ALÉM DO PLANETA SILENCIOSO- C.S. LEWIS ( O PLANETA MUDO É ESTE E ELE ESTÁ MUDO PORQUE? )

   Ás vezes a grandeza dos gênios nos é dada pela comparação com o pequeno alcance dos meros talentosos. O hábito de ler coisas brilhantes faz com que o gosto se apure, e sem perceber voce passa a notar a diferença entre o verdadeiro criador e um mero "talento". Lewis está longe de ser um grande escritor. Mas sempre tive a curiosidade de ler algo do autor de 'Nárnia". A filosofia que ele usa muito me interessa ( cristianismo puro ), e lê-lo era para mim uma questão de tempo.
   Mas sinto dizer que sua escrita é banal. E entenda bem, estou falando de seu "estilo", não daquilo que ele pensa e tenta nos passar. Este livro fala de um linguista ( na verdade é seu amigo, Tolkien ), que é raptado por dois ex-colegas de Cambridge. Os dois o levam em nave para um planeta onde, em que pese a aparência primitiva dos seres e das coisas, há um enorme desenvolvimento filosófico, o que os leva não só a paz, como também a serena aceitação da morte e da extinção. Poderia ser um grande livro, mas Lewis escreve mal. Aborrece em descrições infindáveis da paisagem, não consegue criar encanto, empatia, e sua linguagem é óbvia, redundante, banal.
   Porém, existe um pensamento, ensinado pelos seres intergaláticos, que é de bela complexidade. A de que o verdadeiro prazer da vida reside na memória. Mas não a memória saudosista, que é a vontade de voltar ao que foi vivido, mas sim a memória que tem a sabedoria de saber que tudo de bom na vida dura uma hora ou um dia, e que na lembrança que permanece, esse momento dura toda uma vida. É no lembrar que reside a verdadeira alegria. O momento feliz é apenas isso, um momento, mas a recordação é uma alegria para sempre.
  Há um outro pensamento, este dado pelo tipo de "deus" do planeta. A de que o fato de na Terra só haver um ser racional ( nós ), cria uma grande pobresa de vida e de entendimento. Como aqui só existe um tipo, uma única forma de pensamento, não temos com quem, ou com o que trocar experiências, não temos onde aprender, onde conceber novas formas de razão. É um único ser falando, eternamente, consigo mesmo. Nenhuma troca. Nada. No planeta visitado existem três formas de razão, três seres inteligentes, três modos autônomos de ver, sentir e pensar. O diálogo entre eles os enriquece, eles são três vezes mais complexos.
  É um livro mais ou menos, mas esses pensamentos são grandes. Muito grandes.

A LEBRE COM OLHOS DE ÂMBAR- EDMUND DE WAAL, UM BEST-SELLER PARA HOJE.

   Conhecido como grande ceramista, o inglês De Waal, após pesquisas, viagens, dores e relembranças, escreve um livro, este. Nele ele fala dos netsuquês de sua familia. Primeiro: o que é um netsuquê? São minúsculas estátuas de madeira ou marfim, ricas de detalhes, feitas no antigo Japão. São feitas para o toque, para se levar nas mãos, no bolso, em cinto. A familia de De Waal tem mais de 200 netsuquês. Segunda questão: que familia?
 Começa o livro. A familia de Edmund é a familia Ephrussi, judeus de Odessa que se tornaram milionários no século XIX no comércio de grãos. Charles, tataravô de Edmund é o primeiro herói do livro. Vive em Paris e tem um palácio que existe ainda hoje. Hoje transformado em escritórios, lógico. Charles financia a arte de Renoir, de Degas e de Pissarro, torna-se personagem de Proust e coleciona com avidez. O luxo em que Charles vive nos é irrecuperável. O livro de De Waal tem muito de proustiano. Charles compra pinturas da renascença, prata e cristal, tapetes, os móveis mais raros e vive em seu palácio de ouro e de mármore, coberto por vidro, cercado de festas e lacaios. Charles vive para o belo.
 A França é tomada pela moda do japonismo. Tudo o que é japonês é chic. Charles compra os netsuquês e um armário de laca para os exibir. Os bonecos de marfim são felizes naquela casa. Apesar do anti-semitismo francês.
 Na segunda parte do livro estamos na Viena de 1900. Para lá vão os netsuquês. Dados como presente de casamento para a bisavó de Edmund. Viena de Karl Krauss, de Schiele e de Klimt, mundo de café e chocolate, de soldados bem vestidos, de rituais, de um rei que jamais poderia morrer. Nessa Viena, mais que o luxo, há a sensação de que a vida é boa, de que tudo pode ser feito, desde que feito com classe. Os netsuquês ficam no quarto da senhora. E lá, em meio a todo aquele ouro e seda, eles se tornam brinquedos. O império austro-húngaro tem muito de terra da carochinha, e as crianças da familia ( familia agora de banqueiros ) brincam com os bonecos: tigres, ratos, samurais, lebres.
 O nazismo surge lentamente e a familia passa pelo inferno em vida. Desapropriação, violência física, roubos, humilhação. Todos se desperçam. EUA, Inglaterra, México. A fortuna se esvai. Os palácios viram escritórios de nazistas. Edmund lê cartas, vê fotos, viaja até os lugares onde tudo ocorreu. Os netsuquês são escondidos pela empregada da familia, um a um, e vão para Londres, onde se tornam posse do avô de Edmund, Iggie.
 Edmund nasce nos anos 60 e estuda cerãmica. Vai ao Japão fazer estágios e lá convive com seu avô, Iggie. Conhece os netsuquês.
 O livro fala então do Japão pós-segunda guerra, da reconstrução, do milagre. E de Iggie, casado com um japonês, vivendo em Tokyo, apaixonado pelo país, e com seus netsuquês em lugar de honra.
 ......
 Li artigo sobre este livro no Estadão. Fenômeno na Inglaterra, trata-se de um livro cada vez mais raro: best-seller que tem qualidade, que é relevante. No artigo se diz que há influência de Proust e de Sebald. Resolvo ler.
 Nada há aqui da melancolia de Proust ( melancolia luminosa de Proust ), ou da profundidade filosófica de Sebald. Mas é sim, um belo livro. Que se lê com prazer, com curiosidade e com sofreguidão. De Waal não teme mostrar a decadência da civilização pós-Hitler, de exibir tudo aquilo que perdemos. E o que perdemos?
 Acima de tudo perdemos nossos objetos. Todas as coisas que nos cercavam eram parte de nós e com elas dialogávamos. Objetos que eram vivos, pois em nosso esbanjamento de tempo e de vida, lhes doávamos essa sobra, essa história, esse afeto. Um mundo em que tudo ao redor tinha a certeza da permanência, daquilo que lá está para nos acompanhar, para ser nosso. Os netsuquês são personagens centrais, estão vivos, são a familia em sí-mesma.
 Há tempo hoje para se vivificar as coisas? Olhe ao seu redor e tente encontar algo que lhe seja único. Um pedaço de coisa que possua história, narrativa, que conte algo, que respire. O livro possue essa conciência da perda, da luta contra a perda, da recusa a se deixar morrer. Luta judaica, sem dúvida, mas é a luta de todos aqueles que amam a cultura, a história, o pensamento, as "coisas".
 Leiam. Leiam. Leiam. Leiam.

DENTRO E FORA, AS DIFICULDADES DE SE VIVER NA TAL DA REALIDADE. A BELA ESQUINA-HENRY JAMES, O MELHOR CONTO DO SÉCULO?

   Um homem volta a New York após vários anos em Londres. Dono de imóveis, ele reforma alguns e passa a visitar toda a noite a casa onde nasceu. Isso passa a ser uma febre, e ele "sente" a presença de "alguma coisa" na casa. Um fantasma?
   Esse é o tema aparente desse magistral conto do grande Henry James. Tenho a sorte de ter um professor que não só é tradutor de James, como usa-o de exemplo de escritor moderno. O mundo de James é nosso mundo, e neste conto ele exibe a alma de alguém que "sente e pressente" o que seja nossa realidade. Ou o que nos resta dela. O conto tem várias leituras, todas explícitas, claras, nítidas.
  Ao voltar para os EUA, a primeira surpresa do personagem central é o tamanho da destruição. Nada lhe é familiar, tudo aquilo que marcava sua vida fora aniquilado. Edifícios cobrem suas lembranças e as ruas asfaltadas apagam suas pegadas. A identificação com a cidade não é mais possível. Ele pode admirar e temer a força das construções, mas se vê excluído de seu meio. A cidade não precisa mais das pessoas. É nesse momento que ele se coloca em questão: o que é real? A vida lá fora ou a casa onde ele nasceu? Um mundo que ao mudar sem parar nega a presença, ou sua vida interior, a sua alma, memórias que não podem mudar, que esperam para ser resgatadas? Ele sente que a vida real respira dentro da casa, nas paredes, nos corredores, nos reflexos dos dourados. Fora da casa ele apenas se move, trabalha, faz coisas, a vida de verdade começa dentro da casa.
   Vem um segundo tema nesse conto que não se esgota: a possibilidade do tempo. O que poderia ter sido e não é. Como sua vida seria se ele jamais tivesse saído da casa, o que lhe pareceria a vida, para onde ela teria ido. Vem daí outra questão: o que é sua vida? Ou, o que ela não é? Como saber o que ele realmente é ou o que ele parece ser. Questão: o que ele não sabe? O conto antecipa uma análise terapêutica bem feita, ele percorre as paredes de seu ser, ele questiona vivenciando, ele retorna e procura seu fantasma- aquele "ele" que lá ficou.
   O mais fascinante tema do conto surge em seu meio. A beleza das palavras. Existe uma vida lá fora, mas ela não tem beleza e presença porque ela NÃO É NARRADA. O prazer, e consequentemente a verdade, só pode surgir no discurso, na descrição. Descrever cada detalhe da casa, rememorar e contar toda lembrança, esse falar é já um prazer em si, mas o prazer de contar faz nascer a presença real do que é contado. Eis o sentido das palavras, elas dão verdade dando prazer. SÓ SE AMA AQUILO QUE SE CONTA. É narrando a casa que se ama a casa. A vida lá fora, em eterna pressa, passa tão veloz que não permite uma narração, portanto, não se permite ser amada. A PRESSA MATA O AMOR. Amar é ato de memória.
  O personagem irá encontrar esse eu-que-ficou? Não responderei. A BELA ESQUINA é um conto que deve ser lido e relido. O que sei é que minha experiência de vida é magicamente idêntica ao do personagem. Não me canso de relembrar e de buscar as ruínas da casa onde nasci. Ela foi reformada e está irreconhecível, mas sempre dou um jeito de andar por sua rua, respirar seu ar, tentar captar algum ângulo onde ela é o que fora um dia. E eu realmente me procuro nessa procura. O que tento achar, encontrar, é uma certa pureza de olhar, um modo de provar a vida pela primeira vez, as cores limpas, a verdade do inicio. Olhando aquelas paredes o que procuro é uma visão, o fim dos véus, poder ver e sentir SEM PENSAR. Talvez minha morte viva a minha espera nessa casa ( o conto deixa isso claro ), mas esse morrer é um renascer, o único verdadeiro.
   Conto que vale por uma cura, narrativa que dá sentido a própria narração, A BELA ESQUINA é um milagre para aqueles que não crêem em milagres. Henry James é meu guru.

PARA ENTENDER A INGLATERRA ( E ELA NÃO É A IRLANDA OU A ESCÓCIA ), THE KINKS

   Nada há de lamuriento na Inglaterra. Se voce acha os ingleses melancólicos, voce nada entendeu do país. Ingleses desde John Locke e Henry Fielding são "superiores", se é que voce me entende. Eles não se permitem chorar em público ou gargalhar. E se voce notar, mesmo esses cockneys em filmes de crimes, em meio a palavrões e sangue, jamais perdem o distanciamento. Portanto, nunca procure em ingleses a emoção lacrimosa que existe nos latinos, a febre revolucionária que há nos franceses, ou o idealismo romântico de um alemão. Eles gostam de fantasmas, e tudo acaba em wit, humor, se é que voce me entende.
   Desse modo, eles jamais poderiam ter um bardo emocional como Van Morrison, um carola como Bono Vox, ou um herói politico como Bob Dylan. Seus punks eram distanciados, os Ramones nunca seriam possíveis na Inglaterra. Coisa da educação? Um clima de Noel Coward e Evelyn Waugh? Ou excesso de fog e de chá?
   Por mais que eles amem a música negra americana, em seu sangue flui o music-hall, aquelas canções de rádio tipo anos 20, canções que estão presentes em MacCartney, Lennon, Jagger e todo o resto. Canções que são a alma de Ray Davies, esse arquiteto da canção-rock-made in England. E os Kinks são Davies. E TODO o rock da ilha é KINKS.
   Eles deixaram de vender muito nos EUA quando os hippies tomaram conta. E creia, até 1966 eles vendiam em todo o mundo. Mas nada menos Kinks que solos de meia hora e odes à marijuana. O mundo deles era bem outro. Eles eram vitorianos. Mas nunca vitorianos que amam Vitória, mas sim aquele tipo de vitoriano crítico, tipo Wells, Huxley ou Hardy. Em seu rock não há estrada, carro veloz ou loura peituda; eles falam de chá, seguidores de modas, decadência do Império, costumes arcaicos, tradição e familias congeladas; tudo isso em tom de humor, de esperteza, dúbios, sempre dúbios; pois voce nunca sabe se eles lamentam a morte do Império ou se gozam seu final.
   Nenhuma banda até hoje é mais inglesa que eles. De Jam a Oasis, de Blur a Elvis Costello, tudo de mais tipicamente inglês é cem por cento Kinks. Suas canções devem ser escutadas na sala, à janela, num fim de tarde. Raramente irão falar de amor, de desejo ou de depressão. Eles se interessam pela sociedade, falam do mundo da rua, do jornal, da história. E quando são tristes, o que choram é o fim de uma era, seja a era do cinema de Hollywood, seja a era dos jogos de cricket aos domingos.
   Quem quiser começar a ouvir os Kinks ( é impossível passar pelo rock inglês sem conhecer Ray Davies ) comece pelo disco The Village Green Society, disco de 1968. Não sei se é o melhor, mas é o mais típico. Se voce ama rock ouça. Mais que isso, se voce ama música, escute.

The Kinks - Victoria (1969)



leia e escreva já!

BRANDO/ DONEN/ DELON/ MALICK/ WALSH/ ZURLINI/ MASTROIANNI/ HUSTON

   CANDY de Christian Marquand com Marlon Brando, Richard Burton, John Huston, Charles Aznavour, James Coburn, Walter Mathau, Ringo Starr, Anita Pallemberg e Ewa Aulin
Um dos mais famosos dos filmes "bem louco" dos anos 60. Não há uma cena de drogas, mas o filme é uma viagem. Do que fala? De uma menina meia ingênua, meia idealista, que zanza pela vida sendo perseguida por homens que desejam levá-la pra cama. Ewa Aulin é muito bonita, mas como atriz é um desastre. De qualquer modo, o filme é surpreendentemente bem feito, e tem alguns momentos divertidos. Burton faz um professor super-star, é uma das boas cenas. Brando aparece no fim, como um guru charlatão. Magro, e de peruca longa, é hilário ver o mito Brando tirando uma do movimento hippie. Ele finge levitar, diz bobagens new age e transa com a menina até se esgotar. É a melhor coisa do filme. Há ainda Aznavour em cena ruim, Coburn como cirurgião superstar ( o filme é cheio de críticas aos superstars ), Mathau faz um militar tarado ( é a pior cena do filme ), e Ringo é um jardineiro mexicano virgem. Como disse, é um filme doidão. Nota 4.
   O DIABO É MEU SÓCIO de Stanley Donen com Dudley Moore e Peter Cook
Cook e Moore se tornaram famosos na tv inglesa fazendo um tipo de humor à Monty Python antes dos Python. Cook escreveu este roteiro que fala de rapaz tímido que é ajudado pelo diabo em sua tentativa de conquistar o amor. O filme nunca teme o politicamente incorreto, Deus é objeto de humor crítico e tudo aquilo que o diabo diz tem a marca de alguém que sabe falar. Peter Cook é um filósofo. Mas trata-se de uma comédia, e é triste dizer, nada aqui tem graça. Os cenários são tristes, o ritmo é lento, e Dudley é péssimo!!! Stanley Donen começa aqui a rumar a sua aposentadoria. De bom, o estilo "dandy do rock psicodélico" de Cook. E a cena em que Dudley se torna um astro do pop. É pouco. Nota 2.
   BORSALINO de Jacques Deray com Jean-Paul Belmondo e Alain Delon
Um grande sucesso de bilheteria do cinema francês em 1970. Fala de dois pequenos malandros que se tornam amigos e passam a dividir suas tramóias. Bem.... os atores se divertem muito com seus socos, tapas, caretas e mulheres bonitas. As roupas anos 30 são charmosas, a trilha sonora de jazz é perfeita, os cenários são lindos, mas falta alguma coisa.... Talvez falte Paul Newman.... Delon é excelente para fazer tipos angustiados e frios, ou seja, tipos que são o oposto do humor; e Belmondo, bom ator em comédias, está aqui totalmente descontrolado. Vê-se o filme com indiferença. Nota 4.
   A ÁRVORE DA VIDA de Terrence Malick com Brad Pitt, Jessica Chastain
Crítica abaixo. Malick tenta ser Kubrick e se torna um sub-Tarkovski. O tema que ele escolhe é sublime, mas boas intenções não fazem um grande filme. Se tirarmos a soberba trilha sonora de Alexandre Desplat e a fotografia de Emmanuel Lubeski, o que sobra? Um diretor com boas ideias perdido em sua pretensão absurda. Me emocionou porque toca na minha vida, mas que efeito ele causaria em alguém diferente de mim? Esquecendo o que ele tenta falar, como cinema puro, o que ele é? Uma coleção de cenas que não se resolvem e um amálgama de conceitos que jamais se desenvolvem. Falho, mas jamais vulgar.  Nota 6.
   BLITZ de Elliot Lester com Jason Statham e Paddy Considini
Ah! Maravilhoso cinema.... indústria que vai da arte de Loach e Frears ( para falar dos caras de agora ) à pretensão fru-fru de Malick e Boyle. Da eficiência nobre de Eastwood e Scorsese á arrogância tipo novo-rico de Jackson e Bay.... Se o cinema fosse culinária, diria que o filme de Malick seria um souflé que murchou, excelentes ingredientes, excelente intenção, porém desandado. Aqui temos um belo pão com manteiga e média escura. Pão quente e café fresco, manteiga gordurosa, como deve ser. Gosto muito de Statham, como adorei em seu tempo Bruce Willis e Mel Gibson. Atores de ação com carisma são como dádivas das telas, nos dão prazer, prazer em estar, prazer em os reencontrar. O suflê é melhor, mas no dia a dia é a média que nos sustenta. Dá-lhe!!!!! Nota 6.
   GIGANTES EM LUTA de Raoul Walsh com Yvonne de Carlo e Rock Hudson
Walsh era um desses diretores-padeiros. Faziam a toda hora, por toda a vida, aqueles filmes pão-quente, filmes deliciosos, simples, leves, inesquecíveis. Ação, humor, romance e bons diálogos: isso é cinema puro. Este fala de espionagem em tempos de Napoleão. Rock Hudson era desses atores-prazer ( como eram Erroll Flynn, John Wayne, Steve McQueen, e agora Brad Pitt ou George Clooney ), atores que a gente sabe não serem tão bons assim, mas são rostos e vozes que adoramos reencontrar sempre. Nota 6.
   DOIS DESTINOS de Valerio Zurlini com Marcello Mastroianni e Jacques Perrin
Aqui a coisa pega. Um tristíssimo filme do delicado Zurlini, um dos melhores diretores da Itália. Fala de dois irmãos. O mais velho foi criado pela própria familia, o outro foi adotado por um tipo de nobre decadente inglês. Mas esse nobre se vai e o mais velho, que agora é um jornalista comunista muito pobre, vai ter de ajudar o mais novo a viver. Esse irmão, delicado, bom, indefeso, é feito com talento poético por Perrin, mas o amargo e contido comunista, feito por Mastroianni, é uma das maiores atuações da história. O jornalista procura se livrar do peso de ter de ajudar e proteger um irmão que lhe é estranho, mas acaba por se render quando esse irmão adoece e morre. É um dos mais trágicos filmes já feitos e nada nele nos alivia a dor. O filme nada tem de "belo", são os dois atores, quase sempre sós, falando e sofrendo sem parar. Sentimos a fome deles, vivemos em sua sujeira, ansiamos pelo que eles ansiam. As cenas no hospital se tornam quase insuportáveis. Voce nunca irá esquecer o rosto de Perrin. Marcello foi o maior ator da história do cinema como querem alguns? Porque não? Veja isto e tire suas conclusões. Nota 8.
   A GLÓRIA DE UM COVARDE de John Huston
Este é o filme fracasso de Huston. Ele não pode terminá-lo e o que ficou completo tem apenas uma hora de duração. Mas que filme!!!! Baseado no livro de Stephen Crane, fala de soldados na guerra de secessão americana. Há quem diga que nosso tempo nasceu nessa guerra, o filme pensa que sim. O absurdo impera. Poucos filmes têm uma fotografia tão bonita, rostos imensos em closes profundos, fumaça e gestos duros, olhos gigantes. Harold Rosson se superou. Huston, em seu estilo seco, acompanha um soldado covarde, que abandona a batalha, mas depois é tido como um tipo de herói. Ironia hustoniana pura. Não há uma cena menos que ótima, o filme é todo superlativo. É um prazer voltar a ver um filme de John Huston. Nota 8.

AMOR.

   Conversando eu construo pensamentos, e nunca ao contrário. Conversar é para mim um campo de provas, jogo palavras ao ar e depois é que as penso. Sou um escrevinhador, é aqui, no texto, que penso. Falar é ensaio de escrita. Admiro muito quem consegue falar como escreve, quem pensa e fala. Eu falo pensando e só muito depois chego ao que sinto.
   Numa dessas conversas falei uma bobagem que muito me envergonha. Porque o que disse vai contra tudo o que sou. Então porque "menti"? Não digo que menti propositalmente, digo que experimentei aquela posição e percebi depois sua falsidade.
   Conversava sobre cães. E ao tentar explicar meu amor por eles caí naquela baboseira futil de dizer que amar os bichos é amor de quem não pode, quer ou consegue amar gente. Pasmem! Esse é exatamente o pensamento superficial de quem jamais viveu esse amor e portanto não pode saber o que ele seja, apenas imaginá-lo. E é um pensamento facilmente desmentido, haja visto que ao me apaixonar por uma mulher ( e namorar ), esse amor aos cães aumenta e não diminui. Me incomoda essa minha fraqueza, essa mania que tenho de sempre tentar agradar quem está a meu lado, de falar o que não causa atrito.
   Pois a verdade é que o amor aos bichos está ligado a capacidade de amar. Voce tem potencialmente o dom de amar uma mulher, sua familia, um livro, uma praia ou um cão. E um amor não nega o outro e nem é seu simulacro. Seria uma pobreza espiritual gigantesca essa de se propor que todo amor é amor sexual, e que fora disso tudo é uma sombra. Quem assim pensa seria na verdade como alguém incapaz de amar, medroso, e que consola sua incapacidade crendo na incapacidade dos outros. É como se ele dissesse: Já que não tenho um dedo, creio que todos não o têm. E se o tiverem são tolos que imaginam tê-lo.
  Amor é simpatia. E simpatia, em seu caráter original, é a capacidade de sentir como o outro, de entrar no outro e ver a vida como ele a percebe. É se compadecer e repartir. Quem conhece o amor sente essa simpatia por seu filho, por sua mãe. Mas também a sente pelo doente terminal, pelo pássaro de asa ferida e pelo cachorro bobo no quintal. Amar um bicho é então não um consolo de amor, mas pelo contrário, um transbordamento de afeto, uma potência de amar, um nobre desejo de dar sem esperar recebimento, uma doação. Amar, seja coisa, gente ou animal, é sempre "amar", e é amando que aprendemos a amar aquilo que amamos. Quem ama apenas seus semelhantes, seus iguais, seus "companheiros humanos", na verdade ama parcialmente, ama egoísticamente, ama com prevenção.
   É isso que queria ter dito e agora digo.
  E digo-o bem.

CAMPO DE DOR- ISAK DINESEN ( KAREN BLIXEN ) DO LIVRO: CONTOS DE INVERNO

   Nascida na Dinamarca como Karen Blixen, ela se torna Isak Dinesen ao começar a escrever. Antes disso, casou-se com nobre barão e foi à Africa, plantar café. Após esse fiasco, retorna á sua terra e durante a segunda-guerra lança este livro. Dinesen escreveu romances ( bons ), mas é nos contos que ela se torna grande. Heminguay era um de seus admiradores. E em 1985, Sidney Pollack ganhou todos os Oscars ao dar a Meryl Streep o papel de Isak Dinesen em OUT OF AFRICA ( no Brasil, Entre dois Amores ).
   Há uma frase dela que define o estilo de seus contos: "Não vivemos para procurar a felicidade. O que procuramos é o destino." Dinesen conta histórias. É como se ela se sentasse ao fogo e começasse a narrar. Dá sentido às coisas, as faz sagradas, eternas, elas brilham e vivem. Todos os seus contos são momentos de crise. Pessoas pegas pelo destino e tentando, de forma inconsciente, encontrar sentido. Um casal de irmãos que morre no gelo, um garoto que deixa seu amigo morrer por desejar uma menina, um pianista que de súbito percebe o vazio. Mas me comovo mais com Campo de Dor, um dos mais perfeitos contos que já li.
   Um jovem volta a sua cidade do campo. Primeiro tema: o tempo. Lá ele reencontra aquilo que ele sempre é/foi/será. Nos recantos imutáveis ele revê o sentido, a imensa realidade inalcansável. Segundo tema: seu tio é o senhor de lá. Um velho vaidoso, duro, seguidor de velhas leis opressivas. Nessa figura há a ideia de que a vida faz sentido ao se prolongar de geração á geração. Terceiro tema: o tio faz com que a mãe de um jovem acusado ceife todo um campo para salvar o filho. A velha senhora o faz. Mas morre ao fim. A morte como sentido, como algo que dá verdade e dignidade a vida. A justificação da vida no amor e na morte. O ato da mãe é gravado em pedra e em memória. Quarto tema: o jovem sobrinho confronta a crueldade do tio. Mas acaba por compreendê-lo ao perceber que a vida precisa ser sofrida para ter valor. A cada um compete encontrar sua dor e vivê-la. Sem esse encontro não pode haver valor, virtude, fé ou heroísmo.
   Dinesen demonstra isso em todos os seus escritos. O desperdicio de viver jamais está na dor ou na infelicidade. Está na ausência de drama, de provação. Se o homem existe para achar seu destino, esse destino jamais pode ser um prazer, ele será uma sombra, um inverno e o gelo. Mas vem daí o sentido, pois é ao aceitar esse inverno que o homem pode viver o pleno mudar de estações. A vida para Dinesen é rica, animada, imensa.
   Ela tem uma alma.

A ÁRVORE DA VIDA- TERRENCE MALICK

   Americanos não são bons de filosofia. Tirando William James e mais alguns pragmáticos não há nada de muito brilhante em país tão importante. Mas eles sabem, como ninguém, demonstrar coisas em ação, na prática. Mesmo suas religiões procuram esse gancho com os sentidos, com a materialidade da vida. O cinema americano consegue ser tão bom quanto qualquer outro quando usa seu dom de "fazer coisas", e não demonstrar teses. John Ford pode ser tão profundo quanto Bergman, mas jamais irá discutir abertamente aquilo que Bergman explicita. Não procure na América um Dreyer ou um Bresson. Não procure na Europa um Kazan ou um Lumet.
   Stanley Kubrick é a excessão, e várias vezes neste filme percebi o desejo de Malick em ser Kubrick. Quem quiser ver o mesmo filme sob enfoque mais profundo, veja 2001. E quem desejar ver o mesmo tema tratado de modo europeu, que alugue ASAS DO DESEJO. Cada época tem o filme que merece, e ASAS DO DESEJO vence este filme em tudo, inclusive em estética. Se voce nunca viu o filme de Wim Wenders não conhece cinema.
   Mas este filme também tem algo de FANNY E ALEXANDER, e comparar Malick com Bergman é uma covardia com o americano. Três minutos de MORANGOS SILVESTRES ( os 3 finais ) falam mais sobre o drama familiar que as duas horas aqui mostradas. O filme causa repulsa em certas pessoas porque a ambição de Malick está muito além de seu talento. Cada fotograma tenta ser "genial e solene", qualquer um percebe isso, e todos correm o risco de pensar: "Ah, chega de tanto pedantismo!" Malick tentou fazer um filme cósmico, não conseguiu, e eu me lembro também de RAN, talvez o mais cósmico dos filmes. Mas colocar Malick ao lado de Kurosawa é como comparar Bizet com Mozart.
   Uma das coisas que sei sobre mim é que sou bom em descobrir sentidos. Não vivo na doença da falta de sentido, nunca perdi o dom de ler o que me é dado. O sentido deste filme é simples, claro, e nisso há um mérito. Como bom americano Malick não perde de vista o dom de se comunicar. Sua ambição é imensa, mas ele não deixa de ter em vista seu possível público. É um filósofo que escreve claro. E a partir daqui deixo de falar do filme ( que tem o mérito de ser "do bem" ) e passo a ler o que nos é dado ( que não é pouca coisa ). Serei propositalmente contraditório. E bastante sincero.
   Ao contrário do que hoje é moda pensar, a relação familiar é um paralelo diminuído da relação de Deus com os homens. Nós não criamos Deus para espelhar e sublimar nossa relação falida com nosso pai biológico ( quanto chavão! ), é exatamente o contrário. As pessoas deveriam reaprender a ver as coisas sob mais de um ponto de vista, duvidar daquilo que lhes é dado. Nisso, o filme é cristalino. Muito mais profundo que IMAGINAR que há entre pai e filho uma rivalidade pela mãe, é PERCEBER que o amor do filho pelo pai e do pai pelo filho é o mais precioso. O que faz o filho se afastar é o fato de que ele não consegue compreender o tipo de amor que o pai lhe dá. Do mesmo modo como perguntamos a Deus que tipo de amor é esse que nos deixa sofrer, que se ausenta, que nos impõe regras duras, o filho passa a vida em rancor contra o pai descrendo de um amor que não o fez feliz. Mas o pai o ama. Com toda a força de seu ser, ele vive para ele. E tenta prepará-lo para a vida, tenta lhe incutir coragem, independência, força, confiança em si. Lhe dá regras rígidas, castigos, frieza, distancia. É um patriarca, um Deus que perde o amor de seu filho.
   A mãe, como em Jung, é a natureza. Ela nutre, ela dá a vida. Ela é toda conforto, pouco fala e tem calor. O pai/Deus é de certo modo seu Senhor, mas é a ela que os filhos/nós recorremos sempre. Ela sabe sem saber e é maravilhosamente bela sem ser bonita. Atente: nada há de edipiano aqui. Isso seria reduzir tudo ao bonde-do-Freud. A coisa é bem mais profunda, e portanto, é insolúvel. A mãe é e será sempre a NATUREZA, o ser ligado ao ciclo da vida. O pai sempre será o ser que vem de fora, o ausente, o que ama com propósito.
   Todos os santos foram heróis. E todos os heróis foram pessoas que romperam com sua casa. O filho perde o pai e passa a ser cruel. Ele, que tem ao lado um irmão "anjo", ponte entre o Pai e o filho, desacredita de tudo, do amor, da bondade, do sentido. Ainda se refugia no calor da mãe/natureza, mas esse calor começa a se reduzir a pele e sangue. A cena em que ele judia de um sapo ( a ciência ) e provoca dor no irmão ( a matéria ) são centrais. Isso as religiões dizem: é no filho "ovelha negra" que reside o potencial de profundo conhecimento. O filho que enfrenta o pai é exatamente aquele que um dia mais o amou.
   O pai se perde. Ele é renegado pelo mundo. Se recolhe e vai cultivar seu jardim, sua horta. A língua que o unia a vida se perdeu. Ele é demitido. Pode uma cena ser mais explícita?
   O filho rebelde, hoje, se perde em mundo que parece vazio, asséptico, morto. No universo de seus pais tudo era grama, capim, cães, pássaros, espaços livres, flores e céu. Ele vaga pela cidade e recorda. Recorda principalmente a morte de um irmão. Um filho do pai. E a dor da mãe, que milagrosamente sobrevive a dor. Convive com essa dor porque ela é a dor, ela é a mãe, ela é o ciclo. O filho então se reconcilia. A cena da catarse é bastante ruim, mas podemos ver o sentido final. O filho caminha ao lado do irmaõ, da mãe, do pai. Entre os edifícios de vidro há um céu.
   Bem....Agora dou mais um relato. E aqui falo de minha vivência pessoal com este filme. Primeiro. Malick consegue passar a impressão de "presença". Como ocorre em 2001, temos a sensação de que "alguma coisa" paira ao redor das cenas. Em 2001 é a inteligência cósmica, aqui é Deus ( sabemos que Malick é professor de filosofia e crente. Provávelmente um seguidor de Pascal e Bergson ). Alguém percebeu que ao mostrar a criação da vida, em cenas deslumbrantes, ele explicita e ao mesmo tempo cria um mistério? A vida nasce. Como?
   Em cada cena do filme, seja nas cenas de brincadeiras entre irmãos, seja nas brigas com o pai, há um personagem à parte, ausente/presente, presumível. Eis a repulsa que o filme pode causar: ele é religioso, tenta ser virtuoso, moralista, inflexível. Nada moderno, portanto.
   Chorei muito a partir das brigas entre pai e filho. Vivi tudo aquilo. Minha infância foi aquela. E é deslumbrante ver aqueles garotos todo o tempo na rua. Eles estão constantemente em estado de graças. Agradecem, sem saber, a cada árvore, cada folha de relva, ao céu que chove e que aquece. Eles usam seus olhos, seus corpos que correm e pulam. Amam sua mãe. E mais que tudo, querem amar e ser amados por seu pai ( o amor da mãe é inquestionável. Afinal, ela está sempre ali e jamais parece incompreensível ).
   Meu pai me fez sofrer demais, e todo esse sofrimento se deveu ao fato de que eu não conseguia crer em seu amor. Se ele me amava deveria fazer tudo o que minha mãe fazia: estar presente todo o tempo, ser carinhoso, real, físico, sem nada de oculto ou rigido. Ele tentava fazer de mim um homem, um ser mais duro, independente, alguém que pudesse se proteger dos perigos. E mais que tudo, ele queria que eu percebesse seu amor. A grande tragédia aí está: ele ama, mas esse amor parece não bastar. Seu amor não é percebido. ( E penso nas crianças que hoje não têm mães presentes para amar. Quem não viu sua mãe pendurando roupa no varal, cantando, o vento e o sol, não sabe o que o amor pode ser ). Essas crianças, na simbologia, perderam não só a presença da mãe; perderam a presença da natureza. Em nosso mundo sem mães e varais, também não existem gramados e espaços vazios.
   E com toda essa incompreensão, eis o sabor da vida, é exatamente em mim que vive mais forte o legado do que aconteceu. Sou eu, filho que xingava e chorava escondido, que carrego a lembrança. Sou eu, filho de um pai que nunca entrou numa igreja, que pressente mistérios sem nome e sem razão. Mistérios que são o que nos define e nos dá sentido.
   Quando Sean Penn anda pela praia, naquela cena paupérrima que remete ao pior da new-age, sou eu que ando por lá. Vejo ali meus mortos amados, minha morte futura e de todo dia. A felicidade, única, é ter tido essa mãe esse pai. Aquela rua é o paraíso. E tudo o que deveríamos fazer é cuidar dela. Cuidar com afinco, com sacrifício, com perseverança. Cercado pelos cães, pássaros e pela mãe/vida. E assistidos pelo Pai. Sem essa consciência de sentido, nada vale estar aqui, nada tem relevância e a chance de ter paz é nula.
   Um filme cheio de falhas, mas que nos dá muito o que ler. Precisa ser vivido.

NO LIMITE DO CAOS: SHOWS DE ROCK SÃO BONS QUANDO PERFEITOS, MAS SÃO INESQUECÍVEIS QUANDO ANDAM NA BEIRA DO ABSURDO

   O último concerto.
  Os 3 sobre o palco. E a sensação de que tudo pode dar errado. E dá. O baixista está viajando, ele ri, ele sai de tom, ele se acha. O ego vai crescendo, mas o que ele pensa todo o tempo é: shit....
  A platéia é cheia de perigo. Uma nuvem de coisa roxa flutua sobre as muito jovens mentes. Todos estão pairando entre a histeria suicida e a indiferença mortal. Os rostos transmitem cores nada agradáveis. Há algo de muito satânico na sala de concertos, e esse satanismo rima estranhamente com inocência. O teto pode vir abaixo, uma faca pode ser usada, ou nada acontecerá então. E enquanto isso algumas mentes se partem em fagulhas.
  Na bateria há um ruivo completamente canibal. Ele sabe ter saído de um galeão espanhol onde era trancafiado como animal selvagem. O modo como ele usa a bateria é soberbo, ele a ataca, a espanca, os bumbos são currados e os tambores estão sendo descabaçados. No rosto, feio, um sorriso de dentes podres.
  O jovem guitarrista erra todo o tempo, se perde, se enrola em notas que não deveriam estar lá. Um principe que foi raptado por dupla de diabos. Ele tenta manter uma certa elegância, algo de ereto, de racional... mas entrega os pontos, só lhe resta deixar ir.
  Eu juro que vi o teto desabar naquela noite. E juro que todos nós morremos debaixo daquele concreto e gesso.
  Shows de rock podem ser como Eric ontem no Morumbi. Britânicamente perfeitos. Elegante, sublime, professoral, poético e sincero. Mas deveriam ser como Eric aos 23 anos, errado, perigoso, perdido, egocêntrico, satânico, dionisíaco, meio ridiculo até. No Farewell Tour de 1968 houve tudo aquilo que define o rock. Em 2011, tudo o que define o pop.
  Mas Eric merece reverência. Aplauso. E ter começado com Key to the Highway e emendado com Tell the Thruth foi excelente decisão.
  Só que faltou alguém como Ginger nos tambores, faltou cheiro de enxofre, faltou gente com a mente em pedaços, faltou perigo, o ácido aroma do perigo.

Cream - Sunshine Of Your Love (Farewell Concert - Extended Edition) (1 o...



leia e escreva já!

CLAPTON IS GOD, HOJE

   Em 1964, cool era gostar dos Yardbirds, e grafitar nos muros de Londres "Clapton is God" era ato "in". Groovy baby, yeah! Os Beatles já eram, a onda era o blues inglês.
   Pra voce ter uma ideia, o que Clapton (e Mayall, Jeff Beck, Peter Green e Van Morrison ) fez é mais ou menos como se hoje aparecesse um portuga cantando música caipira de raiz ( ou samba tipo Elton Medeiros ) nos mostrando o quanto estávamos perdendo em não os valorizar. Porque a América em 1964 só queria saber de caras branquelos e bonitinhos, tipo Pat Boone ou Ricky Nelson. E de ingleses, tipo Beatles, que eram branquelos e arrumadinhos. O povo sexy preferia Stones, Animals, Them, e os Yardbirds. Eric Clapton, que hoje estará ao lado da minha casa, no Brasil-Morumbi, 2011, estava lá.
   Mas ele sempre foi um "puro". E a prova disso é que ele saiu dos Yardbirds quando a banda estourou. Na época ainda havia esse idealismo. Eric saiu porque a banda se vendeu. Jeff Beck assumiu seu posto e psicodelizou o som. Eric se juntou ao "puro" John Mayall e gravou os Bluesbreakers.
   Em 1966 ele começou a pirar. Heroina e ácido na cabeça, busca por sentido, e o sentido era uma nova sociedade. Sim meu povo, se acreditava ser possível mudar o mundo, derrotar o capitalismo, um mundo onde todo mundo fosse "doidão e irmão, man!" Surgiu o Cream.
   Um novo conceito: o supergrupo. O melhor baixista, com o melhor baterista e o melhor guitarrista. E ainda um poeta de vanguarda como letrista ( Peter Brown ). Esqueceram de chamar um cantor. Mas ok. Se o Cream é responsável pela egotrip que invadiu o rock forever, nos singles eles foram uma banda excelente. E o lp Wheels of Fire é nota dez. Em estúdio eles se continham, faziam músicas de 3 ou 4 minutos. Pop psicodélico. Ginger Baker era um baterista muito original, tocava como se sua batera fosse um tambor africano, Bruce era um baixista muito jazzy e havia Clapton. Que estará aqui ao lado, hoje. E desde sempre seu toque sempre foi fino, suave, cool. Os dedos de Eric são leves, femininos.
   Eric compôs então os dois riffs que mais grudaram em minha mente desde sempre. Me pego faz trinta anos andando pela rua e sem perceber cantarolando "Sunshine of your Love" e "Badge". O riff de Sunshine é avô de todo riff de hard-rock e o solo de Badge é plagiado por N grupos desde então. Mas, sempre um "puro", Clapton sai do Cream quando vê que não tem nada a fazer lá. Num daqueles solos free, num palco dos USA, ele pára de tocar e percebe que Jack e Ginger nem percebem. Its all over now.
   Toca então com Beatles, com Stones, com Steve Winwood e muuuuito doidão, vai ao sul dos USA para se afastar dos malucos de Londres. Que erro! Toca com os estradeiros Delaney e Bonnie, um grupo de hippies radicais, do tipo que vê Jesus Cristo em cactus do deserto. Grava Layla com Duanne Allman, pra mim, um lp que é o melhor e mais desesperado retrato do amor terminal. E estradeiro até as botas sem sola. Isso porque Eric estava amando a esposa de seu best friend: George Harrison, e ela optou por George ( e depois iria para Eric... ). Então Layla sai ao mundo e Eric quase morre. Em 1971 ele era considerado mais junk que Keith Richards.
   Volta em 1974, falando que Steve Wonder é Deus e que a heroina já era. É o Eric que conhecemos até hoje, relax, bom astral, pop adulto, meio The Band meio Steely Dan. O que a gente não sabia é que ele adorava um bourbon, na verdade litros e litros.
   Amigão. Sempre um "puro", torna-se cumpadi de Dylan, Ron Wood, The Band, e volta às boas com Harrison ( espiritos superiores, sem dúvida ). Grava com todos eles e ajuda a popularizar gente como Bob Marley e J J Cale. Pára com a bebida e perde um filho. Mas quem o viu na belíssima homenagem à George Harrison sabe que Eric é a imagem da paz. É dos poucos caras do rock que dá vontade de conversar sobre amor e dor.
   Daqui a pouco esse cara puro vai estar aqui ao lado. Um senhor que conviveu com Lennon, Brian Jones, Hendrix e Harrison. Talvez o único gigante do rock sobre quem ninguém nunca falou mal. Clapton não é God, claro. Mas ele ficaria muito bem como o arcanjo Gabriel da guitarra.