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ENSAIOS CÉTICOS - BERTRAND RUSSELL

   Leio este volume de vários ensaios de Russell. Editado em 1928, é um apanhado não especificamente da filosofia desse homem admirável, mas sim o modo como ele via a política, a história e a crença dos homens. Russell não é do meu time, digamos assim. Ele era inimigo de Chesterton, de Tolkien e de Lewis. Mas lê-lo faz bem a todos que amam a inteligência. Russell foi uma das figuras centrais da cultura inglesa no século XX. Em sua longa existência, 1872- 1968, ele sempre foi atuante, um homem de ação. Aos quase cem anos de idade, ainda frequentava passeatas em Londres em pró do pacifismo. Tornou-se famoso no fim do século XIX, como lógico e matemático, e depois, já no século seguinte, como socialista light e pacifista hard. Foi professor de Wittgeinstein em Cambridge ( é Russell quem diz que Witt era "um gênio ou um completo idiota" ). Seu modo de pensar é científico. Ou seja, tudo aquilo que não pode ser provado deve ser visto com absoluto ceticismo. Seja política, psicologia, história ou costumes, só é verdade o que pode ser 100% conferido. Russell nos convida a duvidar de tudo. Mas sem pessimismo, de modo positivo.
  Esse modo de pensar é de absoluta urgência neste 2020. Russell teria muito o que dizer contra a persistência de nossas superstições. Seja ela crer em um pedaço de pano na boca como garantia de saúde, seja crer num mapa astrológico como indicador de talentos. O ceticismo não deve poupar nada. O paninho não garante cientificamente nada, o mapa astral idem. Não há distinção. 60% ou 1% de possiblidade, tanto faz. Ciência é verdade absoluta, ou apenas hipótese. Para Russell é a crença o maior inimigo do homem. Cremos que nossos inimigos são ruins, para assim termos o prazer de nos sentirmos bons. Não há evidência alguma em que nosso lado é o certo, mas, desejosos de bondade, de absolvição, desejosos de crença, nos convencemos que eles são o mal, nós somos o bem. Conclusão? Ódio. Guerra. Dissolução. Apesar de socialista, Russell percebia na teoria de Marx um tipo de igreja do ódio. Ela prometia o céu futuro, e para isso unia seus fieis no ódio à classe média. Marxismo sem ódio é inconcebível. Bolcheviques, crentes em sua boa intenção, comungam no rancor mortal ao inimigo. Sem esse combustível a coisa se desfaz. O Capital é um manual de guerra. Frase de Russell.
  No capitalismo ele sentia a mesma fé cega. Mas, invés de voltado ao ódio ao inimigo, voltado ao individualismo competitivo. Eu creio que irei vencer. E quem concorre comigo irá perder. Nesses seus escritos, era 1928, vinte anos antes da guerra fria, Russell já previa o choque entre os gigantes. URSS e USA tendiam a dividir o mundo em dois. Um lado oprimido por um partido e uma burocracia infinita, o outro lado oprimido por meia dúzia de empresas e uma sede infindável por progresso. Ele previa que o único modo dos USA perderem seria se o nível financeiro médio de seu operário ficasse abaixo do soviético. Já a URSS cairia se o estado perdesse sua auto confiança e seu poder de esmagar vozes dissidentes.
  Falemos agora de filosofia pura. Na verdade, a melhor parte do volume.
  Russell, como eu já sabia, considera Bergson um mero "poeta" e nunca um filósofo. Diz ele que Bergson faz apenas propaganda, não tenta provar nada. Que na verdade tudo que o francês fala é aquilo que seu leitor quer crer que seja verdade. Como exemplo ele cita a memória.
  Bergson diz que a memória jamais morre. Que aquilo que vivemos permanece vivo em nossa vida. Para Bergson não é apenas uma questão de recordar, é muito mais que isso, o que vivemos, 100% do que vivemos, permanece tão vivo e forte como no momento em que foi vivido pela primeira vez. Russell discorda radicalmente. Para ele, lembrar uma viagem à China é apenas rever uma série de imagens embaçadas. Por mais que algumas dessas fotos nos emocionem, essa emoção é saudade, nostalgia. No tempo que decorreu entre o fato acontecido e a lembrança tudo mudou. Nossas memórias são objetos desgastados pela nossa vivência.
  Concordando ou não, é fascinante o modo como Russell enfrenta a tese. Sua abordagem é sempre a da ciência. E ele vive a repetir que, como inglês, vê tudo de um ponto de vista apaziguador. Sem paixão.
  Sobre as máquinas, tem Russell uma opinião límpida: sem o trabalho braçal ficamos à mercê de qualquer líder que canalize nossa energia frustrada. Uma pessoa que não se cansa fisicamente é uma pessoa com superávit de energia. Se não houver uma educação para o esporte ou para o uso dessa força, a represa arrebenta. A anarquia e a destruição são as válvulas de escape de jovens que não precisam mais se destruir no trabalho ( o que é ótimo ), mas não sabem o que fazer com o misto de ansiedade, energia não gasta e tempo livre ao seu dispor. Russell teria muito o que dizer sobre nosso mundo. Não é mais o da máquina. É o da virtualidade. Não vemos mais, como ele aponta em 1928, a vida como mecanismo. Vemos a vida como programa, sistema, rede.
  Ao final da obra Russell se arrisca a fazer algum futurismo. Acerta ao prever que no futuro as pessoas irão ler cada vez menos, receberão informação de canais os mais diversos e serão facilmente formadas pela propaganda. A ditadura de meia dúzia de veículos tende a cair por terra, mas por outro lado, slogans e frases de efeito terão poder como jamais visto.
  Russell defende bastante Freud, William James e Einstein. Diz que a psicanálise tem potencial para mudar todo o mundo ( ela mudou ), e que Einstein revolucionou nossa maneira de pensar. Quanto à James, ele criou o pragmatismo radical, aquele que fala que a verdade é o que funciona, credo de todo o mundo desenvolvido. O ser deseja crer e assim ele crê naquilo que dá certo. O que dá certo será então a verdade. Eis aí, em William James, toda a filosofia que construiu os EUA. Eu quero crer, escolho crer na democracia. A democracia é os EUA. Os EUA vencem todas as guerras. Os EUA vencem a Europa no comércio e na indústria. Logo, a democracia é a verdade. ( Observe como bastou uma única derrota, Vietnã em 1972, para essa crença começar a ruir ).
  Eu não penso como Russell, mas eu gosto de ler Russell.
  Eis um ato democrático, tão fora de moda hoje.
  Se eu fosse dar um nome à nossa cultura atual a chamaria de cultura do self, do espelho, do palanque. Narcisismo levado ao paradoxo. Somos autores, atores e público de nós mesmos. Fechamos nosso teatro àqueles que não são de nossa tribo. E ao mesmo tempo sofremos da nostalgia de algo que se perdeu e não tem nome. Russell chamaria de saudade da razão. E é essa a delícia de o ler. Relembrar o que significa razão.

GEORGE BERKELEY E DAVID HUME.

   Andei lendo esses dois filósofos britânicos, Berkeley irlandês e Hume da Escócia. São considerados pragmáticos, Berkeley teve seu apogeu por volta de 1710 e Hume 1740. Falo agora, do forma bem superficial sobre aquilo que li.
 Diz-se hoje, em 2020, que Berkeley tornou-se bastante atual. Ele sofreu um longo tempo de semi esquecimento, injusto. Essa sua renascença se deve ao centro de seu pensamento: tudo aquilo que conhecemos e sofremos na vida, são apenas e tão somente aquilo que pensamos. Ele não nega a realidade sólida das coisas, mas afirma que não temos como conhecer uma mesa ou uma árvore como ela é. O que conhecemos é aquilo que pensamos e sentimos que ela seja. Indo adiante, a mesa não existe enquanto não é observada, e se voce tem lido essa teoria em um ramo da física quântica, não, voce não está enganado.
 Para Berkeley, nosso olhar e nosso pensamento organizam a realidade, realidade que ao não ser pensada, é uma outra. Não há ordem na natureza ou no cosmos a priori, o que os organiza é nossa atenção. Olhando construímos o universo em nossos pensamentos. Um bom exemplo é seu bicho de estimação. Voce o olha como um amoroso membro de sua família. Para voce ele é o querido Buster, ou o amado Rex, mas nunca será conhecido como aquilo que ele é. Sua realidade cachorral não existe.
 Mas então somos apenas ignorantes? Nem é esse o caso. Pois sem nossa observação, esse cão nem mesmo existiria.
 Vem então a questão Divina. O pensamento de Berkeley é construído, na verdade, para provar a existência de Deus. O que ele diz: Deus se torna necessário, pois é Seu pensamento que faz com que a realidade FORA DE NOSSO PENSAMENTO possa existir. Tudo o que há seria uma ideia Divina.
 Perco o interesse por Berkeley nesse ponto. Essa conclusão me parece forçada. MAS... eis aí a Matrix, um mundo ilusório onde pensamos ver uma realidade, realidade que na verdade é uma construção de uma mente maior que a nossa. Berkeley intuiu em 1710 algo que nos é familiar, que é até mesmo uma moda, 300 anos depois.
 Falei intuiu? Não. Ele não intuiu. Falo agora do muito mais brilhante Hume, e então voce irá entender o que acontece hoje e sempre.
 Lanço de cara duas frases minhas: HUME VENCEU. HUME MANDA.
 O mundo de 2020 é filho do pensamento pragmático britânico. E tudo aquilo que vivemos hoje é previsto naturalmente se soubermos ler seus escritos.
 Hume é radicalmente ateu. Deus não só não existe como não é mais necessário. Então nada em seu pensamento leva à Deus ou a qualquer tipo de religião. A mente humana sabe aquilo que vê, nada mais que isso. A prova é que coisas abstratas como infinito, Deus ou eternidade, só podem ser imaginadas como algo que experimentamos na vida cotidiana. O infinito como o céu amplificado, Deus como um rei hiper poderoso e a eternidade como um correr de estações que jamais terminam. Por mais que tentemos ter ideias originais, criar coisas fora da experiência concreta, tudo o que podemos fazer é misturar objetos, conceitos e fatos JÁ VIVIDOS.
  Observe que em 2020 nossos mais loucos filme de sci fi não conseguem deixar de imaginar ETs como seres humanoides, sempre com membros e olhos, e o futuro mais distante é sempre uma mistura de fábricas com laboratórios. Somos incapazes de pensar a vida como algo radicalmente diferente de uma planta ou uma bactéria. Nossos ETs são seres que poderiam viver na Terra. Sempre.
  Hume manda porque ele sabe que tudo o que uma pessoa quer é viver em paz. Apenas isso. E impressiona a maneira como ele quase nunca erra. Em 1740, antes da criação dos USA, ele já dizia que nos tempos modernos, um país só seria rico se fosse livre e garantisse os direitos de seu povo. A Inglaterra era o modelo do futuro e jamais a Espanha ou a Holanda. O progresso estaria ligado à propriedade privada, à garantia de que a propriedade seria sua e só sua. Pois assim se cria o amor por aquilo que voce tem, e o desejo de se obter mais. Em nações como a Espanha TUDO é do rei ou da igreja, desse modo o povo se torna oprimido e perde o amor pelas coisas. David Hume fala muito de política e eu, que nunca gostei de ler sobre esse assunto, me delicio com seu texto.
  Filósofos geralmente escrevem mal. Lemos montes de frases sem sentido até topar com uma que justifique a obra. Hume não. Ele é um verdadeiro escritor. Seu texto é delicioso, fácil sem jamais ser simples. Conversa conosco, convence, nos ensina a pensar.
  Volto então ao que disse: Berkeley não teve intuição. Hume não pensou o futuro. O mundo anglo saxão é que os seguiu sempre. Mesmo quando não tinha consciência disso. Ao imaginar uma Matrix, um americano segue a linha de imaginação de Berkeley e ao lutar pelo direito de ser feliz, um jovem está repetindo Hume. O pragmatismo britânico deixou uma marca tão forte na mente de seu povo como os jesuítas deixaram aqui na América Latina e os idealistas na Alemanha. Quando Hume diz que a beleza é relativa ou que a tirania não se faz entre um povo que está em constante comunicação ( eis a internet...para Hume um povo que se comunica, que sabe ter partidários entre sua população, se organiza em resistências...a tirania se faz entre pessoas que vivem isoladas sem poder se comunicar ), quando diz essas coisas, Hume está dando as coordenadas do modo anglo de viver. Inclusive ao dizer que um povo armado não pode ser subjugado por um ditador e nem dominado pelo vizinho.
  David Hume tira o pó da nossa mente. Ele é luz. Tudo o que sabemos é tudo o que vivemos e conhecemos. E tudo o que podemos fazer é combinar e recombinar essas informações. Se voce pensou agora na mente da informática acertou. Para Hume, a falta de liberdade impede que essas informações sejam usadas. Interrompe o circuito. Substitui a experiência real pela superstição e pela crença irreal.
  Deixei de crer em Deus? Provável que não. Mas minha crença não me impede de admirar o pensamento claro de Hume. Em um mundo ideal, Hume seria matéria obrigatória em escolas ( obrigatória? ). Sua filosofia é aquela que te dá amor pela própria filosofia.

A FÁBRICA DE PECADOS

   Roger Scrutton diz numa palestra que a esquerda se tornou uma espécie de fábrica de reivindicações. O menu de pedidos cresce sem parar e nada indica que tenha um limite. Como exemplo ele dá a questão gay. Qualquer outro assunto pode ser utilizado.
  Primeiro se pedem direitos iguais. Justíssimo. Depois o casamento gay civil. Justo. Então o casamento religioso. Aí já parece coisa estranha. Pra quê? Mudar uma tradição dentro de uma instituição que existe em função da manutenção da tradição? Então o que acontece? Antes, se voce era a favor dos direitos civis LGBTS, ok, voce era deixado em paz. Mas agora se voce não é a favor do casamento gay na igreja, igreja que era até ontem o mal, voce é homofóbico. Mesmo que seja a favor de todo o resto da agenda. Então voce é obrigado a estar em constante reciclagem, aceitando de forma passiva reivindicação sobre reivindicação. Na verdade a filosofia da esquerda é uma só: Observar até onde o tecido social resiste. Puxar o limite ao máximo. Como desejo de criança mimada, os pedidos jamais terão um fim, porque não pedem satisfação, pedem subversão.
  A vigilância sobre todos é constante. Tudo que voce faz ou aprecia hoje, poderá amanhã ser considerado pecado. Este livro pode ser denunciado como machista ou racista, este compositor poderá ter viés fascista e sua postura poderá ser considerada errada. O denuncismo, palavra bonita para dedo durismo, impera.
  Meu avô caçava lebres em Portugal e meu tio serviu o exército na África. Hoje meu tio seria um colonialista assassino ( ele não chegou a matar ninguém, mas levou uma granada no lombo e ficou sem o baço ). Meu avô seria um assassino de lebres. Que Moçambique deveria ser livre é óbvio. Mas uma análise mais profunda revela que meu tio não esteve lá porque quis. Mais ainda, nenhum ser humano pode ser reduzido ao que ele fez durante um ano de sua vida. Por isso a pena de morte é injusta. Meu tio pagou qualquer erro com a quase morte no hospital e a invalidez consequente. E se voce usar a tese do nazismo, de que então um soldado nazista pode ser absolvido, eu digo que sim, foi isso o que aconteceu. Os comandantes não podem ser absolvidos, pois eles tinham o massacre como objetivo de vida, o soldado não. 99% deles mal sabiam onde estavam e em quem estavam atirando. A guerra é confusa para o soldado. Isso poucos filmes mostram. Eles atiram como autômatos. O bom soldado não pensa, reage. Veja como o tema é difícil e inconclusivo. Muito mais fácil dizer: Soldado colonialista = assassino, e durma em paz.
   Pare e imagine que em 2050 todos nós seremos considerados primitivos. Comedores de pobres bichos indefesos. Poluidores. Gente que queimava combustível, usava madeira e plástico. Seremos tão massacrados quanto o povo que vivia no tempo da escravidão e nada fazia contra esse crime. Iremos ser rotulados. Nossa vida será vista como um pecado sem fim. Nosso legado será podado.
   Chesterton tem uma bela imagem que é mais ou menos assim: Imagine que um colibri, um belo dia, começasse a fazer pequenas estátuas de um colibri. E depois passasse a anotar como foi seu dia. O que voce pensaria? Que ali estava acontecendo um milagre. E que aquele colibri era um tipo de deus, ou um enviado dos seres superiores. Então me diga porque voce acha que o ser-humano, que é esse colibri, é uma animal tão nocivo e inferior?
  Chesterton disse isso como denúncia da mania moderna de condenar o homem como o grande mal do planeta. Hoje, em 2020, essa tendência aumentou muito. A natureza é vista como mundo perfeito e o homem seria o vírus que veio botar fim à tudo. Será?
  Estrelas morrem todo dia e pelo que se sabe, não há nenhum humano lá. A primeira dificuldade é aceitar que o fim é parte da natureza. Tudo termina, mesmo sem o homem. Tigres comem cervos ainda vivos. Leões matam filhotes de elefantes órfãos. Leopardos não dividem a água com zebras doentes. Macacos cruzam com todas as fêmeas. Se somos parte da natureza, somos assim. Egoístas. Mas somos mais que isso. Sinto dizer algo tão pouco da moda, mas somos melhores. Melhores pelo simples fato de esticarmos a mão para puxar um cervo fora do rio cheio de jacarés. Por ajudarmos quem não é de nossa espécie. De nossa tribo. De nossa família.
  OH! mas o homem, miserável, pode destruir o planeta! Sim. Ele pode. E ele é tão maravilhoso que ainda não fez isso. Mesmo podendo fazer. Animal que tem livre arbítrio. Animal que é o único a apreciar não só o que ele fez, o que lhe pertence, mas até mesmo aquilo que jamais será dele. Ser que se interessa pelo que não é ele mesmo. Um milagre. Único bicho que se distrai da luta por comida. Que ousa não comer. Ousa não cruzar. Ousa ser não animal.
  O homem cria. Eis seu milagre. Faz da pedra uma enxada e da terra, tinta. Faz do inanimado um foguete, uma vacina, música. Ele cria. Ele modifica. Ele se vê. Vasculha sua alma.
  Mas hoje é moda dizer que não. A Terra não precisa de nós. Os bichos vivem sem nós. Modo simplório de pensar. Pouco trabalhoso. Sem nós a Terra nem Terra seria. Um pedaço de pó com umas coisas vivas repetindo por tempo indefinido atos sempre iguais. Esses bichos seriam extintos mesmo sem nossa ajuda. Como foram dinossauros. Esses bichos morreriam em secas. Morreriam em nevascas. Morreriam na queda de meteoros. Sem nossa ajuda.
  Estamos aqui. E apesar do meu avô caçar lebres e meu pai ter tido pássaros em gaiolas, somos o milagre. Somos o único milagre na Terra. E isso não é um erro.
  
 

FIM DA POLICIA ( MATEMÁTICA BABY )

   Leio que um grupo de atores e atrizes de Hollywood faz um movimento pedindo o fim do financiamento da polícia. Atores não são famosos por seu senso de realidade, mas eu não imaginava que eles houvessem chegado a tal nível de infantilismo. Vale à pena comentar?
  Sem a polícia voltaríamos aos tempos do faroeste. Cada comunidade escolheria um xerife, esse xerife nomearia ajudantes e estaria instalada a lei. Todo cidadão, sem a polícia, se armaria para defender o que é seu e o que ele ama. E mesmo que as armas por mágica fossem extintas, facas e porretes seriam usados. Eu realmente não consigo entender esse tipo de raciocínio. Penso que nasceu uma nova espécie de mamífero humanoide e entre eu e esses seres há a distância que existe entre Leões e gatos de madame.
  As pessoas estão desistindo de pensar. Elas estão sendo ensinadas a colocar rótulos e pensar por slogans. Desse modo, todo aquele que discorda de seu ponto de vista é comunista ou nazista. Todo policial é um porco fascista e todo homossexual é de esquerda e portanto, comuna. O mais assustador é que o humor, primeira característica da inteligência, está completamente ausente desses slogans. Mesmo aqueles que se propõe a fazer humor, acabam por fazer uma espécie de piada hiper agressiva, um riso que baba veneno e rancor.
  Eu ando vendo filmes de guerra. Os filmes que Michael Powell fez durante a segunda guerra. Em Coronel Blimp, filme de 1941 filme que Churchill odiava, Powell mostra que até os alemães são humanos. Sim. Em plena segunda guerra, um diretor fez um filme inglês que demonstra que mesmo os inimigos sofrem e pensam. Ontem assisti Canterbury, onde é mostrado que Deus concede milagres mesmo dentro da guerra. O que tento dizer aqui? Que o humanismo morreu. Se voce destrói uma amizade porque seu ex amigo pensa diferente de voce, seu humanismo não é mais humano. Voce é apenas uma máquina de pensar. Basta um código binário que não encaixe na fórmula da amizade para que todo o programa desabe.
  Comecei este pequeno texto falando de atores privilegiados. Falo agora do problema da área de humanas. Li um artigo que expõe o problema. Problema insolúvel devo dizer. Frequentei os bancos de humanas, da melhor universidade do continente, por oito anos. E o que vi? Excelentes professores. Sim, conheci dentre muitos, alguns realmente ótimos. Carismáticos, abertos, democratas reais, racionais, encantadores. E muitos enganadores. Não, não pense em dogmas. Os enganadores são apenas preguiçosos. Só isso. O problema está muito além dos professores. O problema é o próprio alvo de estudos.
  Até o século XVII mais ou menos, humanas englobava tudo. Um bom filósofo estudava matemática, astronomia, latim, grego e química. Quando, já no século XVIII, esses conhecimentos se separam, nasce o especialista em história, línguas ou filosofia, aquele que tem um certo orgulho em dizer: " Sou de humanas, não sei fazer contas", ou pior, " A ciência também é relativa". Relativa em relação a quê, caro humanoide?
  Em humanas nada precisa ser provado porque tudo é questão de gosto. Ou de fé. Nunca nos esqueçamos, para tristeza de 90% dos humanoides, que universidades, livros e especulações são coisas criadas pela igreja. Na base do humanismo há sempre a repetição da ladainha e a paixão da fé.
  Tanto faz voce dizer que Dostoievski era um cristão radical ou um louco. Tanto faz voce dizer que Joyce era de esquerda ou direita. Não há como comprovar e mesmo que eles estivessem vivos e falassem o que pensam, voce separaria o homem da obra. Não existe conclusão em humanas e por isso nela cabe qualquer teoria. Por mais absurda e irracional que seja. Se alguém quiser crer nela, ela existirá.
  Até aí tudo é inofensivo como é inofensivo um brinquedo. O problema é quando esse método sem método é levado para a vida prática. Por princípio o humanoide odeia tudo que é prático e pragmático. Pois essas duas palavras lhe recordam aquilo que ele mais odiava quando jovem: ciência matemática. Ordem. Clareza. Limpidez. Por mais que um filósofo invente teorias, dois mais dois será quatro mesmo em 2100. Assim como foi em 2000 ac. A ciência, assim como a vida real, faz com que o humanoide fique irritado. Nesse mundo não acadêmico ele é impotente. A física quântica não o salvará da morte ou do tempo que passa. Pois até a física quântica é apenas....ciência.
  O que mais me dava risos nas aulas era quando um professor chamava sua aula de ciência. Onde? Ciência sem laboratório? Sem a repetição de resultados idênticos? Sem a ocorrência idêntica independente de lugar e tempo? Eu falava em aula: "Vamos parar com essa fixação em ser aceitos pelas ciências e nos contentemos com nosso campo, restrito e falho". Sim amigos, eu falava isso. E muitos concordavam. Inclusive professores. Mas a maioria não. Humanas de humanoides quando aplicadas à economia, medicina, administração, química, aplicadas a todo modo de pensar é sempre um desastre. Porque não há um objetivo concreto. Um alvo mensurável. É tudo abstrato.
  Como resultado, passamos a ter no mundo concreto aquilo que cabia apenas ao mundo acadêmico das humanas: a relativização da verdade. Homero escreveu a Odisseia para quem assim o quiser. Dante é um monstro para quem acreditar. Napoleão era um herói para voce e um vilão para mim. Tanto faz. Dentro da academia ou em cadernos de cultura tudo isso é muito divertido. Na vida do dia a dia, onde se lida com dinheiro, com guerras iminentes, com doenças, isso é patético. Ou pior, trágico.
  Apesar das aulas de filosofia e das teorias literárias, o mal existe. O bem existe. E há uma verdade chamada bem comum. Certas coisas são melhores que outras. Certos hábitos persistem por serem bons. Quando voce relativiza, tudo se desmancha, e o motivo não é "porque a vida é assim", mas porque, como bom humanoide, voce aplica o saber das humanas ao objeto errado. Podemos discutir se Descartes era pior que Pascal, mas não podemos discutir se este método de produção funciona ou não. Basta medir sua eficiência.
  O humanoide é aquele que irá à sua festa de bodas de diamante e dirá: " Dura muito tempo...mas isso não significa...bla bla bla"....Verá uma vitória por 7x1 e dirá ...."Tenho a teoria de que o jogo foi e bla bla bla"....
  Ele terá teoria para tudo e todas serão verdadeiras para quem as comprar. Mas, o simples fato de existirem tantas teorias já contribui para provar que todas são falhas. Como eu disse, brinquedos.
  Termino com Einstein, aquele cientista sério que os humanoides pintam como um bom vovô meio hippie. Ele dizia que toda verdade é SEMPRE A MAIS SIMPLES E A MAIS ELEGANTE. Seja em matemática, física ou na vida prática, há na verdade sempre a luz do óbvio, do claro, da evidência mais direta e sem firulas. Toda teoria que necessita de uma sucessão de atos ou acasos é falsa.
  Mas humanoides abominam o que é simples. Muito menos o elegante. Aos 13 anos eles tinham diante de si uma equação clara, simples e elegante. E muito verdadeira. E a odiaram com todas as forças.
 

ASSUNTOS VARIADOS EM TEMPO DE PESTES

   Se voce mantiver a sanidade em tempos como estes, parabéns. Ou talvez não. Sua sanidade será prova de que voce tem algum tipo de autismo. Tudo que posso falar é de mim mesmo, e não tem sido fácil ser eu mesmo. O instinto de manada ressurge forte em crises assim. A questão é: Como manter sua individualidade sem se tornar um egoísta irresponsável?
   Escrevo para dois ou três amigos. Eles me conhecem. Sabem que meu eu inteiro reside neste blog. No facebook sou apenas a fatia que faz propaganda. No instagram exercito relações públicas.
   Diálogo não há. Quem é, será mesmo contra toda evidência. Na verdade as pessoas pouco ligam pra verdade. O povo foi tomado pelo orgulho de estar certo. E esse certo será mantido. Mesmo que errado. Sempre soube que o Face faz o ego inflacionar. Voce se sente numa tribuna todo o tempo. Mas eu jamais pensei que seria tanto assim. Quanto ao instagram, ele é apenas um desfile de gente bacana. A questão lá não é estar certo. É se vender bem.
   Mudando de assunto. Duro escrever sobre Henri Bergson. Ele meio que me estuprou mentalmente. Só hoje percebo que ele nega tudo que acredito. Bergson diz que o tempo é tudo que existe. É a própria realidade. Eu tendo a ver o tempo como uma invenção arbitrária. Na verdade ele é apenas um meio cômodo de medir a vida. Bergson crê na mudança eterna de tudo. Nada é o que foi. E nem será. Eu tendo a crer que nada muda. Que tudo é sempre aquilo que foi de fato. Voce é agora o que foi aos 10 anos. E será aos 90 o que é hoje.  As aparências mudam e o mundo pode te fazer mudar hábitos. Mas voce permanece. No pensamento de Bergson me sinto hiper desconfortável. Minha intuição diz que não é assim. O universo está em expansão, a história anda, mas em sua base tudo é o que sempre foi. Nascemos e morremos. Queremos e perdemos. Comemos e sonhamos. Penso inclusive que meu pensamento é mais moderno. KKKKKKKKKK Que contradição minha né? Eu falando como se ser moderno fosse um mérito! Mas pensar que o tempo é apenas uma convenção está mais de acordo com 2020.
   Reassisti dois filmes com Audrey Hepburn. Charada e Como Roubar Um Milhão de Dólares. O primeiro é um pequeno clássico. Ele é considerado um dos melhores filmes de Hitchcock não feito por Hitch. Foi um big sucesso de bilheteria. É de 1963. O que tenho a dizer? Que ainda fico impressionado com a elegância das pessoas nos anos imediatamente anteriores á explosão hippie. Que é um prazer ver Cary Grant em mais um dos seus sucessos ( ele é o único ator entre todos que jamais teve um fracasso de bilheteria ). Apesar que leio que Cary estava bastante desconfortável no papel. Ele não queria mais fazer par romântico com ninguém. Se sentia velho ( tinha na época 58 ).  Mais um ano ele se aposentaria.  O diretor do filme é Stanley Donen. Quem? Claro que voce não conhece, ele nunca foi um intelectual. Tinha "apenas" bom gosto. Fez filmes entre 1948- 1984. Viveu até este milênio e em 95 ganhou um Oscar especial. Foi linda a entrega, ele dançou pelo palco com a estátua. Dirigiu Cantando na Chuva. Sete Noivas Para Sete Irmãos. E mais uns 10 filmes que se vê hoje com imenso prazer. Charada é uma diversão que respeita sua idade. É adulto. É bobo e é fútil. E também esperto e chique. 1963 era um tempo em que adultos ainda iam ao cinema. E por isso se faziam filmes para eles.  Creia, havia filmes no topo da bilheteria que não eram endereçados aos teenagers. Como Roubar Um Milhão foi feito 3 anos depois e tem Peter O'Toole como par de Audrey. O diretor é William Wyler. Quem? Wyler, o veterano que venceu 3 Oscars. Dá um google. Ele tem mais de 20 grandes grandes grandes filmes. Este não é um deles. Eu adoro porque adoro a dupla central. Mas faltou roteiro. E o sucesso de bilheteria foi bem mediano. De qualquer modo a gente fica lá, sentados vendo aqueles lugares lindos com aquelas pessoas glamorosas.
  Mais um assunto? RocknRoll, disco de 1975 de John Lennon. É o único dele que ainda ouço. Covers de rocks dos anos 50. Phil Spector produziu mais da metade das faixas. Bom modo de voce conhecer Spector. Em 1975 ele já estava louco. Mas tá lá o estilo dele. Conto...em 1962 não tinha essa coisa de produtor como a gente conheceu mais tarde. Em 1972 por exemplo, a gente percebe quando um LP é produzido por Bob Ezrin. Ou por Jimmy Miller. O som é outro. A escolha dos instrumentos. A mixagem. Em 1962 Spector criou isso sozinho. Ele era a estrela dos discos que produzia. Sacou primeiro que a mesa de mixagem era talvez o instrumento mais importante de um disco. E começou a criar. Aumentar o baixo aqui. Enfiar cinco guitarras ali. Uma orquestra de sopros no refrão. Esconder esse piano. Maga egocêntrico, ele enchia tudo de som. É o homem que odeia o silêncio. No disco RocknRoll preste atenção em 3 faixas: You Can't Catch Me é uma massa de som que te engole. São cinco guitarras. Três bateras. Três teclados. E mais um monte de sopros e percussão. 25 instrumentos. Todos tocando como se fossem um só. É aquilo que ficou famoso como Wall of Sound. Uma parede que esmaga o cantor e marcha direto aos eu ouvido. Ouça também Bonny Moronie. Tem gente solando a música inteira. Mas tá lá no meio da confusão ordenada. Tem gente fazendo backing vocals. Mas sumiu. Ouça Peggy Sue. Vale muito à pena. E preste atenção. PS: Bom aparelho é obrigatório.

DEIXA ENTRAR, DEIXA PASSAR, APERFEIÇOE. Quando uma canção fala algo.

   Não há como provar a vida, no que ela tem de melhor, sem a simplicidade. Para viver bem, é preciso aceitar, sem nenhum obstáculo, aquilo que ela é: Movimento incessante. Sendo movimento, ela é completamente imprevisível. Sendo imprevisível, ela requer criação constante. E para criar, para poder dançar o fluxo da realidade, é preciso simplificar.
 Estou desenvolvendo a base do pensamento de Bergson. Voce pode ler mais detalhes no meu post abaixo. Mas antes desse post há um clip de uma canção de Paul MacCartney. Ela exemplifica esse fluxo e essa simplicidade de um modo magnífico.
 Observe como a canção começa em silêncio. Toda canção começa em silêncio, mas só as melhores destacam isso. Nesse silêncio, que harmonizará toda a música, nascem os acordes de um lembrete: A campainha toca. Há alguém lá fora. Querendo entrar. Paul poderia ter usado 3 batidas na porta. Ou uma voz chamando. Mas ele sempre entendeu de silêncio. John era barulhento, ele não. Então são alguns toques de delicadeza. Onde o silêncio é mais importante que o som.
 Então vem o piano.
 Nunca se fez tanto com quase nada. E é isso a criação. O piano repete um acorde. Invariável. O mesmo, sempre o mesmo. Voce sente que lá está o tempo. Mas atenção! Sem saber racionalmente, por pura intuição, Paul exemplifica Bergson. O piano marca o tempo, aparenta ser o mesmo acorde, sempre o mesmo, que passa e se repete, que é circular, mas não! Sua sensibilidade sabe que não. QUE TODO TEMPO NUNCA SE REPETE. QUE NÃO HÁ CÍRCULO, QUE HÁ UM PASSAR INCESSANTE.
 O acorde que parece se repetir nunca se repete. Porque voce que o escuta já o escutou uma primeira vez. A segunda. A terceira...Então a primeira vez já é passado, e portanto é irrecuperável.
 Paul fala do encanto da rotina e da simplicidade. Na verdade em 90% de suas obras é disso que ele fala. Dentro do mundo do rock, e ao contrário do que muitos achavam, Paul MacCartney aos 23 anos já era um adulto. Em 1966 ele já sabia tudo. E sua meta era a simplicidade. Em estilo de vida. E em som. Enquanto todos falavam, como adolescentes frustrados, em projetos utópicos ou espaciais, Paul cantava uma cadela chamada Martha ou a felicidade da Mãe Natureza. Era como se ele estivesse em outro futuro. Ele intuía que toda aquela balbúrdia era apenas isso : Ausência de silêncio.
 Como Tom Jobim fazia, Paul coloca o mínimo no que faz. O acorde que se repete é adornado com metais, uma bateria, um contra baixo, vocais de fundo. Mas jamais com exibicionismo. Esses instrumentos obedecem o piano. Eles estão acomodados dentro do acorde que se repete. Há uma tensão. Pois todo movimento é tenso. E ela parece jamais se resolver. Fica sem resposta, fica no silêncio. Ou não.
 A leveza do todo e sua fluidez fica explícita no acorde final. São duas notas apenas, e ela respondem à tudo que houve antes. O Tio Jim de que fala a letra está na poltrona e todos os outros estão vagando pela casa. Ele os deixou entrar. Ele aceitou o tempo. Ele entendeu o acorde que é sempre o mesmo mas que nunca se repete.
 Por intuição Paul diz tudo sobre Bergson.

A EVOLUÇÃO CRIADORA - HENRI BERGSON. A inteligência em tempos de crise.

   Nossa inteligência se desenvolveu para prever, planejar e lidar com objetos. Essas não são apenas suas funções principais, são as únicas a que ela se presta. Ela sabe que se eu bater duas pedras surgirá fogo. Que o fogo assa a carne. Que sal deixa a comida melhor. Para ter carne é preciso caçar. Hoje, ter um emprego. Que o dinheiro ganho será gasto em contas. A inteligência planeja o que fazer com esse dinheiro. E é ela quem lida com tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Até aqui tudo está perfeito. E continuaria perfeito se soubéssemos como manter a inteligência em seu lugar, lidando com aquilo que à ela cabe.
  Mas não é assim que acontece. Em um momento de nossa evolução, passamos a crer que a inteligência pode prever tudo, planejar tudo, lidar com tudo. É nesse momento que perdemos nossa intuição e negamos a imprevisibilidade da vida. O acidental passa a ser visto como anomalia, quando na verdade ele é regra. Esse é o ponto mais interessante do pensamento de Henri Bergson.
  Vamos ver se consigo passar a ideia para voce de um modo bastante claro. Voce já deve ter lido algum livro de auto ajuda. Notou como nele o acaso não existe? Se voce fizer isto voce obterá aquilo. Sorria que o mundo sorrirá para voce. Deseje. Se voce quiser de verdade a coisa acontece. Até mesmo a fé foi enfiada nesse saco de causa e efeito. Tenha fé e voce obterá.
  Eu falei em causa e efeito? Sim, pois a inteligência só funciona no esquema imutável da causa e efeito. Para algo acontecer algo aconteceu antes. Se isso acontece aquilo acontecerá. Hospícios estão lotados de gente que pensava assim. E entraram em parafuso ao notar que fizeram X e não obtiveram X, mas sim YWZ. São mentes matemáticas que quebraram no momento em que a conta não fechou.
  Observe que a física começa sempre com o mesmo postulado: Em um dado momento. Numa dada distância. Neste segmento de reta. Ou seja, ela só trabalha em um recorte do real. Jamais no todo. O movimento tem de ser pensado como um início e um fim, e esse movimento não é um movimento, pois ele é analisado em um tempo recortado. Mas a realidade é um tempo que não cessa e um espaço sem fim. Então é lógico dizer que a física trabalha com pedaços mortos do tempo e micro fragmentos do mundo. Pois nossa inteligência é desenvolvida para entender apenas aquilo que tem começo e fim. Aquilo que pode ser medido e pesado. Aquilo que pode ser contado. Ela reduz a vida à um rebanho de cabras. O universo visto como um curral.
  A biologia não é diferente. Ela estuda órgãos e células, jamais o organismo completo em funcionamento. Ela sabe como uma célula se divide, não porque ela se divide. Um aminoácido provoca tal reação, mas não o que faz ocorrer tal reação. É um estudo da causa e efeito em que se sabe das duas pontas do fato, começo e fim, mas nunca o durante. Antibiótico mata uma bactéria. Mas não como ela é morta. Muito menos de onde ela surgiu ou o porque de ter surgido.
  Homens muito inteligentes tendem a querer saber o porque de tudo. Inclusive porque ela me ama, ou porque ela deixou de me amar. Não percebem o básico: a inteligência não existe para responder a nada. Ela existe para fazer coisas sólidas e para prever aquilo que foi provado várias e várias vezes.
Podemos ir adiante? Se a inteligência só sabe lidar com objetos e com aquilo que ela conhece por repetição, haverá no homem que se guia apenas por ela, a tendência a ver tudo como objeto e sentir a vida como repetição. O homem preso apenas à inteligência sufocará o imprevisto e a intuição. Pior ainda, será incapaz de perceber a imprevisibilidade radical da vida.
  Sem a inteligência voce não estaria lendo isto. Mas apenas com ela voce não fará nada com aquilo que lê. Apenas repetirá tudo para sempre. A inteligência odeia tudo que é imprevisto. A crise atual é mais uma prova disso. Tentam saber o porque. É preciso uma causa e um efeito. É preciso ver tudo como um objeto a ser lidado. É preciso tirar algo de útil de tudo isso. É preciso prever o futuro do mundo após esta crise. A inteligência, pega de surpresa, reage do único modo que sabe reagir quando colocada em choque: Pavor. Em seguida ela começa a procurar acomodar tudo em causa e efeito. E aposta em futuros.
  Para Bergson, o tempo é real, independente de nós. E se tudo que existe reside dentro do tempo e é por ele dominado, então tudo é movimento. Eis um fato que a inteligência é incapaz de lidar. A mudança. Para lidar com um objeto é necessário saber que ele não mudará. Que ele estará ali e permanecerá ali. E que suas características jamais se transformarão. Isso porque ela precisa prever uma ação. Planejar. E se ela aceitar que o tempo é real e que assim tudo está sujeito à ele, toda previsão se mostrará falha. A inteligência abstrai o tempo. O que é agora será amanhã. O progresso é o hoje transformado em um mesmo hoje, apenas melhorado, nunca transformado. Desconfie do aperfeiçoamento das coisas. É o mesmo com novo rótulo.
  Mas então seríamos apenas escravos do tempo? Brinquedos incapazes de lidar com ele?
  Não. Pois mudamos com ele. Estamos nele, ou mais que isso, somos ele também. Daí o pensamento radical de Bergson: Nunca somos o mesmo. Nosso caráter, nossa personalidade imutável é uma ficção criada pela nossa inteligência. Se ela só sabe e só pode lidar com objetos mortos, ao olhar para nós mesmos, ela matará nosso EU, transformando-o em objeto estático. Para ela, o que sou hoje serei sempre. E voce será para mim o mesmo. Eternamente. Só desse modo a inteligência tenta apreender a vida. E falha miseravelmente.
  Nossa intuição vive dentro do tempo. E é nela que ele se revela. Ela que nos diz que tudo muda o tempo todo. Pois se o tempo é movimento, tudo se move com ele. E assim muda sem cessar.
 

SINCRONIA E ANARQUIA

   Li um artigo bem legal ontem. Quando digo Universo, como voce o imagina? Provável que seja um lugar imenso, sem fim, sem começo e velho pra caramba. Ok? Só que não é assim. No texto que li, sim, física quântica, o Universo não é uma só coisa. Ele é um conjunto de pequenos Universos. Estranho? Não é mais estranho que tentar imaginar uma coisa sem começo e sem um fim.
  Tudo seria formado por hiper mega ultra minúsculas partículas. Até aí nada demais. Mas são coisas menores que um elétron. Menores que um bóson. E cada uma dessas coisas é em si um Universo. Bem...qual a diferença de chamar essas coisinhas de partículas ou de Universos?
 Um Universo tem suas próprias leis físicas. Então, fica claro, que cada fragmento obedece suas próprias leis. Parece absurdo pensar que logicamente tudo seria então uma anarquia onde cada coisa seguiria sua lei própria. Mas, é exatamente isso que essa teoria propõe. A ordem de tempo e espaço é apenas uma ilusão criada por nossa mente. Na verdade, o universo é um amálgama de mundos. Melhor explicando, para um pedaço de cortiça, tempo e espaço nada significam. Assim como para um coelho, nada vale naquilo que o relógio diz. Um ET que chegasse aqui teria imensas dificuldades em se adaptar, ou mesmo começar a entender o que significa tempo e espaço. Na multiplicidade de universos, tempo não existe e espaço é ilusório.
 Escrevo isso por um motivo. Há uns três meses estava andando na rua quando de súbito veio à minha mente a lembrança de uma menina. Nada tão especial ela. Nada me fizeram lembrar de seu rosto. Não a via a mais ou menos cinco ou seis anos. Eu andava e pensei nela. Pois bem...dois minutos depois a vejo parada na calçada, prestes a cruzar a rua, e topo com ela. Digo olá etc etc etc.
  Hoje, na academia, lembro do nada de um amigo que não vejo a mais de dez anos. Não era um grande amigo, apenas um colega. Então, ando até uma padaria, depois compro coisas num mercado e na avenida o vejo vindo em minha direção. Olá etc etc etc
  O que esses dois fatos têm a ver com o que escrevi sobre física? Tudo. Minha mente, universo próprio, já havia encontrado com eles em outro tempo. Ou, numa realidade paralela eu os vejo todo dia e tive um pequeno acesso à isso.
  Parece loucura? Mas é exatamente isso que a física anda estudando. A cada escolha nossa criamos mais uma realidade. Nossa mente não reconhece tempo e vive em passado e futuro como coisa normal.
  Escrevo mais outro dia.
  Ou já escrevi?

AVICENA E O DIA DOS MORTOS.

   A questão que encerra o curso é: De onde vem nossa inteligência, nossa consciência e nosso saber. Eis a base de toda filosofia. Três modos de pensar respondem essa questão: A consciência vem do alto e flui para dentro de nós. Ela nasce conosco e olha o mundo. Ou uma terceira via, que é a de Avicena: ela vem de fora, entra em nós e retorna ao cosmo. Não aceito nenhuma das três, e possivelmente, eu, como voce, partiremos desta vida sem saber.
  Avicena se intrigava com a mecânica do olhar. O que nos faz reconhecer uma flor como parte do reino das flores. O particular como uma fração do universal. O que faz com que reconheçamos o que vemos como O Real. Isso era para ele a inteligência primeira.
  O que me inquieta é não saber como se processa o que faço agora. Um bocado de sangue e carne estar neste momento consciente de si mesmo. E produzindo abstração. A criação do mundo dos números é um fato inescrutável.
  Estou agora aqui. Ali eles estão. Eu sei que esse ele não mais está ali. Pois se ele era apenas máquina, essa máquina deixou de funcionar. Pior ainda, enferrujou e apodreceu. Por outro lado, se ele tinha alma, luz, energia, pensamento cósmico, o que seja, ele também não está aqui, pois seu corpo seria apenas o rádio e não a onda que traz o som. Mas eu, nós, vamos ao cemitério e ficamos aqui. Olho a lápide.
  Fecho os olhos e ouço: pássaros cantam, vozes ao longe, vento nas folhas, minha respiração, passos. Abro os olhos e vejo: folhas no alto, sombra, grama, uma linda mulher, uma família de Quero-Quero. Fecho os olhos e sinto: vida ao redor. Vida dentro de mim. Vida neles. Vida nos passarinhos. Vida exercendo seu poder.
  Paz absoluta então.
 
 

CONFISSÕES DE UM HERÉTICO - ROGER SCRUTON. O MELHOR PENSADOR.

   Ayiné é o nome da editora. Mineira. Ela tem lançado pequenos livros, bem feitos e interessantes. Estilosos. Scruton tem sido publicado neste fim de mundo por 3 editoras diferentes. Bom sinal. Se voce nunca o leu, este livro é um bom começo. Ele traz textos publicados em revistas e jornais, e dois deles são inéditos. Felizmente o autor escreve muito. Ler seu pensamento é um prazer.
  Descobri Scruton por acaso e a identificação foi imediata. Ele não só raciocina como eu gostaria de poder, como vê o mundo de um modo que é irmão ao meu. Aqui darei uma geral muito breve deste livro. Tudo escrito abaixo é de sua fonte. Meus adendos vêm entre parênteses.
  O primeiro texto, Fingindo, toca num dos pontos que mais interessam aqueles que conhecem Scruton: a falsidade na arte. O modo como a arte moderna tem um caráter de embuste, onde críticos fingem ver complexidade onde só há vaidade. O artista finge se levar a sério, o crítico finge entender algo de imenso na obra e o público finge gostar. Todos ficam contentes e ninguém diz a verdade.
  O segundo texto é o mais bonito do livro. Fala dos animais. A princípio, parece que ele vai atacar a mania de defender bichos. Mas não. Ele ataca apenas os gatos. ( Leia e entenda o por que ). Scruton defende os animais selvagens, e dá motivo racional, não sentimental, para isso. E faz um lindo retrato, real, do que é um cão. Ele pensa como eu. Um bicho está longe de ser um bebê ou um ser. Mas ele tem sentimentos, tem emoções e deve ser tratado com dignidade. Mesmo que sua vida seja apenas caçar e ser caçado.
  Não falarei de todos os textos. Isto não é um resumo, é apenas um elogio. Mas tenho de citar o texto sobre a dança. Ele dá a melhor descrição sobre o que significa a música eletrônica e onde mora o valor da música POP. A dança, a dança a dois, em salão, grupal, com passos decorados, movimentos delicados, atenção ao parceiro, era uma linguagem que ensinava o jovem o jogo da cortesia, dos bons modos e da leveza no trato à vida. ( Lembro que mesmo meu pai, um anti social, sabia dançar valsa ). A música eletrônica nos faz dançar a sós, ou pior, em exibicionismo narcísico, onde o outro existe apenas para ser conquistado ou para ser nosso espelho. Não há ritual, regras, modos ou cuidado com o parceiro. Não há na verdade parceiro nenhum. Scruton, que sabe muito de música, fala sobre a harmonia, a melodia, a função educativa que elas possuem, e de como, mesmo na mais banal das melodias POP, elas ainda tentam sobreviver.
  O mais profundo dos textos é aquele que fala da hora certa de morrer. Esse toca numa ferida. Haveria momento certo para se morrer? Vale a pena viver uma vida de doença? Não há como eu resenhar este texto. O desenvolvimento do pensamento de Scruton é astuto e poético. Precisa ser lido. O que digo é que ele fala que a vida é uma questão de profundidade e nunca de duração.
  Há ainda textos sobre o luto, a tela e a internet ( o menos bom deles...ele não erra, mas é quase óbvio ), formas de governo, o que é o conservadorismo ( inexistente neste canto de mundo ), arquitetura, ícones visuais. É um banquete para o cérebro e um guia para o coração. Voce tem de ler este livro. Sua mente o merece.

OS QUATRO AMORES - C.S.LEWIS

   Em edição com capa dura, bonita, este livro pensa a cerca de quatro formas de amor: o afeto, a amizade, o amor erótico e a caridade. Há uma decepção óbvia com o primeiro texto. Lewis parece não se animar com o afeto. Afeto seria o amor que une pessoas em interesse comum. É aquilo que nos faz ser gregários, sociais. Sentimento que nos faz precisar de alguém ou apreciar alguma coisa. É o amor que sentimos por animais, objetos, lugares, lembranças. O texto é parcialmente convincente.
   Isso não acontece com o que ele escreve sobre a amizade. Aqui Lewis beira a genialidade. Basta citar sua percepção de que a amizade é o amor menos prezado e valorizado pelo mundo moderno. Isso porque a associação de dois ou três amigos, faz deles seres à parte, fora do comum. Um tipo de amor sem ciúme e sem cegueira, a amizade dispõe os participantes lado à lado, prontos para observar e usufruir do mundo. O texto de Lewis é muito mais que isso. Ele consegue nos mostrar o porque da desconfiança de esposas, maridos e chefes em relação à amigos. Amor valorizado ao máximo no mundo antigo, desde o romantismo ele é desvalorizado. Por não ser trágico, perigoso, sanguíneo, a amizade tornou-se vista como um tipo de amor sem risco, sem narrativa e sem tragédia. Deixou-se de perceber sua nobreza. A grande sacada de Lewis: é, dos amores, o mais humano. Amor sem corpo, puro espírito. Pode-se viver sem amigos. Ele é uma escolha sempre, jamais uma necessidade.
   Belo é também o texto sobre eros. E, como os outros textos, Lewis faz uma coisa matreira, que seja: exibe o bem de eros para em seguida provar seu perigo. A amizade é nobre, mas pode se tornar soberba. Eros é lindo, mas pode virar crueldade. Eros não é animalidade, pois precisamos de uma única pessoa e não de qualquer uma. Lewis descreve o caminho que o amor-sexo percorre e seu crescimento quando unido à amizade.
  Por fim temos a caridade, e ela não é aquilo que voce imagina. Aqui Lewis se poetiza, cresce, e se cala ao fim. O livro, apenas 200 páginas, se encerra em clave celestial. Se levamos algum amor conosco para outra vida, quem pode saber?, esse amor seria o caridoso e não o eros ou a amizade. Não nos cabe saber qual de nossos amores é o caridoso. Não nos cabe saber qual deles seria o mais celestial.
  Sei que é um pequeno livro bonito.

O PARAÍSO À PORTA ( ENSAIO SOBRE UMA ALEGRIA QUE DESCONCERTA ) - FABRICE HADJADJ

   Fechado dentro de si mesmo, o homem procura em seu interior uma luz. Nesse processo de busca, ele vence o ego.
 Adorando à Deus, o crente se ajoelha e em reza se isola do mundo.
 Dizendo que caminhamos para o nada absoluto, o ateu se livra da responsabilidade perante o além. Sua personalidade, mutável, encara o nada como férias eternas. Esse seu desejo.
 Frequentador de ONGS do bem, ele dá grandes contribuições para as crianças da Etiópia. Mas finge não perceber que sua mãe chora no quarto.
 Temente à Deus, ela troca sua obediência por um bom lugar no Céu.
 Hadjadj não poupa os crentes e os ateus, os agnósticos e os gnósticos, os new age e os budistas. Ele segue uma linha clara, nítida, mas não simples, ele fala do judaísmo e do cristianismo. Mas não do que sabemos, dessa simplificação abjeta, supermercado que vende a dor como se fosse o prazer. Ele mostra que na crença judaico-cristã, nasce, pela primeira vez, a aceitação do mundo real, do mundo como ele é. E mais ainda, nasce a aceitação do tempo linear, do começo, do meio e do fim.
 Para os orientais, para os deuses do Olimpo, para os egípcios, zoroastristas e new ages de hoje, o tempo é cíclico. Tudo se repete, as coisas voltam em estações e o tempo linear é uma ilusão. ( New ages adoram pensar assim porque esse modo de ver a vida promete uma segunda chance em tudo ). Com os judeus o tempo começa a correr como o conhecemos. Há um começo do mundo e haverá um fim. As coisas nascem e morrem. E com Jesus Cristo se parte a linha em uma semi-reta, o tempo recomeça, não como ciclo, como nova vida.
 Hadjadj diz que encontrar Deus é encontrar o outro. A iluminação se dá no amor ao vizinho, ao filho, ao desconhecido, à amada. Deus não está neles, mas eles são obras de Deus. Nossa religião, a do ocidente, nunca nega a materialidade e a verdade das coisas. Elas são reais. Uma montanha é uma montanha e um minuto é irrecuperável. Cada pessoa é única. Nunca houve e nem haverá um outro eu. E o paraíso está no presente, neste agora e neste aqui.
 Não descreverei as longas histórias sobre a Bíblia e sobre a história. Leia o livro. Ele é maravilhoso. Hadjadj nunca se exibe. Ele escreve fácil e tem humor. Mas não vulgariza. O pensamento é exigente.
 Belíssimo o retrato de Mozart que ele faz. A dificuldade que temos em aceitar arte feliz feita por um gênio que foi pessoa feliz. Hadjadj defende sua ideia: o mundo tem dor e tem feiúra, mas o fundo da vida é sempre belo e alegre. Não somos infelizes com momentos de alegria. Somos alegres que se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade e pelo medo. A vida é inesgotável, é farta, borbulhante, infinita.
 A ideia de vida eterna é amplamente discutida. Ele é radical: a vida é eterna e somos nós mesmos no além. Nada da perda de memória do oriente. Nada de reencarnar. Ele vê nessas crenças um modo comodista de adiar tudo e não fazer nada. E responde aos ateus: acreditar no nada nos livra de toda responsabilidade. Mais, sem Deus nos tornamos donos de nosso corpo e de nossa vida. Nada mais mimado que pensar assim. Para muitos, nada mais assustador que pensar que após a morte há uma continuação. Voce continua tendo de aturar voce-mesmo, sua esposa, seu pai, seus inimigos. No mundo que ama a extrema liberdade de escolha, o nada absoluto se afigura muito mais tranquilo que o Céu infinito.
 Pois o Céu é uma atividade. Uma entrega ao movimento. Um descobrir sem fim. Um agora que se eterniza em usufruto e um aqui que se estende numa observação sem final. Podemos provar um pouco desse mel em nossos raros momentos de êxtase, em que sentimos nossa infinita alegria. A vida e o mundo como possibilidades que não param de se renovar.
 Para Fabrice Hadjadj, todos somos filhos de Deus e portanto todos temos nosso começo Nele. Olhar para uma pessoa é olhar para esse começo. Amar uma pessoa é amar esse começo. Esse é o mistério.
 ( PS: Faz séculos que a Bíblia é lida, relida, interpretada e reinterpretada...lendo este livro começo a entender o porque...o assunto é eterno... )

A VIDA É MARAVILHOSA

   Conheço um intelectual que passou os últimos vinte anos amaldiçoando a vida. Entre goles de bom conhaque e nacos de boeuf bourguignon, ele diz em altos brados que a vida é um buraco sem sentido. Conheço também um professor de filosofia que diz desde seus 15 anos que o homem é mofo sobre laranja podre. Hoje ele tem 60 anos e se aposentou. Mora com seus netos em Bertioga. Pesca todo dia.
  A questão que me sempre deixou pasmo é: Por que eles não se mataram? Se a vida é tão maldita, por que eles não viraram bêbados e ainda mais insistiram em ter filhos?
  Há algo de profundamente estranho em Beckett, Bergman ou Sartre, entre vários outros. Eles exibem para nós um mundo tenebroso. Sartre chega a dizer que o inferno são os outros... Mas eles viveram nessa escuridão? Como conseguiram criar em meio a tanta dor?
  Guarde esses exemplos e vamos em frente...
  Numa barraca na Siria, um pai que teve dois filhos mortos na guerra sorri de uma anedota contada por um primo. Antes, numa favela brasileira, uma mãe que tem dois filhos desaparecidos, gargalha enquanto vê uma novela na tv. Mais antes, num campo de concentração polonês, um judeu sorri ao ver um companheiro esconder uma foto erótica num buraco entre pedras. O mundo é um inferno. Será?
  Falo de mim agora... Ferido em minha vaidade por um amor que não deu certo, eu afirmo em bom som "Que ninguém merece sofrer tanto como eu". Então, colando os fragmentos de minha auto estima covarde, digo para todos que "sou auto suficiente". O inferno são os outros, não é? Para não sofrer, me fecho como ostra. Tudo que preciso para ser feliz eu posso comprar, posso criar ou posso imaginar. Estou, finalmente, CONTENTE.
  Fabrice Hadjadj diz que contentamento é a porta do inferno. Vamos ver por que?
  Crianças conhecem a alegria, mas não o contentamento. Toda criança, solta em suas descobertas, conhece a alegria de estar conhecendo sons, cheiros e cores, e a felicidade de ter alguém que cuide dela. Esse estado de alegria pode durar anos ou apenas dias, mas ele é marca que fica. Modo simples de provar essa verdade: se nunca tivéssemos conhecido o céu não daríamos nome ao inferno. A dor existe em contraste com sua ausência, a escuridão na falta de luz. A tristeza é ausência de alegria. Alegria que é a condição da vida.
  Mas então por que tanta gente triste no mundo?
  Sacada genial de Hadjadj: Para ser triste basta estar só. Na tristeza não dependemos de ninguém. Nem mesmo da sorte. Se a tristeza é uma ausência, ser triste é um conforto. Dispensamos a sorte. Dispensamos os outros. Nos tornamos blasé. Cool. Frios e distantes. É o charme da modernidade. A solidão tristonha e o auto contentamento distante. Sexo, coisas e viagens. Ficamos contentes. Mas nunca alegres.
  A alegria independe de nossa vontade. Ela acontece. E para acontecer há um mandamento único: estar aberto e disposto. O alegre é ridículo. Ele ri. Ele tropeça. Ele fala bobagens. E principalmente, ele se expõe diante dos outros. Para a alegria, o inferno é ter vergonha. O céu são os outros. Aberto, o alegre chora quando triste, e ri quando tem vontade. Vive a angústia da perda da alegria. Mas não se fecha. Espera. Ele possui ESPERANÇA.
  Pessoas frágeis temem se expor. Não riem. Se garantem. E controlam sua vida. Independem do acaso. E se sentem que a alegria é obra do acaso, desistem. Zombam da esperança que perderam. Se contentam em não sofrer. Se distraem.
  O alegre descobre. Vê a beleza numa folha de mangueira. E se deixa seduzir pelas pessoas. Se não sentíssemos a proximidade dessa alegria, a beleza inerente em tudo aquilo que existe, não insistiríamos na vida. Essa a crença de Hadajdj.
 
 

CORAÇÃO DEVOTADO À MORTE, O SEXO E O SAGRADO EM TRISTÃO E ISOLDA DE WAGNER. - ROGER SCRUTON.

   Kant, Schopenhauer, Auerbach, Nietzsche, Wittgeinstein, Freud, Merleau-Ponty, Foucault e Girard. Todos são citados várias vezes por Scruton e todos são, ao final, refutados pelo filósofo inglês. Refutados em relação aquilo de que se ocupa o livro, o erotismo e a morte. Uns mais outros menos, todos revelam algo de reducionista ao evitar o tema ou a aborda-lo de uma maneira que o descreve DE FORA e jamais de dentro. Scruton não tem medo. Ele não evita entrar no sentimento e no ato, na fantasia e naquilo que sabemos acontecer mas que não conseguimos entender. Roger Scruton aceita o não-saber. Para ele é isso o sagrado: fazer, aceitar, repetir, seguir, sem jamais entender. Saber que ali há algo que foge ao entendimento e que por isso pode ser puramente ilusório. Mas não parece ser. E por isso ele, o mistério, é confirmado em atos, objetos, lugares que são aquilo que precisam ser. Para Scruton o homem é sagrado. Por mais que o cinismo atual ria disso, ele é.
  Somos corpos reais que se percebem no limite da realidade. Enquanto corpo estamos no mundo, enquanto sujeitos estamos observando o mundo de um lugar que sempre nos parece fora da realidade corporal. É o que nos define como seres não-animais: olhamos para nós mesmos, analisamos o que somos e o que devemos ou não queremos ser ou fazer. Temos escolhas. Ao contrário dos bichos, estamos sempre decidindo, antecipando, planejando. Nosso corpo, real como é uma pedra, se move entre as coisas como ser que funciona por instinto. Nosso eu, colocado à parte do real, olha e tira ideias, cria e lembra.
  Dentro dessa verdade, o Amor-Erótico surge como o momento em que o corpo e o sujeito se unem em um só. Eu amo a pessoa que está naquele corpo. Ao contrário da pornografia, não é aquele corpo que desejo, o que desejo é quem está naquele corpo. A pessoa e o corpo se tornam um só para mim, e eu me torno um só para ela. E, contra a ideia de Freud, de que a paixão era nada mais que um tipo de fome ou sede, algo mecânico e animal, só aquela pessoa pode fazer por  mim o que faço por ela. Ela é insubstituível. Única em um universo.
  Scruton vai em frente e toca na escolha. Para ódio dos modernos, não podemos escolher a quem amar. Somos presos do acaso. Mas podemos escolher como amar essa pessoa que nos surge. E vem daí a ópera de Wagner. Scruton a disseca em texto e música. Lenda vinda da idade média, ela fala de um sobrinho que se apaixona pela mulher prometida ao tio. E ela o ama do mesmo modo. Tudo termina em morte e em vitória do amor. ( Contei a história de um modo bem simplificado ). O que Wagner mostra é que amor e morte são a mesma coisa. Todo amor verdadeiro só pode vencer se encontrar a morte. E essa morte é o modo que o amor encontra de durar para sempre.
  Wagner não acreditava em Deus. Mas amava o budismo. O amor era, para ele, o modo de se deixar dissolver no Nada e a morte se tornava assim uma libertação da ilusão. O amor de Tristão e de Isolda seria profanado se tivesse de viver em meio às exigências do mundo fútil e vazio do dia a dia. Para ele viver puro e perfeito ele precisa morrer.
  Scruton aceita isso e vai adiante. Para ele, esse amor não precisa de um deus para ser sagrado. No olhar que reconhece, na individualidade de cada amante, vive a eternidade da particularidade que só o sujeito pode ter. No amor e na morte o Ser se afirma como sujeito livre. Ele sai do mundo das contingencias, das obrigações, e passa a se mover no mundo das escolhas e dos riscos. Sim, ele não escolhe seu amor, mas como disse, ele escolhe manter esse amor no nível do AMOR CORTÊS, o mundo do amor que significa, que simboliza, que vai além. O amor que nega a fome, a pornografia. ( A pornografia é o desejo que transforma o amado em objeto desfrutável e intercambiável. Ela vive da dessacralização do amor e da ofensa ao corpo ).
  A música de Wagner, sagrada e prova de um eu criador, leva o ouvinte para dentro desse erotismo que, como todo erotismo, coloca os amantes fora do mundo real e dentro do mundo com sentido. Para o casal, só eles existem, só eles são vivos, só eles podem durar. Na morte eles dizem ao mundo que escolheram seu destino. Saíram do mundo dos fenômenos e adentram a liberdade. Deixam de ser dois e se tornam parte de um todo onde não há eu e voce.
  Qualquer um de vocês, se já amou de verdade, sabe do que falo. Por mais ateu, ou cínico ou frio que voce seja, sabe que no amor há a companhia da morte. O mundo inteiro morre para os amantes. O passado morre. O que existe é o amor e o medo de que ele se perca. Há um momento em que sentimos a proximidade da morte. "Se ela se for eu morro".
  Não se engane. Ela se foi e voce morreu.

A ALMA DO MUNDO- ROGER SCRUTON. MÚSICA, PRÉDIOS E ROSTOS.

   Roger Scruton se tornou o autor que mais leio. Fácil entender porque. Seu pensamento coincide muito com o meu e então posso dizer que sou um "scrutoniano". Chesterton tem um lado de frequentador de igreja que não bate com minha preguiça, mas Scruton alcança a fé sem negar a ciência. Ele faz perguntas, perguntas incômodas.
   De todos os livros dele que li, este é o menos acessível por ser o mais puramente filosófico. Ele fala de Kant, Hegel, Kierkegaard, Locke, e de Darwin, Freud, Marx, as vozes dominantes de hoje. Se voce conhece Scruton, sabe que ele aponta como "o mal do tempo atual", a morte da beleza, da fé e do humanismo. Para ele, tudo isso pode ser dito com uma palavra, a "morte de Deus". Entendido isso como o fim do sentimento de continuidade, de se viver e trabalhar para a eternidade, o senso de se fazer parte de um passado vivo no presente e carregado ao futuro.
  Dentre os vários assuntos Scruton fala de música, um de seus mais caros temas. Ele diferencia ouvir de escutar. Hoje se escuta música, mas pouco se ouve. Ouvir pressupõe tempo, silêncio, atenção e lugar apropriado. Com a vulgarização do escutar se perde a chance de encarar a música como uma experiência de crescimento, de refinamento dos sentidos e de beleza. E nesse texto interessantíssimo, Scruton levanta a questão de que a música é uma coisa inexplicável. Encadeamento de sons que dizem muito sem falar nada, que mostram um mundo sem ser visível, que nascem do nada, que não têm matéria, que não se pode explicar. Voce pode analisar e saber tudo sobre tom, timbre, notas, mas mesmo assim não sabe porque esses sons conseguem falar, mostrar, levar e embelezar. São harmonias, crescendos, combinações que revelam porquês jamais explicados.
  Daí Scruton vai ao mistério do rosto e ao maior dos mistérios, a empatia. O olhar olho no olho que mostra a alma. Nossa procura por algo de escondido no olho do nosso amor. Pornografia é a destruição do rosto, a transformação de sexo em pernas e bundas. O amor e o erotismo são faces, rostos, olhares. O rosto que fala sem falar, eis a revelação da alma. Olhamos o rosto de uma pessoa e não vemos olhos e nariz, boca e orelhas, vemos um sujeito que ansia por ser revelado.
  E daí vem a arquitetura e de forma esperta Scruton revela que a boa arquitetura tem rosto e a má tem objetos. Boas construções são como rostos, têm vida, são únicas, revelam o que se esconde por trás. Más construções nada revelam. São corpos sem rostos. Não falam, não mostram e nada comunicam. São mortas, frias, indiferentes.
  Fiz um resumo apenas, o livro é vasto, grande, colossal. É preciso o ler.

SUICÍDIO E ALMA - JAMES HILLMAN

   Na verdade é um livro indicado para terapeutas. Ele ensina um modo de lidar com pacientes suicidas. E fala, de uma forma interessante, corajosa, do que é esse ato.
   Hillman morreu em 2011 e foi um dos mais lidos junguianos dos anos 60-90. Neste texto ele defende a não-especialização dos psicólogos e, mais ainda, faz uma defesa apaixonada do direito à morte.
  Construímos nossa morte dia a dia. Nossa alma, parte mais importante de nós mesmos, luta por evoluir, crescer, desabrochar. Mas, na vida, só nasce aquilo que se desfaz, aquilo que morre. Para uma nova fase aparecer, para a vida se renovar, é necessário se deixar morrer. O suicida é aquele que não soube simbolizar a morte, que não entendeu a morte e que escapou do desespero. Não existe mudança sem dor, não há morte sem desespero, não se encontra nada sem que se perca tudo. É um fato radical, não existe acordo: crescemos criando mortes. A morte da infância, do amor, dos pais, do passado, das esperanças, das certezas, da fé. E renascemos somente após morrer. O suicida se poupa disso tudo. Ele mata seu corpo por não suportar a morte da alma. Ele não é o grande desesperado. Ele morre antes do grande desespero.
  Nosso mundo, científico, ama a vida. E considera que vida boa é vida longa. Prolonga-se a vida, mesmo que mal vivida. Mais que isso, poupa-se a pessoa de toda morte. Vida sem morte, sem símbolo, sem luto.
  A forma como Hillman explica a influência, nefasta, da medicina sobre a terapia de alma é instigante e esperta. Médicos lidam com sintomas e curam sintomas. Psicólogos têm a ilusão de poder curar sintomas. Se esquecem que o sintoma é a pessoa. Médicos dão diagnósticos e aliviam a dor. Psicólogos querem aliviar e diagnosticar. Diagnóstico em psicoterapia é uma piada. Cada ser é sua dor, cada ser é uma alma única. Pior de tudo, o médico deseja que o doente volte a ser o que ele era antes da doença. Um paciente em terapia não pode voltar a ser o que foi um dia. Isso seria negar sua evolução rumo à individuação. Na fantasia de ser um "médico", psicanalistas vendem a ideia de que uma pessoa é uma origem eterna, um ser criado na infância, e que todo mal vem de lá. Como patologistas, querem crer que uma pessoa pode ser reduzida a pedaços mínimos, partículas mais simples, átomos comuns. Não. O paciente é uma vida que se faz aqui e agora e não no passado. Sua dor é agora, seu sofrimento é agora, seu desespero é uma presente que não passa. Não existe volta "ao início".
  O suicida é o individualismo levado ao extremo, e por isso é tão mal visto pela sociedade. Ele morre quando e onde escolhe, é responsável por seu ato, por seu fim. E para ele esse fim é o fim da morte. A alma, ansiosa por nova vida, leva a destruição do antigo ao seu extremo. Perde o símbolo, torna tudo óbvio, sólido, imediato. Mata o corpo.
  Um terapeuta não tem como impedir um suicida. Mas pode e deve participar de seu ato. Ouvir e lhe abrir caminho para o desespero. A única chance é essa, facilitar o diálogo entre alma e consciente. Respeitando sempre a morte do ser. A sua morte.
  Eu já morri mais de quatro vezes. A última foi em 2010. Todas foram marcadas por desespero, vazio, falta de vontade, medo, sensação de prisão, desperdício. Todas terminaram em renascimento, um novo modo de sentir, de querer, de ver a vida, de aceitar as pessoas. Não há uma receita para renascer. Pois não há uma receita para morrer. O suicídio vem quando a pessoa, mais que viver, perde o dom de morrer. Ela não consegue mais morrer, não consegue sentir a agonia, o desespero, a desesperança. Ela seca dentro de seu corpo e a alma, essa nossa parte que nunca morre e desconhece o tempo, que vive em transformação, reclama a morte, seu direito a mudança radical, ao crescimento. O corpo se rompe. Morre. A alma vence. Sempre vence.
  Para Hillman toda morte é um suicídio. Construímos nossa morte ao comprar um carro, uma moto, ao tomar uma droga, ao começar uma viagem, ao tomar sol. Ao nos apaixonar.
 

ISLÃ

   Doze anos depois estou relendo a biografia que Edward Rice escreveu sobre o aventureiro inglês Richard Francis Burton. Aventureiro é modo de dizer, pois Burton foi soldado, filósofo, escritor, descobridor e o primeiro ocidental a se tornar mestre do sufismo, corrente mais sofisticada e sutil do islã. Mas não vou falar do maravilhoso livro agora ( é a mais fascinante biografia que li e deveria ser obrigatória em dias como os de hoje ). Vou falar do islã.
   Uma das coisas mais legais deste volume é que ele fala do islamismo antes do 11 de setembro. Rice o escreveu nos anos 80. E Burton esteve na India, no Egito, na Somália, em Meca por anos e anos. Ele viu os mestres, ele fez os sacrifícios, ele viveu com mulheres de lá. Ele se tornou um deles. Por curiosidade e por fé. Era um europeu gnóstico. Entrou de cabeça na cabala e depois na religião de Maomé.
  Burton criticava o hinduísmo. O cristianismo. Mas nunca o islã. E um dos preceitos do sufismo é calar sobre sua fé. Não se mostrar diante dos infiéis. Ser invisível.
  O cristianismo, segundo Burton, errou muito em seus primeiros séculos. Errou por não insistir na reza diária como caminho para a concentração e a iluminação. Errou por não observar os horários do dia como momentos sagrados. Errou por não seguir uma receita de alimentos impuros. Errou por divulgar a dúvida e não a absoluta certeza. E exatamente em sua primeira grande crise, o século VI, surge o islã. Maomé traz de volta tudo aquilo que o cristianismo perdera.
  Para o seguidor do islã, a vida não tem questões a serem respondidas. Não há dúvidas. Vivemos num vale de lágrimas. Mas esta vida significa apenas um ponto, uma pulga, em vista da imensidão da eternidade. Estamos aqui para orar à Deus e para amar à Deus. Não para O questionar. Jamais. Todas a respostas estão no Corão. E só nele. Devemos ser limpos. E seguir os preceitos.
  Claro que existem as correntes que se detestam e se negam. Burton conheceu todas elas. E Rice as explica. É um intrincamento de caminhos sutis ou não. Mas o islã tem algo que o cristianismo tenta esconder : proibições. O cristianismo, sempre politico, fez concessões para poder crescer. O islã cresce por apresentar um mundo que não muda nunca. Ele é o que é e nunca mudará. Nega o tempo. Tempo que o cristianismo ama e venera.
  Neste momento de preconceitos de ambos os lados, ler este livro é acima de tudo um ato de paz.

COISAS INUTEIS QUE VALEM TANTO...

Em 2010 eu morava em uma casa pequena, simples, feita em 1950. Casa de gente da baixa classe média. Da mais baixa das médias. E mesmo assim aquele que a construiu teve um cuidado imenso em fazer coisas "inúteis", sem funcionalidade, para dar à modesta casa algo de "belo".
O teto da sala tinha um círculo de gesso ao redor do lustre. As paredes tinham molduras que acompanhavam as linhas das paredes. No lado de fora havia um trabalho esculpido emoldurando todas as janelas. Além disso, as grades do portão tinham voltas e círculos e claro, um jardim.
Vejamos agora uma outra residência feita para o mesmo tipo de pessoa. Só que construída em 1990. Sem jardim, a frente é ocupada por um coberto que serve para guardar o carro. O portão é reto e seguro. Cumpri sua função. Não há moldura nas janelas, pois esse seria um trabalho inútil. As paredes são lisas, pois a única preocupação é fazer com que elas segurem o teto. Mesmo na escolha das cores inexiste a preocupação com a beleza. São escolhidas porque acumulam calor ou não. São fáceis de lavar. Ou não.
Postei acima um video de Roger Scruton em que ele fala sobre a beleza. E, claro, só dou este exemplo, não vou repetir o que ele diz. Assista. Assino tudo o que ele fala.
Mais um exemplo então: Estudei numa escola pública em 1969. A escola tinha azulejos nas paredes dos corredores. E janelas de vidro opaco. Havia um vitral no pátio. E era cercada por um jardim. A visitei hoje. Os azulejos foram pintados. O vitral coberto por tijolos. O vidro opaco são hoje placas de ferro. E o jardim foi coberto por um puxadinho. Tudo mais util.
Termino este testemunho dizendo que a beleza é o consolo da vida e por isso ela é uma religião. E que um mundo sem o conceito de belo não vale a pena ser defendido. A arte moderna identificou o belo com a odiada burguesia. Burgueses amavam o belo. Mas esses artistas se esqueceram de que a arte também amava o belo. Nós todos amamos o belo. E sabemos o que é belo. Nosso instinto, nossa intuição diz o que é a beleza e o que é feio. É visceral. É espiritual. É humano.
Belo é tudo aquilo que reflete fora de nós o que há de melhor dentro de nós.
E eu tenho a certeza que o meu melhor não é uma lata de merda ou um monte de tijolos.
Mas pode ser tanto o Davi como a Guernica. A dor e a raiva são partes de meu melhor. Mas dor e raiva expressas usando o que de melhor há para se usar: criatividade e linguagem que transcende o banal. A arte e o belo nos erguem. Faz de nós seres menos miseráveis.
A arte de 2017 ( salvo exceções ) me lembra o rancoroso que por não conseguir cantar, grita que seus gemidos são música melhor. A arte se tornou um clube de rancorosos impotentes. Gente incapaz de amar a vida. E que tenta crer que a arte foi sempre assim.
Não meus queridos infelizes. A arte é homenagem à vida.
E sendo assim, é o mais belo dos presentes.

CRIANÇAS

   Não confunda uma pessoa que mantém sua criança viva dentro de si, com uma pessoa infantil. Um adulto infantiloide foi uma criança pouco "criança". Foi uma criança sem a principal característica de uma criança, a curiosidade sem fim.
   O adulto infantil é apenas um chorão. O adulto criança é um curioso. Ele jamais aceita um fim nas coisas. Para ele, tudo tem um depois e depois e mais um depois. Não há solução, dogma ou lei que o satisfaça. Ele pergunta mais e mais e mais.
   Esta foi uma das mais brilhantes aulas que tive. Ela envolveu neurologia, linguística e filosofia. E o assunto era A Criança.
   A criança olha, cheira, ouve e procura. Cada nova planta, bicho, manhã, noite, pessoa, é digna de um interesse profundo, curioso, investigativo, perscrutador. Ela quer entender, entrar, tocar, pegar, comer. Tudo. O cérebro é conectado com todo o FORA. Ele é ainda um vazio que não tem fim e por isso, sente fome.
  A educação, por mais que tente não fazer isso, MATA essa curiosidade. Ela cansa e dá a todo questionamento uma resposta pronta, fechada, definitiva, final. O vazio se enche daquilo que já vem mastigado, dividido, catalogado, pesado e curtido. A curiosidade se vai.
  O CÉREBRO ADORMECE. ( Que bela imagem essa! Um cérebro que dorme ).
  Ergo a mão ao fundo da sala e digo: " Então o gênio é aquele que continua criança! Pois Goethe, Mozart, Michelangelo jamais adormeceram!"
  A mestra diz que é exatamente isso! O gênio é uma criança que nunca se fecha. Por isso eles são vistos, na vida pessoal, como inconsequentes, tolos, perdidos ou bobalhões. Deixam o bom tom, o que é esperado pelos adultos de lado, e continuam querendo ver, cheirar, pegar e ir lá fora. Continuam principalmente dizendo: "Eu não sei", "Porquê sim" e "Não tem motivo". Portanto, nunca confunda um adulto-criança com um maluco doidão ou um intelectual revoltado. Esses falam por e com afirmações. O adulto-criança faz perguntas. E se cala.
  O normal na humanidade deveria ser o que vemos como raro. Todos poderiam ser Mozart. Mas, para poder viver em grupo, todos por um e um por todos ( toda criança é egoísta ), transformamos essas crianças em adultos. Gente previsível, prática e pouco curiosa. E os talentos se tornam, digamos assim, apenas "inteligentes", ou seja, funcionais e razoavelmente criativos. Integrados mesmo em sua loucura tratável.
  Por isso, como educador, devemos tentar salvar pelo menos uma migalha dessa curiosidade. Não a sufocando completamente com verdades absolutas, fórmulas incontestáveis e planos fechados.