UM MÉTODO PERIGOSO ( E UM FILME MEDROSO )

   Críticos podem causar mal. Veja o que aconteceu comigo...
   Lendo uma crítica leviana, que dizia que este filme era terrivelmente injusto com Jung, resolvi evitá-lo. Eu simplesmente não estava com saco para mais um discurso conservador sobre a "irracionalidade" de Jung. Nosso covarde mundinho já me expõe demais aos palpites de quem jamais leu Jung e julga por ouvir falar.
   Mas então um professor me fala que o filme, segundo ele "apesar de ruim", tem uma bela imagem do gênio suiço. Uma imagem pobre, americanizada, mas digna. Então resolvo vê-lo.
   O filme é chato, muito chato. E me impressiona seu conservadorismo. É um filme freudiano, ou seja: solene, sóbrio, controlado, modesto. O filme sobre Freud, feito por John Huston em 1962 é muito mais moderno. Talvez por ter sido feito no auge do sopro renovador de Lacan e Jung, ou simplesmente por ser de um diretor melhor.
   O filme é tão raso, que se voce, por acaso, não souber nada sobre quem foi Jung ou quem foi Freud, o que voce entenderá é que ali está uma história de amor inconvincente ( o filme de Huston é tão melhor que nem apela para qualquer tipo de love story ), e um conflito entre um velho autoritário e meio tolo e um jovem atrapalhado. Só isso.
   O que me surpreende é que o roteiro foi escrito por um grande autor, Christopher Hampton. Apesar de que desde LIGAÇÕES PERIGOSAS ele tem se perdido...
   Viggo Mortensen foi ator de teatro de Bergman. Ele faz Freud se parecer com o Bergman do tempo de FANNY E ALEXANDER. Montgomery Clift está muito mais próximo do que Freud  deve ter sido. Fassbender é o ator da moda. Qualquer coisa que ele fizer será elogiada. Não estou dizendo que eles estão ruins, apenas falo que os papéis são superficiais. Não respiram, não têm vida.
   Meu professor estava certo, o filme é lisongeiro com Jung. Ele é um jovem tentando achar uma voz própria. Freud não admite qualquer tipo de nova atitude. É o patriarca de seu condado. O filme tem a sensibilidade de mostrar a mania de todo freudiano de se colocar a salvo numa poltrona e analisar a vida, os amigos, os amores a segura distância, como se Freud os salvasse da existência. Puro comodismo conservador. 
   O final do filme é exemplar: Jung antecipa em sonho a primeira guerra mundial, e revela a diferença entre seu método ( muito perigoso ) e o de Freud ( seguro e modesto ). Jung não quer a domesticação, quer que cada um encontre seu caminho, que seja aquilo para que foi talhado a ser, seja um louco, um suicida ou um santo. Após um longo percurso ele organizaria sua teoria do "self". Freud reduz todo ser a uma questão de adaptação "ao mundo como ele é". Nada mais patriarcal que isso.
   Mas eu seria falso se não concordasse com meu professor, o filme é frio, chato, sem chama.
   E eu seria mais falso ainda se não dissesse que amo qualquer filme que se passe entre 1880/1920. A extrema elegância daquela gente, a luz fria daquelas janelas, as salas sólidas e viris, o som dos cavalos e das janelas que se abrem... é um filme bonito de se ver.
   Por fim, o filme joga uma ideia de que a separação entre Jung e Freud foi um tipo de "mal" para o futuro da psicologia. Tolice! A ruptura nos deu o livre desenvolvimento do pensamento de Jung, que jamais floresceria á sombra do vienense. E ao mesmo tempo o mais velho pode ficar em paz, sem o perigo de ideias que lhe eram intoleráveis.
   Mas na verdade o que o filme faz é reduzir tudo a uma torta love story. Báh!!!!!

O CASTELO DE OTRANTO- HORACE WALPOLE

   Otto Maria Carpeaux fala que o romance gótico surge em 1764 porque as pessoas, presas numa realidade cinza e rotineira, preferem sonhar com castelos e fantasmas do que com a casa da moeda ou as minas de carvão. Essa linha de criação vai se ramificar. Do romance gótico nascerá o terror, o suspense, o policial e a ficção científica. As pessoas continuam precisando de sonhos. E continuam preferindo sonhar com casas abandonadas, cemitérios enevoados, futuros escuros e úmidos ou vielas suspeitas. Não sonham com escritórios de advocacia, shopping centers ou academias de ginástica. O gótico surge para aumentar o limite da realidade. Dar a seu leitor algo mais, algo que ele perdeu, o sentimento do medo irracional, do susto, da surpresa inexplicada.
   A idade média ou a renascença não poderiam criar o gótico em romance. As pessoas viviam dentro desse mundo. Fantasmas, maldições, vinganças eram coisa cotidiana. O gótico surge quando tudo isso começa a desaparecer. As pessoas perdem o contato com esse lado do inconsciente e passam a sentir a necessidade de serem recordadas do que renegaram.
   Horace Walpole, nobre inglês que em 1764 lança este livro, é o pai de toda essa tradição. É óbvio que ele não fazia ideia do alcance que seu romance teria. O que ele desejou foi escrever um livro que entretivesse, que desse satisfação aos amigos. Mas eis que ele cai nas graças dos pequenos burgueses e se faz um best-seller. Desde então ele nunca mais saiu do prelo. Nele se encontra tanto a raiz de Poe e Emilly Bronte, como dos livros de vampiros para adolescentes e das novelas da Globo.
  Simples, curto, direto e cheio de furos. Tanta coisa acontece em tão poucas páginas que fica dificil resumir. Mas voce verá agora tudo o que ele contém ( e perceberá sua influência ):
  Nobre vilão que deseja se perpetuar no poder, mortes terríveis, filho que não sabe quem é seu pai, amor fadado ao fracasso, santas donzelas, duelos, aparições, alucinações, vinganças, maldições, arrependimentos... tudo isso em 120 páginas! O mais influente de tudo isso: um final melancólico, a impossibilidade de ser feliz. O herói viverá na saudade, numa tristeza compartilhada com sua esposa. Sementes do romantismo que nascia na mesma época.
   Os personagens nada têm de verdadeiro. Mudam de personalidade, de tática, sentem medo e de repente se esquecem dele. Walpole está longe da realidade psicológica de Stendhal ou de Balzac, seu foco é a ação, a surpresa. E ele consegue, o livro corre e nos leva com ele.
   Filho do momento revolucionário que nos fez ser o que somos, merece ser conhecido por aqueles que se interessam em conhecer o nascedouro de muitas de nossas fixações.
   Que tenha nascido no meio de uma sociedade culta, racional e ligada às aparências, diz muito sobre a função inconsciente do romance.

A ILUMINAÇÃO DA SIMPLICIDADE

   Acabei de assistir um filme: Sublime Tentação de William Wyler. Conta a história muito simples, de uma familia quaker. Nada de complexo há neste filme, nada. O que vemos é gente banal vivendo uma vida banal. Mas esse banal se reveste de encantos. Bem, não estou aqui para falar de mais um dos bons filmes de Wyler. Estou aqui para falar sobre a simplicidade.
   Eu, como filho de meu tempo, confesso que sou incapaz de compreender, ou pior, participar do que seja simples, puro, único. Numa aula de poesia junguiana confessei ser impossível para mim atingir o nivel de pureza que o poema analisado exigia. Porque?
   O professor fala de Baudelaire como um dos primeiros a perceber o fim da simplicidade, mas eu penso em Wordsworth. O fim da simplicidade se liga ao fim do mundo sólido. Quando, por volta de 1775, na Inglaterra, o progresso passa a "destruir" eternidades ( paisagens, modos de viver e depois valores ), a visão humana se torna fragmentária, os mais observadores se tornam caçadores do fugaz, seres que tentam salvar alguma coisa da voracidade do tempo que corre. Em um segundo estágio, a visão se faz desconfiada. O homem não crê mais naquilo que vê e passa a procurar o que está escondido nas coisas.
   O homem fragmento é o poeta do século XIX, o homem desconfiado é o do século XX, e hoje temos o homem que desistiu de olhar. Um ser exposto a tantas visões que se cansa, e deixa de observar. Bate os olhos e deixa de ver.
   Há pessoas, bastante século XX, que procuram o complicado em tudo. E que ao topar em algo simples tratam de complicá-lo, ou pior que isso, desvalorizá-lo. É como se a complicação fosse um valor. Uma peça de arte só poderia ser superior se fosse complexa, ininteligivel, múltipla. Essa situação cria dois tipos de "apreciadores de arte" bastante conhecidos: o chutador filosófico e o miope à vida.
   O chutador vê sentidos onde não há. Ele sempre explica as coisas, aumenta o alcance de peças que não possuem alcance algum. É incapaz de ver um filme por pura diversão, ou de se divertir com uma piada ou um cartoon. Só respeita o que é complexo. O miope é caso pior ainda. Esse já se tornou incapaz de perceber a simplicidade, ele a descarta sem a enxergar. Não faz conexões complexas, simplesmente nada percebe. Tudo para ele é tão complicado que ele meio que naufragou. Foge então do que lhe parece complexo e vive, que ironia, no mar da complicação. Óbvio que os dois vêem espelho em tudo. Toda obra lhes parece refletir seu "eu" ( um eu que eles desconhecem e pensam conhecer ). Quando encaram algo de puro, simples, direto, profundo, fogem sem entender nada. Percebem apenas que aquilo lhes parece infantil, comum, banal. Tolo engano. Mortal engano.
   O ser poético é aquele que ama apaixonadamente toda a simplicidade. Ele sente que o simples é superior, superior pelo fato de lhe parecer eterno, imortal, além da fugacidade de modas e tendências. Mas sua frustração vem do fato de que para atingir essa paz simples, esse nirvana do atemporal, ele deva utilizar caminhos complexos, fragmentados, hiper-racionais. Eis a contradição que cria a arte moderna.
   Assim temos Picasso tentando pintar como um selvagem, mas carregando em si toda a complexidade do modernismo. Temos poetas como Yeats, procurando a simplicidade nas tradições irlandesas, mas atingindo essa tradição com uma mente fragmentada, sofisticada, artistica. Fernando Pessoa, criando racionalmente um poeta do campo, e dando a esse poeta uma voz que se auto-analisa todo o tempo. Whitman, Pound, Drummond, Lorca, Rilke, todos procurando o simples, seja no passado, no futuro, no não-corporal ou na carne sólida. E todos sendo terrivelmente complexos nesse processo.
   Mas eles têm uma crucial vantagem sobre o mero vivente da época. Sentiram a iluminação do atemporal. Um momento em que souberam do sabor da simplicidade. E se enamoraram desse instante. E deram a essa simplicidade, que é perdida, mas ao mesmo tempo é imortal, o nome de poesia, ou de pintura, cinema, música, filosofia....
   O espectador/apreciador moderno ao ver o simples irá pensar: "mas é só isso?" O artista irá dizer: " Quanta beleza há nessa pureza!"
   Conheci o simples. Conheci o simples num quintal, numa chuva ou no sorriso. Chuva que era apenas chuva. Sorriso que significava apenas um sorriso. Me apaixonei por essa beleza para sempre. E tenho a absoluta certeza de que ela vive. Que aquela chuva continua a chover e o sorriso ainda sorri. Essa é a religião da arte. A fé na beleza. A certeza inquebrantável no simples.
   Mas sou tão complicado....
   PS: O tal professor gosta de dizer:
   Percebem o que é o moderno? Transformar o simples no complicado e vender isso como simplificação.
   Todo um aparato para se fazer algo tão antigo como fofocar, conversar ou brincar.
   Cercados por uma tecnologia complexa para fazer, de modo complicado, aquilo que 5000 anos atrás era feito  da mais simples das formas.
   O que mudou?

IDA LUPINO/ DRIVE/ MORETTI/ LINKLATER/ JACK CARDIFF/ FORD

   OS LEGENDÁRIOS VIKINGS de Jack Clayton com Richard Widmark e Sidney Poitier
Há uma crença, que compartilho, de que roteiristas dão bons diretores, editores se tornam bons diretores, até atores podem ser bons diretores, mas diretores de fotografia não se tornam bons diretores. Acostumados a ver filmes como apenas luz e sombra, se esquecem de ritmo e de história. Jack Clayton pode ter sido um dos 3 ou 4 maiores diretores de fotografia, mas como cineasta ele nada apresenta. Este filme é pavoroso! Uma mixórdia que mistura vikings com árabes e a busca de tesouro. Elenco perdido, roteiro cheio de furos, aventura chatíssima. Fuja!!! Nota Zero.
   O MUNDO ME ODEIA de Ida Lupino com Edmond O'Brien, Frank Lovejoy e William Talman
Godard disse em seus bons tempos que para se fazer um filme bastava uma arma e uma garota. Depois ele complicou tudo e passou a crer que era preciso uma tese e uma filosofia. Aqui temos uma arma e uma garota na direção. Ida Lupino foi uma diretora num tempo em que diretoras eram olhadas como coisa suspeita. O filme, barato, que fala de bandido que corre da policia em carro com dois reféns, tem clima, emoção, inventividade. É uma pequena jóia noir feita com cenários naturais e pouquíssimo dinheiro. Uma quase obra-prima do filme B. Nota 7.
   THE WAGON MASTER de John Ford com Ben Johnson e Ward Bond
Ford resolve filmar um bando de carroças crusando o deserto. Para isso usa uma história de mórmons que são conduzidos por cowboys até a terra onde viverão. Mas é tudo desculpa, o que Ford quer é filmar cavalos, pó, sol e rochas. E vemos por duas horas alegres pioneiros conduzindo sua caravana. O clima nas filmagens foi de pura amizade. Acampados, longe de Hollywood, Ford podia se dar ao luxo de filmar o quase nada. Nota 7.
   DRIVE de Nicolas Winding Refn com Ryan Gosling, Carey Mulligan e Albert Brooks
Criticos muito desavisados falaram em Tarantino. Será que esses caras viram algum dia um filme de Quentin? Este em nada lembra o grande cineasta americano. Trata-se de um filme bastante desequilibrado. Temos um roteiro de uma pobreza constrangedora, e ao mesmo tempo uma direção forte, que jamais se deixa acomodar. Na verdade seria um filme sobre o vazio, o vácuo na cabeça de um driver. Bastante aparentado aliás, com um certo filme genial de Scorsese, ele nos permite fazer um paralelo: o driver de 1975 seria exagerado, paranóico, saturado de energia demais. Aqui, o driver 2012 é vazio, sem nada em seu interior, quase catatônico. Um amigo lembrou de Lynch vendo este filme. Não. Lynch é cheio de simbolismos, de pistas, labirintos cheios de sentido, aqui nada temos, o que vemos é tudo o que existe. O filme é um tipo de filme dos anos 80 ( a trilha de Cliff Martinez, que foi guitarrista de Robert Plant, é hiper 80's, uma delicia brega ), com o estilo sonado e oco dos anos 2010. Não é um filme satisfatório. Quando pegamos a pista da influência de Taxi Driver ele se esvazia. Mas o diretor tem pegada, sabe enquadrar e conduzir cada ação em seu tempo certo. Não há uma só cena longa ou curta demais. Mas o roteiro....que mancada..... Nota 6.
   HABEMUS PAPAM de Nanni Moretti com Michel Picolli
Graças aos Céus!!!!! Temos um filme com gente de verdade!!!! Aqui há humanidade e não apenas um chavão psiquiátrico. As pessoas falam, sentem, sofrem, se perdem e, que bom, elas apresentam voz e rosto de pessoas comuns. Penso que o público irá até estranhar. Se desacostumaram a ver gente nas telas de cinema.  O roteiro, brilhante, fala de um papa que sente pavor em ser papa. Um psicólogo vem o tratar. Moretti, socialista e ateu, não fala sobre a igreja. O que ele exibe é a inadaptação a um papel. Quem em nosso mundo, de gente tão pequena, pode ser um papa? A mensagem é profunda e belíssima: quem consegue hoje seguir o papel que se espera que seja seguido? Quem consegue ser pai, professor, presidente, escritor, esposa, filho? Somos incapazes de assumir nossa função, ou será que esses papéis não têm mais porque? O filme, adulto, deixa questões abertas, não as responde. É o melhor filme do ano. Mais verdadeiro que O Artista, muito mais profundo que Os Descendentes, e incomensurávelmente mais complexo e honesto que todas as tolices "de arte" para crianças grandes e mimadas. Homens de verdade no cinema...nem tudo está perdido afinal.... Nota 8.
   DAZED AND CONFUSED de Richard Linklater com Mathew McCornaghy, Ben Affleck, Parker Posey, Milla Jovovich.
É um filme considerado clássico na América. Tarantino chega a dar-lhe o posto de número 10 entre seus favoritos. Mas em todo o mundo ele é ignorado. Feito em 1993, sem grana nenhuma e com atores então desconhecidos, ele não tem um "motivo". O que vemos é um filme quase que improvisado, sem uma só fala que seja relevante. É 1976 e estamos no último dia de aula. Os alunos fumam muita maconha, bebem , batem em calouros, namoram e vão a festa. Nada é muito forte, nada de muito dramático acontece. Não é uma comédia, muito menos um drama. O que vemos são os atores, ruins em sua maioria, se comportando como jovens "comuns". E nem mesmo um personagem central existe. Mas aí vem a surpresa. O filme consegue passar a sensação de verdade. Aquilo que vemos é realmente "como era". Não são garotos especiais e nem aquele é um lugar especial. Acabamos gostando de estar lá. Linklater foi esperto, usou músicas apenas daquele ano específico. Excelentes. Mathew esbanja carisma, faz um conquistador mais velho, de botas, voz de Marlon Brando e bigode à Redford. É considerado um grande papel. Os maconheiros convencem muito. E as meninas se parecem realmente com meninas de escola. Nota 7.
  

PRA QUE SERVE A POESIA? ( DE ACORDO COM HEGEL E OCTAVIO PAZ )

Hegel: "A lírica nasce do desacordo com o exterior. E a confiança no mundo interior do poeta."
( Antes de tudo um obrigado oa professor Alcides, aulas instigantes demais! )
A chave da frase de Hegel é; Confiança no mundo interior.
Houve uma fase terrível em minha vida em que me era impossível ler poesia. Tudo o que significasse adentrar àquilo que poderia escapar a minha razão me era assustador. Eu disfarçava esse medo com o rótulo de "sem tempo". Eu não tinha tempo para a poesia. Na verdade, não tinha a confiança.
Mas afinal, o que é e pra que serve a poesia?
Sigo agora uma ideia de Octavio Paz.
O tempo é como uma linha. Voce anda, pensa, teme, come, dorme, trabalha e lê. Sempre nesse fluxo temporal retilineo. Ontem eu comi peixe, hoje eu escrevi para Maria, amanhã irei ver meu avô. Então agora, imagine essa sua/nossa vida, como uma linha, começo, meio e fim, tudo encadeado em fluxo constante: --------------------
Agora pense. Eu ando pela rua dentro dessa linha de vida e tempo. E observo um lindo prédio, gente que anda, uma menina bonita, uma árvore. Até mesmo filosofo sobre a menina, sobre o tempo que passa e sobre a morte de tudo. Mas então, súbito, alguma coisa acontece. Como se fosse uma flexa, uma linha vertical cai sobre a linha horizontal.
Na rua alguma coisa se faz. E essa coisa que se faz NÂO faz parte da linha do tempo. Essa coisa não é um sentimento, não é uma filosofia, não é uma emoção. Essa coisa que quebrou a linha não pode nem mesmo ser escrita em linha, pois a escrita em linha é a escrita do tempo ordenado. Essa coisa é a poesia.
A poesia é a escrita não linear, não temporal, que salvo algo ou alguém da linha do tempo. Eterniza um ponto recolhido do esquecimento do instante que passa. Cito Paz:
" No aqui e agora algo se principia, uma luz especial cai sobre o momento. Esse fragmento se faz um mundo em si. Sem passado ou futuro, um eterno agora."
Ler poesia é sempre entrar em contato com o que sobrevive. O agora que fica sendo agora. Não há nela a ordenação da prosa. O começo e o fim. Poesia pode ser lida em qualquer ordem, sem senso de linha e de final. Pode ser relida indefinidamente. E quando bem realizada, é atemporal.
Gaston Bachelard disse:
" A poesia só pode ser mais que a vida se ela imobilizar a vida".
A poesia é portanto o momento que se faz para sempre um aqui e agora. Aquele segundo se torna longo como a eternidade e tudo o que nele havia se salva do esquecimento.
Todos nós ( será? ), vivemos momentos de poesia. São raros e são menos raros na infância. Momento que somos incapazes de esquecer e que parece ter acontecido agora mesmo. É a lembrança que não é passado, pois a levamos viva sempre em presente. Fato antigo que continua reagindo com o agora e portanto não é velho e muito menos antigo. Vida interior sem linha e sem razão.
O poeta vive com acesso a esse estado sem tempo. Percebe o extra-linha na pomba que passeia na calçada, na pedra do caminho, na maçã sobre a mesa, na face do espelho.
O poeta vê com olhos sem idade, vê o que nega a linha da vida, dá valor ao que merece sobreviver.
Mundo sem poesia seria mundo com idade bem contada, linha de vida definida e onde tudo seria esquecimento. Vida retilinea, sem surpresas e sem epifanias. Onde um pombo é um pombo e a maçã é sempre apenas mais uma maçã. Mundo mediocre, sovina e conformado. Banguela.
Mas não eu. Vejo em cada rua uma rachadura que é sinal, uma folha que se salva, uma face que é para sempre.
Desperdiço tempo com poesia, gasto linhas as entortando, jogo fora tempo com eternidades.
Não sou poeta, mas vivo na poesia.

JUNG, UM CASO DE AMOR COM FREUD

   Deve ter sido terrível para Freud ter de encarar a independência de Jung. E perceber que o jovem suiço não entendia seu medo, ou pior, zombava dele. Vejamos, Jung jamais entendeu o porque de Freud ansiar tanto em ser aceito. O vienense rompia tabus, mas de forma incompreensível para  Carl Gustav Jung, desejava ansiosamente ser aceito como "cientista sério e responsável". Porque? O que Jung não compreendia, e nem poderia, é que Freud vinha do gueto, sabia o que era não fazer parte, ser olhado com desdém. Jung por outro lado, podia ousar sem medo, pois seu meio era a elite européia, ele jamais seria isolado em gueto. Mas havia algo de mais doloroso ainda.
   Todos os relatos, inclusive Peter Gay, dizem que Jung era muito atraente. Alto, bonito, corpo de esportista, sempre rindo e brincando, as mulheres choviam aos pés de Jung. Ele era assediado. Há uma piadinha, que conheci através de Paulo Francis, que fala que Freud achava intolerável o sexo entre analista e paciente pelo fato de que nenhuma paciente iria querer dar para ele. Então era melhor proibir. Baixinho, sempre de cara amarrada e muito feio, Freud nada tinha de erótico e seus contatos com mulheres eram sempre marcados pela ansiedade. É impossível não se imaginar que Freud invejava Jung. E que Jung se ressentia da seriedade "messiânica" de Sigmund. O vienense havia criado algo novo, Jung seria sempre um discipulo, por mais que criasse e ousasse. Um filho, nunca pai.
   Qual dos dois está certo? Fazer essa pergunta já é um erro. Nenhum deles pode estar certo e com certeza ambos sabiam ter errado. Toda a teoria de Freud será sempre isso, apenas uma teoria. E para ele, esse é seu grande fiasco.
   O mundo arriscado e libertário de 1955/1975 colocou Jung nas alturas. Ele passou a vender de tudo. Astrólogos se diziam junguianos, drogados tentavam atingir o self de que Jung falava. É óbvio que ninguém entendeu nada. E nisso Freud tem uma vantagem grande, suas teorias são bem mais simples, não requerem grandes vôos de erudição e experiência pessoal. Jung exige muito de quem busca o entender. E nessa busca existem centenas de armadilhas.
   Hoje o mundo está confortávelmente refestelado num divã freudiano. Sem ter culpa alguma nisso, ele é usado como um tipo de tiozão sisudo que nos livra das grandes questões que fazem a vida valer a pena. Assim como em 1968 os malucos gostavam de achar que Jung dizia que tudo valia para ser voce mesmo, os reprimidos de agora gostam de pensar que Freud é um tipo de garantia contra a doideira. Um filme pop-hollywoodiano jamais poderia tomar o partido de Jung, para ser de Jung ele teria de ser  um filme sem enredo e sem direção. Dessa forma o que temos é Jung visto pelos olhos repressores e invejosos de seu ex-mentor. Mentor que nunca admitiu a independência de um discípulo. Jung deveria ser seu testa de ferro gentio, e tão somente isso. Admitir que além de mais "feliz", ele fosse dono de ideias próprias, foi a mágoa de sua vida.
   Aliás há um pensamento que ocorre a quem assiste o filme com olhos livres: se Jung estudou e entendeu tudo em Freud, Sigmund não entendeu uma só linha de Jung. Preso ao dogma e a vaidade, Freud jamais reviu suas ideias. Passou a ser um propagandista de si-mesmo, um cada vez mais solitário messias.
   E enquanto isso Jung partia em viagem rumo ao absoluto risco. Pouco se lixando para a aceitação da ciência, para as opiniões de honrados doutores, com um unico objetivo: entender a vida, o que ela é e o que ela pode ser. Fracassou. Mas ao menos deixou escrita a aceitação de seu fracasso. Aprendemos com suas tentativas, com sua insaciável curiosidade, nunca com suas conclusões.
  Entender a relação dos dois passa por entender a dualidade da vida e do ser: eros e thanatos, sol e lua, macho e fêmea, carne e alma. Não podia durar.

The Waterboys - The Stolen Child (1988) William Butler Yeats é meu mestre



leia e escreva já!

A MÁQUINA DO TEMPO- H.G.WELLS

Existem livros que não nos dão muito o que dizer. E se alguém começa a discorrer muito sobre os sentidos de tal obra, pode crer, um monte de abóboras está sendo "discorrida" sobre sua cabeça. Há quem consiga desfiar laudas e laudas sobre um filme de David Fincher ou um poema de cummings. Esse laudador é muito mais um agricultor que um razoável resenhista.
O livro de Wells, lançado no fim do século da razão exaltada, ( o XIX ), fala sobre o futuro. Um homem constrói máquina que o leva ao ano 8 milhões. Lá ele conhece os Elóis, um povinho doce e feliz e topa com os Morlocks, povo das profundezas, asqueroso, que trabalha e se alimenta das carnes tenras dos Elóis.
Wells era fabianista, e o fabianismo era a versão inglesa do socialismo. O livro mostra em que a elite se transformaria, em Elóis. Os Morlocks seriam os trabalhadores, que viriam a dominar o planeta por serem mais fortes e industriosos que a elite. Mas por terem sido maltratados por essa mesma elite, se transformariam em humanos condenados a escuridão. A mensagem ainda é válida? Racionalmente penso que não, no futuro todos seremos iguais em nossa bundice rosada. Mas já me peguei várias vezes pensando em que numa guerra civil, onde tudo valesse e a economia se fizesse um kaos, a elite se tornaria presa fácil dos homens acostumados a improvisar e a sobreviver com pouco.
Curto, sem floreios, o livro de Wells deve sua imensa popularidade a habilidade que ele tem em descrever climas e dosar suspense. Wells não foi um grande escritor, seu estilo é pobre; mas tinha ideias, tinha vontade, e nenhum receio em ser direto.
O filme de 1960, de George Pal, é delicioso. Fiel ao sabor vitoriano de Wells, época que criou tanta coisa que hoje usufruimos. Tantas modas e tanta´fés. Inclusive o culto da própria celebridade. E o medo/ fascinio pelo distante futuro.

CRITICO, RAÇA EM EXTINÇÃO

   As pessoas morrem de medo, hoje, de serem chatas. Chatos são colocados fora da "cena", são chamados de rabugentos. A década de 80 viu o apogeu de chatos profissionais. Foi uma época em que era cool falar mal. Mas neste século falar mal é ser apenas um cara demodée. Um "Paulo Francis/Matinas Suzuki/Gerald Thomas" da vida.
   Criticas morreram. Todas são suspeitas. Falo da critica em midia impressa. E sou motivado pela ausência de critica ao Lollapalooza. O festival deu milhares de motivos para a escrita de criticas certeiras. Ninguém as escreveu. Quem ler o que se imprimiu pensará que tudo foi lindo ( Ora seu trombone chato, não foi? ).
   Voce só cresce ao se criticar. Se voce tiver a ilusão de que tudo em voce está lindo voce já era. É isso que se faz com a arte hoje. Elogia-se tudo, e mesmo quando o critico ousa dizer que não gostou, isso vem temperado por várias luvas de pelica. Não se ataca com coragem, se dá conselhos. Dessa forma a arte deixa de ser criticada e assim não evolui. Dessa forma ninguém falou do ridiculo de Gypsy Punk, Foster, Friendly ou Band of Horses. Essas bandinhas se pensarão bandonas. E ficarão estagnadas.
   Mas os criticos também não se criticam. Inexiste o critico que ousa criticar seu "colega". E o que vemos são criticos também estagnados.
   Às vezes surge algum filme que alguém ousa falar mal. Mas são sempre os mesmos tipos de filme, filmes que são vitimas fáceis, filmes que são cool falar mal. E ninguém ousa os defender. Obras que são feitas para festivais ou prêmios nunca são demolidas.
   Óh menino imberbe, creia-me, não era assim. Kubrick era demolido, Hitchcock era chamado de comercial e superficial, Ford era considerado ultrapassado e Godard era tratado como lixo. E ao mesmo tempo alguns defendiam todos esses autores como se fossem gênios. Não havia o medo do risco, do ridiculo. Na musica, criticos punk demoliam Stones, Led, Floyd etc. Alguém destruiu alguma coisa nos últimos vinte anos? Falar mal de funk ou sertanejo não vale, quero ver mostrar o podre de Strokes, Oasis ou Pumpkins. Não um simples "disco fraco", mas sim a demolição da banda, a dissecação da falta de inspiração do grupo, o ato de se dessacralizar o sagrado. E também, por outro lado, a explicação de uma genialidade.
   Ler uma critica com cinco linhas e algumas estrelas é transformar arte em dica de restaurante. Ou de motel.
   Na internet se arrisca um pouco mais. Mas Barcinski ou Butcher, que são corajosos, ficam perdidos em meio a um mar de bonzinhos e bundinhas. Pior, gente que não tem parâmetro algum para julgar se mete a critico. Sim, eu sou chato, te avisei.
   Como levar a sério a opinião, que é de fã na verdade e jamais de critico, sobre o disco "criativo e original" do Dead Weather, se tudo o que esse critico conhece de "criativo e original" são meia dúzia de bandas surgidas nos últimos cinco anos? A tendencia desse arauto da opinião será a de elogiar tudo aquilo que ele já conhece e ignorar o que lhe é estranho. A função principal do critico que é a de abrir caminhos fica negligenciada. Se torna uma coluna de babação babaca e não de risco e acerto.
   No cinema a coisa é bem pior. Criticos internéticos tendem a trabalhar como espelho. Elogiam o que reflete aquilo que eles são. O resto inexiste. São seres estéticamente analfabetos, que se metem a discorrer sobre "a nova sensação do cinema de arte" sem terem a menor ideia do que seja cinema ou arte. Crianças que conhecem o ABC e dão palpites sobre XYZ.
   Viva a democracia? Ora, por favor! Seria ótimo se quem os lesse tivesse a noção de sua futilidade, mas existem outras crianças que os lêem e de balbucio em balbucio aquela "critica" passa a valer como "coisa real".  O circulo se fecha e teremos de cada opinião furada mais cem chutes no vazio.
   Por outro lado isso me dá prazer. Se o mundo se tornar cada vez mais idiota, os poucos que têem alguma cultura serão arautos da civilidade. Basta dizer que em meio culto eu sou um jeca, mas no universo internético sou considerado "de boa cultura geral". Pobre universo internético!
   O que eu quero é uma critica que me abra os olhos para sentidos que não percebi. E que tenha a coragem de destruir e construir. Não li nada sobre nenhum filme em cartaz que me mostrasse uma nova visão. Ou que demolisse a enganação. E se eu falar sobre música a coisa fica pior.
   A tendência é a de que cada um permaneça em seu minúsculo mundinho, elogiando tudo que faz parte desse mundinho e não se deixando surpreender por nada que seja novo para si-mesmo. Conheço amigos que são tão fechados em seu espelho, que me dão o gosto de eu poder adivinhar TUDO o que eles irão gostar antes de que eles mesmo o saibam.
   A critica existiria para abrir os olhos desses cegos. O que ela faz hoje é polir os espelhos.

THE RISE AND FALL OF PONDÉ AND THE LITTLE SMARTS FROM MARS

   E o glamouroso Pondé coloca o rabitcho entre as pernas e explica aos inteligentinhos tudo que eles jamais poderão chegar perto de entender. Affff...a explicação de Pondé faz tudo aquilo que ele condena: vulgariza, higieniza e pasteuriza. Ele consegue em um só texto desagradar seus negativos ( os inteligentinhos que nunca entenderam patavina do que ele fala ), e gente como eu, que sempre o levou a sério. Pondé jogou alto com sua coluna de Páscoa. Errou por arrogãncia. Sua conclusão hoje cheirou a capitulação. Pior, ele nunca escreveu um texto tão simplório. Falo aqui o que ele não falou.
   A vida é violenta. Viver é matar. O leão adulto trucida uma zebra filhote e a come ainda viva. A vida só pode existir com a morte de alguém ou de algo. Isso é óbvio. Povos primitivos vivem em comunhão com essa lei, neles não se fez a divisão entre humano e natural. A religião desses povos dramatiza a vida, a torna explicável. O conceito de bem, de piedade não existe. O que há é o que é. Com o perdão dessa frase.
   Todas as religiões pré-históricas sacrificavam gente. Em imensas hecatombes de sangue. Maias, aborigenes, navajos, zulus... e mesmo ´civilizações que nos são próximas, como gregos clássicos ou celtas, tinham sacrifícios. Os judeus são os primeiros a praticarem o sacrificio animal e apenas animal. Se dá entre eles uma radical divisão, o homem se faz à parte do cosmo. Instituem um deus único. É nesse momento que o homem passa a olhar para a natureza com estranheza e depois com horror. Foi esse o momento que Nietzsche tanto condenava. Ele não era contra a religião, era contra a religião civilizada.
   O homem sempre foi um bicho estranho. Nos rituais de morte e massacre ele teatralizava aquilo que lhe aterrorizava. Matava para suportar a consciência do fim, maldição que só ele possui, a certeza da finitude. Enchia-se de sangue na tentativa frenética de não mais temer o seu sangue.
   Lendo Comte-Sponville, Pascal e Spinoza, tomo consciência da revolução sem paralelo que foi o cristianismo. Pela primeira vez, de súbito, instituia-se uma religião sem sacrificio ritual. Tudo se faz símbolo. Mais que isso, a piedade deixa de ser sinal de fraqueza e passa a ser força. É a primeira religião do amor e apenas do amor.
   Pondé temeu dizer isso. Perdeu-se em bobagens e enrolou-se. Tentou pela primeira vez agradar.
   O homem comia cérebros ( há quem os coma ainda ), matava rivais e se enchia de sangue. E ao contrário do que ele diz, não há uma só evidência que diga que esse ato de destruição não fosse considerado mágico. O ato de comer o inimigo era homenagem ao rival, e como qualquer antropólogo sabe, era uma comunhão em que o eu-que-comia se tornava o eu-que-era-comido. No Brasil os indios comiam macacos para ser macaco e cobras para ser cobra.
   Isso é rompido. No mundo pós-cristão voce não é o que come ou aquilo de onde vem. Passa a ser aquilo que faz. Isso começa com o cristianismo onde voce é o bem que voce pensa e realiza. Matar se torna um pecado. Voce não precisa mais matar para sobreviver à ideia da morte, voce vive simbolicamente a morte de um Deus para superar a sua morte futura. A poesia mora muito perto destas afirmações. O inconsciente é vivo neste universo.
   O que Pondé nos deu, em dois capítulos, foi sensacionalismo barato. Tudo aquilo que ele não pregava.
   Que mal....

PRAZERES SECRETOS

Uma coisa que é só sua e de mais ninguém. A revolução da mente humana se deu quando o homem se viu, pela primeira vez, como individuo único. Ele percebeu que só ele vivia aquela vida, só ele sentia o que ele sentia e só ele sabia o que ele sabia. Mais que tudo, ele possuia sua vida e com ela seus segredos e mistérios.
Todos, ou quase todos, viveram um primeiro amor. E é nesse amor envergonhado e recolhido que pela primeira vez descobrimos o prazer de se ter um segredo. Nossos pais não podem saber disso. É aí que damos o salto, ficamos á parte da familia, temos algo que é só nosso, o amor. E o acalentamos. O deixamos crescer dentro de nós. Torna-se sagrado. Entenda, em sociedades arcaicas isso não existe. Tudo ocorre ás claras, não há segredo e individuação, voce é sua comunidade, voce é tudo.
Ontem, conversando com um amigo, ele me conta da "vida compartilhada" de agora. Tudo que voce faz deve ser dividido com os outros. Voce só existe para eles.
Ora, isso é antigo, muito antigo. E é irônico que a tecnologia nos leve cada vez mais para hábitos de um remoto passado. A certeza de que uma coisa só tem valor se for "da comunidade, da rede". Seja um show, uma festa ou uma viagem, ela só é válida e "importante" se for dividida e de preferência bastante compartilhada. A pessoa abre mão da experiência pessoal, e a transforma sempre num tipo de reportagem para todos.
O caminho que temos, cerebral, sempre foi o de sentir, absorver, guardar, elaborar e memorizar. Depois vinha a transmissão. Agora o trajeto é sentir, elaborar e transmitir. Não há tempo de absorver, nada se guarda e a memória se encurta. A experiência é logo expelida para a rede e prontamente esquecida. O cérebro se esvazia e fica ávido por mais uma experiência ( cérebros abominam o vazio ), e essa nova experiência logo vem...e outra e outra e outra.... O amadurecimento se torna impossível. A vida interior se faz rala.
Penso então nos Beatles. Sim, nos Beatles. Eles tiveram a sorte de passar anos à margem do mundo. Tocando, compondo, se afirmando. Elaborando toda uma carreira dentro de si. Pegando aquele som tão "cover", Buddy Holly e Everly Brothers, e fazendo suas tentativas de originalidade. Até que anos mais tarde explodissem e se tornassem mundiais. O que seria deles hoje? Em 1960 já teriam videos na rede e faixas para download. Sentiriam desde o inicio o "gosto" da exposição. E pior, seu espirito se atiraria para fora, para o que os outros esperam. Amadurecimento, recolhimento, espera, jamais.
Outro exemplo. Ingmar Bergman.
Bergman passou dez anos fazendo um filme por ano. E nada acontecia fora da Suécia. Ninguém o conhecia. Então o que ele podia fazer? Podia aprender. Com calma, sem se sentir exposto, dentro de si, ele foi desenvolvendo um estilo pessoal. Sem pressa, filme a filme. Quando estourou em 1956 já tinha firmeza, certeza, calejamento. Estava pronto. O que seria dele hoje? Teria desde "PORTO", em 1946, seu fã-clube. E normalmente o que ele faria? Se conformaria em ser para sempre o ídolo desse fã. Na rede, precocemente ele se acreditaria pronto. Faria fé do hype criado a seu redor.
Prazeres secretos. Alguém ainda os tem?
Existe algum segredo? O prazer de comprar um disco do Velvet Underground no Brasil em 1981. E saber que nenhum amigo conhecia essa banda. E então, amar essa banda em solidão. E chegar a crer que ela é sua. Mais ainda, que seu amor a mantém viva. Cuidar desse amor que é seu e portanto se TORNA VOCE. Esse é o aprendizado da individuação.