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A TAÇA DE OURO- HENRY JAMES. PSICOLOGIA ESCRITA.

   Incrível como Henry James não descreve ambientes. Pouco sabemos de roupas, paredes, jardins ou condições climáticas. Seus livros, cada vez mais, são descrições de mentes falando com mentes e de mentes conversando consigo mesmas. Como Proust, James investiga o funcionamento da mente, dos sentimentos, da razão, da percepção. Ele esmiúça cada pequeno movimento mental, todo sentimento que nasce e que se vai. Quem ler superficialmente dirá que não há ação. Na verdade a ação nunca cessa, as personagens se movem dentro de sua alma, fluem, voam, param, se amortecem e explodem. Dentro de si.
  Henry James planta surpresas e deixa que nós as encontremos. Enquanto os personagens pensam e sentem, as coisa vão mudando de figura ao redor. Ocupados com esse diálogo incessante, eles acabam por deixar de lado a tal "realidade". Eis um retrato da vida.
  Um italiano que vive na Inglaterra, bem adaptado, sem sotaque, se casa com uma inglesa rica. Ao mesmo tempo sua ex namorada, pobre, se casa com seu pai. Como uma observadora, temos uma mulher mais velha, confidente de todos eles. Os temas de James estão presentes: o estrangeiro, a mulher como ser que move a vida, o homem como joguete do destino. Henry James nunca se casou, ele percebe a mulher como ser forte, aquele que faz as coisas, que decide.
  O livro tem 600 páginas e períodos de várias páginas. Não há como desenvolver uma psicologia tão vasta em frases curtas e truncadas. O estilo aqui é sinfônico. Cada pensamento desenvolvido até o fim. Como tema musical. Como harmonia que vem e se esvai. E retorna depois.
  Proust levaria esse estilo ainda mais longe unindo a sintaxe poética ao estilo.
  Ler Henry James é ler um espírito.

O EGOÍSTA - GEORGE MEREDITH...ESSA COISA TÃO INGLESA...

   Há um capítulo, neste longo romance, em que se homenageia o vinho do Porto. Odes e belas frases são ditas à esse vinho, o favorito pelos homens de gosto. E o único que melhora com o tempo. Por isso, é um vinho "conservador". Lendo esse ótimo capítulo tomos consciência de que o Porto é um símbolo da velha e alegre Inglaterra, símbolo tão forte como o fog. o guarda-chuva, a pontualidade, o chá e o livro de mistério. Outra ideia vem em sequência: o romance, em que pese a birra dos franceses, é também uma coisa bem "velha Inglaterra".
   Aprendi com professores menos francófilos, que o romance foi inventado na Inglaterra do século XVIII e que Robinson Crusoe é o livro que dá forma àquilo que se produz até hoje. O romance é pensado como passatempo para pessoas razoavelmente instruídas ( as bem instruídas leriam poesia ), com tempo livre e algum dinheiro. Isso se mantém ainda, talvez hoje com o adendo de que o romance deve ter "alguma utilidade". Bem....lendo um romance como este, escrito pelo popular George Meredith, autor de fins do século XIX, sentimos como esse ato cotidiano de ler um longo romance se mescla ao estilo de vida britânico caseiro e conservador. Pois é nesse tempo, o vitoriano, que se instaura a noção do "Home sweet Home", o lar como castelo do homem e da mulher, paraíso a ser herdado pelos filhos, fortaleza contra o mundo hostil. É nesse mundo, de charutos, lareira e bibelôs, de biblioteca e sofás de couro, que se faz a cisão entre mundo de fora e mundo de dentro. Sentar-se à janela, confortavelmente, com um cão aos pés, lendo Meredith, ou Hardy, ou Doyle, é fazer parte desse lar vitoriano. Esse mundo, destruído na precariedade do mundo mutável de hoje, ainda respira na lembrança de filmes históricos e em novas ondas tipo Harry Potter e que tais.
  Dito isso, O Egoísta é uma crítica ao tipo de dono de terras de nariz empinado, autoconfiante, duro, compenetrado. Um deles se torna noivo de uma linda moça, Clara, e descrê que ela possa não o amar e o obedecer. Mas Clara percebe sua vaidade, seu egoísmo, sua pose e tenta desfazer esse noivado. Clara, personagem que lembra as heroína de Henry James, é uma proto feminista. Quer ser livre. Livre para viver. O romance, todo ambientado nas terras do egoísta, é a história desse jogo de pensamentos e interesses, medos e vaidades. Meredith, profissional, competente, se dá um trabalho e o cumpre. Mostra à classe média o limite afetivo da classe alta. É uma delicia de leitura.

A TAÇA DE OURO ( THE GOLDEN BOWL )- HENRY JAMES

   Enredo: Maggie se casa com um príncipe italiano falido. O pai de Maggie é um americano milionário que vive em Londres. Colecionador de obras raras. O pai e a filha são extremamente unidos. E a filha, que ao se casar sente ter traído o pai, o convence a se casar novamente. O pai se casa com a melhor amiga da filha. O que ele não sabe é que essa mulher, Charlotte, foi apaixonada pelo príncipe falido. Mas tudo não é um belo arranjo! O pai e a filha podem assim continuar juntos!
  Estilo: Tortuoso. Dificílimo. Este foi um livro escrito na fase final de James. Fase famosa por sua particularidade: Um detalhismo realista-psicológico tão minucioso, tão precioso, que um paradoxo acontece: o hiper-realismo se transforma em abstracionismo! É como ver a pele de um animal em microscópio: o detalhe faz daquilo abstrato.
  Nada, ou muito pouco, acontece. O que temos são pensamentos sobre pensamentos. Todo o processo de análise, sensação e reanálise é dissecado. Longos períodos, sentenças que se dividem em vírgulas e mais virgulas, parágrafos de duas páginas, diálogos suspensos em pensamentos, a vida interior sobre a vida aparente, motivações que são secretas até para quem as vive, sentimentos que nos são irrelevados. Nunca irrelevantes.
  De tudo que já li do autor é de longe o mais árduo. E o menos satisfatório. Os climas construídos de forma tão magistral em tantos outros livros são aqui rarefeitos até a secura. Não há respiro. Nada nos é facilitado. Ao final o que fica é a certeza de que James, senhor do estilo perfeito, tentou e falhou. Quis ir mais além. Ficou aquém. 

HORAS ITALIANAS, HENRY JAMES

A Itália abriu mão da fantasia e do ócio, e não abraçou o modo de vida do norte europeu.
Essa frase é de Henry James, 1880. Atual. Neste livro o autor passeia por Roma, Turim, Veneza como flaneur. E nos dá suas impressões. É um passeio culto, belo, com alguma ironia, e, óbvio dizer, maravilhosamente bem escrito. Apenas Proust escreve como James.
Ficamos sabendo que o carnaval em Roma durava um mês, e que o modernizavam para durar apenas dez dias. Entendemos o porquê da melancolia de Firenze. A feiúra da moderna Itália, a tomada das villas por ingleses e americanos.
A ideia de que cada nação dá algo de seu ao mundo, e que a Itália nos deu o melhor, a beleza. Por mais que o país decaia não pode ser condenado. Deve ser amado.
James ainda explica onde reside a originalidade dos palácios, o motivo de tanta poesia e o caráter de seus habitantes.
Ele não afirma nada, apenas, felizmente, sugere. O autor, calmo, percebe a miséria, a vulgarização, a podridão, mas salva o belo, o que vale a pena, aquilo que fica.
Um prazer.

FREYA DAS SETE ILHAS- JOSEPH CONRAD

   Novela é algo muito curto para ser romance e muito longo para ser um conto. Saiu uma coleção de novelas e eu leio este belo texto da fase final da grande carreira de Conrad. O tema é o mais caro ao grande autor polonês-inglês: o fracasso. Belas pessoas com belos futuros que se transformam em patéticos fracassos. Aqui não é diferente. Freya é a filha loura e linda de um pacato dinamarquês vivendo nos mares índicos. Ela é inteligente, prática, dona de um bom senso a toda prova. Seu pai a adora, todos por lá a mimaram, ela é cortejada por um capitão inglês dono de um belo veleiro tinindo de novo. O que pode dar errado?
 Não existe segurança possível na vida. Essa a fé de Joseph Conrad. Tudo pode afundar, uma borrasca pode acontecer, e, acontece sempre. O azar no mundo de Conrad não é uma possibilidade, é uma certeza. 
 E como escreve bem esse bruxo! Só Henry James podia se medir com ele em sua época. E veja que essa é a melhor época da prosa em inglês, aquela que vai de 1870 a 1930. O texto é simples, direto e ao mesmo tempo cheio de sutilezas, de beleza viril, de antecipações que nos deixam em suspense. 
 Vinte reais apenas. Vale muito mais. Ler Joseph Conrad é sempre uma lição.
 

UM ANARQUISTA E OUTROS CONTOS- JOSEPH CONRAD

   Se há algo que une a obra de Conrad é sua opção por retratar gente em limites. Momentos em que alma e corpo são postos a prova. Este livro, quatro contos deste que é um dos cinco gigantes do século, demonstra bem essa sua característica. 
   No primeiro acompanhamos um grupo terrorista em sua tentativa de encontrar um traidor. Impossível parar de ler, ele é todo feito num crescendo de medo e de suspeitas. Hitchcock leu com certeza, Conrad é muito popular em sua pátria de adoção. No segundo conto, esse uma obra-prima de melancolia, conhecemos um nobre alemão vivendo em Nápoles. Feliz, educado, bonachão, eis que tudo isso é destruído quando ele se vê vitima de um assalto. Seu mundo, ilusório, desaparece e esse velho sensível murcha. Conrad tece em poucas paginas o fim de um universo e a irrupção de um outro. Perfeito em execução, sublime em sentimento.
   O terceiro trata de um mecânico perdido numa ilha da América do Sul onde ele se torna um tipo de pária. Conrad consegue, em 1910, ser ecológico, pró-animais, anti-capitalista e devastadoramente cruel. No último conto se narra a história de um navio imenso que tem o poder de matar em todas as suas viagens. Azar, sina, maldição, tudo se conjuga neste nefasto conto.
  Joseph Conrad é dos raros escritores que consegue ser popular e erudito, fácil de ler e muito complexo, amado por críticos, modelo de escritores e mesmo assim ele nada tem de exotérico ou esnobe. Ex-marinheiro, pessimista, duro, é um autor que cresce com a idade de quem o lê. Adoro.
  Na introdução deste volume, da Hedra, se fala uma anedota que preciso compartilhar: 
  O fim do século XIX e o começo do XX assistiu o apogeu do romance e nesse auge vale destacar Joseph Conrad e Henry James. Conrad como o objetivo, o observador que pouco narra e que tudo diz. E James como o autor que mata a ação e desenvolve a psicologia interna. Então o autor diz como seria uma carta escrita por James reportando uma gripe. Ele descreveria a mesa onde escreve, o quarto, a história de quem o decorou, o que revela a escolha de um vaso com flores, os arabescos do tapete, a voz de quem passa na rua...e só então falaria da gripe. Conrad diria de cara dos sintomas, da dor e então contaria a história de um homem que morreu de gripe. 
  Amo os dois estilos. Eles definiram tudo que se escreveu desde então. Começar a conhecer Conrad por este livro é uma boa ideia. Voce vai se apaixonar.

A PESSOA EM QUESTÃO- VLADIMIR NABOKOV, BORBOLETAS, XADREZ E OLHOS ABERTOS

   Na Europa do começo do século XX era a aristocracia russa a mais refinada e privilegiada das castas. Nabokov nasceu em casa de campo que tinha 50 criados. A casa da cidade tinha apenas 35. Fascínio? Muito. É maravilhoso ler sobre as raízes das duas familias que formaram os Nabokov. A raiz alemã da Mãe e o pai, totalmente russo. Pai que foi politico e lutou a favor da Rússia democrática em 1905, 1915, mas que foi derrotado e varrido da história pela violência bolchevique. Nabokov escreve aqui ( o livro é dos anos 50 ), aquilo que hoje é ponto comum: a revolução russa foi apenas a troca de uma casta por outra. Saíram os ricos e entraram os burocratas rancorosos. Com uma diferença, a Rússia dos privilegiados produziu Tolstoi, Dostoievski e Gogol, a Rússia policial produziu alguns bons artistas, que foram logo caçados. Ele tira de Lenine também sua fama de "Puro", em sua época a violência foi imensa e desnecessária. Mas atenção! Não pense que Nabokov chora o dinheiro perdido. O que ele lamenta é não poder entrar em seu próprio país. Ele sente saudade, muita, de suas árvores, das paisagens, de estar no cenário que assistiu a parte mais bela de sua vida, a infância.
   E é na infância que ele mergulha. Nabokov aos 50 anos penetra e disseca a memória, tenta entender como ela se dá e nos presenteia com um livro belíssimo. Memoralista a altura de Proust, vivenciamos sua vida, os odores e as sensações da criança. Pelas fotos vemos que era uma bela familia e é prazeroso estar ao lado deles. Sua grande paixão são as borboletas, e ele logo caça os bichos e tem seu nome entre os conhecedores. A vida escolar, com tutores excêntricos, viagens ao campo no verão, o frio da São Petersburgo invernal. 
   Depois, a descoberta das meninas, meninas que ele conquista com facilidade. Uma adolescência ativa, no mato, nas ruas, em namoros febris. E a revolução que vem lenta, se anuncia. Fogem para a Criméia, para a Alemanha, Paris e Londres afinal. Seus dias em Cambridge, passados em tédio e decepção. É incrivel, eles necessitam trabalhar e trabalham. De 50 criados passam a ter uma empregada, e nunca se lamentam. Joga xadrez como mestre e escreve. Este livro é sobre memória, tempo que vai dos 2 aos 20 anos. Nada se diz sobre seus romances, apenas as tentativas fracas de se fazer poesia. É livro sobre os irmãos, os pais e as pessoas. Ele olha com olhos abertos, vê e pensa, sabe descrever e sabe analisar.
   Não tem religião, não fala em Deus, mas sabe que tudo foge a nossa compreensão. Descrê da civilização, mas nunca se mostra pessimista. Porque aprecia a beleza, seja a borboleta ou seja a mulher. Depois viria Lolita, viria Ada, viria Knight. Talvez o escritor depois do tempo de Proust e James que escreva melhor, mais refinado, mais profundo e sinceramente belo. Nabokov é grande e este livro atinge sua altura. Para reler. 
   Brilho entre folhas, sol nas asas de borboleta, vitória matemática em xadrez, este livro, este brilhante e inebriante e alubriante livro exerce fascinio de voz musical ( e Nabokov odeia música ). Ah doce vicio que é a leitura...

A MORTE DO LEÃO ( HISTÓRIAS DE ARTISTAS E ESCRITORES ), HENRY JAMES

   Toda grande literatura ambiciona ser música. Ou pintura. Porque pintura é arte. O pintor tem uma presença aristocrática, em arte, seja bem dito, que a literatura não tem. O literato trabalha a palavra, e a palavra é a mais limitada das ferramentas artísticas. Por ser a mais presa a razão, por dever contas a regra da gramática e do costume. A palavra depende de se conhecer a lingua. A palavra tem código e assim dito, ser artista radical em letras é coisa muito mais estranha que em som ou imagem. Estranha por ser inabitual. Por não ser realmente livre, por estar presa a regras fixas, escrever de modo criativo é sempre sentir o limite da palavra e sofrer a dor da inveja em relação ao mais nobre pintor e o mais livre músico.
  Como posso escrever sobre Henry James ? Ele é o mais perfeito artista da prosa dos últimos cento e cinquenta anos. Talvez apenas Proust lhe seja próximo. James consegue unir forma a conteúdo fazendo assim do texto, arte. Não há uma palavra que lá não esteja como peça importante, nó que faz parte de uma tapeçaria. Ele dá forma enquanto compõe, conta enquanto arquiteta. Parágrafo ou capítulo, tudo tem uma função específica, a de transmitir mensagem estética. Ler Henry James é uma viagem estética que nos faz um outro. Ele aumenta nosso patamar. Faz nosso gosto melhor e nosso padrão mais exigente. Ele diferencia o leitor banal do leitor concentrado. A recompensa flui na própria leitura.
  Em tradução sublime de Paulo Henriques Brito, este livro da Companhia das Letras apresenta cinco contos escritos entre 1888 e 1896.
  A Lição do Mestre conta a história de um jovem que em sua admiração por um escritor mais velho é usado por esse escritor. Cheio da mais fina ironia, uma ironia que congela e nunca é grosseira ( como se a verdadeira ironia pudesse ser grossa ), o conto, perfeito em forma e em invenção, nos arrepia. A forma como o jovem é feito de tolo nos revolta. É uma obra-prima.
  A Coisa Autêntica é pura melancolia. Um casal de nobres falidos vai a um pintor pedir emprego. Querem ser modelos. Mas o que acontece é que eles não conseguem posar como nada mais que Eles Mesmos. Um italiano pobre consegue posar como um nobre herói, os nobres verdadeiros não. O conto, tristíssimo, fala sobre a imagem, a falsidade do que vemos e a mudança de parâmetro do mundo. James não lamenta o fim da aristocracia, ele exibe seu ridiculo, mas também teme a ascensão do comum e do banal.
  Greviile Fane é o conto menos ótimo. É sobre uma velha autora de best-sellers que é explorada por filhos snobs. O filho tem vergonha da literatura pobre da mãe, que os fez ricos, pensa ele ser um grande autor, mas na verdade nada escreve e vive de explorar a velha senhora.
  A Morte do Leão é o melhor dos contos. Um autor é descoberto pela fama aos 50 anos. Envolvido por damas ricas, jornalistas e festas sem fim, ele cessa sua carreira e acaba sem chance de se desenvolver como artista. O conto, cheio de humor feroz, é uma obra de arte perfeita. Humilha aquele que tenta escrever bem.
  O Desenho do Tapete conta a saga de um jovem que tenta desvendar o sentido da obra de um grande escritor. Dizem que James sentia a frustração de não ser bem lido. Ele temia nunca ser entendido. O conto, música abstrata, exemplifica isso. O final, ácido, é um tapa em nosso rosto.
  Lidos os cinco contos fica uma vontade de ler mais. Henry James vicia.

CONTOS DE RAYMOND CARVER

   Muitos filmes foram feitos em cima de textos de Carver. E pelo menos um deles é uma obra-prima. Dizem que grandes livros não dão grandes filmes porque para filmar voce tem de cortar tanto que o estilo e a complexidade vão pro lixo. Carver, assim como Elmore Leonard, serve bem ao cinema porque na adaptação nada há pra se cortar. O texto é tão enxuto que na verdade o roteirista precisa acrescentar coisas.
  Eu leio Elmore com prazer. Como leio Chandler e Hammett, que também ficam bem em filmes. Patricia Highsmith too. Mas Carver é um pé no saco! Seus contos são tão esqueléticos que cansam por excesso de facilidade. Os personagens são tipos, nunca gente, e as situações são vistas como se as pessoas fossem medíocres atores cool. Para Carver as pessoas são manequins animados.
  A impressão é a de que seja muito fácil escrever como Carver. Basta descrever, sem detalhes, aquilo que voce vê num bar, na rua ou na escola. Daí voce imagina o que esse cara do bar, da rua ou da escola faz em casa. Nada de especial, tudo bem óbvio. Bota uns diálogos banais e chama isso de minimalismo. Tá pronto pra imprimir. Sam Shepard faz igual. Dentre dezenas de milhares de outros.
  Eu poderia fazer livros como os de Carver. O problema é que eu me entediaria. Seria como ter de viver numa mina de carvão. Trabalho escravo que iria contra tudo que eu acredito. Nada pode ser mais anti-Henry James que Carver. Porque mesmo que ele seja um crítico do vazio, mesmo que ele esteja tirando uma da mediocridade da vida, ele faz isso usando meios vazios e medíocres. Quem quer saber do regime de uma garçonete ou da conversa entre pai e filho que nada têm a dizer?
  Certos livros são de calar!

HORAS ITALIANAS- HENRY JAMES, UM TURISTA ESPECIAL

   Impossível ler esse livro, coletânea de textos sobre viagens a Itália escritos por James entre 1877 e 1890, sem pensar no quanto mudou nossa noção do que seja um turista. James reclama muito das invasões que alemães e belgas promovem em Veneza e Firenze, mas o que esses homens de 1880 procuravam? Quem esteve na Europa neste século sabe que lá existem coisas chamadas Estações de Águas. Pois era isso o que o turista mais banal queria naqueles velhos tempos, um clima melhor para passar o inverno, águas medicinais e também poder conhecer gente diferente, exótica. Os italianos eram, com os espanhóis, os grandes exóticos europeus. As pessoas iam a Roma para usufruir do calor, conhecer esse povo tão romântico e claro, ver o Papa. 
   Henry James é um turista culto. Ele se encanta com a elegância dos venezianos, se empolga com a decadência glamurosa do país e comenta a pobreza da Itália. Mas o que ele quer é a arte, e em arte a Itália é berço e mãe. Giotto, Ticiano, Bellini, Tintoretto, Henry James escreve belas páginas sobre a arte nobre, etérea, incomparável dos mestres latinos. Nisso somos hoje como ele foi. Pessoas mais cultas ainda vão a Itália para ver Giotto ou Rafael, pessoas comuns vão para fazer compras e comer. 
   Não há em 1880 essa moda de comprar aquilo que só o país tem. Vinhos ou massas da Itália são apreciados, mas ninguém viaja por isso. E o hábito do restaurante ainda era só para gourmets. Se comia fora, mas não era algo de muita importância. Flanar a pé, vendo as casas e as pessoas, sendo visto e cumprimentado, essa era a experiência central. Isso se perdeu, poucos se dão a chance de andar a esmo por Roma ou Milão, cidades que existem para serem andadas. Mas as obras, as mesmas que James viu e amou ainda estão lá, e alguns ainda percorrem milhas e milhas para as ver.
  Apaixonado por Veneza, a lúgubre e decaída cidade, James escreve, em seu estilo de longos parágrafos elípticos e musicais, três capítulos sobre Veneza, centro e sabor do livro. Eles nos levam para dentro da mente do autor, a seus sentidos e gostos. 
  Mestre central das letras, é um prazer raro poder ler um gigante escrevendo sobre assunto inesgotável. A Itália é para sempre, Henry James a acompanha.

LER É PRAZER, SEMPRE

   Tem muita gente que se esquece que ler é um prazer. Claro que existe a leitura de estudo, de trabalho, essas muitas vezes não são um prazer, mas ler tem de ser um prazer, sempre. Não pense que amo um autor dito dificil como Proust por esnobismo. Nunca li Proust ou Henry James por dever de currículo. É puro prazer. Lê-los é ouvir música. Tem ritmo, harmonia, dom de fazer sonhar e muito prazer. São belos. Uma beleza que não exclui a dor, a melancolia, mas é arte que dá sentido e beleza à dor e a melancolia. É por isso que não consigo ler autores que sei serem grandes, como Dostoievski ou Kafka, eles não me dão prazer. Os admiro, muito, reconheço sua genialidade, mas me guio pelo prazer. O meu prazer. E se Stendhal e Tolstoi me dão prazer, porque não preferir ler seus livros que ainda não li?
   No cinema me guio pelo prazer a anos. Se um filme, mesmo dito "bom", não me der algum tipo de prazer adeus! Não tenho tempo a perder com "obrigações morais". Foi-se o tempo em que via Resnais ou Rosselini por dever erudito. Blá! Não troco todo o Rivette por um Hawks. E creia, se elogio Bergman ou Ozu é porque sinto muito prazer em ver quase tudo o que eles fizeram ( mas não tudo ). Prazer não forçado, prazer sensorial, poético, prazer estético.
   Escrevo tudo isso para dizer que o verão voltou, e que no calor e nesse sol lindo, essa minha tendência se reafirma ainda mais. Livros e filmes que são festa, luz, alegria, calor. Prazer em ver, ouvir, ler e falar. Dolce far niente, joie de vivre. Nestes meses voces lerão sobre livros prazerosos, filmes que dão vontade de amar, cores, brilhos que nunca excluem a vida real, antes a amplificam.
   Porque o prazer aumenta a vida, a exagera, torna tudo extravagante. E o anti-prazer encolhe, diminui, apequena, deixa tudo mesquinho. A luta entre a força e o fraco.
    "Um Amigo Romano", escrito por um cara chamado Luca Spaguetti é o antipasti deste verão. O livro não é grande coisa. Mas tenho um fraco por tudo que fala de Itália. Ler esse livro é como conhecer um romano meio bobo. Fã da Lazio, de James Taylor e dos EUA. E de comida, claro. O cara tem prazer em quase tudo! Ah sim, ele é personagem de Comer,Rezar e Amar, aquele livro que virou filme. Como ninguém acreditava que ele fosse real, escreveu seu próprio livro. Romano até a medula, é legal saber que moleques romanos jogam peladas em São Pedro ou junto a Michelangelo. E o amor abismal que eles têm, ainda, pela América.
    Livrinho pra abrir o verão, lido entre malas, mudanças e correria. Vale.

ROMANCES DE AMOR

   Como fiz vários posts sobre o Amor em música, falo agora de livros, poucos, que trazem memórias de amor.
   O primeiro de minha vida foi Tom Sawyer. Sim, isso mesmo, o amor de Tom e Becky, o primeiro beijo. Incrível mas eu lembro do exato momento em que li sobre esse beijo: aos 9 anos, debaixo de bananeiras no quintal de casa. Muito calor. Antevi aí meu futuro primeiro beijo. Só não pensei que fosse demorar tanto.
   Depois o namoro de Peter Parker e de Gwen Stacy e então os grandes romances.
   David Copperfield com Dora, quando ela morre, a primeira página que me fez chorar ( no quarto, lendo de madrugada ). Em seguida o mais perfeito dos romances sobre o amor, O Morro dos Ventos Uivantes, Heathcliff e Catherine, o amor como maldição, como sina, o amor que é dor para sempre. O máximo do romantismo fatalista, um cataclisma na minha mente e alma. O cenário perfeito ( vento frio em campos pantanosos ) a mulher perfeita e o homem "mal" que esconde sua ferida.
   Tudo que veio depois foi menos forte. Jake e Lady Brett no Heminguay de O Sol Também se Levanta, o amor impotente, amor irrealizável em meio a fiesta da Espanha. Os amores nas obras-primas de Stendhal, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, amores irônicos, amores que são como atuações que convencem o próprio ator. E escritos com a maestria do maior estilista.
   O amor simples de Kitty e Lievin em Anna Karenina, pois o amor de Anna e Vronsky nunca foi para mim o centro da obra, mas sim o amor de Lievin, que descobre a perfeição na simplicidade de sua mulher. A felicidade nasce após a morte em vida do aturdido Lievin.
   Ofélia e Hamlet...Esse amor continua um enigma, pois é impossível saber quem foi Hamlet e porque Ofélia o amava. O desagradável Hamlet.
   Os amores dos livros de Jane Austen, tímidos, convencionais, trêmulos e hesitantes. A doce alegria de seus finais práticos, finais que na verdade são elogios ao pragmatismo. Ler Austen é amar suas heroínas e admirar os falsos tolos que são na verdade seus heróis.
   Gatsby e sua tragédia. O desajustado que não percebe seu desajuste. O amor como miragem de beleza. Impossível.
   Não posso negar a importãncia de A Insustentável Leveza do Ser. Hoje percebo suas falhas, mas na época, anos 80, Tereza foi musa para mim. Aliás, era esse seu nome? Well...Kundera foi por algum tempo um herói.
   Estranho....poucos livros me marcaram como 'livros de amor". Falar de Henry James como autor amoroso é absurdo. A questão amorosa é centro de suas obras-primas, mas aquilo é mesmo amor? São personagens tão auto-centrados que fica dificil levar aquele sentimento a sério. Amor? Será? Solidão seria mais correto dizer.
   Na verdade meus livros de 'amor" são os poetas. E deles ( Keats, Shelley. Blake, Lorca, Yeats, Rilke ) não vou falar. Estou discorrendo sobre a prosa.
   Então nada de Dante e Beatriz.
   Volto a Tom Sawyer. O beijo e amor por Becky é parte de um todo. Tom faz estrepulias, foge de casa, recupera dinheiro roubado, briga, se perde em mina abandonada. E ama à Becky cada vez mais. Esse é o roteiro ideal de uma boa história de amor. O arcabouço foi criado a mais de 3000 anos, na Grécia. E não se fez até aqui uma base melhor. O herói que ama e parte, prova sua grandesa e retorna ao amor.
   É isso.

PRESTON STURGES/ VICTOR FLEMING/ JOHN TRAVOLTA/ JERRY LEWIS/ GENE TIERNEY/ HENRY JAMES

   MARUJO INTRÉPIDO de Victor Fleming com Freddie Bartholomew, Spencer Tracy, Lionel Barrymore, Melvyn Douglas e Mickey Rooney
Se voce não conhece o cinema americano dos anos 30 e deseja saber porque ele é tão valorizado, comece por este filme. Baseado em obra de Kipling, conta a saga de um menino mimado, egoísta, milionário, que ao ser resgatado no mar por pescador de bacalhau, aprende a viver e a ser parte de uma equipe. O filme tem cenas documentais da pesca em mares frios que são fantásticas. A procução tem o luxo da Metro e a direção é de Fleming, o diretor que fez E O Vento Levou e OMágico de Oz, só isso. O elenco chega a ser covardia. Tracy, como o pescador Manuel, levou  o Oscar, mas todos os atores são o máximo dos máximos. O segredo desse tipo de cinema é aqui explicitado: cinema sem vergonha de ser Pop, mas esse Pop é feito com gosto, baseado em roteiro e estrelas. O modo econômico e direto com que se narra o roteiro é uma aula de direção e de produção. È um filme perfeito. Nota DEZ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
   PELOS OLHOS DE MAISIE de McGehe e Slegel com Julianne Moore, Steve Coogan, Alexander Skarsgard e Onata Aprile
Livremente baseado em Henry James ( é seu livro mais seco e cruel ), o filme fala de uma menina jogada ao sabor das emoções de sua familia. A mãe é uma rockeira cheia de dinheiro que vive em meio a histeria e carência. O pai é um hedonista egoísta. O filme se põe no ponto de vista da menina. Vemos sua solidão e meio a casa imensa mas desleixada, os pais ocupados em serem felizes e o desarranjo geral. É um bom filme? Não. Tudo isso é temperado com musicas fofinhas, cenas infantilóides e uma sensibilidade gracinha que é irritante. Retrato de nosso tempo, é sintoma daquilo que denuncia, um mundo onde todos estão largados e perdidos em meio a prazeres sem valor. Nota 2.
   NATAL EM JULHO de Preston Sturges com Dick Powell e Ellen Drew
Segundo filme de Sturges, dura apenas 62 minutos. Mas que bons minutos! Um cara concorre num concurso de slogans. Colegas lhe pregam uma peça, mandam aviso dizendo que ele venceu. O trouxa passa a gastar o dinheiro que não tem. O roteiro de Sturges não poupa ninguém, todos são idiotas, e humanos. Na época, 1940, não se deixava um roteirista dirigir, Preston Sturges quebrou essa regra, abriu o caminho para Wilder e Huston. Finalmente recebendo hoje o valor que lhe é devido, ele foi um mestre da comédia. O filme tem um final tão bem preparado que é impossível não rir. Nota DEZ.
   BORN FREE de James Hill com Virginia McKenna e Bill Travers
A trilha do gênio John Barry levou Oscar. Não há quem não a conheça. O filme mostra um casal na África criando um filhote de leão, uma leoa. Nada de gracinhas, em 1966 animais ainda eram filmados como bichos e não como bebês. O filme, cheio de falhas, tem ainda encanto. Nota 6.
   TEMPORADA DE CAÇA de Mark Steven Johnson com Robert de Niro e John Travolta
Os primeiros vinte minutos prometem um bom filme. De Niro vive isolado no campo, vemos seu cotidiano. Um tipo de Jheremiah Johnson. Mas como o filme é de 2013, logo surge o super-mal, na figura de Travolta, um sérvio que deseja se vingar do ex-soldado De Niro. Travolta vai ao campo e começa a ação. O filme passa a exibir cena sobre cena de torturas, sangue, sadismo e exageros. Porque? Porque esta é a cultura do sensacional, e também porque estamos sendo educados a tolerar a violência. De Niro está ok, Travolta está ridiculo. Usa um sotaque hilário, maquiagem pesada, tudo errado. Adoro Travolta quando ele é apenas Travolta, um tipo, como Willis ou Gibson. Quando tenta atuar vem o desastre. O filme é pior que lixo, é mal intencionado. Nota ZERO.
   ALLOSANFAN de Paolo e Vittório Taviani com Marcello Mastroianni e Lea Massari
Um homem no tempo imediatamente pós revolução francesa. Ele é um tipo de ex-terrorista. Tenta voltar a ser um homem tranquilo de familia, mas o passado o persegue e lhe cobra ação. Começa muito bem e Marcello é sempre ótimo, mas os Taviani se perdem do meio para o final. Bela fotografia. Nota 5.
   VELOZES E FURIOSOS 6 de Justin Lin com Vin Diesel, Michelle Rodriguez e Paul Walker
Gostei do primeiro e do terceiro. O quinto foi um lixo, este é ainda pior. Tentam fazer drama, tentam dar alguma profundidade ao que era apenas diversão sem peso. Erram. O roteiro é cheio de furos, voce tem de aceitar decisões sempre erradas. Posso dizer que é uma porcaria de filme. Diesel começa a envelhecer e ao contrário de Willis, envelhece mal. Nota ZERO.
   A FARRA DOS MALANDROS de Norman Taurog com Jerry Lewis, Dean Martin e Janet Leigh
Ruy Castro diz que em 1956, para sua geração, a separação da dupla Martin e Lewis foi tão doída quanto seria a separação Lennon e MacCartney em 1969. Eles foram os ídolos top dos teens de então. Essa popularidade é atestada, hoje se fazem filmes na TV sobre a dupla. E quando fui um teen, nos anos 70, Jerry Lewis ainda era uma hiper-estrela, um Will Smith exagerado. Seu estilo é puro Jim Carrey, mas um Carrey ainda mais infantil. Martin era o rei do cool, sempre calmo e paquerador. Envelheceu melhor. Este filme não é bom. Jerry finge estar contaminado por radiação e é mimado pela imprensa. Nota 3.
   THE GEISHA BOY de Frank Tashlin com Jerry Lewis
Porque Jerry não ousou crescer? Ele era tão bom, inventivo, mas sempre insistiu em não sair dos 12 anos. E essa mania de agradar, de imitar o pior de Chaplin, a melança... Este tem seus momentos, mas quando ele começa a tentar nos comover...socorro! Nota 4.
   ELA QUERIA RIQUEZAS de Rouben Mamoulian com Gene Tierney e Henry Fonda
Às vezes me perguntam: Qual a atriz mais bonita do cinema? Respondo, Grace Kelly. Mas falo isso porque esqueço de Gene Tierney. Ela foi a mais linda e aqui está divina, mais simples e menos fria. Não é um grande filme apesar dos nomes envolvidos. Na verdade ninguém queria fazer esta obra farsesca. Gene dá golpes em namorados ricos, Fonda não é rico, o resto é facil de prever. Mamoulian fez filmes deliciosos, não é este o caso. Fonda está distante, este filme fez com que ele começasse a desistir do cinema. Sobra Gene, que parece se divertir. Nota 4.
   O CAPANGA DE HITLER de Douglas Sirk
Muito pobre, é um dos primeiros filmes americanos de Sirk. Sem Nota.

OS ESPÓLIOS DE POYNTON- HENRY JAMES, UMA QUESTÃO DE PONTO DE VISTA

   Este é um dos livros que marca o começo da fase final de James. Sua escrita se torna muito mais elaborada, parágrafos longuíssimos, pensamentos dentro de pensamentos. Lançado em 1896, ele trata de uma mãe que ao se tornar viúva deve deixar ao filho toda a coleção de objetos que adorna sua mansão. Ela não quer legar seus objetos a um filho que é "tolo e fraco". Pior, ele irá se casar com uma jovem "ambiciosa e de péssimo gosto". Mas, entra em cena Fleda Vetch, uma amiga da mãe, moça de origem pobre, dona de bons modos e ótimo gosto, e que ama e se torna amada pelo filho "bobo". O livro trata apenas disso, da luta da mãe pelos seus bens e do amor de Fleda pelo tal filho tolo. Porém....
   A primeira coisa que ressalta é a frieza das relações familiares na Inglaterra de então. Henry James era americano, escolhera a Inglaterra para viver, mas não se fizera cego para os defeitos da vida inglesa. A lei, absurda, que dava ao filho mais velho "todos" os bens do pai lhe era odiosa. Como bom inglês de classe alta, o filho segue a lei: toma a casa e suas coisas. A mãe, que decorara a casa "com os melhores objetos artísitcos do mundo" por toda a vida, se sente roubada. A frieza entre os dois é absoluta.
  O livro é centrado no ponto de vista de Fleda. Henry James é um mestre nisso. O que vemos e sabemos é apenas aquilo que Fleda vê e escuta. Desse modo, nunca sabemos se aquilo que nos é mostrado é aquilo que de fato se pode chamar de "realidade". O grande tema de James sempre foi e é esse: a realidade vista por um único ponto de vista. Podemos confiar nessa visão? O que nos é contado é tudo o que de fato aconteceu? As emoções do personagem não poderiam distorcer aquilo que é dito? E de modo mais abrangente, a vida que nós leitores, vivemos, é real ou não seria nossa visão embaçada e pequena para um todo que jamais será percebido?
  Fleda ama ao jovem e este a ama. Ele largaria sua enfadonha noiva por ela. E a mãe dele ficaria salva se ambos se casassem, pois Fleda ama os objetos da mãe tanto quanto ela própria que os adquiriu em anos de busca. Nas mãos de Fleda todos eles seriam salvos portanto. Mas esse amor não se realiza. Há um enredamento nos pensamentos de Fleda, uma falta de decisão, medo misturado a "honra", que faz dela uma das mulheres mais irritantes já descritas por qualquer autor. Fleda erra sempre. Mente, quando deveria ousar a verdade, foge quando tinha de insistir e desiste na hora da vitória. Pior, a visão que ela tem de si-mesma é completamente tola, ela se vê como superior a tudo que a cerca, não percebe nunca seu acúmulo de erros absurdos. O amor e a felicidade, alcansáveis sem nenhum obstáculo, lhe são negados por seu próprio modo de agir e de pensar.  Fleda não se envolve, pensa ser livre e honrada, nada vê.
   A tradutora ao escrever a introdução não se contém, para ela Fleda é odiável por sua falta de visão. Já Henry James dizia ser Fleda exemplo de mulher íntegra e livre. Onde? Concordo com Onédia Célia Pereira de Queiróz, Fleda é deplorável !
   Nenhum livro de James tem parágrafos tão árduos. É dificil acompanhar os pensamentos de uma pessoa tão confusa e opaca. Fleda jamais é gostável, não admiramos nada nela. Não é inteligente, não é original, nada tem de cômico. Mas ao fim do livro, quando talvez ela tenha finalmente suspeitado da tolice que cometera ( Fleda prejudica a mãe, o filho e a si-mesma ), sentimos que ali há algo de profundamente patético, trágico de um modo corriqueiro. Então continuamos com aversão por Fleda, mas passamos, de novo, a amar a escrita desse gigante do subjetivo, Henry James.
  

TODA ARTE É SUJA E DOENTE

   Inspirado pelo belo artiguete de Vladimir Safatle.
   O artista, assim como o filósofo, viu demais. Algo que aos outros é vedado ver. Para eles a vida é grande demais, terrível demais, sedutora demais. Ao perceber a vida em toda sua plenitude, o artista se defronta com seu maior mistério: a morte. Essa vida grande demais é o que lhe dá o aspecto de doença e de neurose. Doença e neurose que É A MARCA DE TODO ARTISTA E DE TODO FILÓSOFO.
   A frase acima é de Deleuze e Guattari.
   A doença é parte da arte. Não é um ônus ou uma sublimação, simplesmente ela faz parte da visão. Mas se vivemos numa época em que a doença e a neurose são indesejadas, mais que isso, odiadas, consequentemente a arte e a filosofia serão vistas como incômodos. Se tornarão fracas.
   O artigo me impressiona por tocar ( e confirmar ) duas sensações que sempre me acompanham.
   Primeiro. Quando vejo um filme de Clair ou de Mizoguchi ( entre muitos outros ), o que mais me impressiona é a sujeira. Nada neles é limpo, polido, hospitalar. Essa poderia ser uma visão romântica minha, mas na vida que levo percebo que a inquietação e criatividade estão sempre ligadas a desarrumação, a uma certa sujeira. Amigos muito organizados, limpos, com unhas bem feitas e roupas recém passadas costumam ser cegos a complexidade inexplicável da vida. Têm explicações para tudo, compartimentam suas emoções, vêem as coisas em alcance curto. E morrem de medo de coisas como loucura, drogas, desorganização, sexo promíscuo e morte. Veja, não defendo o sexo sujo ou a droga. É que para esses hiper-controlados, quase todo sexo é sujo. Por outro lado, amigos que vivem em apartamentos imundos, roupas amarrotadas e descontrole de vida, costumam ter muito mais criatividade e coragem perante a grande vida.
   É claro que existe a pose. Fácil observar o desarrumado criativo de butique. O que falo é do cara que realmente cria algo. O amigo que está sempre às voltas com grandes ideias. O sujo Dolce e Gabanna não me interessa.
   Voce também pode falar de artistas meticulosos. Gente como Henry James, bem arrumados e de vida sexual hiper-controlada. Mas interiormente James era um kaos. Hoje seria um tomador de pilulas e um eterno analisando. Sua rotina era febril, seus pensamentos incontrolados, suas obssessões absorventes. Um doente.
   Vladimir fala que hoje a doença e a neurose são considerados "momentos vazios", que devem ser aniquilados o mais depressa possível. Como aliás ocorre com a morte, que deve ser esquecida sempre. O que perdemos é o falar com a doença.
   A doença, fisica ou não, é sempre uma crise. E a crise é o sinal de que voce se tornou PEQUENO DEMAIS PARA UMA VIDA QUE EXIGE DE VOCE A GRANDEZA. Todo doente sabe, que após a doença prolongada vem uma nova vida. Um renascimento. Voce se sente grande e pronto para algo mais exigente. A moderna fixação na saúde faz de nós um SEMPRE O MESMO. É como se ser uma crisálida fosse uma doença e nos esforçássemos para jamais tornar-se borboleta.
   Mas a vida é crise constante. É impossível não se estar doente de alguma coisa todo o tempo. Dispendemos toda a nossa energia nessa luta em vão. Nosso asco a doença, nosso horror a morte faz de nós seres que não conseguem mais dialogar com a doença e com a neurose. Fugimos das duas crises. Corremos para a não-criação.
   A vida sempre encontra respostas para as questões que ela mesma coloca. Basta saber ouvir essa resposta. A doença é a vida. Estar vivo é viver em crise e em risco. E a vida produz doença e sujeira. Negar tudo isso é negar a vida. É querer ser máquina, querer ser equação, querer ser morto.
   Triste sina: mortos não sentem dor e não ficam mais doentes.
   Jacques Lacan: Neuroses são questões. A doença é um tensionamento da vida. Deve-se buscar o que ela tem a dizer.
   Daí vem a postura do artista. Ele sabe que a questão colocada pela neurose é uma grande questão. E se esforça em encontrar sua resposta. Ele sabe que a tensão da doença é uma prova grande. E se esforça em vencê-la. Mas o que se faz hoje é exatamente o contrário. Um esforço para se esquecer da morte, se apagar a neurose e se livrar inconscientemente da doença. Ignoram-se as questões.
   Conheço os dois lados e posso dar meu testemunho. Sei o que é ter uma neurose de morte aos 16 anos e passar meses tentando entender a morte, e melhor que isso, criando histórias, teses, desenhos, ações que me fizessem entender o que se passava comigo. Eu pintava quadros, escrevia contos, sonhava sonhos absurdos, dançava a tensão. Vivia sem parar, vivia grande e com uma dor imensa. Rememorava tudo, nunca parava de fazer coisas. E buscava a vida. Tinha de achar uma resposta.
   Mas conheço também o alivio do comprimido, da solução sem dor, do imediato. Livrar-se da neurose, do sintoma com um gole de água. Deixar a vida GRANDE morrer. Eu sei o quanto a vida pode ser pequena, o quanto ela pode se tornar modesta.
   Conheço gente como eu, que fez o mesmo caminho. Todos morrem de saudade da vida GRANDE, sentem que a vida após "a cura" ficou pequena, futil, sem cor. Nos tornamos "como todo mundo", perdemos aquilo que fazia de nós únicos. Mais um anabolizado espiritual ou siliconado da vida.
   Não irei jamais voltar a ser o que fui quando "doente". O mágico da VIDA GRANDE é que voce não a escolhe, voce vive nela como sina. Ninguém opta por ser doente, neurótico ou sujo. A vida vive em voce e voce procura solucionar o enigma. Mas ninguém escolheria voltar a dor. Sabemos que viviamos de forma mais rica, que aprendíamos mais e que nos sentíamos especiais, mas não podemos programar esse retorno. Programar já seria uma traição.
   Me incomoda a quantidade de filmes com gente doente. Com hospitais. A quantidade de apartamentos limpinhos, de atores saudáveis, sem gordura nenhuma, sem uma ruga, um sinal, uma cicatriz. São filmes com gente doente "limpa". Eles não são filmes doentes, são filmes que nos ensinam a superar a morte. A vê-la como ficção. Banalizar.
   Meu quarto hoje tem cada coisa em seu lugar. E tem uma TV, som e PC.
   Sinto uma saudade imensa de quando pilhas de cadernos ficavam no chão, livros se espalhavam pelas poltronas, pincéis e latas de tinta num canto e meus dois cães dormindo em minha cama. Absolutamente solto. Naquele quarto se respirava vida. E um monte de pó e de ácaros.
    No recente filme de Woody Allen o personagem de Owen Wilson desiste de seu sonho quando recorda que em 1920 se morria de tuberculose. É exatamente o medo da morte que mata seu delirio feliz..... Pensem nisso.
    Nossa época tenta algo de grotesco: produzir arte sem sujeira, arte util, artistas saudáveis. Nosso tempo odeia a arte tanto como odeia a religião ( igreja é outra coisa ). Arte  e religião só podem ser aceitas se forem uteis e lógicas. O Util e o lógico matam as duas.
    Faça um teste. Se imagine num tempo de grande arte e  filosofia. Talvez o tempo de Kant, Beethoven, Goethe e Keats. Observe como todo esse sonho será desfeito quando voce pensar: Eles fediam, tinham pulgas e se morria de gripe. Eis o pequeno mundo maculando a Grande Vida. O medo aniquilando a coragem. O util encurtando a visão do transcendental.
    Não existe arte sem doença?
    Mais que isso, não há vida sem dor.

DENTRO E FORA, AS DIFICULDADES DE SE VIVER NA TAL DA REALIDADE. A BELA ESQUINA-HENRY JAMES, O MELHOR CONTO DO SÉCULO?

   Um homem volta a New York após vários anos em Londres. Dono de imóveis, ele reforma alguns e passa a visitar toda a noite a casa onde nasceu. Isso passa a ser uma febre, e ele "sente" a presença de "alguma coisa" na casa. Um fantasma?
   Esse é o tema aparente desse magistral conto do grande Henry James. Tenho a sorte de ter um professor que não só é tradutor de James, como usa-o de exemplo de escritor moderno. O mundo de James é nosso mundo, e neste conto ele exibe a alma de alguém que "sente e pressente" o que seja nossa realidade. Ou o que nos resta dela. O conto tem várias leituras, todas explícitas, claras, nítidas.
  Ao voltar para os EUA, a primeira surpresa do personagem central é o tamanho da destruição. Nada lhe é familiar, tudo aquilo que marcava sua vida fora aniquilado. Edifícios cobrem suas lembranças e as ruas asfaltadas apagam suas pegadas. A identificação com a cidade não é mais possível. Ele pode admirar e temer a força das construções, mas se vê excluído de seu meio. A cidade não precisa mais das pessoas. É nesse momento que ele se coloca em questão: o que é real? A vida lá fora ou a casa onde ele nasceu? Um mundo que ao mudar sem parar nega a presença, ou sua vida interior, a sua alma, memórias que não podem mudar, que esperam para ser resgatadas? Ele sente que a vida real respira dentro da casa, nas paredes, nos corredores, nos reflexos dos dourados. Fora da casa ele apenas se move, trabalha, faz coisas, a vida de verdade começa dentro da casa.
   Vem um segundo tema nesse conto que não se esgota: a possibilidade do tempo. O que poderia ter sido e não é. Como sua vida seria se ele jamais tivesse saído da casa, o que lhe pareceria a vida, para onde ela teria ido. Vem daí outra questão: o que é sua vida? Ou, o que ela não é? Como saber o que ele realmente é ou o que ele parece ser. Questão: o que ele não sabe? O conto antecipa uma análise terapêutica bem feita, ele percorre as paredes de seu ser, ele questiona vivenciando, ele retorna e procura seu fantasma- aquele "ele" que lá ficou.
   O mais fascinante tema do conto surge em seu meio. A beleza das palavras. Existe uma vida lá fora, mas ela não tem beleza e presença porque ela NÃO É NARRADA. O prazer, e consequentemente a verdade, só pode surgir no discurso, na descrição. Descrever cada detalhe da casa, rememorar e contar toda lembrança, esse falar é já um prazer em si, mas o prazer de contar faz nascer a presença real do que é contado. Eis o sentido das palavras, elas dão verdade dando prazer. SÓ SE AMA AQUILO QUE SE CONTA. É narrando a casa que se ama a casa. A vida lá fora, em eterna pressa, passa tão veloz que não permite uma narração, portanto, não se permite ser amada. A PRESSA MATA O AMOR. Amar é ato de memória.
  O personagem irá encontrar esse eu-que-ficou? Não responderei. A BELA ESQUINA é um conto que deve ser lido e relido. O que sei é que minha experiência de vida é magicamente idêntica ao do personagem. Não me canso de relembrar e de buscar as ruínas da casa onde nasci. Ela foi reformada e está irreconhecível, mas sempre dou um jeito de andar por sua rua, respirar seu ar, tentar captar algum ângulo onde ela é o que fora um dia. E eu realmente me procuro nessa procura. O que tento achar, encontrar, é uma certa pureza de olhar, um modo de provar a vida pela primeira vez, as cores limpas, a verdade do inicio. Olhando aquelas paredes o que procuro é uma visão, o fim dos véus, poder ver e sentir SEM PENSAR. Talvez minha morte viva a minha espera nessa casa ( o conto deixa isso claro ), mas esse morrer é um renascer, o único verdadeiro.
   Conto que vale por uma cura, narrativa que dá sentido a própria narração, A BELA ESQUINA é um milagre para aqueles que não crêem em milagres. Henry James é meu guru.

TRÊS CONTOS- HENRY JAMES

OS QUATRO ENCONTROS. James, dentre outras coisas, é o grande autor da impotência, dos planos que dão em nada. Neste conto, o narrador encontra moça que sonha em conhecer a Europa. Isso é uma obsessão para ela. No segundo encontro ela está na Europa e os outros dois encontros prefiro não os contar. James, mestre supremo, leva a história com sua costumeira sutileza, logo visualizamos o narrador, a moça, o ambiente e os outros três personagens decisivos. Uma frase de James exibe sua argúcia: " As pessoas viajam, a maioria, não para encontrar algo de novo, mas apenas para confirmar o que já sabiam."
O DISCÍPULO mostra o lado quase gótico do genial autor anglo-americano. Um professor se envolve afetivamente com jovem aluno e acaba por ser explorado pela decadente família "nobre" do tal aluno. Aqui surge outro aspecto de James, o enredamento da vida, o modo como nos vemos em situações insolúveis sem saber como entramos nessa cilada. Sentimos grande desconforto ao ler esse conto, nos revolta a mansa passividade do professor. Mas é o menos memorável conto do livro. O mais perfeito é O MENTIROSO, uma curta obra-prima de elegante prosa. Fala de um famoso pintor, que em jantar reencontra uma ex paixão. Ela está casada com simpático coronel, homem famoso por seu vicio: a mentira. O narrador passa o conto tentando descobrir se a esposa do mentiroso partilha seu vicio. Aqui é demonstrado outro talento de Henry James, o estilismo, a escrita refinada, bem pensada, cuidadosa. Essa habilidade do autor se transfere ao leitor em prazer de ler. Ninguém me dá maior prazer em leitura.
Bela introdução para novos possíveis leitores desse mestre das letras. Usufrua.

A FERA NA SELVA - HENRY JAMES ( VIVER NÃO DÓI )

Devastador. Esta novela ( 70 páginas ) do maior escritor americano da história, é devastadora. Qual é o segredo da escrita de James ? Não há como saber, ele dá voltas, vai de ponta a ponta, disseca aquilo que a personagem sente, descreve o que ela pensa, divaga um pouco, dá mais voltas, aprofunda-se, faz-se símbolo e de súbito, clareia tudo. É um modo de escrever, um estilo, insuperável. Apenas Proust ou Stendhal escrevem tão bem. No meio da leitura pensei em quartetos de cordas.
Este livro traz a história de um casal. Um casal que travou contato em Nápoles, dez anos antes. Se reencontram em Londres e reatam sua amizade. Ele tem a crença de que um tipo de "fera" irá saltar sobre seu corpo. Algo de muito cruel e urgente irá lhe acontecer. Por causa disso, ele passa a vida com apreensão e mantém aparência controlada, distante. Ela se torna sua confidente, faz-se uma cumplicidade.
Os anos passam, a situação se mantém ( e nós intuimos que ela o ama com paixão ) e quando ela morre algo de muito terrível acontece. A maldição se cumpre.
Em autor sem gênio seria apenas a história de um homem egoísta e sua relação com amiga que o ama. Em Henry James isso se torna cósmico. Ele jamais nos conta o que está se passando, apenas vai nos dando pistas, nos ensinando a ver, deixando-nos em dúvida e rumando, sem hesitação, para o único e horrendo fim possível.
Não vou, mais uma vez, falar da beleza superlativa da escrita de James. O que vou é citar uma frase deste livro admirável :
" Não seria o fracasso ir a falência, ser humilhado, exposto ao ridiculo, acabar na forca; o fracasso era não ser coisa alguma."
Em meras 70 páginas, esse gênio da escrita, nos exibe sem dó ou afetação, a dilacerada vida de alguém que nada foi pois nada precisou ser. O egoismo inocente dando impotência e morte a um homem tolo, distraído, ausente.
No fim dessas poucas páginas, que possuem peso de saga, está explícita a dor de não se saber como viver. E genialmente, Henry James nos convence que tudo pode ser suportado em vida; a injustiça, a fome ou a violência. Mas que a dor da covardia, de ter se vivido na virtualidade do que iria ser e nunca foi, do que aconteceria e jamais aconteceu, essa dor é a dor das dores, a dor de não se ter um rosto, de, como o personagem percebe tarde demais, nunca se ter chorado uma dor real, nunca se ter deixado estravazar uma emoção inteira.
O livro, lido em duas horas com fome e paixão, é uma obra-prima.
PS : Que bela edição da Cosac Naify ! A capa em cor de mármore ( o mármore fecha o relato ), o texto começando em páginas finas e brancas e terminando em papel negro e grosso. A cada página que viramos o papel vai se tornando cada vez mais escuro, indo do branco ao prata, ao cinza e ao chumbo, e a textura, o peso, cada vez maior. Exemplo perfeito de projeto gráfico que não é apenas bonito, ele se integra ao que se lê. Nota dez. Digno de Henry James.

OS PAPÉIS DE ASPERN- HENRY JAMES- O DESEJO E A DERROTA

Henry James é genial pelo modo "como"escreve, e não "sobre" o que escreve. Por isso ele conquista àqueles que já descobriram os prazeres do estilo e sabem que enredo é coisa banal. Engenho é o que faz de um autor algo precioso.
Nesta novela (130 páginas), James conta a história de uma crítico literário americano. Apaixonado por romântico poeta falecido, ele descobre que uma de suas amantes ainda vive, em Veneza, e melhor, ela possui cartas do tal poeta ( o poeta é uma mistura de Byron e Shelley ). O livro narra a estratégia desse crítico para se apossar das cartas. Pois a velha senhora, já enferma, pensa em as queimar, e a filha dessa antiga amante, submissa a mãe, nada pode fazer.
O livro se passa em tempo em que ainda se valorizava o privado. É fato que preciosas cartas de poetas, dramaturgos ou políticos dos séculos xvii e xviii jamais vieram a ser publicadas. Os donos de tais cartas morriam com elas, sem aceitar dinheiro ou suborno para as ceder. James, escrevendo em fins do século xix, já vive a era de diários e cartas expostas.
Mas James vai mais longe. A novela acaba se tornando testemunho sobre um vilão ( o crítico é um vilão ) que nada tem de conscientemente ruim. Ele deseja algo a que dá muito valor ( as cartas ) por boa razão ( ele ama a poesia e o autor ). Mas tudo o que ele faz, sem o saber e sem planejar, é destrutivo. Ele desperta amor na solteirona, filha da antiga amante do poeta. Toca-a profundamente, e não tem a mínima consciência disso.
As duas mulheres nada têm de "poético". A velha pensa apenas em dinheiro, em dar segurança a filha. E a tal "moça" é uma passiva e raquítica senhora de meia-idade que vê no crítico a salvação de sua vida.
Ele a ilude, sem perceber, e quase rouba as cartas, sem que se considere um gatuno. Quando toma consciência do amor da solteirona fica assombrado. Acredita nada ter feito para a seduzir. Mas nós sabemos que não foi bem assim.
Henry James, que foi irmão de famoso filósofo e psicólogo americano ( William James, criador do pragmatismo ) penetra com soberba facilidade nos pensamentos e nas contradições dos personagens. Eles pensam uma coisa e fazem outra, sentem de um modo e comunicam de outro. Não são donos de seus desejos, de seu futuro e nem sequer sabem o que fizeram. Vitorianos pretensamente racionais, fazem tudo ao acaso, ao sabor do improviso. Controle só existe na arte, da qual James é mestre maior.
Ao lado de Proust e Mann, Tolstoi e Joyce, narrador supremo dos últimos 150 anos. Mestre.

UM FILME PERFEITO: TARDE DEMAIS- WILLIAM WYLER

Fazer um bom filme tendo por base uma obra-prima da literatura é tarefa quase impossível. Fazer, como aqui, uma obra perfeita baseada em livro perfeito é um milagre. Pois este filme é baseado em WASHINGTON SQUARE (A HERDEIRA ) de Henry James, e incrível, é um filme que nunca desmerece esse tão soberbo livro.
Quem leu James sabe: o mistério de sua escrita é a sutileza. Quando mal adaptado ao cinema se torna apenas uma boa história. Quando adaptado com inteligência, como sucede neste caso, toda sua maestria se torna imagem e som. Este filme é uma aula para aquele que deseja saber o que o cinema pode ser. Poucas vezes a sétima arte foi melhor que nesta produção.
Primeiro a história. E um lembrete. Para se apreciar este gigantesco trabalho é preciso ter lido James. Pois ao ler o gênio americano voce terá desenvolvido sua sensibilidade estética, e ao refinar essa sensibilidade voce estará pronto para apreciar a extrema beleza destes diálogos superiores. E quanto prazer cabe em linhas tão bem escritas! Os diálogos são afirmações de engenho. Neles o talento brilha. Estamos então na New York do séculoXIX, e estamos em casa de luxo austero. O pai é um médico muito rico e ele, viúvo, tem uma filha. Ao contrário da mãe, essa moça é feia e sem qualquer encanto. Pois bem. Um dia, um jovem, belo e brilhante, porém esbanjador, se enamora dela. O pai impedirá isso, pois ele não crê que alguém possa amar mulher tão sem graça. Em linhas gerais essa é a história. Mas sabemos, por debaixo disso há muito, muito mais. James falará sobre amor de pai e filha, sobre a morte, sobre sedução, sobre o que é ser mulher e principalmente sobre o dinheiro como destino. O filme, que maravilha, consegue ser tudo isso.
Os personagens. O grande ator inglês, Ralph Richardson, faz o pai. Que prazer deve ter sido vê-lo fazendo Shakespeare...prvilegiada geração que viu ele, Olivier, Gielgud e Redgrave nos palcos. Observe como ele faz esse pai. É um monstro? Jamais. O que vemos é autoridade. Ele precisa fazer o que faz. Percebemos seus pensamentos mais secretos nos olhos desse ator de gênio. O modo como ele sonda o namorado, o modo como ele analisa a filha, o desgosto. Mas temos a filha, papel que deu a Olivia de Havilland seu segundo Oscar. Ela faz uma moça feia, bastante limitada e ingênua. E como a faz? Com olhares de estupidez, reações puras e animais, e a pose de virgem intocada. Os imensos olhos de Olivia são espelhos que refletem alma que luta para existir. Ela se apaixona com desespero. Quando cai na razão e é humilhada pelo pai vemos um coração dilacerado. É dos momentos mais tristes de toda a história da tela. Montgomery Clift faz o pretendente. Faz tão bem que quase cremos em seu amor. Ele é belo, limpo, claro, bom falador, mas jamais engana o pai. Nos pegamos querendo crer no que ele diz. Clift, primeiro ator moderno do cinema, precursor e rival de Brando e Dean, faz muito com pouco. Sua atuação é magistral. Miriam Hopkins é a tia que percebe tudo mas que toma o partido do rapaz. Imagem da solteira casamenteira. Temos então um excelente roteiro em mãos de atores mais que talentosos. Quem misturará essa massa?
O diretor se chama William Wyler, e foi ele, entre as décadas de 30/50, ou seja, no tempo em que cinema era rei único, o diretor mais confiável, mais seguro, melhor dotado. Wyler não errava. Pauline Kael diz em sua crítica que "aqui vemos a perfeição. Wyler guia o filme com mão de ferro. Ele faz um filme sobre o controle com absoluto controle sobre atores e filme."
Todo movimento de câmera é peso sobre nossa emoção. Cada ângulo e cada cena é a imagem exata de destino inexorável. Wyler dirige como um grande dramaturgo cria: dominando todo o material e moldando-o a seus objetivos. Arte suprema em mãos de mago.
Há ainda a trilha sonora impecável de Aaron Copland ( sim, Copland, grande compositor erudito, compôs, pouco, para cinema ). Trata-se de música emocional, majestática, suprema. Eleva o filme à altura de Henry James.
Não há um só momento menos bom neste imenso romance em movimento. Cada cena é um ponto numa tapeçaria de jóias. Fica a memória de se ter testemunhado uma obra que nos alerta sobre tudo o que a tela pode comportar. A perfeição existe. Ela reside aqui.