Bing Crosby & Frank Sinatra - Well, Did You Evah (High Society)



leia e escreva já!

A DITADURA DO CLEAN E O MEDO DO FIM ( SOBRE CIGARROS E PIERCINGS )

   Uma amiga escreveu que essa onda de perseguições contra os fumantes significa uma invasão aos direitos do indivíduo. Se eu fosse fumante me sentiria incomodado, claro, e acho que estamos entrando no exagero, sim. Mas ao mesmo tempo em que se fecha o cerco contra o fumante, se tolera o garoto com dúzias de piercings, centenas de tatoos ou um casal homo de mãos dadas na rua. Então o problema não é de direito. Direitos justos, que não eram dados, hoje, felizmente, são concedidos. O que acontece então?
  Penso que o problema, óbvio, é que a fumaça do cigarro incomoda. Esse é o grande motivo. Mas, um cara ouvindo funk no ônibus também incomoda e mesmo o casal gay na rua pode incomodar alguém. No rosto com vinte piercings há incômodo a quem o vê ( minha mãe se sente agredida ). Porque tanto ódio ao cigarro?
  Vivemos numa época que nega tudo aquilo que não pode ser explicado ou suavizado pela ciência. As religiões que crescem são aquelas que estupidamente "explicam" tudo. Falamos sobre sofrimentos que podem ser "domesticados" pela medicina ( depressão, TOC, fobias ), o que não é explicado não existe. Nesse mundo infantil, mágico, onde aquilo que temo "não existe", a morte torna-se convidado indesejado. Quem já enterrou pessoa querida sabe o que falo: nada em nossa sociedade ritualiza esse momento. O luto, a oração, os símbolos da morte nos foram roubados. Sobre a morte nada pode ser falado.
  A coisa é óbvia. Em civilização predominantemente atéia ( mesmo os que vão a cultos têm dúvidas ), a morte se torna um pensamento a ser negado. Insuportável. Ao negar o direito de se matar "de seu modo" a todos, estamos na verdade tentando esquecer o nosso próprio fim. Pois se aquele cara fuma sem parar, ele sem saber está jogando em nossa cara que comemos carne cheia de hormônios e bebemos produtos suspeitos. Não estamos nem aí para a morte de um fumante, o que não podemos suportar é ser lembrados da nossa morte futura.
  Tenho amigos que não suportam museus, filmes "velhos", músicas "antigas". Já vi várias vezes pessoas desprezarem e desrespeitarem velhos em filas e em ônibus. Tudo o que é lembrança do fim, do antigo, do que já se foi, deve lhes ser odioso. Tudo o que cheira a cemitério lhes dá pavor.
  Mas voce pode dizer: mas esses jovens se matam em motos, se enchem de drogas e não ligam motos e drogas à morte.
  Sim, é verdade. Mas não se esqueça que motos zumbindo pelas ruas, cocaína e crack estão associados a coisas "jovens". Mais que a escolha de modo de morrer, andar de moto é ser "valente", mais que suicidio, se drogar é ser "do contra". Cigarro tem uma imagem bem outra. E não vamos nos esquecer, sempre que se lembra do "passado" o que se imagina é uma multidão de fumantes. O cigarro é retrô, antigo, old fashion, velho portanto. Não é a morte rápida e jovem do acidente na rua. Não é a morte inconsciente da droga. É a morte em casa, gota a gota, lenta, doída, real. A morte que hoje todos tentam esquecer.
  Mundo de higiene absoluta. Ditadura das dietas, das academias, dos regramentos. Tudo isso criado para vencermos a morte. O que nos assusta é que ela é imbatível. O futuro será como o interior de uma geladeira: branco, frio e limpo. Tão limpo que parecerá... morto.

FRANK SINATRA E A ARTE DE VIVER- BILL ZEHME ( NÃO INDICADO A MENINOS SENSÍVEIS, MENINAS MODERNETTES E MOÇOS INTELIGENTINHOS )

   Não é uma biografia. Apesar que até pode servir como uma. Na verdade é exatamente aquilo que o título diz, Frank Sinatra dá conselhos sobre a arte de viver bem. E Frank pode se dar esse direito, ele viveu, ele amou muito, brigou muito, errou demais e deu sempre a volta por cima. Frank dando conselhos é muito melhor que a maioria dos filósofos e psicólogos, ele fez, não leu e decorou.
   Amizades, festas, bebidas, roupas, casamentos, mulheres, familia; esses os assuntos sobre os quais ele mais se detém. Fala de forma direta, sem enrolação. Muita gíria, muita malandragem.
   Fidelidade absoluta aos amigos. Sinatra era famoso por ajudar amigos, com dinheiro, com trabalho, com apoio moral. As melhores histórias e as melhores frases do livro estão nesses capítulos. Dean Martin, Sammy Davis Jr, Bogart, Shirley MacLaine, Joey Bishop. Há ótimas histórias sobre todos eles. Engraçadas, algumas bem tristes. Zehme conta que em 1949, na época de azar, os amigos viravam a cara para ele. Isso o marcou tanto que ele nunca mais pediu ajuda a ninguém e passou a oferecer ajuda a quem o merecesse. Frank Sinatra nunca perdeu seu jeito siciliano, seu modo de falar dos amigos é o modo caloroso, familiar, honroso dos sicilianos, modo que também tem ares de máfia. E daí?
   Jack Daniels, muito Jack Daniels. Sinatra diz beber uma garrafa por dia. Todo mundo sabe que é mentira. Na verdade ele "usava" uma garrafa por dia, enchia seu copo, dava dois goles e o deixava num canto. Enchia outro, dois goles, abandono. Isso lhe dava a fama de bom bebedor, que é o que ele queria. Cigarros ele nunca tragava. Eram parte do show. Sempre a mão, mas nunca tragados. Mas mesmo assim, Sinatra sabe o que fala, entende de Jack Daniels, ensina drinks, adora vodka, e principalmente ele sabe acender o cigarro de uma dama. Um gesto fluido, leve, rápido, sem afobação.
   Sinatra é um homem a moda antiga. Para ele nenhuma mulher deve ser tratada como uma qualquer. Todas eram "mamas" em potencial. deviam ser bem alisadas, elogiadas, protegidas e nunca jamais agredidas. Dean Martin diz que para Frank até as prostitutas não eram putas. Sinatra lhes dava presentes, conselhos, ouvidos, ombros e sexo. Mas não se vangloriava de suas proesas. Era um cavalheiro.
   A vaidade era imensa. Foi filho único e com 14 anos já tinha oito ternos. Frank Sinatra adora a limpeza, a roupa certa, o lenço no bolso, a calça bem passada, a elegância discreta, correta, perfeita. Ele foi guru de moda para milhões de homens ( hoje é.... Jay Z ? ), homens que copiavam o chapéu que ele usava, a gravata, o sapato. Homens que sonhavam em achar sua Ava Gardner.
   Ava Gardner destruiu Sinatra. Foi a mulher que o humilhou, que fugia, que não baixava a guarda nunca. Ele, quando a perdeu de vez, pirou. Perdeu o rumo, afundou, quase morreu. Quando retorna a vida, lança uma montanha de lps que são a educação sentimental de todo homem que merece ter culhões. Lançando até quatro por ano ( sim, 48 faixas todo ano ), ele teve a esperteza de variar. Um Lp alegre, um triste; ou seja, um para dançar com a dama, outro para chorar a falta dessa dama. Eu conheço todos. Os discos tristes são a coisa mais deprimente que já ouvi. Quem pensa que Nick Drake ou Leonard Cohen é o máximo em tristeza nunca escutou " I'm A Fool for Love You". Por outro lado, os discos pra cima são a coisa mais alegre, chic, viril e sexy que já ouvi. O homem era foda!
   As festas são do tipo que começam sexta-feira em Los Angeles e terminam na segunda em Londres. Frank era dono de 3 jatos e era comum que ao escutar de uma dama que ela adorava lagostas de um certo restaurante em Paris, mandar um avião buscá-las e as oferecer um dia depois. Assim como oferecia advogados, guarda-costas, casa, para quem precisasse.
   Ele era intenso. Se era amigo, era um irmão, se era irmão, era Frank Sinatra. Não dormia, tinha medo de perder alguma ação. Logo enjoava das coisas, então partia para alguma nova coisa. Sempre cercado por amigos, odiava ficar só. Tinha de falar, de se mover, de se exibir. Era o que hoje chamamos de "O Cara".
   Mas não há nada parecido com Sinatra hoje. Não falo como artista, falo como homem. O tipo de homem-Sinatra foi morto pelo feminismo, pelos hippies, pelo excesso de drogas, pelo relativismo. Ele não chorava em público, não se lamentava quando devia rir, nunca baixava a guarda. Suas lágrimas, suas lamentações, suas loucuras eram exibidas em casa, para dois ou três amigos, e só. Ele servia seus fãs, respeitava-os, tinha de ser Frank Sinatra. Jamais faria coisas como os astros do rock fazem ou fizeram. No mundo de Frank, "sofrer" por ser famoso era hipocrisia de fracos. E um homem é forte. Ou não tem culhões.
   Nada do que está no livro teria valor não fosse Sinatra quem foi. O Cara, o chefe, o grande boss, o cara que sabe se divertir, que sabe onde ir e quem encontar. O que vestir, o que botar no som, o que comer e beber. Ele sabia viver, e melhor, fazia seus amigos viverem esse "saber" com ele. O cara era foda.
   Uma infinidade de homens tentou ser Frank Sinatra em alguma coisa, em algum momento. Ninguém chegou perto ( quem chegou perto foram aqueles que Sinatra seguiu: Bogart e Dean Martin ), mas tentar já é um mérito.
   Recomendo o livro como excelente leitura de ano-novo. Se voce não for um caso perdido, vai te botar lá em cima. Como deve ser.

O MAR, O MAR - IRIS MURDOCH, É POSSÍVEL SABER ALGUMA VERDADE?

   Fizeram um filme sobre Iris Murdoch alguns anos atrás. Acho que Richard Eyre dirigiu... sei que era com Kate Winslet e Judi Dench. Bom filme, que mostrava a importância de Iris para a cultura inglesa no período 1960/2000. Ela fazia palestras, divulgava sua filosofia, tinha fãs apaixonados. Leio em Harold Bloom que ela era profissionalmente uma filósofa. E Bloom diz que considera Iris Murdoch autora genial, mas que estranhamente, ela nada escreveu de plenamente satisfatório. Para ele, Iris nunca escreveu um romance, ela escrevia textos romanescos.
   Texto romanesco é aquilo que Stevenson ou Kipling escreveram. Livros em que a ação e a ambientação são o mais absorvente. Os personagens são secundários. Nunca parecem seres reais. Weeell.... Murdoch adorava Henry James e Shakespeare, dois mestres em criar gente de verdade. Mas, nos livros de Iris, o que nos seduz é seu enredo, os momentos de mistério e de leve absurdo que ela cria. Quanto aos persoangens, nos são quase indiferentes.
  Aqui, um diretor de teatro, aos 60 anos, resolve se aposentar. Ele é famoso, de um modo pop e quase vulgar. Compra um velho e esquisito casarão numa praia inglesa e passa a viver lá, só. O inicio desse longo livro é delicioso. Murdoch nos leva pela mão à esse mundo meio doido, meio mágico que ela cria. Nos sentimos em meio ao sol, a espuma do mar, as pedras, as salas da casa. O ex-diretor começa a ter a sensação de que coisas estranhas acontecem na casa. E chega a ver um monstro no mar. Logo sabemos que as coisas estranhas eram seus amigos, que se infiltravam na casa sem que ele o soubesse. E que o monstro pode ser um flash-back de uma antiga viagem de LSD. 
   Mulherengo, esse velho homem recebe visitas das atrizes e vedetes que amou. E dos atores que conheceu. Ele começa a escrever suas memórias, que é o livro que lemos. Na infância foi menino retraído, com inveja do primo mais rico. E é escrevendo esse livro que ele mergulha no inferno: recorda sua primeira namorada, e ao surpreendentemente encontrá-la na praia, passa a viver um delirio de ciúmes, de medo e de paranóia. E mais do enredo eu não conto.
   Murdoch era adepta de um tipo de platonismo do bem. Ela acreditava que o que vemos é ilusório, e que a vida verdadeira só pode nos ser conhecida de forma indireta.  Charles, o diretor aposentado, é quem nos conta a história, nos revela seus pensamentos, seus sentimentos. Mas algo nos perturba. Começamos a perceber que Charles está completamente enganado. Que sua primeira namorada é uma senhora feia, desinteressante, e pior, que ela não o quer. Charles vê em tudo aquilo que ela faz um sinal de amor, planeja coisas impossíveis, tem total fé naquilo que quer crer. Ao mesmo tempo, ele nos descreve seu primo como um arrogante e sem sal militar reformado. Mas ficamos confusos, porque tudo o que esse primo diz nos parece interessante, profundo, do bem. Por mais que Charles fale mal desse primo, o que desejamos é ouvi-lo falar.
   A paixão de Charles termina em morte. Ele se enganara. E ao fim do livro, em belas páginas, descobre que seu primo era muito mais do que ele imaginara. James, o primo, fora sempre um estudioso de misticismo budista, um colecionador de obras do Tibet, um mistério. E fora também o homem que sempre lhe ajudara. Quanto ao primeiro amor... que amor?
   Como leitores somos manipulados pela arte de Murdoch. Acreditamos em Charles, depois percebemos seu erro e sua doideira e ao fim, quando ele cai na real, quando ele renega seu amor "louco", sua paranóia, vem o pensamento fatal: E se ele estivesse certo? E se aquele fosse mesmo seu grande amor? E se ela realmente o amasse? E se a "febre" de Charles fosse na verdade "o bem" ?
   Iris Murdoch dizia que o mundo de Shakespeare, Homero, Dante e Tolstoi é o verdadeiro mundo. É o mundo real, que não conseguimos e não suportamos perceber. Que o drama mágico de Shakespeare, que as paixões simbólicas de Homero, que a poesia de Dante ou o imenso universo de Tolstoi são a verdade. Que o cotidiano de jornais, tvs, carros e telefone é apenas A Ilusão.
   Iris Murdoch estava certa. E quanto mais o mundo avançar século xxi adentro, mais razão lhe daremos. Não esquecer o mundo de Shakespeare, de Dante, Homero, Tolstoi é recordar sempre o que somos DE VERDADE. É não perder contato com o que desejamos, o que sofremos, o que podemos ser e aquilo que acreditamos.
   O resto é pó...

APRENDENDO A PENSAR

   É dificil pensar, requer muita atenção e algum tempo. Coragem também.
   A vida toda eu pensei que pensava. O que eu fazia, na verdade, era reagir à vida e repetir certos conceitos decorados. Dialogava comigo mesmo aquilo que outros haviam me ensinado. Isso não invalidava o mérito de conhecer os pensamentos de Tolstoi ou de Nietzsche. O problema é que eu não sabia pensar por mim mesmo.
   Certas experiências de vida, e alguns poucos momentos de arte, começaram a me colocar em dúvida. E creia, não existe pensamento se voce não duvidar da certeza. Para mim, muitas coisas eram certezas absolutas. Lembro que eu adorava posar de conselheiro. Dava opiniões definitivas sobre o que era o amor ( desejo sexual sublimado ), sobre as mulheres ( tudo o que desejam é um herói ), sobre a religião ( ideologia dos fracos ) e sobre a vida em si ( um aprendizado ). Era cômodo crer nessas certezas, e mais esquisito, eu achava que eram pensamentos meus. Quanto mais triste minha vida se fazia, mais eu me agarrava na vaidade de ser "um pensador consciente". O consolo de minha vida era "saber pensar".
   Não sei quando exatamente as coisas começaram a ruir. Mas houve um momento em que percebi a fragilidade de tudo aquilo que eu gostava de pensar como óbvio. Talvez tenha sido a morte de meu pai, que me fez perceber que eu, que tinha tantas certezas sobre quem ele era, simplesmente não o conhecera. Talvez o contato com gente de classe social que eu desconhecia. Perceber que essas pessoas são diferentes dos chavões sobre elas propagados. Ou tudo isso mais a massa imensa de filmes, livros, teses, conversas, memórias, imagens, que o tempo livre e a disposição a aprender me fizeram penetrar. Eu adentrei aquilo que não conhecia. Deixei de amar apenas o que ia de encontro ao que já sabia. Viajei para o outro lado. Comecei a tentar pensar. Ver o óbvio que fazemos força para não ver.
   Pensar coisas como:
   Talvez meu pai estivesse certo e eu errado, talvez as pessoas mais simples estejam próximas da vida, e talvez arte, poesia e psicologia não tenham qualquer importância. Quem sabe o sexo não seja, na verdade, uma forma mais fácil de amar, e portanto o amor não é sublimação de nada, mas sim o sexo seja consolo de quem não sabe ou consegue, amar. As mulheres talvez não desejem um herói, talvez os heróis é que tenham um desejo imenso por elas. Talvez a religião seja coragem, a coragem de se submeter a algo fora de seus poderes. Talvez ela esteja acima da arte e da razão. E quem sabe a vida não seja um aprendizado, ela seja apenas um vazio cujo sentido nos é negado saber. Ou não. Pensar seria ver o lado oposto, mais que isso, seria inverter a questão.
   Dessa forma, se Nietzsche diz que os judeus eram escravos que aprenderam a valorizar a escravidão, eu penso, o que isso pode ter originado de bom? Os senhores do Egito eram melhores que eles? O que é melhor ou pior? O que é bom? Qual o mal em se ter uma ideologia escrava? O que há de belo no SuperHomem?
   Se a religião é o ópio do povo, eu penso: que ópio é esse? Que efeitos positivos essa droga traz? Quais seus efeitos negativos? Mais que isso eu penso, ópio em relação a que? A arte é ópio, o marxismo é ópio, Freud é ópio, poesia é ópio, maconha e prostitutas são ópios. Qual a droga menos ruim? O que é ser ruim?
   Pensar não é apenas questionar tudo, é intuir certas coisas. A única que agora tenho certeza é que nossa razão é tão limitada quanto nossa visão ou nossa audição. Não percebemos a totalidade, não conseguimos sequer imaginar o todo. Míopes, só vemos a fração, o pequeno, o quase insignificante. A vida nos é incompreensível.
   Aprendi a desconfiar de religiosos que se travestem de politicos, que se embrenham nas questões da matéria, e de ateus que se dão a missão de catequizar, de se unir em igrejas materialistas, que opinam sobre a fé. Os dois pensam pensamentos mortos, pensamentos que não resistem a duas ou três perguntas. Um responderá a tudo: "porque assim é".  O outro sempre dirá: "não existe prova concreta". Para um eu direi: pode não ser assim. E para outro eu responderei: me prove a verdade concreta de um só pensamento.
   Me lembro de uma tarde, após bela hora de amor, voltando a pé pra casa, de repente eu imaginar São Pedro e São Marcos no céu, sobre nuvens, exatamente como numa pintura de Rafael. E um pensamento me ocorrer: Não seria hilário se nós tivéssemos dado tantas voltas, e descobríssemos ao final que as coisas eram tão claras assim? Que um Deus existisse e os Santos e tudo mais? Seria humilhante para todos nós, homens que pensam. Pois é... esse cômico pensamento me fez perceber que novos modos de ver e de duvidar estavam ao meu lado todo o tempo. E que eles eram tão válidos e possíveis como a existência da partícula fundamental ou a evolução do pato e do marreco. O mistério vive dentro do próprio ato de pensar o abstrato. A matéria é sua consequencia.
   Depois, voltando a estudar, comecei a perceber que esses pensamentos me ajudavam a compreender aquilo que era dado. Literatura, filosofia, linguística, se tornaram conchas abertas. Eu saí da linha reta do pensamento aprendido, entrei na roda sem eixo do pensamento criativo.
   Posso estar longe da verdade ( estou ), posso estar girando a toa, sem rumo ( com certeza ), mas penso do meu modo, portanto, estou vivo.

CATCH.44 - AARON HARVEY, UMA DAS 3 VERTENTES DO CINEMA ATUAL

   O filme é assim:
   Em cores fortes, verdes, amarelos e azuis berrantes, assistimos a um papo furado entre três garotas "interessantes". Cigarros ( se fuma muito no filme ) e de repente música, Fox On The Run, do Sweet. Tiroteio, sangue e detalhes de perfurações de bala. A história tem vários flash-backs, e uma balconista grita e inicia mais um tiroteio. O filme tem também várias cenas de carros ( todos dos anos 70 ) e a exibição de enormes armas platinadas. David Bowie com Queen Bitch, um clipe de ação dentro do filme, ao som dessa obra-prima do rock glitter. Voce sente em todo o filme um clima de anos 70. De vez em quando a imagem parece se estragar, o filme tem efeitos digitais que o fazem parecer feito de película gasta, estourada. Estranhamente, apesar do filme ser de 2011 e se passar em 2011, nos carros só se usa toca-fitas k7 e nos bares só tem juke-box. Já lá pro final, tem uma cena com armas que apontam para armas e onde ninguém sabe quando ou em quem atirar. Sacou?
   O filme é uma cola, uma homenagem ou um roubo ( depende de seu ponto de vista ), de tudo o que Tarantino fez. Só que sem seu humor, sem sua leveza, sem seu porquê. Por ser fã de Tarantino, eu me diverti, mas se voce não for fã, esqueça. Escrevo isto pra falar de uma coisa diferente. ( Mas vamos admitir, PULP FICTION é o filme mais importante dos últimos vinte anos. Mais importante, não o melhor. )
   O cinema da América tem hoje três vertentes, três turmas dominantes.
   Tem a turma nerd, cujo representante maior é agora Peter Jackson. Filmes de efeitos, dirigidos a bilheteria e com tons de papo científico sério. Seus antecedentes são Spielberg e Cameron. Usam óculos e barba. Sempre conectados.
   A turma sensível bonzinho. Esses adoram filmes baratos, de cores pastéis, geralmente sobre adolescentes tristes ou drogados suicidas. Gus Van Sant é seu guru, mas tem toneladas de gente nessa turma. Costumam ganhar festivais. Vestem camisetas gracinhas e tênis de lona.
  E a turma deste filme. Fumam, bebem e adoram se considerar "on the road". Têm um caso sério com a época do rock de garagem. Tarantino é seu deus e amam cinema lixo, filmes de terror barato, porradaria, kung-fu. Usam camisas havaianas e óculos escuros.
  Salvo maravilhosas excessões, o grosso do cinema de agora é filho legítimo ou bastardo dessas correntes. Espero que um dia surja alguém com o talento para unir as três. A comunicação fácil do cinema de JJ Abrams, o coração de Sofia Coppolla e a virilidade adolescente de Robert Rodriguez.
  Catch.44 não é esse filme. Mas para alguém que como eu,achou Machete do cacete, dá pra tirar uma fácil.

It's So Audrey! A Style Icon



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AUDREY HEPBURN, UMA BIOGRAFIA- WARREN G. HARRIS

   Quando estreou no cinema americano em 1953, com A PRINCESA E O PLEBEU, Audrey havia feito apenas pontas em filmes europeus e uma peça de teatro. Nessa estréia, subitamente ela se torna a estrela mais amada da América e leva o Oscar de melhor atriz. Começo melhor que esse, até hoje, ninguém conseguiu ter. Mas foi fácil?
   A origem de Audrey Hepburn é nobre. Nascida na Bélgica, criada na Holanda, por parte de pai e de mãe, Audrey tem sangue azul e uma linhagem que chega até 1530. Foi criada em palácio de 50 quartos e desde sempre teve como característica a educação esmerada e gestos de quem sempre dormiu em dosséis de seda. Estudou ballet, e de repente as coisas começaram a ficar muito esquisitas. Os pais se filiaram a partidos fascistas, a mãe principalmente, tinha orgulho de suas ligações com Hitler. Mudaram-se na década de 30 para a Inglaterra, o pai era grande executivo de empresa mercantil, e lá se uniram ao odiado partido fascista inglês. Audrey era então uma criança, mas o mundo em que ela vivia lhe cobraria um preço. A guerra começa, e num erro de cálculo, a mãe resolve que a Holanda seria mais segura. Voltam e vêem a miséria da guerra de perto. Perdem propriedades, passam fome ( como toda a Holanda de então ), sentem frio, ficam doentes. É então, aos 11, 12 anos que Audrey adquire a silhueta que a faria famosa e que mudaria o conceito feminino de beleza. Ela se torna muito magra, por fome, não por opção.
   O pai ficara na Inglaterra, e Audrey ficaria 25 anos sem saber dele. Ele é preso por suas ligações com o fascismo, e depois da guerra passa a viver na Irlanda, em condições ruins. Na Holanda Audrey vê trens levando judeus e sua mãe começa a cair na real. Talvez Hitler não fosse a melhor escolha para nobres com medo do comunismo.
   A guerra acaba e a adolescnte Audrey ainda estuda ballet. A familia volta a ter conforto, mas nunca mais o exagero de antes da guerra. Nessa Europa devastada, a mãe, uma baronesa, trabalha em loja, e Audrey vende flores em floricultura. Recebe convites para desfiles e pequenas participações em peças e filmes. Daí os deuses da sorte interferem. A grande escritora Colette estava a dois anos procurando uma atriz para ser a Gigi de sua peça. Ao olhar Audrey pela primeira vez exclamou: -Eis minha Gigi!!!
   Audrey fugia de todo o conceito de glamour da época. Não usava peles, cabelões, piteiras ou decotes. Por ser muito magra e alta, ela se apresentava em entrevistas de sandálias sem salto, saia simples, e blusa comum. Cabelo curto e sem jóias ou adereços. Mas segundo Colette, o efeito era o de se estar diante de uma princesa. Veio Hollywood, e o mito nascia.
   Depois de A Princesa e o Plebeu, vieram Sabrina, Cinderela em Paris, Charada, My Fair Lady...eu nunca havia notado, mas Audrey tem apenas 5 filmes que eu realmente adoro. E para a história do cinema, se incluem apenas mais uns três. São oito filmes. Oito que são chamados de clássicos de Audrey Hepburn. Na carreira inteira são 20. O cinema tem apenas vinte filmes com Audrey...um quase nada em quinze anos de carreira. Uma pena.
   O livro expõe o longo casamento com o medíocre ator Mel Ferrer, ator que se pensava um novo Orson Welles, e que se ressentia do sucesso de sua esposa ( Audrey era a atriz mais bem paga de então ). Ela viveu casos em sets de filmagem, com William Holden, Peter O'Toole, Albert Finney. E são revelados os bastidores de My Fair Lady, o filme mais luxuoso já feito, onde Cecil Beaton e o diretor George Cukor brigavam sem parar. A ligação de Audrey com Givenchy é mostrada em tons nobres de amizade sem interesse, e temos bastidores de Oscar e de estréias. E na parte final de sua vida, o trabalho com a Unicef, na África. Para quem como eu, aprendeu a amar Audrey em filmes como o soberbo Charada e o encantador Cinderela em Paris, o livro é obrigatório. Harris não inventa, escreve simples, correto e corrido. Tem alguma elegância, é sóbrio e nada maldoso. Digno de seu tema.
   Livro da Nova Fronteira. Procure que é bom presente de Natal.
  

LEAN/ FREARS/ MALKOVICH/ LANG/ WOODY ALLEN/ POLLACK/ MERYL STREEP

   UM GATO EM PARIS de Felidoli e Bagnol
Melancólico. As crianças que assistirem esse desenho terão péssimas lembranças. Tem uma menina meia-muda que está deprê por causa da mãe, tem um ladrão de jóias meio down, tem um gato cool...Os traços do desenho são simples, esquisitos, feios. Este desenho parece servir apenas para preparar as crianças para os filmes que assistirão em sua vida adulta. Argh! Nota Zero.
   ADEUS, PRIMEIRO AMOR de Mia Hansen-Love
A jovem diretora francesa diz em entrevistas que Truffaut e Rhomer são seus mestres. De Rhomer não há nada em seu filme, de Truffaut há muito: delicadesa nas imagens, suavidade na edição, interesse genuíno pelos sentimentos. Na história simples e dolorida de um amor adolescente ( inocente ), há a constatação de que bom cinema é ainda possível. Bonito. Nota 7.
   LAWRENCE DA ARÁBIA de David Lean com Peter O'Toole, Omar Shariff, Alec Guiness, Anthony Quinn, Jack Hawkins
Qual o segredo de Lean? Este filme tinha tudo pra dar errado: um herói antipático, um enredo que fala de um momento histórico que poucos conhecem, excesso de metragem, pouca ação para um filme pop e caro. E milagrosamente tudo deu certo: o herói se faz um enigma, o roteiro diz o que quer com clareza, a duração do filme parece a exata, e a ação é percebida como ação-interior. Sucesso de público, sucesso de crítica, sucesso de premiação. A união de arte e entretenimento. A beleza plástica e boas atuações. Peter O'Toole era um desconhecido, aqui se tornou uma estrela ( e esse é outro procedimento que graças a Lawrence se tornou uma regra, fazer uma super produção com vasto elenco de astros, mas colocando um novato promissor no centro ), sua atuação é multi-facetada, complexa, por mais que o vejamos, menos o entendemos. Peter seria sempre um ator especialista em homens divididos, um grande ator. Nota MIL.
   AS LIGAÇÕES PERIGOSAS de Stephen Frears com Glenn Close, John Malkovich, Michelle Pfeiffer, Uma Thurman, Keanu Reeves
A trilha sonora de George Fenton é feita de belas fugas. A fotografia é do melhor fotógrafo de cinema dos últimos vinte anos, Philippe Rousselot, e o roteiro de Christopher Hampton ganhou todos os prêmios em todos os festivais. Este filme concorreu a vários Oscars, mas era o ano de Rain Man... De qualquer modo, revendo-o agora, após tanto tempo, seu impacto fica bastante diminuído. Em 1989 o considerei fascinante, hoje, após tantas obras-primas vistas em dvd, me parece apenas um bom filme. Glenn Close está maravilhosa em sua maldade, e na hora em que sente ciúmes, a transformação em seu rosto é fantástica. Malkovich não está tão bom. Seus olhos passam maldade, obsessão, mas não possuem a sedução que Valmont deve transparecer. Falta-lhe sexo envolvente, absorvente, o sexo que ele promete é frio e desinteressante. Michelle nunca foi tão bela ( poucas mulheres foram tão bonitas de um modo tão inocente ). O roteiro se baseia no famoso livro de Choderlos de Laclos, a história de um sedutor que é seduzido ( no livro, que é uma obra-prima, Valmont é muito mais cruel ), é o século XVIII, era de hiper racionalismo cínico, Valmont e sua amiga se divertem em seduzir e destruir. Stephen Frears continua a ser um dos mais interessantes dos diretores. Após este seu sucesso, ele voltaria ás produções pequenas ( por escolha pessoal ) e nos daria Os Imorais e Alta Fidelidade. Mas seu melhor filme é ainda The Hit, com Terence Stamp e John Hurt. Nota 7.
   O SEGREDO ATRÁS DA PORTA de Fritz Lang com Joan Bennett e Michael Redgrave
Uma milionária se casa com homem misterioso e passa a temer esse mesmo homem. Ele será um assassino? Este filme de suspense, que lembra dois ou três filmes de Hitchcock, não dá certo por vários motivos, os principais sendo o fraco roteiro e o desinteresse de Michael Redgrave. Ele é um excelente ator, às vezes mais que excelente, mas aqui dá pra perceber seu ar de tédio e sua expressão de sono. Joan se empenha, mas a mulher que ela faz é um cliché. Lang, é até ridiculo dizer, foi um dos grandes do cinema. Mas teve uma longa e irregular carreira. Ele era capaz de fazer uma obra-prima em janeiro e um lixo indesculpável em dezembro. Este não é um lixo, dá para se assistir até com algum prazer, mas não faz justiça a quem nele trabalhou. Nota 5.
   DESCONSTRUINDO HARRY de Woody Allen com Woody e mais Judy Davis, Billy Cristal, Tobey Maguire, Elizabeth Shue, Demi Moore, Paul Giamatti e Kirstie Alley
Quando o vi pela primeira vez, adorei. Mas ele não resiste a uma revisão. É enfadonho ( sou fã de Woody Allen, é triste dizer que ele é chato ), irritante até. Isso porque Allen nunca fez um "Woody Allen" tão sem graça. Ele passa do ponto e a história desse pequeno Dom Juan se torna um tipo de auto-elogio a uma alma atormentada. Quando ao final ele descobre que o culpado por seus fracassos afetivos não era ele, mas elas, a sensação que temos é de engodo. Ele era o culpado sim. Passamos hora e meia na companhia de um ser extremamente egoísta que nos entope com suas confissões nada interessantes. O pior lado de Woody Allen se mostra aqui: um hiper-narcisista que usa o cinema como sala de analista. Não me interessa sua dor, seu pessimismo. A familia que ele critica é um tiro pela culatra, eles parecem mais interessantes que ele mesmo. A relação com Shue chega a ser constrangedora. Judy Davis, grande atriz australiana, tenta e consegue dar vida ao fiapo de papel que lhe deram. Ela deveria ser Harry. Fujam!!!!! Nota 2.
   OUT OF AFRICA ( ENTRE DOIS AMORES ) de Sydney Pollack com Meryl Streep e Robert Redford
Os primeiros dez minutos anunciam uma obra-prima que ele não é. Nessas primeiras cenas há poesia e sentimento. Assim como no excelente final, digno de um grande filme. Mas as duas horas e meia que recheiam esses dois ótimos extremos, são "quase" grande cinema. Apesar de ter ganho um caminhão de prêmios, e de ter levado milhões de adultos ao cinema, Pollack erra em sua tentativa de fazer um filme à "David Lean". Pollack usa todos os ingredientes de Lean: uma longa história passada em lugar misterioso e exótico, ótimos atores, belíssima fotografia e trilha sonora grandiosa. Pontua tudo com cenas típicas de Lean, sol se pondo, um rio, um trem que passa. Mas porque, mesmo seguindo a receita, este filme nunca parece ser de David Lean? Qual o segredo de Sir David? Coragem. Pollack teme ser pouco pop e corta onde Lean deixaria alongar e alonga cenas que Lean cortaria. Quando Lean exibe uma paisagem ele se deixa relaxar, usufrui a beleza, nos faz entrar no filme. Pollack mostra a paisagem como quem exclama: -Olhem que bonito! E corta. Já Pollack estica diálogos sem interesse, cenas que Lean sempre interrompe para mostrar a vida lá fora. Bem...Pollack levou seu Oscar com este filme. Filme que se deixa ver, baseado em livro da grande Isak Dinesen, livro que conta sua experiência de plantadora de café na África. Meryl faz bem a escritora, mas há uma qualidade em Meryl que nunca mudou, a frieza. Admiramos Meryl Streep, não amamos. Redford é um caçador amigo e amante, homem radicalmente livre que adora ouvir as histórias que Dinesen lhe conta. Ele é a melhor coisa do filme. Redford é sempre bom de se ter numa produção. Nota 6.

EXUBERÂNCIA

   Vivemos tempos tímidos. As coisas são cada vez maiores, as pessoas, menores. Grandes gestos, paixões sem noção, sonhos absurdos. Descontrole. Tudo isso está em baixa. É um tempo de filmes tristinhos e de música certinha. O louco visionário sem rumo e sem segurança já era, morreu.
   Veja o video abaixo. Sim, o vulgar e pop video abaixo. Nele vemos um baixinho vestido com penas. E que vai a beira do palco mostrar o peito. Como uma criança nerd que acabou de descobrir o álcool, ele pula e batuca ao piano. Olhe o público. Pulam e jogam coisas e pasmem: dão gargalhadas! Enquanto isso, a banda, colorida, também ri todo o tempo. O que eu vejo sobre aquele palco tem um nome: exuberância. Nada de modéstia, nada de censura, nada do profissionalismo de carnavais programados. Simples e saudável exuberância.
  É disso que sinto falta. Da pouca vergonha dos sapatos plataforma e das bandas mal ensaiadas. Dos filmes caros, grandes, loucos e que não tinham nenhum público alvo. Do rock como festa de absoluto mal gosto. Exuberância total.
  Ter tido doze anos e vivido e amado e ansiado por tudo isso ( como mostram os filmes QUASE FAMOSOS e VELVET GOLDMINE ), isso não tem preço. É memória eterna. Memória que brilha, que ri, que arregala os olhos.
  Que coisa boa...

The Bitch is Back



leia e escreva já!

CARIBOU- ELTON JOHN ( O PRIMEIRO DISCO A GENTE NUNCA ESQUECE )

   Foi num Natal dos anos 70. Na loja Yaohan. Meu pai me deu dinheiro, e um dos meus presentes foi um vinil. Criança, eu adorava Wings, Harold Melvin e Elton John. Nas prateleiras da loja, lugar cheio de escadas rolantes e aço cromado, peguei o disco e mandei embrulhar. Na rua, atulhada de gente, pessoas com enormes pacotes, andei cantarolando "Beannie and The Jets". Era minha música favorita. Ela não está em Caribou.
   A banda de Elton John, a Elton John Band, entre 1972/1975 era do cacete!  Dee Murray, Ray Cooper, Davey Johnstone e o super baterista Nigel Olsson. Se voce ouvir as músicas gravadas nessa época, vai reparar que o instrumental é rock, é country, é soul, faz o diabo.
   Foi uma grande época para o pop. Tínhamos o pop negro arrepiando com o som da Filadélfia, o funk e o groove de New York. E um majestoso e adulto pop branco, que ia de Steely Dan à Rod Stewart, de Cat Stevens à Sweet. Mas quem reinava era Elton. Entre 71 e 76 ele colocou dez singles em primeiro lugar nos EUA e mais oito nos top ten. Na Inglaterra ele era chamado de rei do pop, o herdeiro dos Beatles. Não era. A praia de Elton era muito mais Elvis e Beach Boys que Beatles e Dylan. Em termos de música pra rádio, de melodia harmoniosa e arranjos sublimes, foi um mestre. Desde então, o único que obteve seu alcance, no pop branco, foi Madonna.  De U2 a REM, de George Michael a Coldplay, ninguém tem o número de hits de Elton. O único cara que pode fazer um show de duas horas só de sucessos como ele faz, se chama Paul MacCartney.
   Caribou é de 1974. Auge da Elton- mania mundial. A capa é das coisas mais ridículas já feitas. Uma enorme foto de Elton, camisa aberta, peito peludo, a camisa feita de pele de tigre e um cenário falso atrás. Na contra-capa, fotos da banda e de Elton com seu parceiro, Bernie Taupin. Abrindo essa capa, vemos uma foto imensa do rosto de Elton, autografada, e as letras das canções. Um detalhe: Elton não era levado a sério pela crítica. Era um tempo de letras políticas ou surreais. Bernie Taupin fazia letras simples. Era subestimado.
   Bitch is Back abre o disco. As guitarras rasgam o som, é um riff poderoso. O piano de Elton paga sua dívida a Jerry Lee e os metais negros da Tower of Power atacam. Mas é o ritmo, o baixo funky e a batera de Olsson que me aturdiam em 1974. Ainda me comovem. Bitch é uma festa. A cadela, após o imenso sucesso de Goodbye Yellow Brick Road, lançado meses antes ( Elton lançava um lp a cada nove meses e mais alguns singles cada seis meses. A concorrência era feroz), está de volta.
   Pinky vem em seguida. Uma doce e muito bela balada. Os vocais de fundo são de alguns dos Beach Boys. Harmonia pop de gosto muito refinado. Por favor me digam: alguém em 2011 faz música assim? Espero que sim.
   Grimsby volta a ter um riff de guitarra poderoso. É rock, é festeira. Tem baixo sacolejante, tem vocais de fundo harmônicos, tem bateria do cacete. E emenda com Dixie Lilly, uma canção do Mississipi, com apito de barcaça, banjo, violões e muita alegria. É deliciosa!
   Solar Prestige A Gammon é uma gozação com a nobreza inglesa. Cantada com sotaque de opereta, é estranhíssima. Não é rock, nem soul, nem folk. É anos 20. O antigo vinil terminava o lado A com You're So Static, onde os metais da Tower of Power dão um show. Vem o lado dois.
   I've Seem The Saucers é uma obra-prima. Começa solene, se torna sonhadora, e tem um arranjo sutil, com um milhão de vozes e de instrumentos. É linda, linda e sublime.
   Stinker é outra obra-prima. Um soul invocado das antigas. Elton canta de forma agressiva, forte, e a bateria de Olsson faz misérias. É um som áspero, negro, noturno.
   Don't Let The Sun vem agora e eu imagino a criança George Michael a escutando então. Todos a conhecem. É magnífica, ambiciosa, orquestral. E para fechar, Ticking, só voz e piano. Triste.
   Deste disco quatro canções viraram single e duas chegaram ao number one. Em 1974 ainda foi lançado o single de Lucy in The Sky With Diamonds e One Day. Em 1975 teríamos Pinball Wizzard, Philadelphia Freedom e o lp Captain Fantastic. Todos number one. Em 1973 o recorde: os singles de Goodbye Yellow, Beannie and the Jets, Candle in the Wind e Saturday Night, todos no topo, e mais os lps Goodbye Yellow e Don't Shoot Me. Mais os singles Sweet Painted Lady, Roy Rogers e Daniel. Tudo isso tocando no rádio do mundo todo. Trabalhava muito o cara...
   Mas em 1976, Elton cometeu dois erros: disse ser gay e comprou um time de futebol inglês. Ainda conseguiu enormes sucessos como Don't Go Breaking My Heart, mas a magia se desfez. Elton não era mais um "esquisito" e bem humorado ídolo pop. Ele agora parecia ser um debochado gay perigoso e muito grotesco. Se Bowie podia dizer ser gay e continuar no alto, isso se devia ao tipo de público que o adorava. Para eles, Bowie ser gay era mais uma qualidade do ídolo. O público de Elton não aceitou. Ele perdeu seus fãs infantis, seus fãs ingênuos, seus fãs conservadores. Sobraram os caras como eu, que amavam Bowie e Roxy e pouco se lixavam pra aquilo que eles faziam na cama.
   Quem começou a ouvir discos nos anos 80, percebe Elton como um tipo de Phil Collins. Quem começou a escutar música nos anos 90 o conhece como um tipo de George Michael velho. Entendam, ele deve ser comparado a Beatles, Beach Boys, Elvis, Stevie Wonder, Marvin Gaye ou Paul Simon, os grandes artífices do pop, do single, da harmonia. Phil, George, assim como Billy Joel e uma imensa constelação de cantores pop são sub-Eltons.
   Eu adoro Elton.
   PS: na internet Jack White diz que seu disco fundamental é um de Son House, um velho cara do blues. No video ele o coloca pra tocar e vemos que todo o som que Jack fez e faz é aquele. Eu devo ser um cara muuuuito pop. Apesar de adorar Son House, meu disco definidor é Rocket Man. Pra mim, o single perfeito.