro é uma estação de trem ( Harry Potter bebeu muito aqui. Sem Lewis não haveria Harry. ) Mas pode ser um muro de jardim ou uma luz. Esse outro mundo é mais real que nosso mundo. Esse outro mundo é o mundo que suspeitamos existir. Lewis o descreve para nós. Nele há uma luta. Bem e mal guerreiam. É um mundo onde o bem é o bem, e o mal é o mal. Maniqueísta? Não bem isso, pois há gente má que se torna boa. Mas a luta acontece. 
   Nárnia tem muito de paraíso ecológico. Árvores têm alma e alguns animais falam ( não todos ).  As crianças de nosso mundo, que cruzam o portal, vão lutar pelo bem, passar por aventuras, crescer e voltar para cá. E há Aslam. 
   Aslam é um enorme leão. Ele criou Nárnia. E ele cuida do sentido das coisas. Mesmo que a vida pareça não fazer sentido, tudo se revela depois de um tempo. Visto à distância, cada um tem o que merece. Ou não. Pois Aslam só intervém em momentos decisivos. Sim, podemos dizer que Aslam é Jesus Cristo. Ele chega a morrer e retornar. E é admirável o modo como Lewis encaixa esses acontecimentos. Há uma lógica perfeita nessa fantasia. A crença na fantasia faz com que a tal realidade perca seu valor. Nosso mundo, lendo os livros, parece se tornar pouco importante. O mundo decisivo está aqui, mas não é o que vemos. Cada ato nosso repercute no universo mais real, no mundo de Aslam. É uma responsabilidade grande. E é isso que amadurece as crianças.
   O primeiro livro, na ordem em que Lewis desejou que fossem lidos, O SOBRINHO DO MAGO, narra a criação do mundo de Nárnia. Aslam cria todo esse mundo e Lewis descreve, com muita simplicidade, essas imagens. Há uma feiticeira do mal, as primeiras crianças da Terra, e a primeira explicação sobre a relação temporal entre os dois mundos. Mas, devo dizer, este talvez seja o mais fraco de todos os sete. É bom, mas jamais encanta.
   O segundo livro é o mais famoso, O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Este sim, completamente viciante em sua maravilha. Crianças, Lucia, Pedro, Susana e Edmundo, são transportados para Nárnia. Edmundo será seduzido pelo mal, Lucia será a mais poderosa em relação ao bem. Suspense e poesia se mesclam criando uma fantasia inebriante. Jamais sabemos se o bem poderá prevalecer. É uma saga que abre nossa mente para a criatividade. E é um belo livro.
   O terceiro se chama O CAVALO E SEU MENINO. É um dos meus favoritos. ( Tenho dois como favoritos ). Fala de fuga, travessia de um deserto, medo e sofrimento e tem um sabor de Mil e Uma Noites que me deixou completamente apaixonado. Acima de tudo, é este o mais aventuroso, o que esbanja mais ação e tem personagens muito bem descritos. O tipo do livro que voce sabe que um dia vai ler outra vez. E talvez com mais prazer ainda. O sol, a sede, a areia, voce vive dentro dessas paisagens e desses estados. Fantástico.
   PRÍNCIPE CASPIAN é uma delicia. Narrada por um anão, é cheia de mistério. Muitas lutas, muitas reviravoltas e talvez seja a menos simbólica dentre todas as histórias. Caspian é um grande personagem! Como voce já deve ter notado, cada livro acrescenta personagens. Cada livro se passa em uma época diferente.
   A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA é o quinto livro e é perfeito. Empatado com O CAVALO E SEU MENINO, é meu favorito. Num navio a remos e velas, partem os aventureiros em busca do fim do mundo. Este é o volume estilo ""história de pirata"". Personagens apaixonantes: RipChip é um rato que luta como um herói de Walter Scott. Ilhas de horror, de sedução, decepções, muitas surpresas. Lewis está aqui em pleno dominio. Um livro para guardar na alma. Sensacional.
   O sexto livro é de todos o mais triste e o mais trágico. A CADEIRA DE PRATA traz muita melancolia à saga e um sabor cristão bastante explícito. O sofrimento se acumula. É um bom livro, mas após tanta maravilha ele nos dá um travo azedo. Recomendo a quem for ler toda a saga que não faça o que eu fiz. Que leia os cinco primeiros e espere alguns meses para ler os dois últimos. O choque será menor.
   O último livro se chama A ÚLTIMA BATALHA e é o mais simples. Nárnia acaba, o mundo morre e Aslam surge para....Não conto o final. É um livro bonito, arremata toda a saga em tom de beleza, mas o auge de NÁRNIA está nos livros dois, três, quatro e cinco. 
   Termino este texto citando uma fala de A CADEIRA DE PRATA. Fala que explica toda a obra de Lewis.
   ...estou do lado de Aslam, mesmo que Aslam não exista. Quero viver como um narniano, mesmo que NÁRNIA não exista. Assim, agradecendo esta ceia, agradecendo a estes dois cavalheiros e a esta dama, estamos de saída para os mundos da escuridão.  Passaremos o resto de nossas vidas procurando o mundo de cima, o mundo de Aslam. 
   Se a vida real, a vida da Terra, é tão chata como voces dizem, prefiro este mundo de ilusão.
   Essa é toda a crença de Lewis. E diz ele que essa é toda a crença cristã. Apostar na fantasia crendo ser a fantasia a verdade final. 
   Há modo melhor de viver?
  

DO PÓ DAS ESTRELAS

   Se a gente olhar tudo de longe, e acelerar a velocidade da coisa, a gente vai perceber que nossa história tem esses momentos cruciais: O fogo, a escrita, o começo da revolução industrial e o mundo da informática. Se voce quiser ampliar isso e em vez de ver um filme, que é aquilo que a gente vê do alto e de forma acelerada,  ler o livro da vida, então os momentos são: a fala, a religião, a filosofia, a ciência matemática, a revolução industrial e a informática.
  Assistindo a vida ou lendo a história das almas, a coincidência se dá mais que o aparente. A fala trouxe a escrita, o fogo trouxe a indústria, e os dois trouxeram a revolução industrial e a informática. A religião e a filosofia, que são o mesmo, andam ao lado, antecipando tudo. Eu disse que a religião antecipa? Não tenho dúvida alguma. Do Big Bang às imagens do centro celular, tudo foi descrito pelas religiões. Mas eu sei que isso é mexer em espinheiro.
  O PC, o tablet, um pen drive, todos são corpos físicos. A rede, a internet, o conteúdo é a vida. Interessante isso, agora é fato dizer que somos feitos da matéria das estrelas. Mas William Blake já sabia disso. Shakespeare sabia disso. Mesmo que em 1820 ou em 1600 parecesse apenas uma bonita imagem poética. Mas a poesia soube. O verdadeiro poeta sabe porque ele intui. Somos da mesma matéria e esta minha mão que tecla aqui é feita da mesma matéria do começo do universo, lá longe...
  Mas se a minha mão tem os átomos de lá, então minhas células nervosas também estavam naquele centro de onde surgiu tudo. E INTUITIVAMENTE elas lembram. De uma maneira anterior ao verbo, de uma maneira fora do verbo, elas sabem. Isso my dear, é hoje ciência. E isso, meu irmão, meu companheiro de eternidade, meu irmão atômico, é também religião em sua raiz. Desde pelo menos 15000 anos se sabe. Qualquer aborígene australiano vai te contar. Viemos do mesmo ser. Somos todos parte dele. O átomo original que explodiu. Deus. Intuitivamente se conta a mesma história. A ciência gasta bilhões para recontar o que a gente já sabia. Para traduzir em língua culta aquilo que um selvagem sujo soube.
   A vida nunca termina porque o universo não acaba. Ele simplesmente está lá e aqui, e esteve ontem e já está amanhã. 
   Vejo uma imagem. A reconstrução dos restos de Lucy, o primeiro ser humano. Essa imagem sempre me deixa destruído. Como me destrói a cena dos simios em 2001 do Kubrick. Porque? Por excesso de beleza. Lucy foi um herói, um gênio, um animal, um deus e um poeta. Ela viu aquilo que ainda vemos. Sonhou nossos sonhos e viveu o medo que nos paralisa. De Lucy à eu-mesmo nada mudou. Ela é feita da minha matéria. E o esforço que ela fez me é conhecido.
  Tempo, que é número, é apenas um modo de simplificar as coisas. Nosso cérebro, que é sangue e carne, precisa de tradução simplificada, ou entra em parafuso. Ele, o nosso caro cérebro, entende apenas aquilo que existe no tempo linear. Na verdade ele só consegue entender linhas. A linha do tempo, a linha da escrita, a linha de 1 mais 1 igual a 2. Mas, não é porque só conseguimos ler em termos lineares que só a linha exista. Seria como crer que o chinês não existe porque não conseguimos o decifrar. O veríamos apenas como ruído. Ou acreditar que o verme não existe por nos parecer invisível. Começo, meio e fim, nosso cérebro precisa enquadrar tudo nesse molde. Fora desse molde ele nada consegue ver, ouvir ou sequer imaginar. 
  Mas a realidade não é assim. 
  No universo não existe o UM e o DOIS. Muito menos o ZERO. Isso é uma invenção artificial de nosso cérebro limitado. Explico, é bem simples:: Onde está o UM ? Existe na vida real algo que seja um ? Existe algo como uma laranja, uma pessoa ou uma estrela ? Claro que não! Existem laranjas, incontáveis pois teríamos de contar as que nasceram, as que nascem e as que irão nascer, todas são laranjas. Nosso cérebro, simplificador, pega uma laranja, que faz parte de um infinito, e a conta: UM. Mas isso é arbitrário, forçado, ficcional. Nada é UM. 
  Assim é o tempo.
 Escrevo tudo isto baseado num filme ruim. Mas com grande ideia. Uma ideia que já a alguns anos me maravilha. Esse um problema recorrente do cinema de agora. Grandes ideias em filmes pobremente desenvolvidos. A verdade é que aquilo de maravilhoso que a ciência começa a nos dar não cabe mais em nossa arte pequena. Deveremos voltar às catedrais. Grandes afrescos, grandes sinfonias podem falar desse novo-velho mundo. Precisamos de um Goethe ou de um Kubrick. Não temos.
   A morte não existe. Porque a vida nunca começa. 
   Tente entender isso. Eu juro que é a única questão que vale a pena.

CHARLIE E XIITAS

   Eu lia Wolinski na revista Status. Isso lá por 1978. No mundo feito pelo cristianismo ele despertava ira. Poderia até ser processado, mas nunca morto. Claro, um louco podia matar. Mas não por uma fé maluca numa religião desvirtuada. Mas o que Tony? Mundo feito pelo cristianismo? Sim. Na base da religião cristã se planta a dúvida. Jesus nunca se impõe, se deve duvidar e o aceitar. E assim é. Um Deus que se deixa matar é um Deus que exige a dúvida. Por isso nossa filosofia é toda baseada na pergunta, na dúvida, no erro possível. 
  Isso inexiste para esses xiitas. E por isso eles são incompreensíveis para nós. Neles inexiste a dúvida. Eles querem, podem e nunca questionam. Nós, seres questionadores, que duvidamos todo o tempo ( de nossa fé, de nossa razão, de nossa inteligência ), nada podemos contra eles. Pois a dúvida leva à paralisia, a certeza leva à ação. 
  O fanatismo cristão pode chegar à censura e a perseguição. Nunca ao assassinato glorioso. Pois mesmo na inquisição havia um processo ( falso, mas havia ), um perdão e um sofrimento. Júbilo jamais. E aberto, exposto como sempre esteve às heresias, dúvidas, críticas, o cristianismo foi se adaptando, se isolando, tentando seguir o homem em sua busca pela verdade.
  Nada disso existe no mundo xiita. Para eles a verdade foi alcançada. Para eles nada é duvidoso. O movimento inexiste pois tudo é como deve ser. E nesse mundo correto, NÓS somos o mal. Infiéis. Perversos. Sujos. Imorais. 
  Claro que não estou falando do islamismo. Estou falando dos xiitas. Mas no ventre do islamismo existe a ideia de guerra santa e de inimigo infiel. O espaço foi dado.
  Ando lendo Peanuts. O mundo judeu de Charles Schulz. Mundo repleto de anseios, medos, hesitações, e de auto-ironia. E vi hoje, na rede, um desenho de Charlie Brown, chorando, e com uma legenda: Je suis Charlie. Eu sou Charlie.
  O ocidente precisa ser salvo.

A TRANSFORMAÇÃO DO NATAL

   Cheguei a conhecer o Natal como festa religiosa. Vagamente consigo me lembrar de uma quietude que existia na noite do nascimento de Cristo. Nas ruas existiam muitos presépios públicos e se ia a igreja para a missa do galo. O caráter principal da festa era a calma, o Natal como algo de muito familiar, íntimo, quase um sonho.
  Depois, durante minha adolescência, o Natal passou a ser um tipo de festa da amizade. Escrevíamos muitos cartões de Natal e era emocionante esperar o carteiro. Sempre chegava algum cartão daquela menina que voce passou o ano todo achando que ela mal sabia quem era voce. Natal era tempo de se fazer as pazes. O aspecto religioso começou a ser esquecido e em seu lugar a festa virou um tipo de banquete entre amigos. A cozinha era o centro da festa. O telefone não parava de tocar e a familia se reunia, nem que fosse só para discutir. Era hora de reavaliar os sentimentos, de demonstrar os desejos, de ser desavergonhadamente piegas. 
  Foi durante a década de 80, aqui no Brasil tudo chega com atraso, que o Natal se materializou. Papai Noel deixou de ser o bom velhinho e virou um mascate. Natal era hora de dar presentes. De ganhar aquilo que mais se quis durante o ano inteiro. Hora do presente mais caro. Popularizou-se o amigo secreto. A pieguice se embebedou. Ficar bêbado no Natal, até 1977 seria um pecado, a partir de 1981 virou lei. A festa tomou a rua, virou coisa pública, toda a intimidade ruiu.
  Hoje se estouram fogos a meia-noite. Um absurdo. A hora do silêncio e da quietude virou a hora do carnaval. O Natal se vulgarizou, virou apenas mais uma ocasião para se beber muito, falar tolices e acordar tarde. 
  Tendência mundial, todas as festas se transformam numa coisa só, impessoal e não particular. A intimidade naufraga, a vida interior é vista com temor e o Menino que nasceu agora passa a ser um tipo de Rei da Avenida. Dar presentes é uma obrigação e desejar Feliz Natal aos amigos se torna tão vazio como o bom dia dito na padaria. ( Parabéns à quem ainda o diz ). 
  Natal ? Ainda creio. Mais quem?

ARTHUR CONAN DOYLE- A TERRA DA BRUMA, SHERLOCK ENCONTRA O ESPIRITISMO

   Hmmmm....sei não. Acho que não gostei deste livro, bonito, de capa dura, recém lançado pela Zahar. O autor de Sherlock Holmes, na parte final de sua vida, arregaçou as mangas e mergulhou no mundo dos espíritos. Esta narrativa, uma peregrinação pelos centros espíritas da Londres de 1920, nada mais é que a propaganda de uma fé. Claro que permanece a maestria de Doyle em criar clima, ambiente, mistério. Mas onde está o personagem interessante? Ninguém aqui nos cativa, como fazem Holmes e Watson.
  Já frequentei centros, e apesar de meu interesse religioso, algo neles sempre me desagradou. No espiritismo existe a mania do século XIX de tudo racionalizar. O mundo dos espíritos me parece ordenado demais, claro demais, corriqueiro, muito positivo. Creio em mistérios, mas o que me incomoda é que o espiritismo nada tem de misterioso. Dessa forma, Doyle passa o livro todo procurando nos convencer da verdade de suas experiências. Eu não sei.
  Arthur Conan Doyle foi médico, esteve em duas guerras e passou a viver de escrever com o imenso sucesso de Sherlock. Após os 50 anos, ele que sempre fora muito curioso, resolveu investigar a ""febre"""espírita que tomava Londres então. Se convenceu da veracidade. Interessante observar a perseguição policial que era feita contra os mediuns, todos acusados de charlatanismo, e a certeza que Doyle tem de que no futuro todos serão espíritas. 
  Para ele, o mundo das almas não é aceito porque a certeza em sua presença colocaria o mundo de ponta cabeça. Toda a vida produtiva, todo o esquema de poder, o modo como avaliamos a história, tudo seria posto abaixo. E os poderosos não podem aceitar a ideia de que somos todos iguais, todos alma eterna, todos com o mesmo dom e o mesmo futuro. Um mundo plenamente espírita seria um mundo de absoluta paz. A vida aqui seria como uma escola, um aprendizado, destituído de ambição material e de medo.
  Eu não sei.

SOBRE SENTIMENTOS E A SOMBRA- JUNG

  Eu estava na Cultura e então um livrinho surge em meu caminho. Um sinal? Não posso o ignorar. Pois eu estava lá para comprar, talvez, uma biografia ou um livro de viagens. Andando por essas sessões eis que deslocado estava esse livreto. Alguém pegou em outro andar e o deixou jogado em meio aos best-sellers. SOBRE SENTIMENTO E A SOMBRA de Carl Gustav Jung. Apenas 75 páginas. Capa preta, novo, a transcrição de 3 conversas que Jung teve, informais, em sua casa na Suiça, já ao fim da vida. A última conversa, eu vejo, foi feita no dia 29 de maio, o dia em que nasci. Well....como não comprar esse bilhete jogado em meu caminho? Ainda mais quando leio na capa de trás: """Viver é perigoso, e caso não seja, a vida não valeu a pena"". Caramba! Isso é Jung ou é algum astro do rock? Compro.
  Isso é Jung, um ato intercalado no absurdo da vida. Sentido dentro do acaso. Deus nas entrelinhas. Logo leio, no dia seguinte, um belo domingo, "" Não recuse o que se depara com voce na estrada. Aceite."" Omessa!
  Jung ao fim da vida não fala mais como um médico, fala como um avô sábio. O centro do livro é a seguinte constatação: "" Não pode haver bem sem o mal. O bem sem o mal seria a morte, a não-vida. Viver é pecar. O pecado é necessário para que se encontre o bem. Sem o pecado e o perdão não se encontra Deus. Um homem sem pecado não é humano."" Mas Jung evita habilmente dizer se Deus existe. Ele existe como ideia, como ente histórico, como causador da nossa sociedade, como força central dentro de nós. Nesse sentido, Ele é tão real como o amor, o pecado, a história ou a arte. Existe em nossa mente, e a questão é, Há algo no Universo que não existe como verdade em nossa mente?
  Interessante a afirmação de Jung, a de que todo deprimido ou melancólico é alguém que pecou pouco. A solução, claro que nuca definitiva, para a tristeza é: pecar mais, pecar muito. E depois se redimir.
  Há também toda uma conversa maravilhosa sobre antropologia, em que ele conta dos primitivos da Austrália, que ao perder a libido se recuperam através de todo um ritual com talismãs e totens. A libido sendo transferida para um objeto e sendo recuperada no trato com esse depósito do desejo.
 A maior parte das conversas sendo sobre Cristo e cristianismo, os erros da igreja e a questão central em que se tenta entender o que seja Humano e o que seja Divino. Aí surge a questão da sombra e de como não lidar com ela.
  75 páginas com a voz de um mestre ao preço de 20 reais. Tá de graça!

GEORGE STEINER E A BÍBLIA

   Minhas raízes materialistas me impedem de ler a Bíblia. Lê-la seria como capitular. É estranho, pois eu venho a anos num processo de estudo e de interesse por religião cristã e de epifanias variadas. Mas não consigo me aproximar da Bíblia. Há algo naquele livro que me traz a mente algo que eu não quero ver. Agora não. 
  George Steiner diz que a Bíblia é o maior e o melhor livro já escrito. Todas as histórias de todos os autores estão lá escritas. De Dante a Kafka, de Cervantes a Sartre, tudo está lá. Poesia e drama, lenda e romance, erotismo e o mais profundo pessimismo. Terror insuportável e beleza transcendente. Mas não é disso que desejo falar. 
  O que deixa Steiner confuso é que ele consegue imaginar Dante trancado num quarto escrevendo a Comédia. Consegue, com muito dificuldade, imaginar a mente que pensou o Quixote. Apesar de ser imensamente complexa, a mente que nos deu os pensamentos de Montaigne é uma mente como a nossa. Porém dotada de mais brilho e de mais inteligência. Steiner consegue até mesmo imaginar Shakespeare acordado, preocupado com o final de Lear ou com o que fazer com Falstaff. 
  Mas é impossível imaginar um homem a escrever, a imaginar, a criar o sofrimento de Cristo na cruz. Não há como nossa mente entender uma mente que criou Moisés, Salomão, Jó ou a cena no monte das oliveiras. Isso foge a nosso entendimento do que seja arte ou filosofia. Isso foge até a nossa ideia de loucura ou de delírio. Está além do mundo que conhecemos ou que podemos criar na imaginação. É um texto tão embrenhado em nossa mente que faz parte de nosso modo de existir. Vemos a vida pelos olhos daquele universo. Mas ao mesmo tempo ele nos é completamente estranho.
  E mesmo com esses comentários de Steiner, e antes eu já lera os de Tolstoi, Whitman e Donne, todos em mesmo nível de admiração, mesmo assim eu não posso pegar e ler o livro dos livros. A história que fez com que eu afinal fosse o que sou. Minha familia vinda da Europa, européia desde quando? E antes? Judia? Muçulmana? Bíblica nos três casos possíveis, minha carne meu sangue meus genes, moldados em histórias de David, em milagres de Jesus Cristo, em ensinamentos de Paulo, de Israel, de Ismael, de Canaã... desde 1500, desde 1200, desde quando?  Aqui, em 2010, procurando por um salvador, por uma luz, uma nova vida, uma purificação, salvação. Louvando o Amor. Desde quando?
  Guardo o livro. 
  Um dia.
   Um dia.... 
  

NENHUMA PAIXÃO DESPERDIÇADA- GEORGE STEINER. A GRANDEZA DE UMA PESSOA.

   George Steiner é judeu. E ele jamais nos deixa esquecer isso. Nascido em Paris, em 1929, educado e começando sua carreira de professor em Londres, ele se fez um dos grandes críticos da cultura do século XX/XXI. Lecionou em Oxford e em Harvard. Sua cultura é enciclopédica. Ele vê a cultura do ocidente de dentro do judaísmo. Para Steiner, o Ocidente é filho de Atenas e de Jerusalém. Como pensador refinado, ele nunca afirma a existência ou a não existência de Deus. Seus guias são Kierkegaard, Spinoza, Nietzsche, Marx, Pascal e Kant. Profundamente filosófico, sem medo, ele afirma e duvida, deixando claro todo o tempo que toda a glorificação do texto, da análise, do contra-argumento, da bibliografia, tão caras ao ocidente, têm claras raízes judaicas. O Velho Testamento, a Torá, são modos fundadores de análise textual. Este livro precioso ( olha minha influência judaica dando as caras ), se divide em palestras, teses, capítulos de obras, folhas avulsas escritas entre 1978- 1995. 
  São 21 ensaios em 490 páginas. Dificil escrever sobre seus textos. São tão profundos, tão claros e ao mesmo tempo complexos, que apresentá-los a quem não os conhece é como os desmerecer. Não há como comentar sem rebaixar sua grande altura. O que posso dizer? 
  Posso falar da profunda impressão, impressão que chegou ao quase pavor, da visão de Steiner sobre a beleza, a verdade e a dor de se ser um judeu. Ele consegue, racionalmente, unir a morte de Jesus ao campo de extermínio nazista. E não teme tocar na ferida: Nós odiamos todo aquele que nos chama a atenção para a perfeição possível. Jesus, assim como Sócrates, morre por ser insuportávelmente perfeito. Por cobrar de nós a perfeição da qual abrimos mão. Pessoas assim sempre serão martirizadas. É a explosão da individualidade dentro de um mundo que preza a anônima mediocridade. No caso de Jesus, e esse é um texto que me perturbou, judeus serão perseguidos sempre, mesmo que de forma inconsciente, por terem "" jogado fora a chance de dar ao mundo o reino de Deus. Os judeus negaram Jesus, nunca o aceitaram, e isso faz com que o ocidente veja neles aqueles que optaram pela dor, pela morte e pela desunião.""
  Steiner tem um capítulo soberbo sobre a América. Como pode um país que tem um museu de bom nível e uma sinfônica até no deserto, não conseguir produzir um só filósofo relevante? Não ter um grande compositor, não ter ninguém que se compare a Mann, Joyce, Proust ou Kafka? Um país com centenas de ótimas universidades não produzir um único grande pensador,ou uma grande nova teoria de arte, de filosofia, de politica ou de psicologia.  Steiner lembra que mesmo na ciência, todo grande desenvolvimento teve algum estrangeiro emigrado envolvido.  Sem a mente estrangeira, os EUA se tornam um país cheio de dinheiro, porém pobre de ideias. 
  Ele nos mostra então o porque. E sua tese não faz média com nosso tempo bonzinho. Grandes ideias nascem na pobreza, na guerra, na ditadura, na luta. A sociedade americana, e nisso ""ela pode estar certa""", optou pela democracia e pelo bem da maioria. Acontece que a maioria sempre será incapaz de apreciar ou de entender coisas complexas. Não se ensina numa grande universidade a ouvir Mozart ou a ler Wittgeinstein. Isso nasce com a pessoa. Nos EUA a maioria quer ter museus onde se tenha a POSSE de tesouros europeus, mas onde imperem produtos culturais ralos, simples, fáceis de entender. Mais que isso, é insuportável a um americano, ou incompreensível, a ideia de que uma poesia ou uma sinfonia possam valer mais que dinheiro. Uma vida vivida na pobreza, mesmo que plena de poesia e de filosofia, é uma vida jogada ao lixo. Numa sociedade SINCERA como a americana, que escancara a ganância material da maioria dos homens, a grande arte, que requer solidão, sacrificio e estranheza, se torna uma doença, algo a ser tratado. A Europa, lugar profundamente não-democrático, onde a ideia de genialidade, de beleza na pobreza, do charme da loucura, está arraigada, a obra de arte é vista como parte da vida, coisa cotidiana, normal, privilégio a que se tem direito de usufruir pelo dom SUPERIOR de uns poucos escolhidos. Sim, toda arte e filosofia são aristocráticas. Não existe grande humanidade onde a democracia impera. Eis um paradoxo. A alma só atinge sua plena grandeza na adversidade. Steiner cita a literatura russa sob o jugo dos czares e depois do stalinismo como exemplo de força espiritual. Para ele, grandes pensadores hoje estarão fermentando no oriente, na África, na América do Sul ou na Palestina. 
  Impressiona como esse modo de pensar se afina com o meu. A falta que faz na arte do primeiro mundo de hoje de uma certa sujeira, de algo de profundamente despojado, imperfeito, cruel, injusto e desafiador. A higiene, a organização, a garantia das bolsas de estudo, tudo isso contribui para a construção de uma arte e de um pensamento subjugado, preso, sem desafios.
  George Steiner ainda escreve sobre Kafka, Weill, Husserl, Freud, Marx, Hegel, Péguy...e muito sobre o Velho Testamento. Sócrates, Platão e Jesus de Nazaré. Sempre sob a ótica assumidamente judia. Desse povo escolhido. De gente que pensa sobre o pensamento, escreve sobre a escrita. Desse povo de rabinos que criou o marxismo e a psicanálise, formas de judaísmo revigorado. O mais terrível é que Steiner crê no sacrifício final do povo de Israel. Sua total aniquilação. E crê que nesse momento o mundo perceberá que com Israel se perde o sentido de história, de Deus e de continuidade. Ficaremos orfãos. 
  Ele não nos poupa. Adoramos odiar judeus. Adoramos odiar intelectuais ( que se parecem todos com judeus ), cristãos verdadeiros ( que são filhos de judeus ), marxistas ( que pregam a igualdade do Velho Testamento ), esquisitos ( com sua cara de gente do gueto ). Odiamos todo aquele que não é da tribo. A tribo do comum, do igual, do parecido comigo. 
  Não, não pense em sionismo. Steiner acusa Israel de negar, com seu estado, as leis de Moisés. De não ter aprendido com a Shoah ( o holocausto ). De ser injusto. Desigual. E pouco espiritual.
  George Steiner é o intelectual clássico. Ele perturba. Desassossega. Corrompe.
  Ao fim ele defende Judas. E nisso ele toca em nossa maior ferida... Judas, o judeu, o grande traidor.
  Sem mais palavras. Steiner sabe, assim como eu intuo, que a palavra tudo estraga. Leia.
 

NATAL EM AGOSTO ( LENDO CHESTERTON )

   A maior das revoluções veio. Um Deus nasce como homem. Eis a primeira inversão. A segunda é esta, nasce sem estrondo, nasce discreto, pobre, filho da base social. O triângulo se inverte: Deus vem de baixo e não do alto. 
  Com isso surgem mais coisas inéditas. Uma criança é sagrada, uma criança é Deus. E se ela é Deus ela é filho e Pai de sua mãe. Ao mesmo tempo. E Ela será uma criança-criança, crescerá como homem, terá brinquedos, aprenderá brincadeiras, irá comer e irá sonhar. Só aqui encontramos várias revoluções. Pela primeira vez o pobre é protagonista. Pela primeira vez uma criança é Deus. E pela primeira vez a história se faz entre os mais humildes, aqueles que ninguém vê. 
  Ao mesmo tempo 3 reis magos vêm vê-lo. São 3 filósofos em busca da sabedoria. Cruzam terras na ânsia de encontrar a Resposta. E o que encontram é uma caverna, palha, animais e um casal pobre e renegado. E no centro do mistério um bebê. Se ajoelham porque os 3 percebem. O mundo de Pã está morto. Já havia ocorrido a queda da bela mitologia romana, aquela do Lar, e já nascera a mitologia romana do mal, a que sacrificava humanos e exaltava a crueldade e a luxúria. Essa morria naquela caverna. O mundo tinha seu recomeço. O mundo é aquela criança.
  A partir dali nunca mais se mataria com alegria. Nunca mais se louvaria o mal de modo inconsciente. Nunca mais se olharia um pobre como uma coisa. Sim, o mal vive até hoje, luta por vencer, mas ele encontrou seu adversário, seu oposto. O mal hoje sabe que é Mal. Antes o mal era o mal sem juízo ou culpa. Bem ou mal eram uma coisa só. Sacrifícios humanos, escravos, quem se importava?
  Passamos a sentir a dor de uma criança que morre de fome. Isso era inédito. Pois nem a crença no mundo como uma ilusão budista, e nem o confucionismo, com seu respeito aos mortos e a disciplina, duas belas filosofias mais antigas que o Bebê, nenhuma delas dava qualquer atenção para a criança faminta ou ao pastor doente. Nobres, bons, mas distantes.
  O Deus na caverna trouxe a Divindade ao mundo da matéria. Deus podia ser visto como homem. Estava aqui, entre nós, nos olhando, nos dando conselhos, sofrendo voluntariamente entre nossas dores. 
  Nessa minha explanação, tirada do belíssimo livro de Chesterton, O HOMEM ETERNO, há material para dois mil anos de teses e de filosofias. Toda essa inversão de valores, todo esse modo novo de sentir a vida foi a maior das revoluções. E todas as que vieram depois, humanas, feita por crentes ou por ateus, tiveram sempre a ansiedade de repetir a cena do menino nascido numa caverna. Zerar a história, trazer ao centro os mais desprezados, irmanar e comungar, vencer o mal. 
  Somos, nós ocidentais, todos cristãos. Mesmo aqueles que odeiam o cristianismo. Porque todos nascemos naquela caverna. Vemos o mundo daquele modo e nos sentimos culpados ao fazer o mal. Matar, roubar, judiar, nunca mais foi ato de alegria inconsciente.
  Isso tudo é o Natal. O dia em que o mínimo se transformou em mais.
  ( Mas existe O MAL. E sobre isso escrevo outro dia. )