POEMA DO CID, EM FORMA DE PROSA POR MARIA DO SOCORRO ALMEIDA

   Escrito em 1140, o poema do Cid é o primeiro texto conhecido da península Ibérica. Então, em letras, pode-se dizer ser nosso mais antigo testemunho. Antes dele houve A Canção de Rolando na França, e o mais revelador é dizer as diferenças entre um e outro, já que ambos são sagas sobre cavaleiros medievais. Heróis fundadores de uma nação.
  Rolando é nobre. E em toda a canção só há lugar para nobres. O sangue azul manda. E o rei, Carlos Magno é Deus na Terra. Nas aventuras tudo pode acontecer. Magia acontece, donzelas morrem de amor e na verdade Rolando deseja morrer. Nada de real ou de cotidianamente vulgar acontece. Como nobre, nunca se fala em dinheiro, luta-se por honra. O inimigo é ruim, incrivelmente ruim. E o mais importante, o tempo nunca passa, na canção todos terminam como começaram. No mundo de Rolando o bom morre bom, o mal morre mal, nada muda, nada pode mudar.
  Vamos ao Cid. Ele não é nobre. Ele é um pequeno burguês que almeja ser rico. Caído em desgraça diante de seu rei, ele luta contra os inimigos para readquirir sua honra perdida. No Cid há de tudo: nobres, gente comum, judeus, árabes, reis. Inexiste a magia, magos não há. As lutas são ganhas por estratégia e por força, e o mais incrível: o Cid luta para ganhar bens, dinheiro e ouro. Ele divide os ganhos com seus soldados, todos lutando por isso, para enriquecer. O inimigo não é de todo ruim, ele pode se tornar aliado. E o tempo passa, as pessoas mudam, os lugares são descritos, o Cid envelhece, se cansa, e até mentir ele mente. A saga da Espanha é real, a francesa é nobre. A espanhola admite tudo do homem, os erros, e nunca conta com a magia. A de Rolando é irreal ao extremo. A magia salva o bem, ninguém muda jamais e um herói é perfeito. 
  Há como fazer analogias com aquilo que os dois países são hoje? Não, ambos mudaram demais em quase 10 séculos de história e de misturas. Mas algo ficou. A França continua se vendo como reino da nobreza, de finura e de perfeição. Dogmática, empedernida, protegida pelos deuses.
  Na Espanha ficou essa consciência do possível. Do relativismo, do caldo de interesses e do dinheiro como motivo central de tudo. Deus atende a quem se sacrifica. E para vencer é preciso lutar, sofrer e se precaver. Vale tudo, pois nada o ajudará. Para o espanhol o mundo é de pedra. Para a França o bem vence sempre. O corajoso, o inteligente, o belo, vencerá. O mal, irredutível, tentará, mas a França vencerá. Sempre. Para o francês o mundo é ideia.

PAUL THOMAS ANDERSON/ JIM CARREY/ MYRNA LOY/ STEVE MARTIN/ TIM ALLEN

   VÍCIO INERENTE de Paul Thomas Anderson com Joaquim Phoenix, Owen Wilson, Reese Witherspoon, Josh Brolin, Benicio del Toro.
PT errou. De novo. Mas ao contrário de diretores como Fincher ou Nolan, ele corre riscos. PT tem um estilo desde sempre, uma visão de mundo, e principalmente, ele nunca baixa a guarda, o gosto do grupo comum não o toca. Aqui o livro de Thomas Pynchon é enfrentado. E PT se afoga. Pynchon escreve de um modo quase barroco, febril, modo que PT não consegue capturar. De qualquer modo, em seu estilo Altman de ser, ele tem alguns bons momentos. Mas o todo é desigual, e é triste dizer, o filme termina sendo chato. Os Coen nasceram para fazer este filme, PT não ousa injetar humor e escracho neste filme, fica tateando, empaca, quase se solta, volta a se prender. Pena. Os atores estão ok, e como Altman fazia, gente famosa em pontas brilhantes. Quase lá, filmes assim nunca são mais ou menos, querem muito e conseguem ou erram o alvo e se perdem. PT perdeu o rumo. Vale dizer, na trilha de Jonny Greenwood temos Can e Neil Young.
  FOXCATCHER de Bennet Miller com Steve Carrel, Channing Tatum e Mark Ruffalo.
Uff...Deve ser muito ruim ser Bennet Miller. Se ele percebe a vida como ela aparece em seus filmes, ele é um bolha deprimido. Se é tudo apenas um estilo escolhido, ele trabalha no mais entediante dos negócios. Isso porque este filme é tudo aquilo que detesto num filme: maneirista, oco, entediante, visualmente vulgar e muito, muito fake. Tudo é calculado. O silêncio berra por admiração, o tema mistura vida real com doença, no caso, doença mental, duas marcas infalíveis para o sucesso de arte em 2015. E o filme é isso, mais de duas horas de gelo, cinza, papo furado, ares de importância e ideias banais. Lixo. Lixo total. ZERO.
   DEBI E LOIDE 2 dos irmãos Farrely com Jeff Daniels e Jim Carrey.
Talvez a pior comédia em tempo de muitas comédias ruins. O roteiro é de uma burrice atroz, todas a piadas são sem graça e os atores sofrem com um roteiro tão pobre. Fim de linha para todos os envolvidos. ZERO.
   O PANACA de Carl Reiner com Steve Martin e Bernadette Peters.
É o primeiro filme de Martin e foi um grande sucesso em 1979. É bastante irregular. Tem momentos espantosamente ruins e alguns muito bons. Ele é um idiota que foi educado por uma familia negra. Sai de casa para tentar a vida e fica rico sem querer. Steve Martin é o melhor comediante da melhor geração de comediantes da América ( Murray, Short, Chevy, Belushi, Eddie Murphy, Aykroyd, Radner, Andy Kauffman, Dangerfeld ). O filme é apenas ok. Nota 5.
   GIRL CRAZY de Norman Taurog com Mickey Rooney e Judy Garland
Mickey é um rapaz rico que é mandado pelo pai à uma escola masculina. O objetivo é fazer com que ele pare de ser mulherengo. Na tal escola ele conhece a única garota do lugar. Musical com um astral tão alto que é duro ter de o criticar. Ok, o roteiro é fraco e tem dois números musicais fracos, mas...Mickey Rooney é um show de alegria, de garra e de simpatia e Judy está jovem e bonitinha. Um tipo de festa, leve, ritmada e nunca entediante. O grande cinema pop dos anos 40. Nota 7.
   TEST PILOT de Victor Fleming com Clark Gable, Myrna Loy e Spencer Tracy.
Para os olhos de hoje há um choque em acompanhar o machismo hiper confiante de Gable. Das grandes estrelas masculinas de sua geração é ele aquele que envelheceu pior. Isso porque Gary Cooper passa bem o teste do tempo por ser elegante e bonito, assim como Cary Grant, alegre e sempre chique, James Stewart, simpático e comum e Errol Flynn, atlético e sempre cool. Gable era o mais viril, o duro e grosseiro, o cara da classe baixa que subiu, e hoje ele parece apenas feio e machista. Entendendo isso é muito divertido este filme sobre um piloto de aviões de teste que se apaixona por uma rica fazendeira. Myrna Loy, que sempre é chique e bonita está aqui mais bonita que nunca. É ela o modelo primeiro das mulheres finas e engraçadas do cinema popular. Tracy faz o amigo de Gable, um papel ingrato. O diretor Fleming teria no ano seguinte a este filme o seu grande ano, faria O Mágico de Oz e E O Vento Levou quase ao mesmo tempo! Este é um filme que une drama e comédia e tem efeitos especiais muito bons para seu tempo. Nota 7.
   CHRISTMAS WITH THE KRANKS de Joe Roth com Tim Allen e Jamie Lee Curtis
É aquele filme do casal que tenta ignorar o Natal para poder usar o dinheiro em um cruzeiro. Mas a comunidade não os deixa em paz. O filme tem um tom estranho, afinal, ele é sobre a pressão da comunidade sobre o indivíduo. Ou não? Na verdade é uma comédia fraca sobre o valor do Natal e da amizade....que lixo! Este século tem sido árduo para se ver comédias....ZERO.
  

Tomas Tranströmer | Louisiana Channel

LOLLA DE 2015, DOIS CARAS, DUAS REFERÊNCIAS.

   Não há nada de novo no som de Jack White...ou talvez pareça haver, porque em meio a uma multidão de bandas sem testículos ele exibe os seus o tempo todo. Mas tem mais, 95% das bandas bebe nos sons dos anos 80, Jack vai direto nos 60 e isso faz toda a diferença! Fica parecendo novidade, não é, mas por ir em raízes mais fortes ele respira mais. É vivo.
   Tem banda nova tomando doses de REM. Tem banda nova tomando doses de Jesus and Mary Chain. As duas bandas dos anos 80 são ótimas, mas não seria muito mais nutritivo beber a fonte pura onde o REM e o Mary Chain beberam? Essa a chave. Tem Foster tomando Duran Duran. Os DD em 1981 já pareciam fake, imagina copiar o que é fake....Eu cheguei a gostar do DD, em 1981, faz séculos, e eu sabia que eles eram fofos e inofensivos. Copiar? Melhor ir direto na fonte do DD. 
  E é isso que Jack White faz. Ele não pega riffs do John Mayer, do Slash ou do John Frusciante. Ele vai direto no John Lee Hooker, no Bo Diddley e em Jeff Beck. E quando faz folk ele se joga em Gram Parsons ou no Johnny Cash. Mistura tudo. O batera, maravilhoso, demole o kit como um brutamontes do free jazz. Os caras do fundo são tipos de Nashville, cool, elegantes, e sabem ir em várias estradas. Toques até de art rock, de gótico, de folclore celta e de muito country. E Jack junta mais informação: Angus Young, Jimmy Page, Ron Asheton, Mick Ronson, Lenny Kaye, Johnny Thunders. 
   Deve ter sido muito educativo para um teen de 14 anos ter visto este show. É uma manifestação de rock puro, sem bossas e sem frescuras, e ao mesmo tempo muito técnico, unindo habilidade com tosqueira, verdade com controle. O cara é um daqueles que permanecem décadas como referência.
   Como é referência aquele velho personagem de Tolkien, aquele hippie fiel que é hoje aquilo que ele sempre quis ser: Robert Plant, uma adorável figura que dignifica o legado da segunda maior banda do rock. O cara é mago. Jack é um seguidor. E eu adorei.

Waters Of March - Cassandra Wilson



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BELLY OF THE SUN- CASSANDRA WILSON, O DISCO ELEGANTE

   Jazz? Pode ser. Sim, talvez seja, jazz. Ela tem voz para isso. O fraseado de Cassandra é limpo, claro como dia de verão. E a instrumentação a acompanha. A percussão parece "brasileira", é cheia de nuances, timbres, rica. A guitarra é sublime, cascateia. Há em todo o disco uma delicadeza que nunca se torna flacidez, se mantém viva, delicadeza de água.
  O repertório se apresenta com The Weight. Sim, ela transforma The Band em um tipo de pop-jazz à Joni Mitchell. Calmo. Tem também Tom Jobim. E esse tipo de som chique, classudo tem tudo a ver com o carioca mais afinado do mundo. Águas de Março, vira Waters of March e é linda. Na real é impossível transformar essa melodia em algo que não seja no mínimo cativante. É uma versão sublime. A música de Tom sempre tem esse dom, ela acalma, embala, abre vistas. 
  O clima muda com o hino blues You Gotta Move. Cassandra canta com sangue. É, talvez, o momento mais forte de todo o disco. Você canta junto sem notar que abriu a voz. Isso faz de uma canção um hino. Shelter From The Storm é Bob Dylan em seu melhor. No original é um rock-folk pensativo e raivoso, imagens se sucedem como raios. Aqui é pensativo. A instrumentação flutua. Noturno. Cooter Brown é uma canção fantástica. E mais nada se pode dizer dela.
  Hot Tamales fecha o disco em alto astral. E a vontade é ouvir tudo de novo.
  Bem...eu tenho uma amiga que é uma das pessoas mais elegantes do mundo. E foi ela quem me deu esse cd de presente. O que posso falar? Que este caipirão que vos escreve sente que Cassandra é a trilha de vida de meninas como essa minha amiga de mãos voadoras e mente orvalhada.
  Um lindo som.

O PODER DA ESCRITA

   Uma aula que consegue unir rigor a bom humor, informação e domínio daquilo que se diz. A professora Andréa Daher veio especialmente do Rio para cinco horas de prazer cerebral. É muito bom observar o modo como ela conduz a sala inteira para os lugares e conhecimentos desejados. Segredo do grande mestre, fazer com que os ouvintes sintam o desejo de saber que ela sentiu desde muito antes.
   O tema poderia ser árido, e é, mas a voz leve e clara e o rosto de atriz, expressivo, levam as horas a parecer minutos. O tema é o modo como os textos eram escritos e divulgados no século XVI, textos escritos sobre a Terra de Santa Cruz, vulgarmente chamada de Brasil, textos escritos por portugueses e por franceses, documentos de jesuítas e de capuchinhos, o modo como eles pensavam, o que sentiam, como a Europa nos percebia.
   A professora Daher, pesquisando na França, onde viveu décadas, mostra gravuras e textos de franceses que levaram tupinambás para Paris. Índios brasileiros, cruzando o oceano e aportando na Europa, conhecendo o rei Luis, aprendendo modos franceses, usando roupas complicadas, sendo exibidos em palácios. Tudo isso com o fim de provar que Tupinambás tinham uma alma e que por terem alma podiam ser civilizados. 
   Montaigne não concordava com isso, mas Rousseau, séculos depois, usará esses brasileiros para criar o tal do bom selvagem.  O Brasil não nasce aí. Não nasce com esses frades franceses, huguenotes, ou com os jesuítas. Daher fala que a história é feita por dinheiro e escrita, pelas letras. A Itália existia antes de Dante, mas é a Comédia Divina que a faz tomar consciência de si e começar a se historiar. É sempre uma escrita que inscreve o país ao mundo. Nos EUA foi a constituição, na Inglaterra foi Bacon e na Espanha o Quixote. E nós? 
   O Brasil começa se ver como um país apenas no século XVIII. O parto durou três séculos, três longos séculos em que este espaço era uma terra `a procura de quem a amasse. De quem a tomasse nas mãos como nação e não como passagem. Três séculos em que aqui era um caminho, um meio e jamais um fim. O fim era Lisboa, o fim era Paris.
   Em sua aula, que engloba o time do Flamengo, os paulistas, monstros em São Vicente e a beleza da imaginação, ela consegue nos passar seu amor as letras, a palavra dita, impressa, cantada, pensada, levada. O amor ao livro velho, ao texto esquecido, raro, perdido, incompleto. 
   A vida é imaginação. A vida é ficção. Texto, e todo texto é imaginação.
   PS: Já no pós aula ela lembra que nos anos 80, nessas listas mentirosas de livros mais lidos ( mentirosa porque não há como saber se eles foram realmente lidos ), no Rio o mais lido foi durante meses o Ulysses, de James Joyce. Livro segundo ela ilegível. Como isso então? Bem, ela lembra que nos anos 80, época de pose, era chique ir à praia com um livro debaixo do braço. Milan Kundera era Ok, Umberto Eco, legal, Joyce era o máximo!
   Risos? Sim, risos, mas isso demonstra o poder que um livro tem mesmo entre aqueles que não o abrem.
    Aplausos.

The President's Analyst opening titles



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Bullitt - Opening Credits



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AS MELHORES TRILHAS SONORAS DOS FILMES MAIS COOL

   1965/1975, o apogeu da música de cinema. Air, David Holmes, DJs, todos concordam. E foi mesmo. Dificil achar um filme desse período, por mais ruim que ele seja, que não tenha uma trilha sonora interessante. E que não exerça influência na música mais interessante feita hoje.
 Todos concordam que a arte da trilha sonora se perdeu. Alguns poucos filmes ainda têm boa trilha, mas elas não vendem, não se tornam um sucesso popular independente do filme. Para voce entender, a trilha de Bullit ou dos Dirty Dozen concorria com Beatles, pau a pau. Hoje trilha de sucesso é trilha cheia de músicas pop feitas anos antes e sem a intenção de virar filme. Ou trilha cantada de Frozen. Eu falo de música para filme não musical. E composta para o filme. Que se integra à obra.
 Para mim, o melhor tempo começa antes, em 1955, e vai até 1975. Começa com Duke Ellington, Henry Mancini, Alex North, Jerry Fielding, Bernard Herrman, Elmer Bernstein, e acaba exatamente com a trilha de Tubarão e Taxi Driver, em 1975. O documentário que assisti prefere um corte menor. A trilha mais funky, mais elétrica de Lalo Schifrin, Qincy Jones, John Barry, Ennio Morricone, Michel Legrand. A visão é americana, então eles deixam de lado Georges Delerue, Nino Rota, Carlo Rustichelli, e até mesmo Burt Bacharach, talvez por ser ultra pop. De qualquer modo é uma delicia o frisson que causa dois minutos apenas de Bullit, Thomas Crown, a trilogia do western com Clint, Dirty Harry, Shaft, Peter Gunn... E veja que eles nem falam do Chefão, de Chinatown, Operação França ou de Papillon. É uma multidão de músicas ainda cool, ainda influentes, ainda conhecidas, ainda instigantes. 
  Por iniciar em 65 não se fala das trilhas do James Bond, por John Barry, e nem da Pantera Cor de Rosa, por Mancini. Talvez as duas trilhas mais queridas da história do cinema. John Willians, o colecionador de Oscars, começa nessa época, suas primeiras trilhas, bem jazzisticas, são de 65/66.
     Posto o inicio de Bullit. Só pra voce sentir o que falo.
     Bom dia!

E NASCE A LUZ INTERIOR!

   Primeiro foi Platão. Dois mundos. O mundo onde vivemos e o mundo perfeito das ideias. Aprender, viver, é relembrar onde já estivemos um dia, o universo onde a inteligência manda e tudo é ideal. Aqui, sombras. Lá, a luz.
  No ano 470 de nossa era, o fim de Roma. O começo da Idade Média. Bárbaros invadem a Itália. Seitas hereges brotam. Surge Agostinho. Pagão, aos 30 anos ele se faz cristão. E tem, para salvar o cristianismo, uma ideia genial. Unir à fé cristã, a lógica grega. O ocidente nasce exatamente nesse momento. Este nosso mundo onde lutamos para unir crença e razão, dogma com liberdade, espírito e carne.
  Agostinho criou a interioridade. Foi o primeiro autor a falar em vida interior. Surpreso? Explico.
  Talvez voce já tenha lido Homero. Ou Ésquilo. Sófocles. Virgilio. E tenha sentido que em meio a toda aquela beleza, criação, filosofia, falta alguma coisa. Parece que há uma certa superficialidade estranha. Como superficialidade? Eles falam sobre coisas graves, sérias, reais! Sim, é vero, mas...não há vida interior. Tudo neles é para fora, é ação, ato. As coisas só existem se forem ditas, discutidas, feitas, o ser só existe no convívio com a comunidade. Na dialética, no diálogo, na conversa. Impossível nesse mundo a criação do romance. Tudo é para fora.
  Agostinho cria um raciocínio que salva a igreja e que nos cria, mesmo a voces, amigos ateus. O pensamento é tão arraigado em nós que lhe parecerá óbvio, mas creia-me, foi uma revolução!
  Ele disse: Se Deus criou o homem, e esse homem foi feito à Sua semelhança, então, lógico, cada homem tem em si algo de divino, possui em seu INTERIOR uma fagulha divina. 
  As consequências dessa afirmação foram tremendas! Vamos à algumas:
  Todo homem merece o respeito. Todo homem faz parte da criação divina. 
  Um homem pode ser destruído fisicamente, mas sua fagulha não. Voce pode prender um corpo, mas nunca uma alma.
  A sabedoria está dentro de cada um e não lá fora. Deus vive dentro do ser. 
  Aprender é encontrar um caminho para essa fagulha. 
  Agostinho dava assim toda a direção para onde fluiria a filosofia e a igreja dos próximos mil anos. Santo Tomás de Aquino faria alguns acréscimos, mas as fundações estavam dadas. A partir da renascença, com a ciência experimental, começaria a se procurar a verdade no mundo lá de fora, mas até hoje, em 2015, mil e quinhentos anos mais tarde, ainda pensamos em iluminação interior, seja via arte, fé ou descoberta científica. 
  Tudo isso me foi passado num curso de filosofia que tenho feito. Diz a professora que Agostinho remete direto à Descartes e Wittgeinstein. Como pode? Digo para ela que isso foi uma...revolução! Que estou pasmo! Ela responde, Sim, é uma revolução, ele inaugura a interioridade na história do pensamento. Cada um passa a ser responsável pela sua fé. Ele não podia prever, mas isso abriu caminho para a Reforma Protestante e para o agnosticismo. Se cada um deve olhar para dentro de si à procura de Deus, nasce a possibilidade de nada se encontrar ou de se encontrar um Deus novo. 
  Estava feita a cisão. Nascida dentro do próprio cristianismo. O homem como o reconhecemos começa a partir daí. De certo modo Agostinho foi o primeiro contemporâneo.

JOVEM.

   Ser jovem é uma convulsão. É estar perto da morte todo o tempo e mesmo assim ou por isso mesmo ser mais vivo que a vida. Mais que a vida porque se a vida é em sua maior parte envelhecimento e decadência, ser jovem é o escândalo da super vida!
  Nietzsche estava errado! Não foi o cristianismo que nos fez fracos, é a idade que nos esmaga e vence nossa verdadeira força. Nosso apogeu dura apenas dez anos... A vida plena dos ossos, que se quebram e se refazem sem que percebamos. A elasticidade da pele, protegendo mais que o corpo, embalando os sonhos. Porque jovens tudo é sonho, mesmo que pensemos na dor. A vida é então feita de saltos, assaltos, piruetas e trombetas que anunciam: Sou vivo!
  Convulsionado as dores se vão, convulsionado o amor chega, em convulsões ele morre. Tudo é grito e a dança do sangue que exige jorrar. Suor nos porões onde o sal escorre pelas paredes, risos nos quartos em que cada palavra é uma piada. O raio do sol bate na pele que acasala com ele. A onda do mar abraça a pele que envolve ela. Leve. A juventude é leve, a leve doçura do compromisso que é para sempre e sempre acaba. E volta. Porque um ano para um jovem cérebro é toda uma vida. 
  Eu me intoxicava em convulsões mortíferas que me fizeram viver. Nas cavalgadas da guitarra-potro-escoiceante. Nas mordeduras da bateria tesoura. Nos vulcânicos dotes do baixo fervido. As convulsões vivas da alma que está prestes a se jogar. Aceitar a vida. Começar a partir. 
  Ser jovem é a maior das felicidades.

Otto Wagner



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Gustav Klimt - Música Gustav Mahler



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A UTILIDADE DA BELEZA É A DE DESTRUIR O CONCEITO DE UTILIDADE

   E tudo começou com Beardsley. Com uma linha sinuosa, desenhada a nanquim, preto sobre o branco. Um diabinho e uma mulher nua. Era o começo do fim do século XIX, e como protesto ao automatismo da vida industrial, eles criaram a noção de que só teria valor aquilo que fosse feito manualmente. A revolução seria a revolução da beleza. Se o mundo se tornava cada vez mais feio, sujo, aglomerado, cabia ao homem, a todo homem, se individualizar. Fazer de seu ambiente, de sua vida, testemunho de sua beleza individual. ( Me parece que hoje, burramente, o protesto se dá pelo culto ao feio. Como se não fosse feio aquilo que produzimos naturalmente ).
  O que seria essa beleza? Para o art nouveau inglês, o belo seria noturno, negro, curvilíneo, pecaminoso e satânico. Whistler exemplifica bem esse estilo noturno. Mas Londres não foi solitária. Barcelona, Bruxelas, Paris, Berlin e principalmente Viena logo adotaram o estilo. Beleza para todos! Não vamos esquecer nunca que eles eram socialistas, sua ambição era coletiva e socializante. 
  Uma contradição! Um dos lemas era: Melhor fazer um cinzeiro em dez dias que dez cinzeiros em um dia! E realmente eles levavam até mais de dez dias para fazer um cinzeiro. E essa peça seria única, cheia de criatividade, beleza. E cara...O novo estilo, JUNGSTIL, começou a ser sinal de luxo, status, exclusividade. Mobilia, quadros, roupas, objetos, um simples saleiro, tudo era Jungstil. O jovem estilo. Nada acessível às massas que continuavam em sua pobreza feia do produto anônimo. Mas havia a arquitetura, e com ela a cidade poderia mudar, e com a mudança do ambiente o povo poderia adquirir o senso da beleza!  Maravilhosas fachadas em Viena, em Paris, estações de metrô, postes de luz, gares de trens, bancos, jardins, tudo art nouveau, novo lema: Arte de Hoje para o Tempo de Agora!
  A música do tempo: Debussy! Ravel ! Satie! Curvas, panos, tapetes, cortinas, luzes, ferro fundido, prata, ouro, vitrais, flores, veludo. Poetas do tempo: Rilke, Stefan George, Mallarmée, Valéry. Corpos nús, sexo, oriente, Grécia. Vapores...Luxo, sempre o luxo, a calma, a volúpia. Klimt, Mucha, Otto Wagner, Victor Horta.
  Em Trieste, em 1905, Rilke e Joyce se cruzaram na cidade. E não se reconheceram, claro. Mas veja, uma cidade, média, viu dois gênios respirarem seu ar ao mesmo tempo. Um, Rilke, cultuando a negra pantera que trazia em seu movimento a beleza do sexo e da morte; o outro, Joyce, odiando tudo aquilo e querendo mostrar ao mundo o cuspe, a merda e a vulgaridade da vida real. E quem sabe, achar a beleza maior nessa verdade. 
  Para o Art Nouveau, a beleza era um fim em si. Para Joyce, a verdade era a beleza. Sempre a verdade.
  Como todo movimento novo, ele logo ficou velho. Em dez anos, o esgotamento. E quando a primeira guerra veio, em 1914, culpou-se o Jungstil pela guerra. Falou-se que sua falta de moral, de fibra, sua preguiça seria o ambiente que levou o mundo ao Kaos! Jungstil passou a ser coisa decadente, suja, mortal...
  Por 50 anos, até 1964 mais ou menos, TUDO referente a Klimt, Beardsley, Whistler, foi considerado de segunda categoria. Foi o tempo da ditadura da linha reta. Da Bauhaus, de Mondrian, aqui no nosso Brasil do chato Niemeyer. Sem ornamentos, sem enfeites, sem copiar a natureza. Linhas puras, aço e vidro, regras e réguas. A beleza substituída pela FUNCIONALIDADE. O objeto, a construção, deve cumprir sua função. Tudo o que não tenha uma utilidade é dispensável. ( Oscar Wilde: A arte e a beleza só o são quando completamente inuteis ). 
  Os anos 60 recuperaram a Jungstil. De repente o inutil voltou a ser cultuado. O mundo viu um renascimento do ornamento, do enfeite, do negro, do dúbio, do floral, do véu, o satânico, o exagero. A curva retomou seu posto de rainha de estilo. A vida como arte, o eu como construção consciente de beleza. Se voce quer que eu vulgarize, a música pop de Incredible String Band, Soft Machine, Gong, música floral, cheia de arabescos, surpresas, tintas e noites, discos como o Satanic dos Stones, Sgt Peppers, Forever Changes do Love. Capas, olhos árabes, vitrais art déco, música indiana, marroquina, flamenco...A beleza, a busca da beleza como única fé, a religião do BELO.
  E hoje? E 2015?
  Uma luta neste vale-tudo do mercado que é o mundo. Um planeta que virou um bazar de vidro e pedra. De um lado a hiper-funcionalidade. Beleza sendo conceito relativo, ou pior, futil. Estranhamente esse conceito se tornou quase religioso, pois ele no fundo nega a matéria. Se voce nega a beleza do olhar e do tato, voce está negando o mundo sensual, o mundo da matéria. Voce vive no mundo da função, do pensamento e do fazer imaterial. É quase um universo cego. O Brasil ama esse mundo. Por tradição somos ligados a cegueira. Prédios todos iguais, ruas sem ornamentos, funcionalidade que em nosso trágico caso, nunca funciona. Estamos no pior dos dois mundos.
  E há a luta pela preservação da beleza. Que se transformou no culto ao prazer egoísta. Cultua-se o belo imaginando que a beleza vive no status. Na saúde. No chique. É uma tradição que inexiste no Brasil. Ou melhor, sobre- vive numa natureza que ensina a filosofia da beleza, do excesso, da curva exuberante. Mas nós odiamos essa beleza. Cuspimos nela. A sinuosidade de um riacho, canalizamos. Ele parece ser não funcional.
  Para mim, beleza cura tudo. Essa a sabedoria dos gregos, dos católicos, dos românticos, dos art nouveau, dos fauve. A beleza dá sentido ao que parecia absurdo. Ela nos consola, nos guia, nos justifica. A curva pode mais que a reta. O sinuoso absurdo seduz. 
  John Keats, em 1810 estava certo:
  a thing of beauty is a joy for ever.

JOYCE, RICHARD ELLMAN

   O pai de James Joyce, John Joyce. Que homem! Foi um grande cantor, voz de tenor que se tornou lenda. Herdeiro de várias propriedades, hipotecou tudo, ano a ano, e quando James fez 21 anos, a família estava na absoluta miséria. O pai, John, tinha tantos talentos que jogou fora todos. Sabia navegar, desenhar, inventar, contava histórias, criava ideias. Jogador de rugby, de boxe, nadador mestre. Amigo de todos, mudava de casa como quem penteia o cabelo. Beberrão. Um personagem de John Ford. Real.
  John teve onze filhos. James Joyce foi o primeiro. O pai adorava o filho. O filho amava o pai. Em seus livros existem montes de personagens baseados no pai. James tinha mais seis irmãs e quatro irmãos. O pai ignorava a todos, menos James. A mãe era caseira, chorosa, forte, e morreu aos 44 anos. 
  James Joyce foi educado em escolas jesuítas. Isso serviu para lhe dar agudeza. E também para o fazer romper com o catolicismo. Joyce era egocêntrico, vaidoso, frio e terrivelmente talentoso. Sempre foi o melhor aluno da classe e sempre ofendia os professores, amigos, mestres, outros escritores, com sua mania de falar a verdade, de se achar acima de todos, mais inteligente, mais talentoso, especial. James Joyce se tinha na conta de um gênio desde cedo. Ele foi sempre áspero com Yeats, com Lady Gregory, Synge, todos talentos reconhecidos e que o ajudaram em seus começos. Todos suportavam Joyce porque viam nele o gênio.
  James não gostava de Shakespeare. Seus favoritos eram Ibsen, Tolstoi, Flaubert e principalmente Dante. Seu estilo logo se modelou. Joyce escreveria sobre gente e situações banais, mas mostraria nessa banalidade o extraordinário. Transformaria o homem do século XX, o homem anônimo, no Ulysses urbano.  Realismo extremado pintado como mito grego, lenda etrusca, arte latina. James jamais esqueceu da grandeza de John Joyce. 
  Passou fome em Paris, sempre a procura de trabalho, sempre esnobe, sempre fora do padrão. Richard Ellman não tem medo de mostrar o quanto Joyce era antipático, distante e ferino. Sua voz, era um grande cantor também, bela, feria e encantava. Impressiona a confiança que ele sempre teve em si-mesmo, inabalável. 
   Estou na página 220, Joyce com 22 anos, prestes a descobrir o estilo dos Dublinenses, seu grande livro de contos. Emocionante. Ellman também escreveu biografias de Wilde, Yeats...seu estilo é minucioso, preciso, documentado. Para quem ama literatura, este imenso volume é um paradiso.
  PS: É minha segunda leitura. Dez anos depois.

Giorgio Moroder-Chase



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Giorgio Moroder - First Hand Experience In Second Hand Love [Remastered]...



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ENO, REM, RAY DAVIES E GIORGIO MORODER....DAFT PUNK

   É mais que conhecido o momento em 1977. Brian Eno liga para Bowie e pede para ele ligar o rádio na estação X. Diz que nesse exato instante o futuro está tocando. 
   Foi uma premonição brilhante. I Feel Love de Donna Summer e Giorgio Moroder foi o single mais influente  desde quando James Brown inventou o funk em 1967. Eu me lembro que nesse mesmo ano eu escutava Giorgio no rádio e tentava entender o que era aquilo. Eu pensava que From Here To Eternity tinha instrumentos normais. Mas algo naquela bateria soava diferente. E o baixo...era estranho. Demorou para que eu percebesse que era tudo programado. Tudo teclado. Mas eu adorei. E viajei desde o começo. 
   E recordo agora que Eno dizia que o pop e o rock eram pobres em harmonia e em melodia. Que nada poderia ser esperado de novo nesses campos, mas que ele era potencialmente inovador em timbre. Que a evolução sempre vinha na mudança de timbres. Desde o timbre da guitarra de Link Wray, passando pelo som metálico da guitarra de Jimi Page, o som frio do rock alemão, as gravações hiper trabalhadas dos Beatles e um belo etc. 
   Sempre fui bom, até os 30 anos, em adivinhar o futuro do rock. Lembro que em 1978 todos achavam, os caras que andavam comigo e boa parte do povo do meio, que o futuro seria um rock progressivo, bem tocado e bem gravado. Um tipo de Rush. Eu falava que o futuro era dançante. Que Heart Of Glass seria mais relevante que Supertramp. 
   Depois, em 1980, falavam que o futuro seria punk. Barulhento, simples, pesado. Eu chamava atenção para o funk. Prince. Em 1984 as guitarras estariam com as horas contadas. Só velhos ouviriam guitarras. O futuro era synth eletro. Eu ouvia REM, Lloyd Cole e Prefab Sprout. Guitarras. 
   Meu último acerto foi em 1986. Naquele ano era moda ouvir Smiths e Cure, sons tristes, ingleses, com guitarras. Eu descobria o rock do skate, Red Hot Chilli Peppers e The X. 
   Foi meu último acerto. No fim da década eu estava numa de RAP, mas o futuro era Seattle e Manchester. Depois, em 1996, eu acreditei no eletrônico.
   Acreditei que toda aquela safra iria ser dominante. Que o futuro nos traria timbres novos, viagens doidas, o fim dos vocais, experimentação, desbunde. Errei. A música eletro morreu em tédio. E voltou ao gueto. O que surgiu foi uma geração de cantoras indistintas e de bandinhas que reciclam o pop de Kinks, The Jam e afins. Aff!
   Há excessões! Mas este tempo será lembrado no futuro como o tempo de Katy Perry e de Lady Gaga. 
   Hoje reescutei o Daft Punk de 96 e escutei o de 2014. Giorgio Moroder e Chic sobrevivem no som deles todo o tempo. Era um futuro possível. Continuar do ponto em que Giorgio parou.
   Um aluno meu, de 14 anos, escutava Who e Kinks desde os 12. Guitarrista, nele poderia haver um futuro. De Ray Davies ele poderia chegar a Iggy Pop, Eno, Rap e talves daí criar algo de seu. O que aconteceu? Ele descobriu Zappa e Yes. E hoje seu sonho é ser mais um virtuose da guitarra. Passa dias copiando linhas de Steve Howe e de Zappa. Mais um ano ele descobre John Mclaughlin e será o fim.
   Acho que esse meu aluno revela muito.
  

SOMOS TODOS ROMANOS

   Estou na USP, esse mundo mágico onde todos somos crianças em busca do sentido das coisas, fazendo um novo curso, Italo Calvino. 
   Fico sabendo que a familia inteira de Calvino era formada por cientistas, e que ele foi a ovelha desgarrada. Logo após a segunda guerra, aos 20 anos, ele lança seu primeiro livro, neo realista, e alcança o sucesso. Não, não vou falar sobre esse livro, vou falar sobre a Itália, esse país que equivale a um universo ( ou equivalia ), rico, complexo, desconcertante, e que foi sufocado nos últimos 40 anos. 
   Calvino conta que o pós guerra foi uma explosão de vida. Na rua, nos cafés, nos ônibus, todo mundo narrava histórias da guerra. Inventadas ou não, era uma multidão sem fim de rostos e vozes, cada um deles individualizado, contando dores e humores da guerra. O italiano não é alegre, ele é vivo, essa a verdade. Ao contrário da Alemanha ou do Japão, que morreram e ficaram em luto por décadas após a derrota, a Itália passou a narrar, falar, seja em filmes, canções, discursos, livros, piadas, anedotas, lendas, mitos. Rapidamente a dor foi superada e o apogeu italiano veio. Não vou descrever esse apogeu. Quem assistiu A Doce Vida sabe do que falo. Luxo, miséria, começo da decadência e conforto como nunca antes....está tudo lá, vivo e falastrão, ópera e dor. 
  Somos todos romanos, nós, latinos. Com nossa volúpia e nossa vaidade vã, discursos sem fim, leis e mais leis, corrupção e vida, destruição, recomeços, mulheres e risos. O amor pela comida, pela bebida, pela cama, pelo banheiro, pela praia, pela caminhada à toa, pelo dolce far niente. Commendattore, vossa sinhoria, minha bella, cantare!! Estou criticando? Não! Ë um elogio!
  Em outra aula, outro curso, sobre os começos do Brasil, um autor americano, escreve o elogio da latinidade, especificamente ibérica. A questão é simples: Valeu à pena? Valeu a pena os americanos reprimirem toda sua vida espiritual em troca do desenvolvimento material? ( Ele é ateu. Espírito é criatividade, festa, arte, ritual, vida na rua, familia....). Valeu a pena os ingleses matarem seu espírito celta em troca do inglês eficiente, pontual, quieto? 
  Os negros americanos mantiveram a alma livre e são aqueles que ainda dão vida à América. E os brancos saxões? O que eles têm vivido? 
  Ele fala da brilhante ( isso mesmo ) maneira como os portugueses colonizaram o Brasil. Tentando catequizar os índios, misturar-se à terra, casando-se inter raças, tentando se fundir ao ambiente. Falhas houve muitas. Mas os americanos do norte lutaram para homogeneizar o todo, aparar diferenças, fazer do todo um uno. Valeu a pena? Richard Morse conta ainda que o sistema está esgotado e que talvez venha do mundo latino um novo modo de viver. Ou não. 
  Romanos gostam de dizer que na verdade o Império Romano ainda está de pé. Que todo o modo de pensar e fazer, viver e conhecer do ocidente é romano. O desenvolvimento dos últimos 2000 anos segue um padrão criado em Roma, coliseus, pão e circo, leis, juizes, senadores, guerra, colonias, ateísmo, crenças particulares, sexo, sangue e ambição materialista. A nossa filosofia seria romana, assim como a arte, os esportes, o modo de vida.  Será?
  Calvino crê, como Borges, que a realidade é inacapturável. Podemos crer em certas coisas, experimentar outras, mas a totalidade nos é inalcançável. Cada vez mais, ele era amigo de Borges e os dois trocavam cartas, Calvino foi se tornando esotérico e ao mesmo tempo simplificando a escrita.  Os dois amavam livros de aventuras, raiz da criatividade. Stevenson, Conrad, London e Doyle.
  Material vasto para pensar e fazer. Essas aulas, no reino dos meninos que pensam em pensar, prometem.

O MAL EM SER CRIANÇA PRA SEMPRE. EXISTE?

   Um amigo me pergunta qual seria afinal o mal causado a esses eternos homens-criança que habitam todo o mundo ocidental mais desenvolvido. Ele não escreveu isso no sentido de alguém que acha que ser criança para sempre seja algo de desejável. O que ele interroga é especificamente qual seria o mal, onde ele se manifesta. Minha primeira resposta seria: abra a janela.
 Manifestantes com blusas amarelas querendo derrubar, na raça, um governo corrupto, porém eleito, têm uma atitude infantil. Pensam que politica é um eu quero. Esquecem do processo, dos trâmites legais, da chatice toda de ser adulto. Isso dá a todo ato uma cara de brincadeirinha. Tanto que eu tenho a certeza de que se a policia reprimisse a coisa eles chorariam. E procurariam o colo de alguém. 
  Meu foco não é comentar a politica brasileira. E não pensem que condeno a manifestação contra o PT. Tudo indica que o governo errou e de forma infantil a reação deles é falar que é tudo mentira. Mais um faz de conta. O que digo é que crianças nunca sabem lidar com o mundo material. Não é a praia delas. Acabam bufando e fazendo birra e no fim tudo sai do jeito errado. 
  Mas vamos em frente. Antes de falar o que pode haver de mal na infância eterna, devemos ver o que há de bom em ser adulto. O primeiro fato é esquecer as dores da adolescência. Um adulto olha para a adolescência como águas passadas. O segundo fato é possuir uma certa independência. Não depender de alguém que cuide dele, seja mãe, esposa, psicólogo ou guru. E o principal, um adulto pode jamais vir a saber quem ele seja de fato, mas ele cessou a busca constante pela sua turma. O adulto deixou de se preparar para a vida, ele já mergulhou. 
  Então eu diria que mais que ser dependente ou estar paralisado pelas brigas da adolescência, o eterno criança fica eternamente no quase. Ele olha a vida mas nunca mergulha nela. Vive na expectativa, desgastante, do inicio de sua vida ""de verdade""'
No mínimo isso lhe causará os sintomas clássicos da ansiedade. 
  Posso saber o que seja um adulto por filmes ou livros, professores ou conhecidos, mas eu ainda tive um adulto em casa, meu pai. E ele, pobre homem, foi profundamente odiado por isso. Além de eu ter comprado a ideia de que ficar adulto é negar tudo no pai, eu fui um adversário muito forte. E joguei sempre sujo. Em cada briga, que podiam ser quase comuns aos 14 anos, mas que se tornaram ridiculas aos 30, eu achava que estava caminhando rumo ao mundo do cowboy, o mundo do cara auto-suficiente. Claro que não. Era tudo um brinquedo de gosto ruim. 
   Meu pai trabalhava. E seu mundo era o do trabalho. Meu pai era um cara pronto. Ele tinha arrependimentos, dores e dúvidas, muitas, mas estava pronto. A vida para ele havia começado muito antes de que eu nascesse e sobre isso não havia volta. A corrente do rio da vida o apanhara. E ele procurava nadar. Mas não eu. Meu ideal era nunca sair da margem, ou melhor ainda, trocar de rio quando quisesse.
   E posso então falar de mais um mal:: a sensação engasgante, amarga, que todo cara como eu tem, de que a vida passa e eu fico. Melancolia que pode ser raiz de belas depressões, a sensação de que o trem passa sem voce pode te levar a imagem de que o mundo é algo que foge e sua vida uma estação vazia, pois os outros já partiram.
   Então voce brinca. Trens e rios imaginários. Partidas sempre repetidas, Voce vai à África, ao Japão, em carne e osso, mas a grande viagem voce nunca faz, mergulhar no rio da vida. A vida de adulto, que antes o horrorizava, agora lhe é tão distante que voce nem sabe mais do que se trata. E brinca. Como eu disse, brinca de ter um filho, de ter um casamento, de ter um emprego. Mas tudo pode ser revertido ou anulado. Sem compromisso. Tudo é um ensaio. O rio continua a passar.
  Me lembro que aos 16 anos meu maior medo era: adultos trabalham para sempre. A vida do adulto é dura. Eu não quero isso. Em seguida foi: o adulto é o homem que começou a morrer. A contagem regressiva começa nesse momento.
  O mundo moderno nos dá milhões de fugas para dentro de Neverland. Eu aceitei o convite.
  E a mulher nisso tudo? Ela passa a ser, e me dói dizer, mais um brinquedo. A chamamos para a festa, queremos brincar de ser namorado, de fazer sexo como nos filmes, de ter um grande amor. Quando elas percebem que aquele cara forte, bravo, maduro, decidido, está brincando de parecer adulto, e que ela É A PROVA DE QUE ELE CRESCEU, bem, nesse momento ela foge. A mulher, ter uma, se torna o objeto que prova ao mundo e a ele que o garoto virou homem. Virou?
   Assim como a briga com os mais velhos nunca foi maturidade, ter uma mulher é apenas uma ideia torta de ser GRANDE. Nas sociedades tribais voce não virava homem ao fazer sexo. Voce era primeiro um homem e depois fazia sexo. A mulher era um merecimento. A cereja do bolo. Agora ela é o caminho, a casa, todo o bolo e a cereja. Coitadinha. Coitadão.
   E agora vou parar por aqui porque cansei e vou dormir.

PADRE SÉRGIO- TOLSTOI

   Esta novela de Tolstoi, apenas 70 páginas, foi chamada de patética, fraca, errada, durante décadas. Começou a ser reabilitada no fim do século XX e hoje é chamada de obra-prima. Claro que não é. As melhores novelas de Tolstoi estão muita à frente deste Padre Sérgio. Na verdade ela é uma peça de propaganda religiosa. Uma parábola. E lembra bastante os contos diretos e filosóficos de Voltaire. 
   Um nobre é humilhado por um rival. Se isola do mundo em uma caverna. É tentado por uma mulher fútil. Ao resistir à ela, faz com que essa mulher, arrependida, se torne freira. Sua fama se espalha. Cura doentes. Uma segunda mulher surge. E à essa ele não resiste. Cheio de culpa, foge outra vez. Vai visitar uma velha amiga. E lá ele tem uma revelação. Esse é o enredo. Tolstoi conta tudo isso de um modo que muito agradava Heminguay, direto, objetivo, seco, simples até o osso, sem firulas. Parece fácil escrever assim, puro engano. Escrever muito, descrever demais, isso é fácil, conseguir contar de modo limpo e claro, sem perder o encanto e o estilo, isso é bastante árduo. Requer exercício, prática. 
   O sentido de Padre Sérgio é transparente. Toda sua fé é baseada na vaidade. Por mais que ele tente, ele nunca se livra do orgulho de ser um religioso. Todo seu ato parece ter uma platéia, Deus. Quando ele encontra sua velha amiga, mulher atarefada, que sustenta sozinha várias pessoas, ele percebe ser esse o sentido da vida. Ela diz que se acha uma pessoa má, e que Sérgio complica tudo. São essas duas frases que resumem o livro. Sérgio se acha bom, amante de Deus, e isso é vaidade. Posso dizer que ele não sai de seu mundinho regido pelo eu. A amiga faz o bem todo o tempo, quando pensa em si mesma é para se condenar e acha estar longe de Deus. Essa é a verdadeira religiosa. 
  Tolstoi ao fim da vida fundou uma seita cristã que pregava o fim de toda violência e o fim da igreja. Ele queria o cristianismo de Cristo, sem a carga de teoria e de cerimônias criadas pelos homens. Todos movidos pela ambição e pela vaidade. Gandhi bebeu nessa fonte tolstoiana. 
   Este livro foi filmado no final dos anos 80 pelos irmãos Taviani. Um belo filme. Mas a novela é bem diferente. No filme o padre é quase um santo ingênuo. Aqui ele é um perdido. No momento em que ele perde a fé ele começa o longo processo de encontro com Deus.
   Um passarinho o encontra. Um besouro tromba com seu corpo. Sérgio entende a mensagem.

COMO SER UM HOMEM HOJE?

   Em Rastros de Ódio, o mitico filme de John Ford, Ethan, o personagem de John Wayne, parte em busca de uma menina que foi raptada pelos indios. Com ele vai um jovem mestiço e no filme vemos a transformação desse jovem em homem. O momento de sua transformação seria aquele em que ele se rebela contra Wayne. O filme, feito em 1956, coincide com esse que foi o ano do rock, o ano de Elvis. De repente, com a ajuda dos beats, se vendeu para a primeira geração americana criada em frente à TV, a ideia de que virar adulto era se rebelar contra os adultos. Estranho não? Ser adulto era brigar com um adulto, na maioria das vezes, o pai. As gerações seguintes aceitaram com alegria essa verdade. Essa nova verdade. Para ser um adulto voce tinha de enfrentar o mais velho e além disso criar um modo novo de ser. Voce tinha de nascer outra vez. 
   Nesse processo muitos afundaram, outros se perderam e ficaram brigando para sempre e a maioria simplesmente desistiu. Se para ser adulto eu tenho de ser brigão, rebelde, e ainda criar um novo EU, bem, eu prefiro ficar onde estou. Começou aí a infantilização. O jovem, que tinha de ser herói, entrega os pontos. As mães adoraram isso. Abriram os braços para aquele novo filho, um filho que queria ser novo para sempre. E o filho, perdido entre o dever da rebeldia e a incapacidade de se recriar, ficava num meio termo irritado. Vergonha e prazer. Vergonha de ter desistido, prazer pelo conforto. 
  Essa a minha hipótese. E mais uma vez sou obrigado a jogar a culpa sobre os teens do rock. Os hippies e etc. Vamos voltar ao filme. O jovem, papel de Jeffrey Hunter, amadurece ao se afirmar perante Wayne. Mas, e Ethan? O que ocorre com John Wayne? Ele parte porque odeia os indios. Quer na verdade se vingar. Encontrar a menina é secundário, ele quer o sangue. Mas ao encontrar a menina, agora crescida após anos de busca, Ethan faz o mais belo movimento da história do cinema ( segundo Godard e segundo este que vos fala ), ele a perdoa, a aconchega e a leva de volta para casa. Devolvida a menina à comunidade, o jovem que o acompanhou prestes a se casar, Ethan-Wayne parte. E temos o mais belo final de filme da história, Wayne na porta, indo, mas na verdade sem querer mais partir. John Wayne, e tinha de ser ele, mostra para quem quiser ver, o que significa ser adulto. Ethan começa imaturo e é ele aquele que realmente se transforma. Gosto de pensar que a partir dali ele encontrou uma mulher e foi viver numa cabana de madeira, onde criou dois filhos. 
  Escrevi mais de uma vez aqui que esse filme salvou minha vida. E que sempre que o revejo sinto meu pai próximo de mim. Fosse refeito hoje eu tenho a certeza que todo o foco seria no jovem e o personagem de Wayne seria secundário. 
  Agora falo sobre o cinema de 2015. Gostei da última entrega do Oscar. Mas uma coisa sempre me incomoda. A cada ano que passa os atores parecem mais e mais crianças. Pensava que era pelo fato de que a cada ano fico mais velho. Mas não. Eles são cada vez mais frágeis, delicados, vulneráveis, ou seja, infantis. Sua forma fisica e suas vozes combinam com os filmes que lhes são oferecidos. Filmes para crianças que brincam, sem saber, de ser adultos. Gosto muito, às vezes adoro, dos filmes de Tim Burton por exemplo. Como agora gosto dos filmes de Wes Anderson. São filmes bonitos, às vezes tristes, às vezes cômicos. E sempre profundamente infantis. O visual é o mesmo dos livros para crianças e eles têm uma imensa incapacidade de exibir relações entre homens e mulheres que não se pareça com um cartoon. Ou um conto de fadas. Isso não os desqualifica. São ótimos. E no caso dos dois, são honestos. Nenhum dos dois fica fazendo pose de adulto. São assumidamente infantis. E essa pode ser, eu não sei, uma característica adulta: assumir suas criancices. 
  O trágico é quando um filme infantil é visto como obra de um adulto. Não vou citar Lars Von Trier, um adolescente de 14 anos, embirrado, que brinca de chocar os pais.  O que devo dizer é que a maioria dos filmes de arte de agora são filmes de arte feitos por colegiais. Eles falam daquilo que teens conhecem, tristeza, solidão e raiva, e se perdem completamente quando falam do que teens não sabem, mas imaginam saber, amor, familia, trabalho, morte. Tudo é borrado com as cores de um adolescente egocêntrico que se imagina inteligente, culto e cheio de verdades a serem ditas. Nada é mais infantil que isso. Desse modo temos montes de filmes que brincam em ser Kubrick, Hitchcock ou Bergman. Mal sabem eles que nada foi menos infantil que Kubrick, Hitchcock e Bergman. Se soubessem de seus limites eles imitariam Bunuel, Fellini ou Welles, que foram gênios, mas que sempre mantiveram um pé na infantilidade. No caso dos três, consciente. 
   Preciso falar agora que quando Picasso diz que passou a vida lutando para voltar a ser criança, isso não significa que ele lutou para voltar a colecionar brinquedos ou a brincar de Batman. Como adulto, ele queria poder adentrar o mundo simbólico e sem palavras da criança. Era um adulto vendo o mundo infantil. Não pensem que Lewis Carroll ou James Barrie eram infantis. Walt Disney entendia as crianças. E por isso não poderia ser uma delas.
  Crianças odeiam ser crianças. Teens detestam não ser adultos. Só adultos infantilizados amam essa fase da vida. Ser criança é ter medo. Medo de ser abandonado. Medo de se perder na rua. Ser criança é estar sempre de olho em si-mesmo. Ligado na sua fome, sua sede, sua dor, seu desejo. Não existe o voce. Tudo é eu. O mundo mágico e lindo existe. Mas a criança não pensa nele, ela está dentro dele. É o adulto que percebe sua beleza quando já saiu dele. Ele é real. Tão real que na infância mal se percebe. Adolescentes são como crianças em quase tudo. Menos no contato com o voce. O voce existe e esse ser dá ao adolescente raiva, por ter invadido seu mundo, e desejo, por se parecer com uma porta. O adulto de 2015 muitas vezes fica na ansiedade dessa porta. Com a mão na maçaneta. Sem a abrir. E pode crer, eu sei do que falo.
   Ele usa bermudas. Fala montes de palavrões. Adora brincar. Nada parece muito sério. E é cheio de teorias adultas, verdades filosóficas. Vive mudando de metas. Viaja, experimenta, procura descobrir quem vai ser quando crescer. E tem 45 anos. 
   Mora com uma mulher. Mas não têm filhos. Quem sabe um dia. Moram juntos como quem brinca de casinha. Sem nenhum compromisso do mundo dos adultos. Sem filho, sem papel e sem casa comprada. Tudo provisório. Tudo de brincadeira. A palavra :: para sempre:: os apavora. 
   Não falarei do fim das cerimônias tribais. Dos atos que faziam do menino um adulto. Prefiro falar de duas que viraram brinquedo. 
   Meu irmão serviu o exército. E servir poderia ser um ato de virar adulto. Ele mudou, endureceu. Mas não ficou adulto. Por dois motivos. Primeiro porque servir é um ato sem significado algum. Ninguém mais fala que servir é virar homem. E o principal, voce sai de lá como entrou. O mundo não reconhece em voce um adulto, Na verdade te chama de azarado.
  O outro ato eu o cumpri. Entre católicos, aos 14 anos, voce é crismado. Crisma é o momento em que o menino, que foi batizado quando bebê, confirma a opção dos pais pelo Papa. É quando ele deve pensar na sua fé e a aceitar. Ou não. Eu a fiz como um zumbi. Não fazia a menor ideia do que era aquilo. E nem meus pais sabiam muito bem. 
  O limite do exército seria a guerra. E eu acho que nem a guerra hoje deixa de ter seu aspecto de brinquedo. E o passo após a crisma é o casamento na igreja. Cerimônia que hoje pode ser revertida em divórcio. O casamento é agora uma festinha de conto de fadas.
  A saúde da mente se exerce no equilibrio, impossível, entre o mundo sólido e o mundo interno. Toda dualidade deve ser aceita. Não podemos ser adultos absolutos, isso seria outra doença, mas ser adulto significa ser responsável por decisões, ser capaz de defender e abrigar pessoas, ser parte de uma comunidade que se aceita e não que se impõe. E ao mesmo tempo ter contato com esse mundo criativo e simbólico da infância. Mas sabendo que é o mundo DA infância, vivo e presente, mas nunca o único mundo possível e desejável.
   Nada  mais infantil que um filme de Tarantino, de quem eu também gosto. 
   Você consegue recordar um só casal adulto nos seus filmes? Há apenas um, Bruce Willis e Maria de Medeiros em Pulp Fiction. Ele cuida dela. Ela não é perfeita. Eles estão na cama apenas conversando. Um lapso na obra de Quentin, toda ela feita de mulheres gostosas e perigosas e de homens que falam como garotos na lanchonete da esquina. 
   Em um mundo de Homem de Ferro, onde Batman e James Bond são levados a sério e onde cada vez mais as bandas de rock se parecem com menininhos brincando no quarto,  ser adulto se tornou a maior e a única das rebeliões.

AVONMORE, MAIS DE BRYAN FERRY

   O som de Bryan Ferry começou a ser criado em 1982, no último disco do Roxy Music, o luxuoso Avalon. Esse som, criação única, é um tipo de delicada tapeçaria, pontos musicais que se entrelaçam. Podemos também chamar de flocos de neve em caleidoscópio. É um som frio, cheio de volteios, ângulos que se abrem para serem fechados em seguida, riffs que ameaçam nascer e desaparecem. As batidas são sempre negras, mas elas são partidas, retomadas, perdidas. Em meio a essa massa sonora vagueia a quase sonâmbula voz de Ferry, sussurrante e aliciante. Sempre.
   Desde então ele nunca mais mudou. Disco após disco, ele apenas se contentou em aperfeiçoar essa tapeçaria, às vezes com grande sucesso ( Taxi ), às vezes errando feio ( Olympia ). Mesmo ao gravar seu disco de standards da música pop dos anos 20/30, As Times Goes By, ele conseguiu fazer trompetes e banjos soarem como seu costumeiro tricot. Avonmore não atinge as alturas de Taxi, ou mesmo de Frantic, ( estou falando apenas dessa fase costureira. Os discos solo anteriores a 1982 não contam ). Por outro lado, o novo disco nunca desce a ladeira como o citado Olympia, ponto mais baixo de toda a carreira do romântico maior da Inglaterra. 
   Como é esse som? O clip que postei, apresentação no show de Jay Leno em 1993, duas faixas de Taxi, demonstra esse som em seu modo mais simples. Em disco Bryan chega a usar 3 baixos, 3 baterias e 4 guitarras tocando juntas. É um sinfonia de eletricidade, mas que mesmo com essa montanha de som, soa sempre leve, delicada, fina como gelo. No novo disco ele volta a usar Johnny Marr, Flea, Jonny Greenwood, David Gilmour, Marcus Miller... e claro, o maestro, o grande Nile Rogers. 
   Nile está presente nesse clip de 1993. Egresso da cena disco, lider do delicioso Chic, em seu auge, entre 1982/1990, Nile produziu Bowie, Madonna, Duran Duran, Debbie Harry, Robert Palmer e um imenso etc. A guitarra dele pulsa e ela é a linha que une todos os instrumentos que gemem e arremetem durante as sonhadoras canções de Ferry. Nesse video temos também Robin Trower, guitarrista inglês que por volta de 1975 foi chamado de novo Hendrix. Sua guitarra cheia de ecos e wah wah enfeita e dá feeling ao som. São duas guitarras no palco, no disco são quatro, o efeito se expande. 
   Bryan Ferry abraçou esse estilo e nesses trinta anos jogou fora uma de suas maiores características, a surpresa. Em entrevistas ele diz ter se encontrado após as buscas feitas entre 1972/1982. Esse estilo, em seus auges, é muito sedutor, ele pega nossa alma e a leva para fluir por aí. E tem o espírito de amores perdidos e amores novos. 
   Bryan Ferry não muda. E aqui é um prazer dizer isso. Ferry é Ferry. Again.

Bryan Ferry & Robin Trower - I Put a Spell on You + Will You Love Me Tom...



leia e escreva já!

ALAIN DELON/ CARY GRANT/ HAWKS/ DORIS DAY/ ANNE BANCROFT/ SPENCER TRACY/ AL PACINO

   O INVENTOR DA MOCIDADE ( Monkey Business ) de Howard Hawks com Cary Grant, Ginger Rogers, Charles Coburn e Marilyn Monroe.
É o primeiro fracasso de bilheteria de Hawks e um dos raros de Cary. Hawks vinha de 15 anos seguidos de sucessos quando resolveu fazer na Fox este roteiro de Lederer e Diamond. Os dois são roteiristas que trabalharam com Billy Wilder, e isso explica muito sobre o filme. O humor tem a grossura despudorada de Billy. Não tem o estilo humanista de Hawks. De qualquer modo o filme é tão louco que diverte, além do que o elenco é sensacional. Cary é um cientista que tenta criar a fórmula do rejuvenescimento. Um macaco cobaia mistura elementos e Cary bebe aquilo sem querer. Súbito ele volta aos 19 anos. Passa a ter o comportamento de um teen. Ginger é a esposa, que acaba por voltar aos 14 anos. Monroe faz uma secretária e este é dos seus primeiros papeis importantes. Ainda gordinha, ela é tremendamente sensual. O final, com Cary voltando aos 7 anos e amarrando um adulto na árvore para tirar seu escalpo é uma mistura de hilariedade com o incômodo do excesso de ridiculo. O filme se equilibra o tempo todo nesse fio, de um lado uma soberba alegria, de outro o ridiculo. As cenas com Ginger passam todas do ponto. Cary mantém a elegância. Um grande ator! Quer saber? Após seu encerramento deu vontade de ver outra vez. Nota 7.
   CARÍCIAS DE LUXO de Delbert Mann com Cary Grant, Doris Day e Gig Young.
Doris é a super-virgem. Desempregada, ela conhece o super rico Cary Grant. Ele tenta a seduzir com dinheiro. E consegue! Mas ela é virgem e defende sua honra. Bem, não poderia haver tema mais antigo. Imagino um cara de 15 anos vendo isso! Belos cenários e um Gig Young hilário como um paciente de um freudiano, não conseguem salvar o filme. Cary parece desinteressado, entediado ( este era o tempo em que ele descobria o LSD ). Nunca ninguém, naquela época, percebeu como Doris era sexy? A voz dela é de erguer defunto! Nota 4.
   STANLEY AND LIVINGSTONE de Henry King com Spencer Tracy, Walter Brennan e Cedric Hardwicke.
As convenções do filme de aventuras foram criadas por 3 grandes aventureiros da vida real: Raoul Walsh, Howard Hawks e Henry King. Todas as técnicas criadas pelos 3 são usadas até hoje. Pode-se enfeitar um filme o colocando no espaço, em outra dimensão ou fazer do mal o bem, mas o esquema é exatamente o mesmo. Aqui temos um dos melhores exemplos. Feito em 1939, o filme mostra Stanley, feito por um brilhante Spencer Tracy, partindo para a África desconhecida, em 1870, atrás do paradeiro de Livingstone. Em hora e meia o filme, com ritmo, tem um pouco de tudo: exploração do desconhecido, humor com o amigo do heróis, encontros inesperados, suspense e depois a edificação e o crescimento do herói. Ele retorna à sua terra como um homem melhor. Até uma cena de tribunal temos. Henry King foi um grande diretor. E como ser de seu tempo, dirigiu de tudo, westerns, comédias, dramas e musicais. Nota 8.
   O RIO DA AVENTURA de Howard Hawks com Kirk Douglas e Arthur Hunnicut.
O dvd tem belos extras. A voz do velho Kirk falando do filme, fotos de Michael Douglas aos 6 anos visitando o pai no set e Todd MacCarthy, um dos melhores críticos, falando do filme. Mas, surpeendentemente, a imagem não foi refeita e a foto está em mal estado. Feito em 1952, é o segundo maior fracasso da carreira de Hawks. O público da época estranhou esta aventura lenta, calma, primeira experiência do estilo Hawks de filmagem, que seria mais bem desenvolvida nos filmes seguintes. Como é esse estilo? Focar nos personagens e não na ação. Veja: aqui temos Kirk como um aventureiro no Oeste que vai com um grupo à procura de peles em terras inexploradas. Sobem o rio e encontram aventuras. Muitas. Mas todo interesse do filme é mostrar o cotidiano, o dia a dia, a personalidade de Kirk e de seus companheiros ( dentre eles um excelente Hunnicut fazendo um velho do mato ). Desse modo a sensação que fica é de pouca ação e de muito papo furado, o tal estilo Hawks. MacCarthy descreve bem, achamos o filme falho, mas quando termina queremos mais. Acabamos por gostar daquelas pessoas e desejamos sua companhia. É isso que acontece com os bons filmes de Hawks, o mais discreto dos mestres. O filme tem falhas sim, mas a gente acaba querendo mais. Nota 8.
   MOMENTO DE DECISÃO de Herbert Ross com Shirley MacLaine, Anne Bancroft, Tom Skerrit, Mychail Baryshnikov, Leslie Browne.
Este filme de 1977 tem um recorde. Junto com A Cor Púrpura, é o maior perdedor da história do Oscar. Foram 11 indicações e nenhum prêmio. Na época era moda falar mal dele. Ou melhor, os críticos o detestaram, o público adorou. Hoje a situação é a mesma. Não virou cult. Conta a história do reencontro de duas mulheres de meia idade. Amigas antigas, as duas foram grandes bailarinas. Uma largou tudo ao ficar grávida. A outra persistiu e se tornou estrela em NY. No reencontro se faz o balanço, a briga, a reconciliação. Eu adorei o filme. Assisti sem a menor expectativa e gostei muito. Me emocionei. Ele mostra com sagacidade a questão da idade, da fama e da solidão. E Anne está soberba! A diva é sempre humana, e a mulher é uma diva. A cena da briga entre ela e Shirley foi homenageada em Dancin Days, a novela. Gilberto Braga é um grande fã do filme. A fotografia de Robert Surtees impressiona muito. E vemos a estréia da super estrela e do sex symbol da época, Baryshnikov. Foi indicado a coadjuvante! Faz um bailarino hetero e playboy. Bom. Vemos Marcia Haydée nas cenas de dança, em seu auge como bailarina. Um lindo filme que teve o azar de concorrer nos ano de Annie Hall, Julia e Star Wars. Nota 8.
   UM MOMENTO, UMA VIDA ( Bobby Deerfield ) de Sidney Pollack com Al Pacino e Marthe Keller.
Assisti este filme no cine Astor, em 1978. Senti um profundo tédio. Revendo agora, senti um profundo desgosto. É o pior filme de Pollack, isso é aceito por todos, mas é também o pior de Pacino, e olhe que Pacino fez muito filme ruim. Uma sopa melosa e lenta, metida à filme de arte, sobre um famoso piloto da Fórmula 1. Ele perdeu suas raízes, virou um tipo de robot arrogante. Ao visitar um piloto acidentado na Suiça, conhece uma italiana doidinha que está morrendo...O filme evita o drama e vira um vazio. Tudo é seco e lento. Argh. Vemos James Hunt, Pace e Depailler nas cenas de corrida....que duram cinco minutos!!! Uma enganação...fuja! PS: Keller era um alemã que tinha corpo e rosto, bonito, de Valkiria. Como acreditar que frau Keller é uma italiana maluca????? Aff....ZERO!
   O SOL POR TESTEMUNHA de René Clement com Alain Delon, Maurice Ronet e Marie Laforet
Simplesmente o filme mais chique já feito. Itália em 1960 alcançou um nível de elegância sem ostentação que transparece em cada segundo do filme. Ronet descalço e sem camisa, parece o mais chique dos homens. Delon, com terno claro, com dock sides, com polo, sempre parece modelo da Vogue. Mas, eis o charme, tudo sem formalidade, sem afetação, com certo desleixo. Foi o auge do estilo mediterrâneo, que todos procuram e quase ninguém o revive. Clement consegue, ao seguir o livro de Patricia Highsmith, fazer um filme à altura de suas imagens. Ele é lindo e tem muito suspense. Gostamos de canalha Delon. O ator se confunde com o tipo. Houve ator mais diabólico e bonito? A refilmagem de 1999, de Minghella, colocou Matt Damon como Delon...aff!!! Jude Law era Maurice Ronet. O que era chique virou novo rico, parecia formal e Damon era um teen vestido de adulto. Aqui não! Até a carteira de Delon parece elegante! E temos o final, um dos mais inesperados da história. Um grande filme e um super sucesso de bilheteria. DEZ!!!!!!

ALÉM DOS LIMITES DO OCEANO- MAURICIO OBREGÓN

   O autor, colombiano, foi diplomata e navegador. Também cruzou mundo pilotando aviões. Um desse homens que sentem a febre da ação. Sem deixar de cultivar a erudição. Um tipo de renascentista.
    Eu havia lido este seu livro em 2004 e o reli agora. Fino, cheio de mapas e desenhos, ele fala das primeiras viagens por mar. O inicio é um pouco árduo. Mauricio descreve as estrelas, os pontos celestes que ajudam a navegação em alto mar. Mas as coisas se tornam muito interessantes quando ele passa a falar dos polinésios. Em suas canoas, onde cabem até 50 remadores, eles cruzava o Pacífico. Foram os mais habeis marinheiros de todos os tempos.
   Depois Obregón segue a Argonáutica, o texto grego sobre Jasão, e refaz a saga do herói. Navega do Mediterrâneo ao mar Negro, retorna usando o Danúbio e contorna o Adriático. 
   A Odisséia lhe dá o caminho para Oeste, chega às portas do Atlântico e margeia a África do Norte. Obregón, quando digo refaz, refez mesmo, navegou seguindo as descrições de Homero.
   Por fim, as navegações dos Árabes e Vikings. As longas rotas muçulmanas, da África à Ásia. e os nórdicos, Islândia, Groenlândia e América.  Lenda verdadeira, pois provas foram encontradas.
   Pena ser um texto tão curto!

Tanita Tikaram - Twist in my sobriety (HD 16:9)



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CAT POWER & TANITA TIKARAN

   No final dos anos 80 eu conhecia o grande disco de Tanita Tikaran. Como se feito fosse dentro de uma catedral, ele remete diretamente à Van Morrison. Mas também à Rickie Lee Jones. Cheio de sombras, úmido, a voz dela vem como de cavernas. Ela é quente. 
  O tempo passou e o mundo preferiu virar seus olhos para Bjork, a grande chata. Tanita sumiu do mainstream. ( Existe um mainstream alternativo hiper ativo e duro como aço ). 
  Cat Power tem o mesmo timbre de voz e surge dez anos após Tanita. No fim do século XX. Cat é ainda mais espartana e franciscana. O som é feito de pequenas notas e as canções são feitas só de refrões em busca de um arranjo. Van Morrison outra vez. Só que em clave feminina. Como o irlandês, ela joga uma melodia e discorre sobre ela. São hinos. Cantilenas. Remetem às celebrações de domingos. 
  Uma amiga me presenteou com 3 cds de Cat Power. Ela achou que eu gostaria. Os cds são como ela: melodias em busca de redenção. Delicadezas que insistem em ficar. Sombras impossíveis de iluminar. Bonitas como as maiores mágoas. Longas pernas pálidas e longos olhares despidos.
  Tanita é melhor. Mas Cat me assobia. E anda pela esquina.

Cat Power - Good Woman & Come on in My Kitchen (w/ Buddy Guy - Traffic M...



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UMA HABILIDADE PERDIDA...J.R.R.TOLKIEN, O SENHOR DA FANTASIA- MICHAEL WHITE. PORQUE GENTE COMO EU DETESTA O SENHOR DOS ANÉIS.

   Em 1997, numa eleição feita por uma rede de livrarias inglesa, O Senhor dos Anéis foi eleito o melhor livro do século XX. Com profunda indignação, autores modernos expressaram um profundo ódio pela coisa. Uma crítica feminista chegou a dizer:- Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus, meu Deus!!!! Onde chegamos!!!!!, um outro disse:- Tolkien? Não é aquele cara que escreve livros tolos para adultos mentalmente deficientes?
 Suspeitando de fraude, o jornal Daily Mail fez outra pesquisa. Mesmo resultado, com Ulysses em segundo lugar. No auge da raiva, uma associação de leitores cultos da Grã-Bretanha fez mais uma votação. Essa incluindo livros de todos os tempos. Por 120 votos de diferença, Tolkien venceu Jane Austen e deixou Dickens em terceiro. Well...
 O autor desta bio tem uma boa tese. Mais que boa, talvez seja um fato. No modernismo, começado com Flaubert e desenvolvido por Henry James, o estilo importa mais que o enredo. Voce pode escrever sobre qualquer coisa, voce pode escrever sobre nada, contanto que alí haja um estilo próprio, uma marca de autoria, um sinal de voz única. Esse movimento, muito interessante em seus começos, levou a um impasse, o fim do enredo e com ele a morte da habilidade em se narrar uma história. Mais que isso, a incapacidade de se criar personagens. Livros modernos passaram a falar apenas do eu e de mais nada. Para White, Tolkien foi e é tão odiado por jogar na cara de certos escritores sua incapacidade em escrever. Sim, em escrever. Não sabem narrar, não conseguem inventar uma história, não têm o dom de construir livros coerentes em si, ricos de invenção e de personagens, criativos e organizados. Sabem apenas falar de si-mesmos. São impotentes em criação e sobretudo em imaginação. 
  Não precisei ler este livro para aceitar essa tese. Tentei ser um romancista por toda a vida e desisti porque percebi que não sei escrever. Ou melhor, não consigo criar. Tudo o que escrevia eram confissões sobre coisas que vivi, presenciei ou sofri. Escrevo, portanto, aquilo que não gosto de ler. Por honestidade, desisti. Foi assim que me encantei por aquilo que não tenho, e que poucos hoje têm ( e quase ninguém confessa ), o dom de criar. Inventar uma boa história e saber contá-la, de forma clara, encantadora, rica e excitante. Alguns conseguiam unir o estilo moderno a esse dom criativo ( Nabokov, Borges, Bellow ) mas são raros. A maioria finge ter optado pelo hermético quando na verdade são apenas limitados. Jack Kerouac é um belo exemplo de escritor que escreve sem ter  a mínima criatividade. A lista não tem fim. Tolkien ao escrever criou personagens, cenário e narrativa. E assim pareceu ultrapassado em 1954, ano de O Senhor dos Anéis. Tempo em que Camus, Sartre e Moravia eram a moda. O que aconteceu foi a maior zebra do século: um autor conservador, careta, metódico, meticuloso e ultra-católico se tornar o ídolo de adolescentes rebeldes e criativos. 
  A história de Tolkien é fascinante por não ser boêmia. Ele não tinha vicio nenhum, pouco ligava para sexo, detestava tudo o que era moderno e só gostava de livros escritos antes da renascença. Achava Shakespeare fake, Cervantes um chato e Dante um mal exemplo. Amava narrativas antigas escritas em inglês arcaico. Sabia várias línguas nórdicas. Desprezava o francês. Foi professor em Oxford. E tinha uma dificuldade imensa em ganhar dinheiro.
  Sua infância foi um desastre. O pai foi para a África do Sul e Tolkien nasceu lá. Seu ambiente até os 3 anos foi esse, longas estepes quentes. A mãe passava mal no calor e ele voltou à Inglaterra com ela e um irmão. O pai, que trabalhava muito, ficou para juntar mais dinheiro. Acabou morrendo meses depois, com uma infecção. A mãe, muito pobre, foi morar com parentes em casas lotadas. Quando ela se converteu ao catolicismo toda a família lhe virou as costas. Ninguém a perdoou por virar uma papista. Poucos anos depois ela morreria de diabetes. Tolkien sempre consideraria que ela fora morta por abandono, por ódio religioso, por perseguição. 
  A vida de Tolkien passa a ser uma confusão. Mora com parentes. Alguns menos ruins, outros terríveis. Ele e o irmão mais jovem ( 3 anos de diferença ), vagam como ciganos, mudam de casa sem parar, e estudam. Um padre os ajuda e esse padre se torna um novo pai para eles. Tolkien consegue passar em Oxford e sua vida será para sempre acadêmica. 
  Se enamora de uma moça 3 anos mais velha, Edith. Têm um longo noivado. Tolkien luta na Primeira Guerra,conhece as trincheiras, vê amigos morrerem, fica doente, consegue sobreviver. Se casa e será pai de 4 filhos. Amoroso, sua vida passa a ser uma luta por dinheiro.
  Escreve de noite. Narrativas épicas sobre um mundo de fantasia. Deixa sua imaginação fluir. Escreve muito, corrige muito, reescreve. Lança O Hobbit e faz sucesso. Não aproveita a maré e demora 17 anos para lançar outro livro. O Senhor dos Anéis sairá apenas em 1954, após mais de uma década de escrita, correção, dúvidas, negociações. Um sucesso imediato, a saga toma novo impulso em 1966, quando estudantes universitários o descobrem. Mais uma geração de fãs surge aí. Desde então novas gerações se sucedem e o livro nunca mais deixa de vender. São 120 milhões até 1995. Após os filmes, mais 10.
  Tolkien morre em 1973. Rico, mas ainda sovina. Discreto, com medo da fama, sem entender o porque de tanta adoração. 
  Como homem Tolkien era um daqueles ingleses que não mais nascem. Um homem que adorava conversar com outros homens, inseguro com mulheres, o tipo que considera o máximo de alegria ter um cachimbo aceso e uma poltrona quente ao pé da lareira. Passava noites com seu grupo de amigos ( C.S. Lewis era seu melhor amigo ), discutindo livros, religião ( Lewis era protestante até a medula ), aulas. Tolkien não tinha o menor interesse por politica, música ou arte em geral. Odiava comida francesa, adorava cerveja preta, tinha um excelente dom para as aulas, e nunca foi visto sem o cachimbo na boca. Falava com ele pendurado no lábio. Seu mundo era seu escritório, a coisa mais importante era o catolicismo. Rezava muito, acreditava no poder da fé e ia muito `a igreja. Era ecológico antes do termo ser moda, ficava bravo quando uma árvore era derrubada, tinha aversão a carros, TV e toda máquina. Vivia suspenso no mundo imaginário do século XI ou XII. E escrevia todo o tempo.
  Terminando a leitura fica a impressão que, assim como aconteceu com Chagall, por méritos próprios, Tolkien foi um grande vencedor. Não no sentido material. Vindo de uma infância de desamparo, de pobreza e de dor, ele, com a força de sua mente, venceu. Foi professor na maior das universidades e de quebra eternizou seu nome nos corações de milhões de leitores. A sorte nunca fez parte desse ganho. Na verdade ele venceu o azar. 
  Quanto a minha opinião. O título que usei foi propositadamente enganoso. Eu odiava os filmes dos Anéis sem os ter visto. E odiava Tolkien com o orgulho idiota de jamais o ter lido. Era como se ao dizer ODEIO TOLKIEN eu declarasse ser invulgar, culto e adulto, tudo ao mesmo tempo. Estranho fenômeno esse, ao NÃO fazer algo ( ler Tolkien ) me torno um leitor melhor. Uma verdadeira asneira de nosso tempo. Preconceito de classe. 
  Comecei a mudar no momento em que percebi que minha leitura estava travando. Lentamente eu perdia o prazer da leitura. Meu preconceito, a vontade que me foi imposta de só ler o que fosse ""relevante, único, brilhante"", dava ao ato de ler o sabor de coisa fria, estéril e ocasionalmente mórbida. 
  Lembro de quando isso mudou. Foi com Sherlock Holmes. E em seguida com os livros de Jeeves. O prazer de se acompanhar uma trama, de se conhecer personagens bem criados, de sofrer surpresas, de se crer naquilo que se lê, me salvou do abismo do desprazer. Reconquistei a magia da leitura. Foi uma sorte.
  Desde então respeito e invejo, assumidamente, todo criador. Admiro o dom, arcaico e primordial, que alguns poucos têm de nos fazer viajar através das palavras. De poder recuperar a hora da história ao pé do fogo. 
  Esse dom não tem explicação. E esse presente não tem preço.

Ultravox - Sleepwalk (Live St Albans 16.08.1980) HQ



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Ultravox - Vienna - Live 1983



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VIENNA=ULTRAVOX. O TEMPO PASSA...

   Estranho. Para onde foi a emoção? Aos 22, 23 anos eu me emocionava profundamente com este disco. Agora eu o acho bonito, mas não arrepiante. Seria porque eu evolui? Mas então porque um disco como Magic, de uma cantora chamada Cheryl Dilcher, um disco pop, comum, que eu amava aos 15 anos, hoje me comove como sempre comoveu? Magic não é melhor que Vienna. Será que encontro uma resposta satisfatória?
   Acho que sim. O garoto que amou o disco de Cheryl aos 15 anos era um garoto que desejava de um disco apenas aquilo que Magic tem, música e diversão. E isso ele sempre vai ter. Músicas de um pop festivo, às vezes tristonhas, sempre simples. O que eu buscava em Magic no ano de 1978 continuo obtendo em 2015. Vienna não. Porque?
   Em 1984, ano em que comprei Vienna ( ele é de 1980 ), os críticos mais interessantes se chamavam Pepe Escobar, Matinas Suzuki e Luis Antonio Giron. Nos textos de Pepe ele citava Keats, Huysmanns, Cocteau e Miró. Matinas falava de brumas londrinas, chá na madrugada e dores suicidas de amor. Já Giron escrevia como quem pinta porcelana, com extremo cuidado. Essa é a chave. Todos eles partiram, à partir de 1989/90 para outros campos. Giron foi escrever sobre música erudita e literatura, Matinas se debruçou sobre tecnologia e futurologia e Pepe foi viver fora, escreve sobre tudo, menos rock. Os três eram apaixonados pelo rock e pelo pop mais britânico dos anos 80, pop do qual Vienna é um belo representante. O que houve?
  Aos 22 anos eu tinha em Vienna a porta de entrada para um mundo novo. O mundo que ia da primeira geração romântica até Andy Warhol. O disco prometia o acesso, fácil e simples, ao mundo da Arte. identifiquei isso na primeira vez em que ouvi, anos depois, uma banda como Radiohead. Ele facilita a entrada na Arte, mas sem ser Arte. O ouvinte sente toda a emoção de coisas como poesia, pintura abstrata, cinema japonês e romances modernistas, SEM PRECISAR TIRAR OS FONES DO OUVIDO. ( Basta dizer que em todo o ano de 1984 eu li apenas 5 livros ). O que acontece então?
   Com o tempo eu conheci a fonte, o artigo genuíno, a tal Arte, e as emoções refinadas que Vienna parecia conter empalideceram. O que eu sentia escutando o disco agora sinto, de uma forma muito mais complexa, lendo, vendo ou ouvindo outras coisas. Vienna ficou lá. Foi trocado.
   Isso não pode acontecer com, por exemplo, o Led Zeppelin. Ou mesmo Bowie. O que eles dão só em música pop ou rock podem dar. O meu amor por eles sempre foi puramente musical e rock`n`roll, no caso do Led, e no caso de Bowie, musical e estilosa. Bowie era um dos artigos autênticos que Vienna anunciava. A emoção de ouvir Beatles ou The band permanece porque amamos ""apenas""suas canções. Em Vienna eu amava a música, mas essa música simbolizava e anunciava mais do que ela era. Essa é a tragédia de tudo que se torna passado sem volta.
  Mas é bonito. 

The English Beat - Get A Job/Stand Down Margaret (Live at US Festival 9/...



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The English Beat - Mirror In The Bathroom (Live at US Festival 9/3/1982)



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I JUST CAN`T STOP IT!- THE ENGLISH BEAT ( politica na ilha )

   No tempo de Clash, Police e Costello o que vendia ( na Inglaterra ) era ska. O movimento, chamado de Two Tone ( branco e preto ) misturava festa com o desejo socialista. Era tempo do começo da era Thatcher, ela batia forte na classe operária e o bando do ska botava fogo nas passeatas diárias. A ilha estava em convulsão. Os brancos da esquerda se uniram aos negros pobres de Brixton e juntaram tudo: deu no Two Tone. Pra mostrar a ideologia, roupas pretas e brancas. ( Me dá banzo do tempo em que visual era uma atitude politica ). A direita mandou os new romantics pra rua. Anti-ideológicos, deslumbrados com o glamour, amantes da nova Inglaterra made in USA, os romantics faziam um som que falava de noite, frio, viagens espaciais e bissexualidade. Sim, filhos de Bowie e de Ferry. Sim, a direita os amava. A esquerda....não. Os romantics venceram a guerra. No som houve um empate.
   Aqui falo de The Beat. Da trinca suprema foi o de menos sucesso. Mas menos sucesso em 1980 ainda é muito sucesso. Se o Madness era o que mais vendia e os Specials os mais radicais, The Beat tinha a pegada mais rock. É ska, mais ska que aquilo que foi feito na retomada do ritmo, nos anos 90 pelos americanos, mas é um ska com velocidade de punk, o que não acontecia com os outros dois. O disco que cito é seu auge. Depois viria o comercialismo maior e as brigas.
   Poucos discos possuem um som de baixo tão poderoso. Ele comanda tudo e ele pipoca nos ouvidos como uma bala ricocheteando em ravina. Seus pés  vão tentar acompanhar esse baixo coriscante, não conseguirão, irão morrer tentando. David Steele é o nome do cara. E tem a bateria. Essa é tipo pulga. Ela pula para onde voce menos espera. A velocidade no chimbal é alucinógena. Nesse contexto a guitarra poderia ser esquecida, mas não. Duas guitarras, uma se dedilha, a outra faz chung chung.... Tá feita a coisa. Mesmo após o arrastão de tantos anos de dance music, este disco ainda é soberba e aliciantemente dançante. E o discurso é punk. Punk estilo The Jam. De partido. Uma festa.
   Eu estive por lá. Em 1982. Vi as meninas de laranja e verde, minis e óculos escuros, no verão, bebendo os últimos goles do ska. Vi os new romantics começarem a dominar tudo, e transformarem a ilha nessa pasmaceira que dura até hoje. Acabaram com todo o fabianismo, toda a tradição de Shaw e Keynes e jogaram tudo ao ar. Londres optou pela festa de luz e droga. Deixou de lado a festa na rua, de ska e tambor.
   Escuta isto. 1978-1983 foi o penúltimo orgasmo da música inglesa. The Beat foi um de seus centros. Enjoy.

O POVO DESAPRENDEU A OUVIR. E AGORA DESAPRENDE A OLHAR.

   Uma conversinha rolou. De atroz burrice. Comparar Cisne Negro com Birdman.
   Qualquer inteligência mediana há de notar que o primeiro é um horror.
   E o segundo uma piada.
   Posto isso, entenda como quiser.

The Tales of Hoffmann (1951) - The Tale of Giulietta



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MARCEL CARNÉ/ POWELL/ TRUFFAUT/ MELHORES FILMES DA FRANÇA

   O BOULEVARD DO CRIME de Marcel Carné com Arletty, Jean Louis Barrault, Pierre Brasseur, Maria Casarés
Foi eleito, a coisa de cinco anos, o melhor filme francês de todos os tempos. Será? Esta foi a minha segunda visita a esse épico de 1945. Com mais de 3 horas, trata das paixões, misérias, ilusões de um trio ligado ao teatro. Arletty faz a atriz que todos amam, Barrault é Pierrot, o ator ingênuo que a adora. Brasseur é um ator-astro, cheio de si. Ao redor deles uma multidão de ladrões, nobres, escroques. Tudo lembra Balzac. É uma painel da França do fim do século XIX. Ruas com multidões, lixo e luxo. Tudo no filme é superlativo. A fotografia, o cenário, a música. E todos os atores. As interpretações são ao estilo francês puro, palavrosas e posadas. Hoje lembram cinema moderno, envelheceram tanto que viraram novidade. O roteiro, do poeta Jacques Prévert é brilhante. O filme varia entre poesia, drama pesado e comédia leve. Crime e vingança. É o maior filme da França? Não sei se é, mas o título não fica mal. Para mim existem 3 grandes filmes que merecem o título: este, Orfeu de Jean Cocteau e O Atalante, de Jean Vigo. Com vantagem para a obra-prima de Vigo. Claro que há ainda Clair, Renoir, Clouzot, Godard, Bresson, Melville, Tati, Truffaut...mas estes 3 são gigantes, amplos, completos. Cada um a seu modo, Vigo é intimista e simples, Cocteau é simbólico e hermético e Carné, belo e imenso.  Um filme que todos devem ver. Nota DEZ.
   CAPITÃO PIRATA de Gordon Douglas com Louis Hayward e Patricia Medina.
Aventura padrão de piratas dos anos 50 da Columbia. Pirata inglês se envolve no resgate de seus companheiros capturados por espanhol mal em ilha do Caribe. Nada de especial, produção pobre, mas para quem como eu adora filmes de piratas, não decepciona. Nota 5.
   ALEXANDRE O GRANDE de Robert Rossen com Richard Burton, Fredric March e Claire Bloom.
Há quem diga que Burton deveria ter sido o maior ator de todos os tempos. Mas ele se vendeu à Hollywood e perdeu tempo e vontade em filmes como este. Uma produção grande sobre Alexandre da Macedônia. O filme...bem, como levar a sério Burton de peruca loura? Rossen era um diretor metido a artista, mas este filme afunda em roteiro sem ação e personagens ralos. Só March se salva. Seu Filipe, pai de Alexandre é complexo, sutil e ao mesmo tempo dramático ao extremo. Nota 2.
   O RIO SAGRADO de Jean Renoir com Esmond Knight e Adrienne Corri
Renoir saiu dos EUA e foi a Inglaterra. De lá à India fazer este que é um dos filmes favoritos de Wes Anderson. E é realmente um filme mágico. E, como tudo de Renoir, de uma simplicidade absoluta. Uma familia inglesa vive na India à beira de um grande rio. Vivem de uma fábrica de juta. São cinco meninas e um garoto. Um americano chega e passa a ser cortejado. Uma tragédia ocorre, mas a vida continua. Renoir consegue nos fazer entender um conceito profundo sem falar quase nada. Imagens belas de Claude Renoir, irmão de Jean, e apesar dos atores ruins, o filme se eleva `grandes altitudes. É seu melhor filme. Disso não duvido. Nota DEZ.
   A NOITE AMERICANA de François Truffaut com Jacqueline Bisset, Jean Pierre Leaud, Valentina Cortese e Jean Pierre Aumont
Me apaixonei por cinema em 1978 vendo este filme na Sessão de Gala da Globo. Eu quis ser Truffaut. Durante uns 3 anos ele se tornou meu diretor fetiche. E 3 anos na adolescência são dez como adulto. Então posso dizer que Truffaut atingiu sua meta, mostrar o amor ao cinema de uma forma simples, ingênua  e pura. É claro que fazer um filme não é isto, mas o que Truffaut quis foi mostrar o amor à coisa, nunca um documentário sobre a feitura de um filme. Godard rompeu com François por causa deste filme. O que mostra a cegueira de Jean Luc. O filme é sublime, encantador, o conto de fadas dos que amam cinema. E tem uma das melhores trilhas da vida de Georges Delerue, o que não significa pouco, pois Georges foi sempre magnífico! Nota DEZ.
   OS CONTOS DE HOFFMAN de Michael Powell
Eis...Powell, o irriquieto, o corajoso, faz um dos mais arriscados filmes da história. Filma os contos de E.T.A.Hoffman em sua forma original, ou seja, como ópera, inteiramente cantado. E com cenários que são extremamente artificiais. O resultado é radical, voce adora ou odeia. Eu não me dou bem com ópera, mas adorei o filme. Porque ele é de uma beleza irreal, artificial, embonecada, brega, surpreendente, mágica. Se voce quer saber o que seja o romantismo eis o filme. Ele nos apresenta todo o universo de Hoffman, mas também de Shelley, Hugo, Lamartine...e chega até Poe. Vejo que George Romero é um de seus fãs e isso não me surpreende, este é um filme de horror. A beleza aqui é morta, espectral, como aquela de um cemitério. Se voce gosta desse mundo, veja. Se voce é um prático pés no chão, fuja correndo. Nota.........?