A ARCA RUSSA- ALEXANDER SOKUROV

Impressionante. Este filme com nenhum outro se parece. Consegue um milagre feito de técnica e de inspiração : ter quase duas horas de duração e não precisar de um só corte !
Sim, o filme é feito em uma única tomada ! A câmera é ligada e tudo é filmado em tempo real e contínuo. Todos os atores têm de estar no lugar certo, tudo deve funcionar ou todo o trabalho se perderá. Mas, o que faz o encanto deste lindo filme, é que isso, que poderia ser mero exibicionismo, existe em função da filosofia da obra : ao falar sobre St. Petersburgo e sobre o apogeu da história russa e européia, o filme precisa deslizar, como se fosse música, como se pudesse valsar.
A câmera são os olhos de alguém de 1992. Ele acorda ou morre e vaga por corredores. Não sabe onde está. Pessoas fantasiadas passam por ele e um francês da era Napoleônica lhe serve de guia. Os dois conversam e passeiam pelo museu Hermitage, em Petersburgo. Nesse passeio, vemos os salões do museu, suas obras-primas e personagens da história russa, que passam por nós como fantasmas. O russo, desperto da vida, ou desperto de um pesadelo ? Segue o francês, racionalista snob, que comenta sobre os altos brilhos da europa e os brilhos, poucos, da vida russa. E nós, sem perceber, vamos juntos, meio hipnotizados, meio fascinados, um pouco perdidos, um pouco assustados.
Se voce souber alguma coisa de história seu prazer será imenso. Se nada souber, sua fascinação será garantida pelo clima onírico do filme e pela gigantesca beleza das imagens. Raras vezes um filme foi mais belo. E raras vezes foi mais melancólico. Explico.
Tudo aquilo que vemos, e mais que vemos testemunhamos, é o apogeu irrecuperável de um tipo de civilização. A era da aristocracia. Um mundo em que tudo era dirigido para o que fosse elegante- racional- equilibrado. É o apogeu e o fim de um mundo dirigido para o melhor e não para o senso comum. O que define essa civilização é o excepcional, jamais o geral. A revolução francesa matou esse mundo. Para sempre.
O filme mostra a corte de Catarina e de Pedro. A tentativa de Petersburgo em se tornar Paris. A arquitetura é desconcertante. Tanta beleza chega a alucinar. Nossa era de bancos e hotéis é uma favela de concreto e de vidro vulgar, se comparada a época do mármore, do cristal e da prata. O centro da cidade era a igreja e o palácio, hoje é a finança- impessoal como um banqueiro. Mas para Sokurov a coisa é pior. A beleza de Petersburgo é obscurecida não só pelo final da era aristocrática. Vem a guerra. As várias guerras, o milhão de mortos na segunda guerra ( meu Deus ! Um milhão de mortos em uma batalha !!!!! ). E vem a escuridão da ditadura bolchevique. Em que o passado é apagado ( me lembro da frase de Kundera : a memória é a luta contra a ditadura. O poder é esquecimento.... ). Petersburgo muda de nome, muda de espírito, é aviltada.
Em 1992, um russo desperta. Tenta unir o fio da história, recordar e refazer. Impossível. A Rússia é o que ?
Para mim, o filme chega a doer. Ele mostra o máximo de "eden", de paraíso, que consigo conceber. ( Como o final do 2001 de Kubrick ? ). O século XVIII é o auge da nossa jornada, o auge da filosofia, da música, da literatura, da pintura, do salto da ciência. Topo da polidez, do controle sobre a paixão, do riso, do flerte. Tem o negror da miséria também. Mas é aqui que o povo se ergue para subverter essa tirania. O século é o século da virada, do pleno poder e da completa decadência. O filme mostra isso em imagens sem cortes e nos dá, ao final, um baile que nos recorda "O Leopardo", a obra-prima de Visconti sobre a beleza profanada. Nesse baile, onde cada gesto e todo olhar é definição de filosofia, o europeu-cicerone se solta e se diverte. E percebemos, nós, seres da taba deste século desumano, que toda aquela rigidez formal; liberta, não oprime. Nos toques, passos e modos da mazurca, observamos a etiqueta do contato social, da união de casais, da genealogia do amor. Os modos são dados para que voce se guie por eles e seja livre em seus limites. O campo de ação é delimitado, mas o segredo lhe é revelado. Hoje somos livres. Sem uma estrada nos perdemos na falta de direção. Nossa dança entre sexos é feita de embriaguês e de zumbis pulando para o escuro. Voltamos a Neanderthal.
Quando o russo e o francês se separam ( quem seria ele ? Stendhal ? ). .. o russo diz : "- Adeus Europa ! " Essa frase toca nossa medula. Porque ? Ora, falemos a verdade, fazem sessenta anos que a Europa respira por aparelhos. Sua morte começa com a primeira guerra e é total após 1939. Tudo o que ela nos tem a oferecer é passado. Restos de gênios mortos, ruínas de São Petersburgo, testemunhos de nobres europeus extintos. A Europa vive de fútil lembranças de luxos superficiais que envergonhariam o verdadeiro europeu : aquele que criou o que entendemos por civilização.
Este filme é inesgotável.

UMA NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL- OTTO MARIA CARPEAUX

De Caepeaux o que se pode dizer ? Foi um emigrante do intelectualmente riquíssimo leste europeu, se tornando no Brasil um dos melhores jornalistas da melhor fase de nosso jornalismo cultural. Publicou uma completa "História da Literatura Mundial" em 3 volumes e este livro recém relido. E que é fascinante !
Ele não tem pudor em se derramar em elogios àquilo que adora. Otto toma partido e se compromete todo o tempo. Fala abertamente daquilo que para ele está morto e daquilo que é eterno enquanto o homem for digno de atenção. Sua cultura é completa. Situa cada mestre em seu momento histórico, dando uma pincelada em sua vida e em seu meio social. Faz aquilo que todo grande crítico deve fazer : nos faz ansiar por escutar aquilo que é descrito. É impossível ler seu texto sobre Haydn sem correr para o escutar.
Carpeaux avisa no inìcio que a obra é sobre a música do ocidente. Portanto não há nada sobre India ou Israel. E que é sobre música viva. Não se fala sobre Grécia ou Roma, e mesmo a música medieval se inicia com o canto gregoriano. Otto nos faz conhecer a música da renascença, o barroco, a época da razão e o excesso do romantismo. Chega ao século vinte, com os modernismos suicidas e a música eletrônica e eletro-acústica.
Bach é chamado de mestre da música pura, a música que não fala de nenhuma imagem ou de nenhuma narrativa. É música abstrata, espiritual. Bach, um homem do tempo em que ser músico não era ser "artista", era antes de tudo, ser um artesão. Compunha-se por um fim e ao se tocar a música ela era descartada. Mozart é o eterno adolescente ? Não. Ele foi antes de tudo um boêmio, um bruxo, um quase inacreditável bem dotado, que compunha com imensa facilidade. E Beethoven, centro de tudo aquilo que conhecemos por música ( inclusive a popular ). É com ele que nasce a consciência da genialidade. O artista compõe o que deseja, expressa o seu ser e se apresenta para quem pagar para o assistir. Beethoven é, com Shakespeare e Michelangelo, o homem que define o máximo a que o ser pode almejar. Dentre seus fãs, gente como Tolstoi, Thomas Mann, Stendhal, Kundera, Huxley, Proust. Quer mais ou está bom ?
Mas Carpeaux não fica só nesses titãs. Haydn recebe a chama de ser o verdadeiro inventor da sinfonia. Monteverde o de ser o inventor do que conhecemos como música. Coloca-se Schumann, Schubert, Wagner, Debussy nas alturas, e se rebaixa Mendelssohn, Vivaldi e Liszt. Ele narra toda a beleza refinada da era clássica, em que os sentimentos deviam ser disfarçados, controlados, refinados. Era de Rameau, Couperin, Scarlatti. E fala de seu oposto, a era romântica, em que tudo deveria ser exposto, sentimentos e vícios, exageros. Tempo de Berlioz, Tchaikovski e Chopin. As breves bios de Liszt ( imenso sucesso, amores às dúzias, ajuda a compositores jovens, conversão a religião, abandono da vida mundana ) e de Schumann ( jornalismo cultural, casamento feliz e final no hospicio ) são maravilhosas ! Como eram intensos esses românticos !!!!
Fica a pena de que não exista nada parecido sobre a música pop. A crítica popular é sempre dogmática : se o escriba adora uma corrente ele ignora o resto. Otto é enciclopédico. Tudo ele ama e em tudo conhece seu defeito.
Mas o melhor é que ele escreve simples e escreve bem. Sua obra é feita de prazer. Escrevendo sobre a mais etérea das artes, ele compõe frases feitas de harmonia, ritmo e melodia. Um mestre.

VÁRIOS RIOS

Eu estive entre os dois rios e caminhei entre tamareiras. O som do vento nas folhas e o som da água que corria era tudo aquilo que eu queria. Vaguei no horizonte que jamais tinha um fim e morei no centro do círculo onde tudo que acontecia acontecia para mim.
E nós adorávamos o sol e temíamos a noite porque as feras rugiam e nos farejavam. A terra era mãe onde amávamos a vida sem saber. A liberdade não fora inventada, mas nós nos criávamos. A chuva me alucinava e os raios vinham dos braços do pai. Meus primos e eu e nós olhávamos./
Eu descí para outro rio e lá ouvia música de flautas e de tambores e notei que em mim existia outro. Mergulhei na água azul no fim dourado da tarde e pude ver a imagem de nosso corpo. Perdido na mata entre macacos senti o horror de se perder entre a vida e a alegria de se esquecer da vida. Nossas cinzas repousam no rio./
Quando subi cruzei outros dois rios e conheci a neve. Tranquei-me entre toras e fechei meus olhos. Sonhei com a volta do sol e com o gosto do vinho. Olhando para o fogo fiz perguntas que pergunto ainda hoje. Nós somos essas perguntas. Os lobos batiam à porta e nós cantávamos. Quando os pingentes de gelo começaram a derreter eu descobri a palavra gratidão./
Ao cruzar outro rio vislumbrei meu primeiro mar. Foi olhando o mar que em mim nasceu a idéia de eternidade. O mar se move e sempre é o mesmo. Caí apaixonado pelo cheiro salgado, caí extasiado pelo som que é o som da vida, e caí enfeitiçado pelas cores de seu ritmo. Atendi seu apelo e me fui mar adentro./
Quando vi seus rochedos pensei ter encontrado o inferno. Mas ao pisar em seu verde sem fim eu entendi o que seria viver dentro da liberdade. Meus pensamentos voaram como insetos e criei a idéia de fadas para entender esse encanto. O vento era frio mas tudo falava comigo. Meus dias eram de água e de luz e as noites de canção ao redor do fogo. Servi ao senhor da terra e senti o açoite e a fome. A terra verde tornou-se rubra. A liberdade, perdida, agora é desejo./
Cruzando um mar que é rio chegamos à terra escura. E cruzando outro rio notei que tudo era pedra e areia. Criei cabras e pastoreando deixei que o círculo se refizesse. O sol rodava ou eu rodava ? Confundi-me com as cabras e pensei onde estaria nossa diferença. Foram séculos entre animais e na solidão correta das pedras e das oliveiras. Vagando por primos e por estrangeiros, nós sabíamos os segredos do chão e do ar. E a chuva sempre nos redimia./
Conheci a religião dos mártires. Como antes conhecí a da natureza. Segui seus preceitos. E entendi que na submissão mora um tipo de liberdade. Mas o vento da tarde parecia carregar parte de mim para longe. E eu falava com os anjos sobre isso./
Mais dois rios foram cruzados. No primeiro eu vi a guerra. E lá matei e fui trucidado. Fui eu quem violou a moça de negro e fui eu quem teve a cabeça decepada. O rio turvo de sangue e meu rosto crispado de emoção. Ao cruzar mais um rio esquecemos de tudo e eis eu bisavô entre as uvas./
Podar as vinhas e sonhar com a boa estação. Pisar o fruto e viver no perfume dos tonéis e das bagas. Beber o vinho que nasceu do sol e da terra. Entender o sangue. Quantas festas para o verão ? Onde conheci amores risonhos e onde pulei em louvor a vinha. Os natais ao pé do lume onde a comida era melhor e o vinho se oferecia. A aldeia se iluminava e minhas mãos eram frias. Eu dormia escutando a respiração dos bichos que viviam ao lado. E amanhecia com galos. A escada rangia e a água do rio era fonte de brinquedos e de roupa branca. Meu prazer era casar os outros e nisso eu vivia./
Então ao lado do bom rio eu cortava a pedra. Ia bem cedo rumo a pedreira e media a rocha e cortava certo, no ângulo exato. Tomava goles de vinho verde que deixava na água para resfriar. Meu burrico comigo, suávamos subindo e descendo até a casa que eu fazia. Eu fazia casas de pedra. Amava suas fachadas avarandadas onde se avistava o sol entre montanhas. Amava a adega fria onde as pessoas se esqueciam do verão. Eu destruía minhas mãos e sorria com a casa que nascia. Fui parteiro de famílias./
Então cruzei um oceano e em navio cheguei a outro rio. Morei em quarto cercado de córregos e andei entre ruas de sombra e salas de cinema. Eu amava os cowboys e os soldados. E percorria ao longo do rio a trilha do meu dia. Ecos de passos na madrugada, futebol com primos nos domingos e o amor num banco de jardim. Nós amávamos as meninas./

Eu agora hoje, vim no tempo do fim dos rios. No começo de sua morte, quando eles se tornaram refugos. Sou esse rio e todos os outros rios, vários rios, que viram e me deram uma vida. E sou a água que veio de longe e vai para além. Os passos todos eram meus e sendo meus eram nossos. E estarei no final do último dos rios e me sentarei chorando sua morte. Nascemos sentados ao rio. Partiremos ao seu leito seco.

SOBRE O LIVRO DE GILBERTO SAFRA

Ora, jamais existiu período histórico tão preso a linha reta. A redondeza do tempo kósmico, onde tudo sempre se repete ( dia/noite, chuva/sol, verão/inverno, morte e nascimento ) é o tempo do primitivo, do selvagem, da natureza. Esse Eden foi perdido e é extinto.
Nosso é o tempo da linha reta, que Safra chama de tempo histórico. Tempo onde o ontem é morto e o futuro é eterno desejo. Nesse tempo o futuro é infinito e somos todos jogados para a frente, marchando em nossas baias no trote acelerado. Tempo da ciência onde a transcendência é não só impossível como indesejada. O homem reduzido a ser biológico, número catalogado em classe e série, comprador compulsivo de ilusões moderninhas e de medicamentos consoladores. Nessa reta, nesse trilho, a ruptura se torna inviável, pois para pular da linha há que se cair no vazio. É como se fora do trilho nada mais houvesse. Kafka.
Mas há. Há o gesto criativo que cria seu próprio tempo, seu próprio universo, seu instante efêmero porém absoluto. Ele rompe com o círculo do kosmos : pois nada tem de natural; e rompe com a reta, pois não é parte do tempo contado e catalogado.
Esse tempo explica o porque de me sentir tão GRANDE quando leio Shakespeare. Nunca existiu o tempo de Shakespeare, ele jamais foi contemporâneo. Em 1600 ele já era fora da reta, ele não é do passado, nega o hoje e não anuncia o futuro. Ele vive e reina em seu mundo extra-mundo. Mas ele existe por e para nós. Shakespeare criou por necessidade íntima, mas visando ao universo humano : ele é um homem maior. O pleno. A criação pura.
O mesmo sinto diante de Beethoven, Michelangelo, Cézanne ou Eliot. A gigantesca força extra-universo do homem. O dom de criar tempo e mundo própio. O transcender o efêmero.
O mundo do círculo natural não toma conhecimento desse gigantismo. Para esse mundo eles não existem. Possuem uma linguagem indecifrável e herética. E para o mundo da reta, mundo que precisa ser medido e vendido e que toma o valor de tudo por sua função, nesse mundo eles precisam ser vulgarizados, transformados em ponto de reta, precisam ser domados. Explica-se então o gênio, disseca-se o processo e vende-se o segredo. Transforma-se um mito em parte do trilho.
Mas em sua gigantesca luz ele resiste. Vive fora do tempo e fora do que é explicável. Transcende.
Todo gesto criativo é tentativa de sair de seu meio, de se erguer sobre seu tempo, de escapar do destino. Para quem vivia no círculo natural seria domar a natureza, explicar os deuses, subjugar o fado; para nós, pontos em reta, escapar do passado e do futuro, habitar o atemporal, visitar a terra dos gigantes, conhecer a transcendencia. Ser poeta. E o mundo nunca desprezou tanto o poeta e jamais necessitou tanto deles.
Mas cuidado : tudo pode ser vendido ! E vender rebeldia, vender o anti-"mundo atual", vender a ovelha negra é idéia amada por comerciantes de falsas idéias. O poeta verdadeiro se comunica com gente, não com grupos de mercado, escreve para uma pessoa, e nunca para um público. Pois não existe o público. O que existe é o eu e o voce.
Há um texto de Hannah Arendt no livro, que diz que todo ato criativo é rompimento com o que o cerca. É surgimento do inesperado. Como fazer isso num mundo onde o inesperado é cobrado ?
.........
Não me interesso mais pela música pop feita hoje porque ela não tenta mais sair do tempo. Assumiu descaradamente sua contemporaniedade descartável. Ela propõe ser retrato do hoje e sómente do hoje-agora. Ela se equilibra na linha reta e me causa enjôo. Os poucos que tentam sair disso e transcender acabam revisitando transcendências do passado. Não criam um novo mundo extra-tempo, visitam o universo de outro, o já criado. Estão irremediavelmente presos.
Quando assisto ( por exemplo, APARIJITO de Satiajit Ray, que vi ontem ), um grande filme, percebo que em suas imagens existe um tempo que é só dele. O filme não fala de um momento específico. No ano em que foi produzido ele não era " de agora" , e hoje, 40, 50 anos depois, continua sendo fora de tempo. A criatividade desse tipo de obra cria seu universo, seu momento, sua vida. Ele existe como coisa nunca moderna e nunca passada, nunca de hoje e jamais ultrapassada. Ela é o gesto de criação eterno.
Kurosawa é isso. Bergman é isso. FACE A FACE ou MORANGOS SILVESTRES ou PERSONNA não são de tempo algum. As questões que levantam e o modo como se comunica conosco são de um tempo extra-tempo. Negam o passado, negam o agora e negam o futuro. Criam seu tempo. Quando Bergman é menos gigantesco ele se torna contemporâneo, moderno, preso, frouxo. Basta comparar o Fellini de CABIRIA ou AMARCORD com o de A DOCE VIDA ou ROMA : os dois primeiros criam seu tempo, os dois últimos são do agora.
Adoro Godard, mas reconheço que sua força era a força do momento, do moderno, do contemporâneo. Ele, como Antonioni ou Cassavetes, jamais criou seu tempo. Retratou criticamente a linha, mas não conseguiu transcender. Hoje, adoro Joel Coen, Almodovar, Eastwood, Tarantino mas sei que não há neles um novo universo. Seus filmes, maravilhosos, são frutos do agora, e serão velhos com o passar do tempo. Deliciosos, porém presos. Tim Burton tenta desesperadamente transcender. Terá conseguido ? Ainda não. Ele é alienado do agora, mas isso não significa criar. Negar o momento é ato de desespero, criar um mundo atemporal é genialidade.
Belo livro que trata de tudo que me interessa : tempo, criação e morte.
Mais comentários abaixo.

A PO-ÉTICA CONTEMPORÂNEA- GILBERTO SAFRA

Ando pelas ruas fotografando. Fotografo casas antigas, ruínas, ruas congeladas no tempo, árvores. Estou a procura de alguma coisa.
Depois, a noite, andando pelas ruas desta cidade, sinto uma constante saudade do escuro. Esta cidade não tem mais lugares escuros. Me cai nas mãos um livro que fala o que eu sempre soube. Mas não falo, pois quem pode ouvir ?
No mundo de Bach, de Spinoza ou de Shakespeare, existem sentimentos de dor. Tristeza, desespero, falta de coragem, coração partido, decepção. Mas até a geração romântica, é desconhecido do homem o sentimento de vazio, e é só no final do século dezenove que nasce o desespero existencial, o sentimento de absurdo da própia vida. Porque ?
O livro de Safra verbaliza isso. É com a revolução industrial que se começa a destruição do ambiente, da praça, da floresta, da sua face. Como dizia Whitman, voce é seu companheiro, voce é sua rua, voce é sua casa. O progresso derruba tudo isso. Voce é o que ? Com a revolução, alemães e ingleses primeiro, assistiram a transformação de toda referência. Seus locais sagrados não eram mais seus, sequer existiam. Eles criaram o romantismo como grito de protesto contra a futilidade dos novos tempos, a mecanização da vida. No final do século xix, o grito se torna gemido, contra a coisificação do homem. Neste inicio de milênio, apenas aceitamos docilmente como fato único : somos máscara sobre máscara.
A máscara sofre o desespero de não poder sentir. De não existir. Da total virtualidade. Quando meu pai morreu fui uma face. Sofrimento puro, completo, sem disfarce ou modelo. Eu era eu-mesmo. Um sofrimento terrível, porém saudável, verdadeiro, inteiro. Eu me sentia construir. O sofrimento da máscara não constrói nada. Nem destrói. É inexistente.
Eu estive nos dois mundos, posso testemunhar.
Minha infância foi a abençoada infância da aldeia. Todo habitante sabia quem eu era, de onde eu vinha, do que eu gostava. Cada pedrinha no chão, cada árvore e cada córrego tinha um nome para mim. Tudo possuía sua história, seu nascimento e seu fim. A noite era escura e assustadora, com sapos e ratos e toda manhã parecia um novo momento de descoberta. E mais importante : as coisas não pareciam ser transitórias, eram para sempre.
A ruptura desse idílio veio com a mudança de casa. Todas as histórias foram abandonadas e as ruas que eu via não falavam comigo. Nesse novo árido mundo, eu precisei criar dentro de mim pontos de apoio, modelos e moldes para seguir, para poder ser e existir. Foi uma armadilha, e esquecí tudo o que eu era e tudo o que eu precisava ter. Deixei de ser ruas, árvores e gente que vivia comigo; me tornei o que eu quisesse, virtualmente potente, mas eternamente eu. Criei máscaras. Vazios.
Então voce pensa se tornar aquele cara que voce admira. Um ator, um personagem de filme, um rock star. Voce se torna a máscara de uma máscara que já nasceu como máscara de outra máscara. Quando essa coisa fantasiosa cai, o que voce percebe é que voce é um estranho para voce mesmo. Nasce um terrível horror : um sentimento sem nome, sem história, sem verdade, sem porque : o completo vazio. Voce não sofre por alguma coisa. Apenas sofre por não ter pelo que viver ou sofrer. Virtualmente.
A única referência de futuras gerações : imagens coloridas sem passado, raiz ou verdade. O que será delas ?
O livro fala mais. ( E é uma pena ele falar tanto de Dostoievski e passar ao largo de Tolstoi ).
O que é o sexo hoje ? Existe nele uma narrativa, um encontro de duas almas, um reencontro com a verdade ? Isso não está no livro, mas eu vejo cada vez mais que sexo é a única chance que ainda resta ao homem, de se tentar fazer alguma coisa puramente instintiva, animal, não racional. O que é uma bobagem ! Na maioria dos casos, suas transas são puramente racionais, tanto em escolhas como em ocasiões.
A sensação geral é : negamos nossas origens ( quando as temos ). Seguimos modelos que nos vendem ( mesmo os anti-modelos ). Vestimos máscaras sobre máscaras, falamos bobagens sobre bobagens. Viajamos para lugares que não escolhemos. Namoramos pessoas que nada têm a ver com nosso interior, negamos tudo em nós que não seja moderno, eficiente, bacana; nos obrigamos a vestir armaduras de vazio. Que vida é essa ?????
Voce tem amigos incapazes de fazer algo que não seja alguma coisa "divertida" vista em um bilhão de filmes ou séries de tv. Bebem, gritam, dão pulinhos alegrinhos e agarram a gostosa tipo série de tv ( desculpe a repetição, mas é assim ). Eles simplesmente são incapazes de escutar ou de parar de fazer alguma coisa. Ficam ligados, funcionam como maquininha. Têm uma função : são divertidos, bro !
Voce corre o caminho de Santiago. Mas nunca foi católico. Vai a Amsterdan, mas nada sabe de Rembrandt e nunca foi bem louco. Aluga um studio em Paris. Para tentar se sentir meio artista. E anda por Roma. Sem sentir nada da beleza ou da magia do lugar. Voce vai porque vai. E adora... Como adora Londres por ser moderna, Praga por ser romântica e Berlin por ser dramática. Voce ama o que pedem pra voce amar.
Ouve superficialmente o que foi criado para ser ouvido superficialmente. Assiste filmes que são a cópia da cópia da cópia da cópia. Luzes de máscaras em cenários falsos com personagens feitos de papel de jornal. Nada de vivo, nada de verdadeiro, nada de real. Mas ok. Voce pagou 25 reais e quase sentiu uma emoção. Uma mísera emoção. É tudo o que voce pede : uma mísera emoção. Inteira, redonda, envolvente, e que dure.
Trouxa ! Tudo na arte de hoje é conceitual. Nada de emoção. O que se procura é a sensação. A tv é uma sensação ( sinto que foi bom, sinto que foi válido, sinto que é engraçado, sinto vontade de rir, sinto vontade de chorar ). A arte verdadeira é emocional, pois lida com a raiz, a origem, a face. ( É trágico, é cômico, é patético, é maravilhoso, é péssimo... ).
Se o homem é sua cidade e seus companheiros ( é o que o livro diz ), que homem é esse com uma cidade em eterna mudança, e com companheiros ausentes ou virtuais ? Que homem é esse com rostos amigos em telas ( acredite, são imagens sempre falsas ), com vozes distantes em celulares que tocam a toda hora mas que nunca abraçam. O que há de humano em se passar por ruas que hoje são diferentes de ontem. Voce acaba tendo de se adaptar. E se torna tão fantasiado quanto a foto da tela do orkut, tão frio quanto a mensagem gracinha no celular, tão esperto quanto o personagem da série de tv e tão mutável quanto as ruas derrubadas e reconstruídas sempre. Anônimamente mais um. Sempre alegre e nunca feliz. Sempre moderninho e nunca eterno. Fazendo, não sendo.
Mas um dia ( e eu passei por isso ), voce perde a máscara. Cai. E tudo parece ser para voce aquilo que sempre foi e nunca esteve tão percebido : nada. Todas as suas referencias se vão. Pois elas nunca foram de verdade. Caem as certezas. Que certezas ? Voce se vê estrangeiro dentro de voce mesmo. Isso é ser moderno : um estrangeiro dentro de um vazio.
Daí voce procura se reconstruir. Vai atrás das pegadas, ver onde a coisa se rompeu. Procura os restos da aldeia, que são os vivos restos de voce mesmo, começa a assistir filmes que tenham algo de real, de vivo e que mesmo em sua mais louca fantasia, tenham a fantasia sonhada pela mente humana, e não planejada pelo grupo de marketing. Voce procura a face irretocada da vida, ou ao menos a máscara primordial.
E uma noite, ao olhar o espelho do banheiro, espelho que sempre lhe falou de vaidade ou de raiva; ao olhar esse espelho, voce não mais verá um rock star ou o ator com quem voce se parece. No espelho voce não mais verá o cabelo fashion ou o sorriso safo. Nesse espelho estará defronte a voce um homem. Homem que voce viu na aldeia, anos atrás. Homem que cheirava bem, que parecia de verdade, que era um mundo em sí. Voce se assustará em ver no espelho esse homem. E notará que ele sempre esteve alí. Obscurecido por máscaras.
Em voce verá seu pai. E isso eu chamo de a verdade. Triste e feliz, real.

ALTMAN/CORNEAU/JOHN WAYNE/ERA DO GELO

SIM SENHOR de Peyton Reed com Jim Carrey e Zooey Deschanel
Volto a falar deste filme para dizer algo assustador : o quanto um filme pode ser ruim. Um cara ( um Carrey apático em seu medíocre papel ), fala não para a vida. Após palestra ( dada por Terence Stamp ), começa a dizer sim a tudo. Fosse menos cretino, o filme o envolveria em confusões sexuais, confusões com patrões e com os amigos. Mas não. Para o roteirista, dizer sim é pagar bebidas aos amigos, pagar cursos e comprar coisas. Para se falar sim é preciso ter cartão de crédito dourado. Retrato de um tempo onde diversão é encher a cara e pagar algo de novo. O romance com a mocinha é inconvincente : ela canta em banda de rock tipo anos 80 mas é a imagem da caretice. E que amigos são esses ? Em todo o filme não dizem duas frases diferentes ! Um horror ! sem nota.
A ERA DO GELO 3 de Carlos Saldanha
Uma deliciosa comédia com personagens bem delineados, belo visual e que não tenta vender nada. É lógico que não procuramos arte aqui, mas ele faz algo que os filmes pop de hoje não sabem mais nos dar : uma alegre diversão que não nos agride, não nos chama de idiotas. nota 5.
MAC CABE & MRS. MILLER de Robert Altman com Warren Beatty e Julie Christie
O que primeiro salta aos olhos é a foto de Vilmos Zgismond. O filme é de uma plasticidade melancólica e gelada. Passa-se na fronteira EUA/ Canadá e estamos em 1890. Um cara otimista monta bordel em vila mineira. Ele tem bom coração e tudo que deseja é alguém que lhe dê afeto. Assistimos o que lhe acontece. O filme é difícil : lento. Talvez seja o mais triste filme americano já feito ( Pauline Kael o chama de " o mais triste e belo dos filmes " e Roger Ebbert de " um filme perfeito " ). Eu o assisti com dois sentimentos : quase irritado por sua lentidão, mas, ao final, apaixonado por sua magnífica beleza. O final, numa nevasca, é talvez o mais melancólico já visto. Tem uma beleza aterradora. Não tem trilha sonora : é pontuado por lindíssimas baladas desesperançadas de Leonard Cohen. É uma obra-prima da inocência poluída, da esperança destroçada, da solidão sem fim. Uma obra-prima de cinema ousado, sem nenhuma concessão, heróico. Nota DEZ.
IF... de Lindsay Anderson com Malcolm MacDowell
Um perfeito retrato da rebeldia e do desamparo adolescente. Eles tentam ser diferentes e não conseguem, tentam ser livres e não sabem o que é a liberdade. O que fazem então ? Destroem. Surrealista, cheio de significados e fácil de se assistir, é um filme manifesto, um poema à ira, um filme de ação. nota 9.
WEEK-END de Godard com Mireille Darc, Jean Yanne e Leaud
Não pode ser analisado a luz da razão. Ele vai contra tudo e todos. Do dinheiro ao sexo, de burgueses aos grupos extremistas, sobra pra todo mundo. Sem nota, pois um zero seria absurdo e um dez impossível.
NUNCA AOS DOMINGOS de Jules Dassin com Melina Mercouri
Um americano vai à Grécia atrás de respostas. Ele quer saber onde a Grécia errou. Lá, conhece uma prostituta que é a personificação da alegria grega. Mas ele tenta lhe dar cultura, filosofia, e a estraga. No fim, a alegria vence. Dassin foi um ótimo diretor. Na América fez alguns dos melhores policiais da história. Perseguido pelo MacCarthismo, teve na Europa uma segunda e excelente carreira. Aqui ele encontra a estrela grega Melina, com quem se casaria. Ela lutaria contra a ditadura grega e terminaria ministra da república livre de seu país. O filme, comédia bela e despretensiosa, encanta por sua alegria genuína e a bela paisagem grega. nota 7.
A TRÁGICA FARSA de Mark Robson com Humphrey Bogart e Rod Steiger
Último filme de Bogey. Fala do submundo do box. Um lutador tipo Maguila, inocente e manipulado, vence lutas arranjadas até um quase título. Bogey é o jornalista que manipula essa verdade falsa. Um derrotado. O filme é ok. nota 5.
MALPETIUS de Harry Kummel com Mathieu Carriere e Orson Welles.
Pretensioso e chato. Algo sobre deuses e mitos. Uma bomba! nota Zero!!!
TRUE GRIT de Henry Hathaway com John Wayne e Kim Darby
O filme que deu o oscar à Wayne ( vencendo maravilhosos Dustin Hoffman e Jon Voigt em Perdidos na Noite ). Ele está comovente como um justiceiro bêbado e amargo que ajuda mocinha a vingar a morte do pai. Belas paisagens, ação na medida exata, algum humor e o carisma do mito da aventura. Muito satisfatório. nota 7.
NO VELHO CHICAGO de Henry King com Tyrone Power, Don Ameche e Alice Faye
A primeira hora é um melô envelhecido sobre família irlandesa que enriquece na Chicago de 1870. Mas a meia hora final é um primor. Um incendio que devasta a cidade. Efeitos especiais que ainda impressionam e um senso de suspense e movimento soberbos. Os figurantes, centenas, estão maravilhosamente bem dirigidos e fotografados. Fogo, água e multidões se movendo sem cessar. Vale o filme. nota 6.
TODAS AS MANHÃS DO MUNDO de Alain Corneau com Jean-Pierre Marielle e Gerard Depardieu
A vida do músico Saint-Colombe ( que nunca ouví falar ) narrada por Marin Marais, seu aluno bem sucedido. O filme é tudo aquilo que Amadeus não pode ser : místico, reverente, artístico. Talvez por a arte de Mozart ser terrena, comunicativa e leve. O ambiente é o do Jansenismo do século xviii. O filme tem uma austeridade rígida, fria, severa. Marielle brilha. Vemos e sentimos sua dor. O filme quase faz um milagre : ele chega perto de nos comunicar o segredo da música. Há um diálogo final entre Marielle e Depardieu que é absoluto sublime. O aluno tenta obter o segredo do mestre. Nós o obtemos. O filme é também um manifesto de um mundo perdido : mundo em que se criava e se vivia para Deus, para a eternidade, para o atemporal. Corneau venceu 8 césares em 1991. Mereceu todos. Eis um corajoso e original ! nota 8.
COWBOY de Delmer Daves com Glenn Ford e Jack Lemmon
Nesta história de um atendente de hotel que quer ser cowboy temos tudo aquilo que pedimos : ação, emoção e boas atuações. Entramos na vida de bois, cavalos, índios, espaço aberto, poeira. A violência é constante e para sobreviver é preciso ser individualista e frio. Jack dá show, mas Ford, ator subestimado, impressiona mais. Seu cowboy é a imagem da vida na estrada. Belíssimo. Nota 8.

CANDIDO OU O OTIMISMO- VOLTAIRE

Foi aos 14 anos, numa madrugada, que lí este conto pela primeira vez. Termino hoje, tanto tempo depois, de o reler pela terceira vez. E continuo sentindo um prazer imenso em reencontrar Candido, Pangloss, Martinho, Cunegundes, Paquette e tanta gente mais. Ao contrário de livros que nos decepcionam numa segunda leitura, Candido permanece com o mesmo brilho, o mesmo encanto, dando tanto para quem o encontra.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...

Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.

da melancolia, da deprê, do trabalho...

A tristeza já foi chamada de melancolia. Hoje é depressão. Deprê é a tristeza sem poesia. Melancolia é uma nuvem de solidão. O melancólico sofre por perceber ser o mundo errado. O deprimido sofre por acreditar na alegria de todos e ele, pobre ser, não conseguir participar dessa ilusória festa geral. O melancólico critica a vida, o deprê se critica.
A melancolia é produtiva. Na pior das hipóteses nos dá chatos pretensiosos. A deprê não produz nada, é o vazio da fertilidade. Creia : nenhum verdadeiro deprimido torna-se artista. No máximo, ele é um orfão profissional. O melancólico constrói mundos alternativos. Feitos de lágrimas, saudades e rancor. Os dois são vistos como perdedores. O deprimido acredita ser um derrotado, o melancólico tem orgulho de sua derrota, para ele, quanto mais distante deste mundo, melhor. O deprê ansia por ser aceito. Consome. Consolos para uma tristeza que não se cura. Consome remédios, terapias, livros de auto-ajuda, filmes bacaninhas, canções que acalmam. Consome bebida, cigarro, festas sem sentido, baladas frustrantes, roupas novas que nunca usa, viagens sem aventura e aventuras sem viagens. E se entrega ao vazio da impotência. Da infertilidade.
O melancólico, com sua alma velha e romântica, desconfia de toda ciência. Pode até usar remédios, mas usa-os errado. Vai a terapia para desafiar a própria terapia. Cria sua crença. Se entrega a livros de poesia, de simbolismo místico. Viaja nas notas de canções que ninguém escuta, são só dele, e se alguém mais as ouvir, o melancólico melancolicamente deixa de apreciá-las. Os seus filmes são filmes sobre os sonhadores, os fora de lugar, os fora do tempo. Ele foge de baladas e de festas, foge de tudo que lhe pareça comum, banal, vulgar. A melancolia é incurável por ser amada pelo triste. Ele mantém esse doloroso orgulho. A potência de gerar desesperança.
A melancolia só é possível no mundo da arte e da religião. Tristeza que se espelha no santo e no poeta. A depressão é filha da ciência e da indústria. Tristeza que se espelha na funcionalidade e na utilidade. A pergunta do primeiro é : Porque o mundo é tão sem sentido ? O segundo pergunta : Porque eu sou assim ? O melancólico olha e sofre. O deprimido não olha, fecha-se em seu umbigo.
Aldous Huxley aqui no Brasil, em 1960, disse numa palestra que o mundo caminhava para a imagem exata do inferno dos hindús. Nos Upanishads, eles descrevem o inferno como o reino do desejo sem possibilidade de saciedade. Você quer, obtém, e continua desejando. O deprimido é o ex-desejante. Ele acredita que o erro foi dele. Crê nesse inferno. O melancólico culpa o mundo. Percebe a armadilha, mas fica sofrendo por ela existir.
O que pergunto é : Para quem você vive ? Seu trabalho é mero desejo de consumir, ou você trabalha por alguém ou para algum tipo de ideal ? Existe algum sentido em sua dor, ou sua dor é mera disfunção de um tipo de erro de fabricação ? Você crê na alegria do mundo ou procura a felicidade ? Percebe a diferença entre o alegre, sempre ligado, sorrindo, histéricamente falante, cheio de planos e truques; e o feliz, satisfeito, portanto, estável.
O mundo, hoje, ama o alegre e desencoraja o feliz. O alegre é otimista, mas ele precisa de coisas para continuar feliz. Ele se move, compra, agita. O feliz é realista. Ele sabe que sua felicidade independe do exterior. Ele vive. O alegre depende de fazer, o feliz precisa de paz.
O melancólico é velho como um campo devastado pela guerra, um coração partido pelo fim das coisas, uma alma aterrada pela imensa frieza do cosmos e dos deuses. O deprimido é moderno como um computador mal programado, uma metrópole devastada pela solidão, um medicamento que vicia, alma aterrada pela propaganda falsa e tendenciosa.
Com meus Bergmans, meus Vigo, meu Yeats e meu MORRO DOS VENTOS UIVANTES, vocês sabem qual meu partido. E eu amo esse partido... como o amo...

bem perto da costa- john updike

Mesmo os críticos que não morrem de amores por Updike, reconhecem a sua maestria como crítico e resenhista. Neste livro lemos o lado comentarista de cultura do autor americano. E ele se mostra ao nível de Wilson, Vidal e Tynan.
Primeiro uma observação : é surpreendente a maneira como, de acordo com o amadurecimento, mudamos a maneira de olhar a arte. Enquanto somos muito verdes, tudo o que procuramos em um livro ou filme é emoção. Sómente o ultra-aparente nos toca. Queremos criatividade pura e fogos de artifício da emotividade. Com a experiência notamos que é relativamente fácil ser "brilhante". Passamos a procurar algo além do brilho : estilo. A habilidade de se fazer bem passa a ser valorizada. Passamos a entender as dificuldades de se saber, de se dominar uma linguagem, a originalidade sutil dos mestres.
Updike nunca posssuiu o choque vulgar de Mailer ou Capote, e nunca foi modernista como Faulkner ou Dos Passos. Seu modelo é o da escrita perfeita, do saber fazer, da clareza objetiva.
Neste volume ele dá uma aula de observação, percepção e belo estilo. Updike nota o objetivo do autor por detrás do aparente, mostra suas falhas e aponta sua originalidade ( quando ela existe ).
Seu primeiro texto é uma bem-humorada queixa sobre o excesso de reverência da crítica americana em relação a Henry James. Ele concorda que James é um mestre, mas nos faz rir com os ridículos de idolatria de publicações sobre literatura que tratam tudo o que James escreveu ou falou como mensagens de um deus americano.
Em seguida vêm três textos de gênio. Os três fundadores da alma artística americana : Hawthorne, Melville e Whitman. Todos devedores de Emerson ( ele cita um texto de Emerson, adorado por Whitman, que é ponto de partida de tudo aquilo que Walt escreveu. ) De uma forma clara e cheia de leveza, John faz com que vejamos nos três o nascimento de tudo aquilo que fez a grandeza da América, e consequentemente, do século XX. O texto sobre Melville é antológico. Ele segue, obra a obra, tudo aquilo que Herman fez e viveu, toda sua estranheza arredia, exibindo esse caráter único dos EUA : uma nação profundamente religiosa e ao mesmo tempo, completamente materialista.
Vem então um emocionante comentário sobre James Joyce. O irlandês é visto como símbolo do autor comprometido com sua auto-satisfação, um exemplo de opção por sua fé em sí- mesmo, de integridade contra pressões externas. Fantástica a citação do único encontro de Joyce e Proust, encontro com testemunhas. Foi num chá. Joyce disse a Marcel : " Meu estômago ainda me mata! E estou quase cego ! Se minha cabeça parasse de doer !" E o francês replicou : " Meu fígado é minha cruz! E meus pulmões não suportam este ar empestiado ! " Os dois maiores gênios dos últimos cem anos, passaram seu único encontro falando de doenças !
Páginas sobre Heminguay e Edmund Wilson falam da crueldade pseudo-viril de Ernest, e da obsessão por sexo do grande crítico de esquerda americano. Muito melhor é a explanação sobre as cartas trocadas entre Wilson e Vladimir Nabokov. O russo, exilado pela revolução, se torna mestre do idioma inglês, humorista satírico, fino e ousado, e cultor de um aristocracismo muito snob. Updike toma o partido de Vladimir, colocando seu talento nas alturas e vendo em Wilson um certo egoismo e egocentrismo exagerados.
Uma crítica sobre um livro de John Cheever. Updike escreve o que penso : de 1960 para cá, Cheever ocupa um posto central. Mestre de criatividade original, cômico delicioso, estilista objetivo e surpreendente.
Como bela é sua apreciação de Beckett, visto como o criador do romance atual : aquele em que o único personagem é o autor. O romance da mente de quem escreve. Junto a esse escrito, vem outro grande autor da Irlanda : Flann O'Brien. De certo modo o oposto de Beckett. Flann permaneceu na velha terra verde, não emigrou, criou montes de personagens e manteve viva a tradição do nonsense irlandês. ( Nonsense que abunda em Beckett- que Updike adora, e Joyce ).
Celine e Gunter Grass são criticados. Os dois são mostrados como donos de personalidades ruins, de intenções dúbias e de um talento mal usado.
Mais positivo é o texto sobre Milan Kundera. Eu não sabia que Kundera fora professor de cinema em Praga e que Milos Forman fora seu aluno. Updike aponta como o sexo em Kundera é triste e o fato de Kundera ter apontado o fastio pelo corpo feminino, decorrente do excesso de exposição. Frase de Kundera : " A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. "
Wallace Stevens. Melhor poeta americano desde Eliot. Updike reafirma isso, como Bloom não se cansa de dizer. Eu lí Stevens anos atrás. Se ele não me pega como Eliot é porque Stevens é mais discreto, sutil, engenhoso. Eliot te toca de primeira. A vida de Wallace foi fantástica. Família classe média do leste americano, tornou-se bem sucedido advogado. Escrevia nas horas vagas, muito, e teve uma vida familiar padrão. Elegante, bem apessoado, seus versos são musicais, brilhantes, simbólicos, cristalinos. " A realidade é um vazio. A verdade não importa." " Numa era de descrença, é o poeta quem nos recorda as satisfações da crença. No estilo." " Quando trocamos um prazer inferior por um superior, elevamos os homens na escala da existência." "O amor ao belo exclui o mal. A única fonte de transcendencia na vida é ser decente na vida privada." São frases de cartas de Stevens. Será que os autores ainda escrevem cartas ?
Outro grande poeta é Auden. Mas ao contrário do americano, este inglês foi muito famoso ainda vivo e decaiu em popularidade após sua morte. Updike mostra o lado infantil de Auden, um jeito de criança protegida, mimada, que ele sempre exibiu. Uma personalidade inescrutável.
Levi-Strauss. John Updike mostra o brilho de certas frases do famosíssimo antropólogo francês ( a melhor : "O homem civilizado é limpo, mas nesse estar limpo ele suja a natureza. O primitivo é sujo, mas tudo ao seu redor é imaculado. ) Quando mostra seu lado mais "viajante", Strauss exagera em seu deslumbre com o próprio intelecto, e chuta interpretações sobre a sociedade dos índios da América que são totalmente arbitrárias. Jamais saberemos o que uma lenda significava para um cheyenne do século xv. Sabemos o que significa para nós.
Borges. Updike glorifica a criatividade aterradora do argentino. Criatividade que é sempre baseada na lógica pura, na clareza, no saber escrever. Updike cita os autores que Borges amava: Orwell, Stevenson e Lewis Carroll. A forma como Borges depurava seu texto, até transformá-lo numa pequena jóia.
E por fim, um escrito sobre cinema. John Updike fala da maravilha que são os atores que nos fazem ser felizes por podermos os olhar. Atores que passam em seu gestual o prazer de viver, a alegria. Ele cita Erroll Flynn como o ícone desse tipo de astro ( eu penso o mesmo. ) e escreve sobre Doris Day, a atriz que personifica o sol e o sorriso feliz. É um texto afetivo, biográfico, e brilhante. John nos recorda que no cinema o que permanece é o ator que ao fazer um papel ( bem feito sempre ) consegue continuar sendo ele mesmo todo o tempo. Não é o canastrão, pois esse é menos que sí-próprio, é o ator que irradia uma personalidade tão fascinante que nos pegamos interessados no filme e nele mesmo, em seus gestos e sua voz. Quando esse carisma se une ao calor da felicidade, está feito o mito. Uma imagem na tela que nos faz o bem, todo o tempo e sem o saber. Doris tinha isso. Flynn tinha isso. ( E eu diria que Cary Grant era uma fonte inesgotável disso. )
Que pena que este livro tão prazeroso tenha acabado !!!!! Fica um sabor de quero muito mais ! John Updike é viciante.

IF...

Para se entender a Inglaterra é preciso ter sempre em mente seu amor, absurdo, cômico, surreal, pela tradição, pelos rituais e pela disciplina. Foi isso que garantiu a sobrevivência da família real, e é isso que você deve lembrar sempre, ao ver este filme.
Colégios de elite, ou de pretendentes a ser parte da elite. Eles precisam ser austeros, antigos e disciplinadores. Pois não é fácil ascender na sociedade inglesa. Todos querem um dia ser chamados de "Sir" e melhor, "Lord". Você pode ser rico, poderoso, mas só chegará ao degrau mais alto quando seu título chegar. Lembre que o que doeu, para eles, na morte de Lady Di, foi o fato de ela ter morrido ao lado de um milionário plebeu. E imigrante!!!!!!
Para ascender é preciso se ter estudado numa rigorosa escola britânica. E estudar lá, é ser feito soldado aos 7 anos. Isso fez a glória do império.
Tudo na Inglaterra se subjugava/ subjuga a isso. Todo ator, até Michael Caine surgir, precisava falar como um locutor da BBC, e mesmo as bandas de rock antigas tinham roupas e sotaque eduardiano. ( A excessão eram os Stones. Falavam com falso sotaque americano. ) Com a imigração as coisas mudaram, pouco, pois toda banda inglesa ainda afeta ares de "arte", de ironia nobre, de afetação sangue azul. Balançam o rabo para a rainha.
No festival de Cannes ( aliás ninguém rí mais dessa pose inglesa que os republicanos franceses ), em 1968, IF de Lindsay Anderson ganhou a Palma de Ouro. Foi o festival da anarquia : Godard e Truffaut se penduraram nas cortinas do Palácio do Cinema para impedir a continuação do festival : - Como ver filmes enquanto o mundo pega fogo ? Jean-Luc e François conseguiram; o festival foi interrompido.
IF tem uma frase lapidar : "- UM TIRO BEM DADO PODE MUDAR TODO O MUNDO. " Quem diz isso é o personagem de Malcolm MacDowell. Ele é um estudante rebelde, insolente, culto, sujo, que tenta preservar sua individualidade em ambiente que prega a submissão.
Por hora e meia, vemos todo o horror do sistema de opressão, do homossexualismo imposto, das pequenas fofocas, dos favores interesseiros daquela escola. Vemos o grotesco de seus mestres, de seu diretor, dos jogos de rugby, do jeito marcial de tudo.
E vemos a poesia ( real ou imaginária ? ) que tenta sobreviver em meio aqueles açoites e correntes. A cena da surra é das mais insuportáveis já filmadas.
Em sua meia hora final, tudo muda. O filme se torna surreal, não sabemos se o que vemos é verdade ou delírio. Os 3 rebeldes matam, indiscriminadamente, todo mundo : estudantes, professores, funcionários, religiosos, soldados. Revolução só é possível com sangue, advoga o filme, e se inocentes forem mortos, terão morrido por boa causa.
Lindsay Anderson advoga isso. Tem opinião, tem coragem. Penso se alguém produziria esse filme hoje. Não é um filme underground, Anderson era um dos mais famosos diretores ingleses : propagador do cinema raivoso - "Angry Young Cinema" - e na equipe do filme estão os futuros diretores Stephen Frears e Chris Menges.
O filme é forte. Toca pontos sensíveis de nosso senso de justiça e de dever. Defende teses libertárias, mas de uma forma inglesa : não chega a absoluta negação. Anderson quer a liberdade, Godard quer a destruição.
Podemos dizer ainda que este filme é um anti-SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS. O filme de Peter Weir é a cara dos anos 80 : vai contra um sistema, mas não rompe nenhum limite. Pauline Kael falou bem : "COMO LEVAR A SÉRIO UM FILME QUE PREGA A LIBERDADE, FILMANDO TUDO DE UM MODO TÃO CONSERVADOR ? " O filme de Weir é tristezinho. O de Anderson é irado. Ele prega a liberdade e filma de modo livre. Tudo nele é aspiração a ser novo. Tudo nele é violência.
Maravilhosamente fotografado, soberbamente interpretado, cheio de alusões a Lacan, Ponty e Levi-Strauss, IF... é uma quase obra-prima do cinema revolucionário, um poderoso libelo pelo desejo. Sua última cena, Malcolm metralhando tudo e todos sobre o telhado da escola, a metralhadora em pose de falo, é de um comovente desespero.
Encontrei a palavra : IF... é o desespero.
Ps: Em ano de 2001 / IF... , O Oscar foi para o hiper-conservador OLIVER.
Ps II : Elefante é o IF de hoje. Violência entediada e sem filosofia alguma. UM TIRO BEM DADO MUDA O MUNDO. Elefante prova que não se sabe mais atirar. TIROS A ESMO QUE REAFIRMAM O QUE JÁ EXISTE. O tédio nos matará...

RETRATO DA LOUCURA, WEEK END- GODARD

Eu odiei, odiei, odiei este filme ! Nunca nada me deixou tão irritado, tão enojado, tão perturbado em um filme. Filme que faz todo o sentido, que esbanja talento, mas que me irrita por ser um filme MAU.
Filmes ruins me dão tédio. Despertam meu desprezo. Mas este, me dá ódio. Pois é um filme que vai contra TUDO aquilo que acredito.
Não procure uma história nele. Mas não é esse seu problema. O que me irrita é que em seu inicio este filme me seduz, para depois jogar em minha cara pura maldade. Sangue fake, mortes às dúzias ( inclusive algumas reais ), palavras de ordem. O filme prega, aberta e cruamente, a revolução. Mas não é uma revoluçãozinha, é a morte da burguesia. E para isso, Jean-Luc prega a validade de atentados, sequestros, bombas, sabotagem e guerrilha. Negros e árabes devem matar quem os oprimiu, pois a liberdade só nasce da violência.
O filme é todo nesse tom. Começa com um letreiro dizendo ter sido achado no lixo e que se trata de um filme de merda. O que vemos são burgueses, escravos dos carros e da moda, das marcas de roupas, perdidos em colossal e sanguinolento engarrafamento. Desastres e corpos abundam e mais ao final um grupo terrorista mata e come turistas ingleses. A revolução domina as imagens, que são tecnicamente brilhantes, mas que proclamam o FIM DO CINEMA.
E não foi da boca pra fora : após este filme, Godard ficaria anos sem fazer um filme "normal". Para ele, o cinema morria lá, em WEEK END.
Algumas tiradas: o casal burguês encontra Emily Bronte e Lewis Carrol na floresta. Os dois escritores falam por símbolos, de forma livresca, poética; mas tudo o que o casal quer ouvir é onde fica Orville ( cidade onde precisam ir para matar a mãe de um deles e receber uma herança ). Ateiam fogo em Bronte e pegam carona com imigrantes africanos. São momentos assim que fazem com que eu prossiga vendo o filme. Mas logo são jogadas mais palavras de ordem, mais revolução radical, mais fim-do-mundo.
Que caminho percorreu Jean-Luc ! De ACOSSADO, um policial existencialista, ainda pop, passando pelos maravilhosos filmes com ANA KARINA, até chegar na explosão criativa e genial de PIERROT LE FOU. Tudo nele era alegria, juventude, brilho e talento. Para então, após tantos filmes em tão poucos anos ( sete filmes em quatro anos ! ) ele explodir tudo, destruir o cinema, amputar sua carreira, berrar ódio aos quatro ventos, com este mau, odioso, repulsivo WEEK END.
Após isto, teríamos o incêndio : as barricadas, o caos, a anarquia, o vale tudo de 1968. REICH/ MAO/LACAN no poder. Nos anos seguintes perceberíamos que o exagero se instalara. A revolução, como toda revolução verdadeira, passara dos limites. Se tornara assassina. Reich era um charlatão, Mao um carrasco, Lacan um egocêntrico indecifrável. Os Baader Meinhoff, os Setembro Negro, os Exército Simbionês, os Brigadas Vermelhas, se mostrariam como grupos enlouquecidos, distantes dos ideais libertários ( e ingênuos ) de gente como Godard, Loach, Foucault e Pinter. Os inspirados slogans de 68 ( É PROIBIDO PROIBIR, FAÇA AMOR NÃO FAÇA A GUERRA e principalmente o genial A IMAGINAÇÃO NO PODER ) foram mortos e enterrados em 71/72. WEEK END é o início da morte, o grito da agonia, o erro que anuncia o caos.
Mas é preciso.
Para conhecermos o dinossáurico mundo histérico que foi dominante, antes da deprê radical se instalar e nos tornar caramujos de jardim cibernético. Um mundo onde existiam inimigos declarados, ódios totais e mortais, paixões pelas quais se morria e se matava. Opções, escolhas, vidas possíveis.
Hoje se morre por um celular e se mata por um par de tênis. Agora fingimos amizade e compreensão à todos, condenamos todo ato natural e não pensado e posamos de bonzinhos. Não gritamos, suspiramos. Não daríamos a vida por nada, e por isso, ninguém vai morrer por nós. Não pregamos maldades, mas transformamos o mundo numa bola de aço inox, liso, frio, impessoal, entediantemente uniforme.
WEEK END é odioso porque me mostra algo que perdemos : CORAGEM. A coragem de ser ruim, mau, de errar, de botar a cara pra bater, DE CRER NUMA IDÉIA E IR ATÉ O LIMITE COM ELA.
WEEK END é vivo. E eu, zumbi plugado em aparelhos moderninhos, odeio o que cheira e fede, e creia, este filme fede, como fede...

DEPP/SAURA/SISTER CARRIE/OZU

INIMIGO PÚBLICO de Michael Mann
Me fez recordar uma crítica sobre música pop, escrita por Ezequiel Neves. Zeca falava de sua tristeza. Ao se tornar crítico, ele perdera o prazer de escutar aquilo que realmente lhe agradava. Era obrigado a ouvir, toda semana, uma pilha de discos que as gravadoras lhe enviavam.
E eu penso : será que Inácio Araújo encontra tempo para rever os Hawks que ele tanto adora ? Eu, mero curioso, ultra-amador, me sinto, às vezes, na obrigação de espiar aquilo que está rolando. Ter como comparar, como ver para onde a história ruma. Posto isso...
O rosto de Depp. Tão modificado em digitalizações que nada transparece de sua face. Quase um cartoon. Mas não é a isso que o povinho pop se acostumou ? Rostos e lugares que remetem àquilo que foi visto na propaganda mais ilusionista possível ? Mundo onde nada recorda o mundo real, e uma vida ( a do povinho pop ) em que nada de verdade ocorre. O filme, de longe o pior do bom operário Mann, é um floco de algodão doce. Enjoa, é bonitinho, o vento leva, não mata fome alguma. Ideal para quem não tem paladar e odeia aquilo que tem peso.
Não vou comparar este filme à sua origem. Os filmes de gangster dos anos 30, com Cagney, Robinson ou Muni eram jornalísticos. Foram feitos ao mesmo tempo em que as balas voavam. Não vou comparar com Bonnie e Clyde, pois o filme de Penn foi dirigido com ambição artistica, senso de relevância e suprema inteligência. Bonnie existe no filme, Clyde é real. Temos política, sexo e humor. Aqui o que temos ? O absoluto zero. Nenhuma linha de diálogo demonstra algum sinal de trabalho refinado, todas as atuações são estereotipadas, o filme não possui verve, ambição, inteligência, nada. Mas dá aquilo que o moço da pipoca quer : rostinhos de bonecos, ambientes chics e estridência que adormeça, que não faça pensar. O filme me deu sono, muito sono.
Depp precisa voltar a viver. Ele adormeceu num tipo de limbo "Edward mão de tesouraiano ". Fazem séculos que ele não cria algo novo. Jack Sparrow foi uma excessão bem-humorada, uma brincadeira que deu certo. Em sua idolatria à Marlon Brando, Depp segue os passos do ídolo em sua preguiça, mas não em genialidade. Uma pena se Johnny não nos der seu "Ultimo Tango" ou seu "Poderoso Chefão". Acorde e se torne John !!!!! nota 3, pelo belo visual. È impossível um filme tratar dos anos 20/30 e não ser chic.
A QUEDA DA CASA DE USHER de Jean Epstein
Antes de dirigir seu primeiro filme, Bunuel foi assistente de Epstein neste filme tirado do conto gótico de Poe. O cenário é muito assustador e quem quiser saber de onde Tim Burton tira suas idéias, eis uma das fontes. Nota 6.
A LADRA de Otto Preminger com Gene Tierney
Que linda mulher era Tierney ! Traços de chinesa unidos a traços de irlandesa ! O filme é ok. O tipo de filme classe A, que Hollywood fazia às dúzias. Cleptomania, hipnotismo, roubo, tudo misturado numa diversão sem grandes erros ou acertos. Nota 6.
LARANJA MECÂNICA de Stanley Kubrick com Malcolm McDowell
Os outros diretores devem se sentir muito mal ao se lembrarem de Kubrick. Não é o melhor diretor. Mas sua inteligência é humilhante. Todos nós, um dia, fomos Alex, hoje somos o segundo Alex. Este filme, cheio de erros, chato em vários momentos, é um bofetão irado em nosso rostinho macio. Do cacete !!! Nota 9.
BODAS DE SANGUE de Carlos Saura com Antonio Gades
É necessário. Foi imenso sucesso nos anos 80 este filme do melhor diretor da Espanha antes de Almodovar e pós Bunuel. O que é o filme ? Um grupo de teatro se maquia, conversa, fuma. O diretor ensaia a peça de Lorca. O filme é o ensaio. Não há cenário, apenas um ambiente. Música flamenca e dança, sem diálogos. E uma súbita beleza estarrecedora. A cena da morte, duas facas em movimento contínuo, é uma das mais perfeitas já filmadas. Antonio Gades, belo-viril-enfeitiçante, rouba o filme para sí. Um gênio da dança cigana. A poesia de Lorca surge inteira, sem que se fale uma só linha de texto. Um milagre ! Nota 9.
ESPOSAS INGÊNUAS de Erich Von Stroheim
Houve um homem na Hollywood dos loucos anos 20 que insistia em fazer filmes de 9 horas de duração, com cenários imensos, extras aos milhares e meses de filmagem. Aqui está seu filme menos dispendioso. Ele constrói a Riviera francesa em LA, filma festas luxuosíssima, roupas caríssimas e faz uma cena de tempestade maravilhosa. Se ele foi um gênio ou um louco, até hoje se discute, mas este mastodôntico espetáculo é bastante assistível. 80 anos após sua premiere ! Em tempo: como ator, Von Stroheim está como o mordomo no CREPÚSCULO DOS DEUSES e é o general alemão em A GRANDE ILUSÃO. Seu lugar na eternidade está seguro. Nota 5.
HALLELUJAH ! de King Vidor
Maravilhoso Vidor. Em 1929, enquanto a KKK enforcava negros em árvores, ele, diretor famoso, faz este filme com atores negros, em favelas do sul, e cheio de gospel, jazz e spirituals. Um documento de uma era. O que me deixou boquiaberto é constatar como os negros americanos de 29 se parecem com aquilo que somos hoje. Se movem como nos movemos, falam com nosso sotaque e cantam rocknroll ! Quando vemos os atores brancos da época na tela, apesar de os amarmos, sentimos que são seres de outra era. Eles andam, falam, se vestem, atuam como gente de outro planeta. Aqui isso não ocorre. ( Como não ocorre quando vemos Louise Brooks ). Nota 7.
AS QUATRO PENAS BRANCAS de Zoltan Korda com John Clements, Ralph Richardson e June Duprez
Foi refilmado em 2000 com atores australianos ( Heath Ledger e Guy Pearce ). Este é o original. Desavergonhadamente colonialista, pinta os ingleses como arautos da civilização, um povo que deve salvar a Africa de sua ruína pré-histórica. O mundo mudou ? Hoje são as grandes multinacionais que salvam os povos atrasados de sua ignorância. Se voce esquecer sua caretice colonial, é uma cara e bonita produção. nota 5.
3 BAD MEN de John Ford
A fase muda de Ford já mostra tudo aquilo que ele sempre adorou filmar : casamentos, funerais, festas, camaradagem entre homens e mulheres corajosas. O filme é cheio de humor e tem uma corrida de carroças impressionante ! São centenas de carros, milhares de cavalos e burros, correndo numa planicie sem fim. Emociona muito, pois sabemos que alí estão homens e animais de verdade. Que eles se machucaram de verdade para fazer a cena, que eles têm um limite para aquilo que pode ser feito. Cada homem, cada cavalo tem seu detalhe próprio, seu movimento único, sua verdade concreta. A ação digital emociona menos porque sabemos que TUDO pode acontecer, e se não existe um limite, não existe a coragem em se superar esse limite. Sempre penso em DURO DE MATAR. Bruce Willis nos dois primeiros emociona porque o vemos sangrar e sabemos que ele não vai voar ou cair de 20 andares e ficar vivo. Algo razoávelmente crível terá de ser criado. No último DURO DE MATAR, ele ricocheteia andares abaixo, derruba um jato e sobrevive a viadutos desabando. Tudo pode e nossa crença se vai. O que resta é tédio.
Ah sim... a nota para este Ford é 7.
SISTER CARRIE de William Wyler com Laurence Olivier e Jennifer Jones
Caraca ! Drama pesado, sem açucar. Ninguém morre ou fica doente, mas como se sofre ! Olivier empobrece por amar a mulher errada, e Jennifer sofre por ser pobre. O filme foi um fracasso. Ele não alivia nada, o que está ruim, piora. Não tem final bonitinho, tem final nobre. Olivier dá um show. Seu sofrimento é feito de olhares, tom de voz, gestos das mãos. Um deus entre os atores. A cena final é aquilo que tinha de ser : perfeita. Wyler dirige com o dom de quem ganhou quatro Oscars - retidão e competência. Um exemplo de bom drama. nota 8.
CORAÇÃO CAPRICHOSO de Yasujiro Ozu
Bendito DVD ! Onde alguém poderia assistir tal raridade ? Estão lançando tudo de Ozu e este, pasmem, é mudo ! O estilo ainda não é totalmente Ozu : a câmera se move e abundam cortes. Mas o tema, o amor entre pai e filho, já é Ozu. Um diretor precioso. Um poeta do cotidiano simples, de familias comuns, amores normais, bairros como são todos os bairros. Ele mostrava a beleza dessa normalidade, a poesia da rotina, o heroísmo da vida amorosa. Aqui vemos o mestre ainda tateando, mas já acertando muito : o inicio tem humor abundante e o fim tem tristeza sublime. nota 7.
SIM SENHOR de Peyton Reed com Jim Carrey e Zooey Deschanel
Eu gosto de Jim Carrey. Numa Hollywood menos tirânica ele seria o cara. Mas não é. Sua carreira já mostra sinais de acomodação. ( Incrível, com a idade de Jim e de Depp - Clint Eastwood e Bogart estavam começando ! ). O filme tem um excelente tema, desenvolvido rasteiramente. Mas é ok. nota 6.