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UMA VIDA "BELA"

   Escrevi abaixo que toda pessoa criativa tem algo de sujo e de desorganizado. Que uma sociedade que impôe a limpeza hospitalar como lei geral do bem viver reprime a manifestação criativa. Sou exemplo vivo disso. Não sei se sou um artista frustrado por ser contido e medroso, ou se sou contido e medroso por não ser um artista. Amo a arte, mas sou incapaz de viver uma vida criativa. Meu perfil é aquele do apreciador apaixonado.
   Bernard Berenson, o maior critico de arte dos últimos cem anos, confessa ao fim da vida ter se arrependido de suas opções. Diz ele que tudo em sua alma clamava pela produção de arte, pela escrita de romances. Mas que ele desperdiçou sua vida em trabalho critico. Associou-se a comerciantes de arte ( Duveen ) e se viu imerso no turbilhão da vida.
  É óbvio que Berenson pode se lamentar o quanto quiser, mas ele não nasceu para ser Proust. Berenson era organizado, limpo, bom aluno, erudito. Sua missão não era dar a vida a "coisas", sua missão, nobre, era fazer com que essas "coisas" fossem apreciadas por seu justo valor.
  O que fez Bernard então? Fez de sua vida, arte. Quem o conheceu diz que tudo o que ele vestia, falava e tocava era obra de arte. Ele não criava arte, ele era a cria de um artista. Morou em Firenze e lá montou sua villa. Após sua morte, essa villa foi doada à Harvard, a universidade em que ele foi um dos mais brilhantes alunos. Um palazzo cheio de mármores, pinturas e objetos da renascença; e com a mais rica coleção de livros de arte do mundo. Essa villa é hoje um dos campus da universidade. Aos mais brilhantes alunos é dado o direito de lá se hospedar.
  Berenson dividia os homens em duas categorias: aqueles que aumentavam a vida, e aqueles que a diminuiam. Berenson, que viveu até os 90, teve tempo de aumentar a vida de muitos homens. Dividiu seu amor à arte com todos aqueles que tivessem o desejo de aumentar sua vida.
  De certo modo Duveen, o super-marchand com quem ele se associou por algum tempo, era seu contrário. Duveen, apesar de amar aquilo que vendia com sinceridade, diminuia a vida. Ele acreditava apenas em si-mesmo. O que ele vendia e possuia era bom, o resto era falho. O mundo se transformava em apenas sua visão. Berenson logo percebeu que essa era a mesma mente do politico, do cientista e do dogmático. Uma visão verdadeira, uma única certeza.
  Gente como B.B. pregava o oposto. A infinita possibilidade. A miriade de verdades. O aumento da vida.
  Seu ideal era o de viver apenas pela e para a beleza. Ninguém chegou mais perto disso que ele ( de 1900 pra cá ). Ele teimava em não saber, mas sua vida esteve longe de ser em vão. Foi um abençoado.

DUVEEN, O MARCHAND DAS VAIDADES- S.N. BEHRMAN

   E tudo começa na Holanda. No século XIX, a avó de Duveen coleciona porcelana de Delft. Um dia essas porcelanas, que não pareciam valer grande coisa, são bem vendidas por um tio na Inglaterra. Resolve-se então aplicar nisso, na venda de porcelana e de móveis. Quando Duveen vem ao mundo a familia já está bem de finanças, mas ele dará o grande salto, fará de seu nome sinônimo de vendas, de gosto e de esperteza.
  Logo na adolescência ele se lança. Muda o endereço do tio, estabelece-se na América. E passa a vender arte, sómente grande arte. Nesse tempo ( 1900-1915 ), a Quinta Avenida em NY, era zona de mansões. E os moradores dessas mansões se chamavam Morgan, Rockefeller, Hearst, Altman, Carnegie. No ramo do aço, petróleo, construção, estradas de ferro, carnes e lojas de departamento, foram eles que fizeram a fortuna do país. Era o tempo do hiper-capitalismo, do risco, do lucro fabuloso. Duveen logo percebeu que esses homens tinham tudo: mansões, iates, cavalos, jóias. E tédio. Não sabiam viver e não queriam saber. Eram radicalmente diferentes dos nobres europeus. Os europeus, mais confiantes em seu status, aproveitavam seu ócio sem culpa. Os americanos, impedidos de relaxar pela ética puritana em que tempo ocioso é tempo pecaminoso, sem um passado nobre, sem títulos a disputar, se sentiam inseguros, vazios, frágeis. É nessa brecha que Duveen adentra.
   Se eles tinham tédio, Duveen curaria esse tédio fazendo-os gastar milhões. Se o tempo ocioso era um pecado, Duveen os faria se sentir produtivos investindo em arte. Se esses milionários se consideravam plebeus, Duveen lhes venderia nobresa e classe através de quadros que foram de duques e de barões ingleses. E o principal, Duveen venderia não querendo vender. Como?
  O grande prazer dele era comprar. E ele jamais pagava barato. Comprava caro para poder vender caro. E com pouca margem de lucro. Ao comprar caro ele mostrava a sua restrita clientela o valor da obra. E ao vender com pouco lucro, e às vezes nenhum, ele exibia seu caráter de colecionador, de não vendedor. Mas seu objetivo é vender. Sempre. Exemplo:
  Uma vez, na Inglaterra, Duveen visita a casa de um nobre. Na sala vê uma coleção de tapeçaria. Diz ao dono: "-Me dói o coração ao ver uma sala tão bela com tão vulgar tapeçaria". Duveen compra toda a coleção. E a deixa em seu porão, para sempre. Sim, era verdade, a tapeçaria era ruim. Sim, ele pagou caro por ela. Sim, ele não as vendeu. Mas ele ganhou nessa operação. Como? O nobre ficou tão encantado que começou a passar para Duveen todas as dicas sobre tapeçarias de seus amigos. Duveen passou a negociar com esse círculo fechado. Comprar tapeçarias que agora eram boas, e vendê-las aos americanos. "Esta foi de Lord X, esta foi de Lady L..."
  Sempre que um milionário americano ia á galeria de Duveen, na Quinta Avenida, lógico, e eles adoravam ir até lá, Duveen dava um jeito de não vender uma pintura para eles. Era sempre o ritual do "esta não está a venda", "esta eu reservei para minha mulher", " Morgan escolheu esta". Duveen sabia que a impossibilidade aumenta o desejo e jogava com isso. Quem tem tudo deseja somente o que não pode ter. E um Rafael, um Van Dyck, um Rembrandt eram raros.
   Duveen jamais negociou pinturas pós-1800 por isso. O século XIX produziu demais. Se seus clientes começassem a amar Renoir ou Monet teriam muito que escolher. Mas um Tiziano seria sempre dificil.
  Então o que Duveen dava a esses bilionários ( os quadros custavam um milhão, num tempo em que 10.000 dólares era uma fortuna ), era o desejo, e mais que isso, a sensação de imortalidade. Todos eles acabaram por formar coleções, coleções que hoje são vistas por todos, coleções sem preço. A coleção Morgan, Rockefeller, Carnegie.....
  Era um belo prazer para esses homens. Gente que aos 15 anos vivia no trabalho duro, semi-iletrados, duros e solitários, calados e muito sovinas, verdadeiros Tio Patinhas,  poder agora, aos 70 anos, viver cercado pelo luxo e nobresa de pinturas que foram de reis ou de duques. Isso lhes dava a sensação de permanência e de importância que a filosofia americana não podia dar. Ter mármores italianos e móveis franceses antigos era o mais próximo que eles podiam chegar de uma vida que não estava à venda. Duveen lhes vendia tudo isso.
  S.N.Behrman foi jornalista e um dos mais brilhantes dos roteiristas da velha Hollywood. Tinha o dom do diálogo. Escreveu mais de cem roteiros e ainda peças e livros. Este é delicioso. Um prazer da primeira a última página. Procure e leia.

PAUL GAUGUIN, O HOMEM QUE NASCEU HOJE

   Paul Gauguin fracassou. Os dois objetivos principais de sua vida não foram alcançados. Ele queria ser "o maior pintor vivo", e queria aprender com os taitianos a ser "um primitivo". Não foi aclamado como o maior de seu tempo ( essa honra era de Monet e de Degas ), e jamais deixou de ser um europeu típico.
 Mas a vida de Gauguin valeu a pena. E muito! Paul é invejado até hoje, ele é o modelo dos descontentes. E muito mais que isso, ele antecipou um tipo de caráter que se mantém até hoje. Paul Gauguin poderia ter nascido em 1970 ou 1990.
 Não poderia ser em seu tempo o maior pintor vivo, porque ele negava aquilo que os artistas famosos de seu tempo mais prezavam: o futuro. O impressionismo amava a técnica, a velocidade e o mundo que viria nascer no futuro. Eram otimistas. Na verdade pensavam como os burgueses que odiavam. Gauguin odiava a ciência, a técnica perfeita, o futuro. Ele valorizava o arcaico, o primitivo, o simbolo. Era então chamado de infantil, bruto, parvo.
 Não conseguiu ser primitivo como queria. Era sempre um europeu observando um taitiano. Como europeu lhe era impossível entender e participar do "fazer nada" taitiano. Explico. Todos os quadros feitos no Tahiti de Paul Gauguin exibem nativos indolentes, descançados. Observe isso: eles, assim como nossos indios, conseguem ficar sem fazer absolutamente nada. Como animais ( e nisso não vai nenhuma critica minha ), eles se deitam e passam a tarde parados, sem nada fazer e "sem se sentir culpado por isso". Para nós, como para Paul, isso é impossível. Um domingo em que nada fazemos é um domingo perdido. Nosso descanço é ativo. Lemos, caminhamos, vemos TV, dançamos, visitamos amigos para fazer alguma coisa. Até nossas conversas devem ter uma ação, um fim. Gauguin pintava, escrevia, sentia culpa por não estar produzindo. Hoje, em 2012, até nossas crianças não sabem mais o que seja ficar deitado no chão olhando as nuvens e fazendo o nada. Deitados na praia estamos nos bronzeando, fortalecendo ossos ou preocupados com o câncer de pele. Estar lá, simplesmente lá, sem objetivo, sem culpa e sem deprê, isso nos é impossível ( mas eu fui assim até os 13 anos ). Um taitiano em SP hoje seria chamado de vagabundo, idiota ou mais provável, deprimido.
 Paul Gauguin tinha raízes peruanas. Nasceu na França mas passou sua primeira infância no Peru. De volta aos 7 anos, foi marinheiro e após se casar aos 22 anos, enriqueceu. Foi corretor da bolsa, teve filhos e pintava de fim de semana. Aos 35 anos, despedido, resolveu ser pintor. Largou a familia e caiu na vida.
 Em 1890 países exóticos eram moda. Gauguin sabia disso e sua arte é uma mistura. Ele tenta ser famoso, fazer aquilo que sabe poder lhe dar fama, e ao mesmo tempo é um original. Seu ego é gigantesco. Deseja ser reconhecido. Logo viaja ao norte da França, em busca do primitivo e depois faz sua primeira viagem ao Tahiti. Mas atente: ele vai a uma colônia francesa. Gauguin é radical em parte. Fosse realmente radical iria para um local de lingua desconhecida, mais incivilizado, onde fosse um ninguém. No Tahiti ele é o colono, inclusive sendo recebido pelo governador no porto.
 Mallarmé e os simbolistas logo se encantaram com Paul. Sua pintura sempre tem uma mensagem simbólica. Nunca é pintura pura, ela narra. Mas é uma narrativa cifrada. Quem não souber a ler não gostará de Gauguin. Os trabalhos de Paul são do tipo em que se deve amar a primeira vista. Se voce nada sentir, desista.
 Morte, liberdade e religião, tudo nele está impregnado desses três valores. Não há um só quadro de Paul Gauguin que não fale da morte, da religião e da liberdade. Ele era irascível, nervoso, intenso.
 Não falarei do fiasco que foi sua relação com Van Gogh. Na verdade os dois passavam o tempo a se provocar. Penso que o holandês adorava o dom de vida que o francês tinha e Paul admirava a fé inabalável que movia Vincent. Tudo terminou em violência.
 Gauguin após sua primeira estada no Tahiti volta a França pensando que seus quadros tropicais serão um sucesso. Fracassa. Ele é considerado muito pouco exótico. Seus quadros são "pouco decorativos". Mais raivoso que nunca, volta ao Tahiti, para sempre. Nessa segunda estadia, além de continuar a amar suas nativas adolescentes e a passar doenças venéreas a todas elas, Gauguin entra em atrito com as autoridades francesas na ilha. Finalmente percebe que o paraíso se transforma em inferno. Que seus nativos são um tipo de brinquedo dos colonizadores. Que a vida idilica dos taitianos está a desaparecer. Ele passa a lutar por eles. O governador tenta o deportar.
 Sua pintura se enriquece. O colorido domina. Gauguin não é um desenhista, ele é um colorista. E um escultor. Suas pinturas tem um talento escultório. Elas são sólidas, parecem grandes. O principal: em Gauguin não há um centro. Não existe hierarquia. Tudo na pintura é importante, tudo é um mesmo, nada é destaque. Não existe um centro, um foco. Seu simbolismo religioso se torna prodigioso. Cada quadro é uma narrativa mistica.
 Tivesse vivido mais dez anos Paul Gauguin conheceria a fama que almejou. Mas morreu aos 54 anos, após ser preso por alguns meses, de gangrena. Era 1903. Em 1913 ele era o pintor mais amado pelos modernistas.
 Mas não vamos fazer romance. Gauguin vendeu quadros, não foi um Van Gogh. Teve uma certa fama entre os poetas e os rebeldes de Paris. Degas comprava seus quadros. E acima de tudo, Paul Gauguin viveu a vida que escolheu. Nunca foi uma vitima. Amou suas taitianas ( hoje seria um pedófilo ), e tentou, sem sucesso, ser um deles. Está vivo para sempre em pinturas, esculturas, livros que escreveu e na lenda de sua vida. Foi um existencialista antes do tempo. Um hippie 60 anos antes. Um ansioso de 2012.
 Aos 15 anos eu vi meu primeiro Gauguin. Amor eterno e de primeira vista. Cada cor conversa comigo. Eu entendo o que ele queria. Sinto o que ele sentia.

Paul Gauguin



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ROMA NO MASP

   Fico pensando no ano de 4012.... Pessoas andando e olhando com respeito:
   Para uma garrafa de vidro de Guaraná, uma escova de dentes verde e para um pedaço de parede com grafiti onde se lê: vote em Carlos Daniel.
   Olharão com interesse para uma caneta da Copa da África do Sul e para uma página de papel com uma foto da Luana Piovani pelada. Uma calça jeans esfarrapada e uma capa do vinil do Jorge Ben.
   Um garfo de plástico e um pôster do Hawaii. Uma foto do marceneiro Zé da Moóca e um lápis preto.
   Swatch de plástico vermelho e um livro rasgado de Harold Robbins.
    Daqui a 2000 anos olharão para pedaços de túmulos e não entenderão nada. E para cruzes cristãs e nada vão lembrar. E uma moeda de niquel.
    Nossos objetos terão a honra de viver por vinte séculos?
    Vejo a exposição sobre a Roma Imperial e penso isso. Mas penso mais. Que há um patético em se olhar para um garfo, para uma lasca de parede, para uma urna funerária. Aquilo tudo não é obra de um artista, é artesanato, coisas úteis e arte é inutil. Admiramos o lixo de Roma, os restos. E também constato que fora de seu ambiente aquilo tudo se torna mudo. Uma estátua de Nero longe de Roma é como um tigre no zoo de Londres. Saímos da avendia Paulista e nos vemos diante de um bronze de 2000 anos de idade. Não há como entrar no espirito daqueles objetos. Eles estão isolados, exilados de seu mundo. Mortos.
    Sinto mais uma vez o quanto sou romântico. Preciso do grande nome de um artista, de um rastro de um ego imenso. Preciso de Arte e não de artesanato. Preciso ver El Greco, preciso das imagens religiosas da Espanha católica. E dos retratos de Gainsborough, de Watteau. Preciso lembrar de Modigliani. Na frieza dos mármores de Roma eu nada vi. São objetos de vidas que se foram. Mas a menina de Renoir não é um objeto. É vida para sempre. Ela vive, ela me alegra, ela é a beleza.
   Vá ver as coisas que eram cotidianas na cidade de Roma e na vida romana. Mas aproveite e reveja a arte não cotidiana de seres nossos irmãos. Saia de um mundo morto e respire a vida das telas de Monet e de Rafael. E perceba mais uma vez: arte é vida e vida é para sempre.

YOLANDA, LIVRO DE ANTONIO BIVAR ( UMA VIDA EM ROSA )

   Uma sensação muito estranha dá esse livro em seu final. Yolanda Penteado vem a morrer em 1983. Nos últimos três anos, tendo se desfeito da maior parte de seus bens, Yolanda percebera que no "Novo Mundo" americano, o minimo era a lei, voltando, em seus últimos três anos ela morava em apartamento "simplesinho", atrás do Shopping Iguatemi. Vem daí a estranheza. Yolanda, nascida em 1903, milionária desde o berço, de familia antiga como o Brasil, privara da amizade de Santos Dumont, frequentara festas de gente como Picasso e o futuro rei da Inglaterra, conversara com parentes de Proust e se hospedara em palácios de marajás da India, e terminara afinal, por livre escolha, naquele prédio, detrás do Iguatemi, tão pouco mítico, tão corriqueiro, banal.  Prédio que eu frequentei exatamente no tempo em que ela morreu. Nada simboliza melhor a história do século XX.
  Tudo começa em Leme, numa fazenda chamada Empyreo. Um paraíso de flores, de rios e de cavalos. Yolanda tem primeira infância de molecona, mas ao mesmo tempo com aulas de francês, ballet, piano, grego, latim e pintura. Na capital de São Paulo, lugar de uma elite otimista, intocável, onde todos se conhecem e todos são meio que parentes de todos, ela mora  num casarão, na Vila Buarque. Aliás, morar bem era morar lá, ou na avenida Higienópolis, novo rico ( libaneses e italianos ) morava na Paulista. Pois bem, ela estuda em colégio francês e tem uma vida de viagens a Europa ( longas, de navio ) e festas dignas das mil e uma noites. 
  O livro, escrito no estilo fluido, efervescente, risonho de Bivar, dos poucos brasileiros que sabe e escreve wit, tem em toda essa primeira parte um ar de sonho cor de rosa, de delirio de vida feliz ao extremo. Yolanda se casa e cresce como dondoca, conhece a loucura da década de 20, e não sente nada da crise da década de 30. O que ela sabe é como se vestir, o que falar e onde ir. Das melhores coisas descrita, a sua amizade com Santos Dumont é uma das mais deliciosas. Pouca gente sabe, mas em Paris, entre 1900/1925 ninguém era mais famoso que o "Santôs". Duques quando o viam na rua a cruzavam para vir cumprimentá-lo. Para Yolanda, um tipo de sobrinha dele, foi Dumont o homem mais elegante que ela já conheceu. E se mostra verdadeira a história de que foi ele quem criou o relógio de pulso. Sem poder mexer no bolso para ver as horas no ar, ele pede a Cartier que lhe faça um relógio de pulso. 
   Aliás faço eu aqui uma obsevação que não está no livro. Na rivalidade entre Dumont e os irmãos Wright mora a diferença entre a Europa belle- epoque e a América do jazz....
  Figura central no livro é Assis Chateaubriand. Só por suas histórias já vale a leitura. Pra quem não sabe, foi ele, que através de pressão sobre a "burguesada", fez o MASP. Ele fazia com que cada rico comprasse uma obra e a doasse ao museu ( que nem existia ainda ). Na Europa arruinada pós-guerra, ele e Bardi fizeram a rapa. A cada quadro que um industrial brasileiro comprava, era dada uma festa de inauguração da obra. Quem as organizava era Yolanda. Pois foi ela o grande amor ( platônico? ), da vida desse louco-genial-folclórico herói. Hoje, quando se olha o acervo do MASP, a mão e a esperteza de Chatô está ali. Mas se ele fez o MASP, Yolanda, agora já com seu segundo marido, Francisco Matarazzo, fez o MAM e fundou a bienal de São Paulo. 
  A bienal é um capitulo soberbo. Uma bienal para rivalizar com a de Veneza num fim de mundo como São Paulo!!! E foi feita. Yolanda viajando por todo o mundo, convencendo artistas, embaixadores, museus. A primeira ainda no prédio dos jornais de Chatô, mas a segunda já no Ibirapuera. Pra se ter uma ideia: a Guernica de Picasso, que jamais havia saido de New York, veio. Uma sala inteira com dezenas dos melhores Van Goghs. E mais Matisse, Paul Klee, Chagall, Kandinski e Mondrian. 
  Nessa mesma época, o marido de Yolanda, Francisco Matarazzo, funda a Vera Cruz. A tentativa de se fazer cinema industrial no Brasil. Tudo errado, um fiasco digno de louvor. Trazem da Europa grandes técnicos, constroem belos estúdios, mas se esquecem do principal: bons roteiristas e bons diretores. Como ele e Yolanda já haviam ajudado a fundar o TBC, usam atores e diretores de teatro. E dá no que dá, filmes chatos, muito chatos. A aventura dura cinco anos e 18 filmes. O engraçado é que muitas das atrizes eram filhas de tradicionais familias paulistas. 
  Mas tudo bem, Yolanda fica meses na India onde visita marajás. Conhece a vida mais luxuosa já vista, participa de caçadas a tigres, sente emoções novas, insuspeitas.
  A mais engraçada história é sobre uma festa para atores de Hollywood, que vieram participar do primeiro festival de cinema de SP. Um trem, fretado, pega-os na estação da Luz,( foi aí que se cunhou a expressão "Trem da Alegria" ), e os leva até Campinas. Champagne e mordomias a bordo. De Campinas vão até a fazenda de charretes individuais. E na sede a festa. Dificil a descrever aqui, só lendo o livro. Mas se não contei conto agora: a sede da fazenda era famosa por suas festas glamurosas. Nobres europeus, milionários e herdeiros de todo o mundo, industriais americanos, todos iam lá para se impressionar com as festas de Yolanda. Nesta, Erroll Flynn se jogou na piscina assim que chegou, e como estava de terno de linho branco...
  E a estranheza volta. Nos seus últimos tempos, a diversão no tal prédio detrás do Iguatemi, era ver a novela da Globo com seus convidados...E não era questão só de idade, é que a vida  tornara-se mais realista, menos sonhadora. Fazer outro MASP, fundar outra Bienal, comprar todo um acervo para o MAM ( hoje é o MAC )... como? Quem?
  Ela avisara, no meio da década de 60, às suas amigas, que no futuro não se dariam mais festas toda noite, não haveriam mais empregados domésticos fiéis, não se poderia mais conversar com um embaixador ou conde diretamente. Não existiriam mais praias secretas e os muito ricos se sentiriam muito culpados.  O mundo iria se americanizar, as coisas seriam "mínimas", informais, sem grandes requintes. Yolanda soube se adaptar no fim da vida. Percebeu o que havia de bom, de democrático nos novos tempos. Mas que dá uma esquisitice ler esse final, ah isso dá!
  É livro pra se ler numa levada só. E parabéms ao Bivar, escriba que acompanho a tanto tempo, mestre do chic e do moderno, rei da escrita fosforescente. O livro é um luxo.
   

ESBOÇO PARA UM AUTO-RETRATO, LIVRO DE BERNARD BERENSON

   Bernard Berenson viveu 94 anos. Nasceu no apogeu da Europa do século XIX ( 1865 ), e faleceu só em 1959. Judeu da Lituânia, filho de uma das famílias mais ricas do mundo, Berenson cresceu nos EUA, em Boston, estudou história da arte em Harvard e foi viver na Itália. Casou-se e se tornou o mais famoso esteta de seu tempo. Quando algum bilionário precisava saber se aquele quadro era mesmo de Ticiano, ou se não seria uma obra de algum discípulo, era a Berenson que ele consultava. Foi o árbitro do gosto, e mais que isso, foi o responsável por uma nova abordagem às obras de arte, os desenhos passaram a ser analisados por seu valor em si, e não como ensaios de obras maiores. Este livro, com introdução de Daniel Piza, é uma não-biografia escrita pelo próprio biografado.
   Berenson discorre sobre seus pensamentos. Sobre sua vida material, pouco fala. Mas ao ler essa agradável obra, sentimos conhecer verdadeiramente quem ele é. Ao contrário de certas bios, que encavalam datas e casos e nada mostram de motivações e sentimentos, aqui nada há de histórico, de corrido, de fofoca; mas o espirito de Bernard Berenson é exposto. Escrito durante os quatro anos da segunda-guerra, na Toscana, é o relato de alguém que ama a vida. Alguns pensamentos de Bernard Berenson merecem ser destacados.
   Primeiro o fato de que ele é o autor que mais se aproxima daquilo que senti em minha infância. Ele descreve a sensação de plenitude, do eu ligado a tudo que existe, de se sentir dono do mundo, de que todo o universo é aquilo que eu vejo, de deslumbramento com a vida, com o ato de ser. O livro, em poucas linhas, consegue explicar ( ou seria melhor: demonstrar, já que é inexplicável ), essa sensação de felicidade absoluta. Bernard Berenson diz que sempre que se depara com uma obra-prima tem a recordação viva dessa alegria da infância. Não conheço melhor definição de arte superior: o reencontro consigo mesmo, a valorização da experiência de viver.
   Berenson se debate muito com duas coisas que sempre o perturbaram: a preguiça de escrever ( apesar de escrever todos os dias, ele sente que desperdiçou seu tempo, que escreveu pouco ) e a impossibilidade de se auto-conhecer. É impossível saber quem somos. Mais, é impossível que alguém nos conheça. O eu interior, que é imutável, que é idêntico ao eu dos seis anos de idade, esse eu é incomunicável. Sempre nos surpreendemos com o modo como os outros nos vêem. Sempre nos assustamos ao nos ver no espelho.
   É claro que ele faz críticas ao mundo moderno, e uma delas é surpreendentemente premonitória. Ele diz que há um excesso de "fazeres" no mundo. As pessoas fazem coisas demais e não sobra tempo para a fruição. E o mais importante, as pessoas se entopem de informação e não conseguem se livrar de toda essa massa de coisas... precisam vomitar palavras, imagens, sons, se livrar, eliminar tanto material supérfluo. Não conseguem. Não existe um anus mental.
   A outra crítica é sobre a morte da arte da conversa. Nosso tempo valoriza o homem de ação, o homem que faz muito, que age por impulso. Esquecemos que tudo o que realmente constrói é fruto de diálogo, de discussão, de conversa. Jesus, Buda, Maomé, Confúcio falaram muito e quase nada fizeram. Os grandes líderes mundiais estão perdendo o dom de conversar, de falar, de demonstrar. As pessoas não sabem mais o que dizer e sequer lembram do porque se deveria dizer. Animalização do homem.
   Um pensamento de Berenson que transcrevo:
   " Se tivéssemos a certeza de que todo dia nasceria uma nova obra-prima, não teríamos a necessidade de guardar o que foi feito. Sabemos que essas obras não só são raras, como cada vez se tornam mais impossíveis. E é isso que nos diferencia dos animais. A consciência do valor, a consciência da história, de que há um passado e de que haverá um futuro. Um animal sente que o que ele fez hoje será feito igual amanhã. O homem sabe que o que hoje foi feito amanhã não o será."
   Berenson diz ter tido sempre em vista a eternidade. Ele queria ser Goethe. Não foi, mas isso lhe deu uma visão abrangente da vida, o dom de não se prender ao aqui e agora, de perceber o global, o atemporal. Isso lhe ajudou a enfrentar crises, a superar obstáculos, a colocar as coisas em sua perspectiva real. O que é esta guerra em relação a 5000 anos de história? O que é este sucesso em relação a Goethe?
   Bernard Berenson fala sobre alguns amigos famosos ( nada de fofocas ), Edith Wharton, Bernard Shaw e Oscar Wilde. Lamenta a prostituição que Wilde e Shaw cometeram, a roda viva de conferências em que eles tentavam impressionar os jecas.
   Ao terminar de redigir o livro ( que é curto ), Berenson está com 75 anos. É claro que ele não sabe que ainda viverá mais de uma década, então esse final tem um ar de despedida da vida. E é então que o livro atinge seu melhor ponto. Ele sente que as percepções que ele vivera na infãncia retornam com a velhice. Ele volta a ser parte do todo, a apreciar sem julgar, a usufruir sem pensar em motivos e objetivos. A luz volta a lhe envolver, o tempo a ser abstrato, as ações a serem pausadas. Bernard Berenson se reconcilia.
  É um livro sobre um amante das artes que pouco fala de arte. Ele fala de vida.

Diego Velazquez



leia e escreva já!

A PINTURA SERVE PRA QUÊ? ( VELAZQUEZ )

   1599. Nasce Velazquez em Sevilha. 1599. Shakespeare está escrevendo na Inglaterra. 1599. O barroco se aproxima. Tempo de escuros e de sóis, de céu e de danação. A carne e a alma em movimento. A Espanha começa a se afundar e França com Holanda serão o presente. Velazquez jamais passará necessidades, será o pintor do rei, viverá no palácio onde pintará a familia real e tudo que a cerca. Será ao mesmo tempo um escravo desse mundo, sua vida está dentro daquelas paredes e ao lado daquela gente. Faz duas viagens à Itália e lá se maravilha com Caravaggio e Bernini.
  1625. Velazquez é um homem belo, forte, de bigodes e veludos, de sedas e de ouro. E pinta. Talvez tenha sido o maior pintor que o mundo já viu. Talvez não, esse pintor maior pode ser Rembrandt. Os dois viveram nesse período, a época das sombras, das peles rosadas, das carnes opulentas e dos espíritos inquietos.
  As Meninas é a mais famosa pintura de Velazquez, e não é dela que vou falar. Não posso me dar esse esforço, é arte que está distante da minha escrita, seria como uma formiga tentando escrever sobre o planeta. Mas talvez eu possa simplesmente escrever impressões, jogar imagens como quem pinta. Mas As Meninas é vasto demais, grande demais, tem tantas possibilidades de abordagem que vários volumes não o esgotariam. Na verdade ele não é um quadro ou uma pintura, é mais como uma realidade colocada diante de quem a olha, vida congelada para sempre, um momento de realidade mais vivo que a própria vida. Um continente de significados. Não, não falarei das Meninas.
   1635. As Lanças. Está no museu do Prado, em Madrid. Nos esmaga. Nesse encontro de dois exércitos que assinam a carta de paz, eu vejo a vitória da arte. Lá há mais engenho que em qualquer ciência, mais razão que em toda equação, mais narrativa que no melhor romance. O castanho do cavalo brilha e os pretos e os vermelhos hipnotizam. Os rostos surgem em meio a massas de escuridão e cada um desses rostos é único. Ninguém nunca pintou rostos como esse espanhol. Respiram, me vêem, falam comigo. Sei que não podem se mover, mas se movem melhor que eu. Velazquez conseguiu o maior dos milagres, venceu o tempo. O tempo aqui é cativo de seu pincel. Aquele dia está escravo, para todo o sempre. E as lanças apontam aos céus, retas e duras, abstratas. E o castanho do cavalo se move indiferente a mim. Esses homens me humilham, são maiores que eu. Me humilham, são melhores que eu. É uma arte perdida, Velazquez criava vida.
   1650. Vênus ao Espelho. Sobre o veludo que é mais macio que o veludo que eu posso vestir, um corpo de mulher, nú, exibe sua indiferença. A pele é a mais bela pele que um homem pode imaginar, Velazquez a realiza. A curva do dorso é a mais sensual curva que um corpo de mulher pode um dia ter exibido. Velazquez a congela para que nós possamos atestar sua beleza. E a opulência das carnes redondas é o mais insistente apelo ao sexo que um homem pode suportar. Pois Velazquez cria esse apelo, cria e o dá para nós. Essa Vênus, mais perfeita imagem, é a constatação daquilo que um homem vê quando vê o amor primeiro. O pintor soube rever e reter.
   1622. Retrato de Luis de Gongora. Em meio ao negro das vestes pesadas, o rosto brota como algo que será jamais esquecido. Esse rosto discursa, blasfema, reza, e vê. Esse rosto não é apenas para ser visto, eu juro que ele pode nos olhar. Velazquez faz uns olhos que são a imagem primeva dos olhos. Esse homem vive nessa tela, vive e nos vive.
    E é para isso a pintura. De todos os nossos sentidos, é o olhar o mais desenvolvido. Somos o que vemos, vemos aquilo que entendemos. Então entender Velazquez, saber saborear sua genialidade, é ver melhor, entender melhor, viver melhor. Cortar a face apressada da vida e olhar o além do tempo. Interromper o fluxo sem sentido do nada e obter o testemunho da eternidade. Olhar, olhar, olhar, olhar, e conversar com esses quadros, com essas pinceladas. Deixar-se ser olhado por elas e suportar o confronto com essa magnifica grandesa. Não se deixar intimidar por ela, tentar subir até sua altura. Ser nobre.
   Nunca houve pintor mais nobre. Sua arte é inteligência visual. Tudo fala, tudo se move, tudo vence.
   Tenho orgulho de ser de sua espécie. Me embaralho nesses tecidos cheios de dobras e de meandros, me fascino com os bordados dourados e os desenhos vermelhos. Sinto a sensualidade dos escuros e dos cantos e me surpreendo com os graves rostos iluminados pelo fogo e pelo desejo. Mundos dentro de mundos, vidas dentro de tintas, segredos de magia, de rendados e pesados destinos. Os olhos grandes do rei, os pelos dos cachorros e a saia da infanta. E Velazquez, entre anões e bobos, pintando e pintando sem parar. Capturando, enclausurando, nos dando tanto. Maravilhoso século XVII, maravilhosa Espanha, Sevilha... Quero viver nessa penumbra quente.

CONVERSAS COM PICASSO- BRASSAI

   Entre os anos de 1939/1944, Brassai, fotógrafo e escritor de origem húngara, travou amizade e conviveu com Pablo Picasso na Paris da segunda-guerra. E travar contato com Pablo era viver com as dezenas de pessoas que gravitavam a seu redor. Celebridade desde os anos 10, as casas onde Picasso vivia eram invadidas diariamente por amigos, mas principalmente por turistas, compradores de arte e jovens artistas em busca de direção. O livro, descrição do cotidiano do gênio espanhol, consegue fazer algo muito raro em livros desse tipo: faz com que nos sintamos em companhia de Picasso. E estar com ele é acima de tudo um prazer, uma inspiração.
   Henri Matisse está no livro. Matisse, verdadeiro negativo de Picasso e seu único rival de fato e de direito.
Mas vemos por lá também Sartre e Simone, Camus, Miró. Jean Cocteau com sua elegãncia fulgurante e Jean Marais. Ficamos sabendo de fofocas dos surrealistas, de Breton e Dali, de Jacques Prevert. Conversas com todos eles e ainda com Henry Miller, Man Ray e Malraux. Mas é Pablo quem mais nos fascina.
   Picasso não gosta de artistas que posam como "artistas". Ele gosta de quem faz coisas. Ama toureiros, poetas, garçons, cães, gatos, cabras, e principalmente mulheres. Sentimos nele seu segredo revelado, Picasso ama a vida com paixão amorosa e com rancor furioso. Ele é vivo, muito vivo. Jamais está só, embora tente. Há sempre gente anunciando visita, americanos ricos, jornalistas, autores. Picasso, em mundo que ainda tinha vivos Heminguay, Mann, Huxley e Eliot; Stravinsky, Chagall, Hesse e Faulkner, é o artista central do planeta, o gênio entre gigantes. Mas ele não faz pose. Se veste sempre mal ( ternos amassados, bonés sujos, e principalmente shorts sem camisa, o torso nú ), suas casas ( imensos apartamentos e palácios no campo e praia ) são vazios. Poucos móveis, muito espaço. Salas cheias de pó, de caixas de fósforo, de maços de cigarros, de telas e tintas, de esculturas e tralhas pegas na rua. Picasso vasculha o lixo, atrás de coisas interessantes: uma velha caixa de madeira, um caco de espelho, um brinquedo quebrado. Ele dá vida à esses objetos, faz de um pedaço de papelão, uma muralha chinesa; de uma garrafa, um ser de mitologia. Picasso cria sem parar, usa as mãos, esculpe, gruda coisas, pinta, e olha tudo com seus imensos olhos de louco. Nada joga fora, nada lhe é indiferente. Vê em cada coisa uma possibilidade de criação. E faz.
  Sua esposa vive em casa vizinha, casa bem decorada, luxuosa, rica. Pablo mora no caos, bagunça que lhe inspira, caos onde ele dá vida. O livro, cheio de fotos, é delicioso, instigante e dá desejo. De criar, de fazer, de olhar.
  Quem já viveu em casa grande sabe o que irei falar.
  É preciso espaço para ser solto. Paredes onde eu esparramava tinta e portas que eu quebrava ( com arte ). Para criar é preciso sujeira, pó, caos, é necessário poder mudar tudo toda hora, revirar, buscar um carburador e o pintar de dourado, quebrar um relógio de parede e fazer dele um robot, usar um velho rádio como palácio de indios apaches. Dormir no chão e sonhar com a chuva caindo dentro. Nunca fui artista, nunca tive talento algum, mas eu me inspirava então, naquela enorme casa de caos ( e de cães ) e me soltava com tintas, com martelos, com o corpo.
  Este livro me lembrou essa fase de minha vida. E ainda volto a viver lá !!!! Volto sim !

AS MENINAS DE VELAZQUEZ, A MAIOR OBRA VISUAL DA HISTÓRIA HUMANA

Antecipando o zoom, nosso olhar penetra em sala. Mas não é apenas uma sala. É um mundo. As pessoas nos olham e respiram. E começa assim a sucessão de milagres.
Sabemos todo o tempo que aquilo é uma pintura. Nosso cérebro grita isso. Mas algo escondido dentro de nós balbucia: São vivas!
A vida/morta está para sempre viva naquele retângulo. Respiram os ares do museu do Prado. Eu irei partir, voce irá partir, nossos brinquedos eletrônicos tornar-se-ão pó, e aquela vida/morta estará lá.
Ao canto do quadro há o fundo de uma tela. E um pintor nos mira nos olhos e segura um pincel. Os olhos daquele pintor se movem para dentro de nós mesmos. Segundo milagre: ao penetrarmos naquele ambiente somos penetrados pelos olhos de quem lá está. As três meninas posam ao centro. Uma princesa-criança loura e suas duas amigas. Ao lado das três belas infantas, uma anã retardada nos observa. Ela é a imagem do grotesco. Dois adultos observam a cena ao fundo, mas na verdade nos observam. Olhando o quadro, de súbito nos sentimos nús. E bem ao fundo há um homem partindo por uma porta. Um cão está quase adormecido ao canto e uma criança perturba o quase-sono desse animal. Onze quadros estão enfeitando as paredes desse aposento. E um espelho, bem ao centro, reflete um casal que olha o quadro ao nosso lado. Capturados: estamos agora dentro daquela sala de 1656.
Olhe algum tempo para essa cena e voce estará vivendo com eles. Sua mente se entorpece- desperta e tudo o que existirá então será aquela gente e aquele tempo. Nenhuma imagem feita por mãos humanas tem esse estarrecedor poder. Suga voce para dentro da obra.
Então se inicia um diálogo entre voce e as pessoas. "Desculpe ter entrado sem avisar..." E elas, fantasmas que são, nada podem responder, apenas olham seus olhos e respiram paralisadas. Me vem um pensamento: Quando nosso mundo ruir, esta obra permanecerá. Pois não se trata de pintura, é um feitiço. Aquilo é o mundo real, eu é que sou um simulacro.
Que arte é essa que se perdeu? Observando mais de perto vemos que tudo alí é fumaça, são tênues camadas de tinta. Esfumaçamento da vida, o rosto da menina loura brilha e se avermelha e os cabelos são ouro enquanto sua mão pega um frasco que se move. Sentimos raiva então. Raiva por termos perturbado aqueles seres.
Recordo que é esta considerada a maior pintura de toda a história. O único outro que pode tentar se igualar é Rembrandt com sua Ronda Noturna. Século XVII. Ouro da pintura e da filosofia.
Chego então ao muito perigoso momento em que sinto a tentação de não mais sair daquela sala. Se eles são fantasmas vivos, serei um vivo fantasma e lá ficarei. Quero acariciar o pelo marrom daquele cão imenso e quero ser olhado e olhar os olhares daqueles espectros que respiram. Serei a imagem no espelho de fundo, serei o objeto do pincel que se segura, serei parte daquele mundo suspenso. Há um perigo mortal em toda obra-prima. Elas são maiores que nosso mundo. Têm um canto de sereia que pode enlouquecer. Pois esta obra é mais que sereia, é um oceano.
Agora, na rua de novo, sinto estranhamente que as meninas me esperam para outro dia. As coisas aqui fora parecem vulgarmente mortais, e eu, num quadro, tive visões de dourada imortalidade.

PARA QUE SERVE A PINTURA ?

Indo ao MASP. Ausente. Pensando em tudo que dá pra pensar. Andando. Apressado. Olhando e ignorando a gente que passa e as coisas que vão.
Diante de Chagall.
Olhar um quadro ( gravura ) é sempre estranho. Primeiro voce sente um frio na mente. Nenhuma emoção. Seu cérebro está condicionado a só enxergar imagens em movimento ( estamos virando bichos ), e diante de voce há uma imagem estática. A primeira vontade é a de andar, fazer um travelling pelas imagens, para que assim elas se movam.
Mas voce permanece. Continua olhando. Sem emoção nenhuma. Sem analisar. Olha e olha. Então voce começa a perceber que tudo alí é redondo, que não existe solidão nas imagens e que há uma imensa inocência naquilo tudo. Voce anda e vai às imagens coloridas. Animais, gente, aldeias, peixes, galos. Chagall é o último artista feliz. Note : ele não resolve fazer arte feliz ( como o fez Matisse ). Ele é feliz. Nosso mundo, 2010, é de Picasso e Braque, Chagall é a mensagem do que perdemos. Sinto ser irrecuperável.
Uma imagem vermelha. Lágrimas em meus olhos. Alí vejo o que eu poderia ter sido.
Uma imagem em verde. Canção em meu mais profundo. Eu vivi aquilo. Um eu que me veio de meu avô. Ele sabe toda aquela canção.
Mas é pra isso que serve a pintura ? Não. Ainda não.
Saio da sala de Chagall. Quero ver os holandeses.
Todo aquele que ama pintura começa pelo sensacional. Dali ou Bosch ou Van Gogh. Depois voce começa a entender Klee, Picasso e Kandinski. Mas ao final, voce percebe que o momento maior esteve sempre em Velasquez, Rembrandt e Caravaggio. É como ler. Primeiro Heminguay ou Hesse, depois Dostoievski e Kafka, e no fim, Cervantes mais Tolstoi.
Eis Rembrandt................
Chagall é um poeta maravilhoso. Mas aqui está um deus ! O dono de um segredo perdido. Se Chagall fala a meu coração, se ele canta em minha alma, Rembrandt é a própria criação. O quadro é um ato de divinização.
Mas é para isso que serve a pintura ? Será ?
Tem um gigantesco Van Eyck por perto. Um retrato. Milhões de fotos digitais tiradas no desespero de eternizar alguma coisa.... E aqui, um plácido retrato a óleo. Eterno. As duas mil poses que voce faz para as lentes mostram menos de seu ser que esta única pose deste modelo. Ele vive e está completo aqui. Seus retratos digitais são histéricos. Macaco fazendo pose. Neste óleo mora uma alma. Lânguida.
Saio do MASP e pego um bus.
Entra uma menina linda. Seus olhos sorriem e refletem a luz do sol forte. O nariz tem uma leve curvinha para cima e percebo que há uma pinta no pescoço. Ela se senta ao meu lado e usa uma correntinha no pulso. Na rua passam arbustos verdes por onde a luz passa filtrada. Minha ansiedade se foi, estou estranhamente calmo.
Quando chego em casa abraço meu cão e almoço olhando as maritacas brincarem na mangueira. O verde de suas penas e o verde das folhas. Meu cão está feliz.
Eu aprecio.
Entendí.

MARC CHAGALL NO MASP

Dos artistas modernos nenhum impressiona melhor aqueles não habituados com a arte que Chagall. Não por ele ser mais simples ou pop, mas porque Marc Chagall conseguiu um equilíbrio entre religião/arte, modernismo/arcaísmo, poesia/pintura, sonho/realidade. Este poeta russo é único no século XX, acredita no homem, acredita na vida, acima de tudo crê no amor.
Chagall nasceu judeu, em aldeia russa. Jamais deixou de ser muito russo, muito judeu e nunca tirou seu coração da aldeia. As cores, roxos e vermelhos vivos, verdes profundos, amarelos brilhantes, são completamente russos. Como russos são seus sentimentos. Marc é absolutamente sensual, as figuras dançam, pulam e sempre levantam vôo. Seu judaísmo está na profusão de estrelas de Davi, velas, profetas, ícones. Tudo remete ao Deus do velho testamento, as cerimônias, as barbas. E existe a aldeia. E é dessa aldeia que Chagall tira sua poesia. Galos de olhos ferozes, bodes rindo, pássaros que são homens, camponesas que são rochas. Sol e lua e essas vacas voando pelo céu, vacas de olhar divino e que são um dos mais felizes símbolos do século. A pintura de Marc Chagall, mágica, nos faz planar no céu.
Mas não pense que ele foi um aldeão. Viveu em Paris, entre artistas modernistas, viveu com sua musa, Bella, namorada da aldeia que ele deixou para trás enquanto se instalava na França. Um dia ela vem para o encontrar, e Chagall pinta sua obra-prima, aquele quadro desmaiante, onde a noiva flutua ao ser beijada pelo artista. Mas Bella morre, anos depois, e Marc deixa de pintar. Seu luto é total : para que pintar sem Bella ?
Redescobre o amor e volta às cores. O segundo Chagall é menos poeta e mais mestre, equilibrado. Descobri esse encantador cigano/judaico em 1985, no canal 9. Roberto D'Avila entrevistava Marc aos 90 anos em Paris. Nove da noite, era o Conexão Internacional. Duas horas com esse mestre russo/francês. Ao fim da entrevista, onde se falou de guerra, gueto, aldeias, modernidade, cor, idade, Roberto pede para que Marc Chagall dê um conselho aos jovens espectadores. O poeta se ergue da cadeira e com olhos brilhantes e subitamente renascidos diz "- Amour ! " Somente o amor existe... Pieguice ? Não ! Na década da ironia ( era 1985 ) eu entendi tudo. Dois meses depois ele falecia.
Desde então eu descobri Gauguin, que com sua inquietude e seu heroísmo radical se tornou meu artista favorito. E encontrei Klee, Kandinski e Vermeer. Mas Chagall, o nunca imitado Marc, o aldeão que não criou escola, é desde sempre um tipo de avô ideal, de patriarca ícone.
Ir ao MASP ver Chagall é obrigatório. Irei uma vez por semana. Uma romaria a um anjo, um puro, um olho em comunhão com a alma do universo, gurú.