QUANDO LONDRES CONHECEU O ARRASTÃO ( TÁ DOMINADO!)

Jamais eu escreveria sobre esses arrastões londrinos. Londres não me interessa. E tudo que eu queria dizer já foi escrito ( Patricia Mello escreveu que nenhum livro foi roubado.... Bingo!). Mas o texto que Calligaris publicou é tão ruim, tão medíocre, que preciso dar um pitaco!
Existe um certo tipo de tiozão que tenta ser simpaticão às novas moçoilas jogando ao lixo tudo aquilo que ele fora um dia. Há já algum tempo Calligaris caiu nesse engodo. Seus textos têm sido justificativas sobre seu passado "maio 68". Ele tenta ser agradável ao que ele imagina ser o leitor jovem de hoje. Se perde: as moçoilas sentem desejo pelos tiozões de 68 que continuam acreditando em 68. O ancião que aceita e compreende tudo o que lhe parece "de agora" não está se renovando, está às portas do ridículo.
Mas porque tanta ira, ó Tony Roxy??? Porque neste momento sério, em que temos a obrigação moral de tomar partido contra a barbárie, ele, Calligaris, defende a "profundidade" do "movimento". Como bom terapeuta, que tem o dever de tudo aceitar e absolver, ele se coloca ao lado dos ladrões. E pasmem, os compara aos esfaimados da revolução francesa!!!!
Ninguém morre de inanição por falta de I Pod. Se morre por falta de pão. Só isso basta para marcar a diferença. Negar como ele faz, vulgarizar a fome, relativizar, é imoral. Ele compara a falta de pão com a falta de bens de consumo, legitimiza os ladrões, passa a mão sobre suas cabeças ocas. Mas vai mais longe.... Diz que na revolução de Robespierre e Marat não havia também uma ideia, que tudo era questão de querer. Então toda a preparação iluminista nada teve a ver? Voltaire e Rousseau jamais existiram? A independência da América nada influenciou? Existiam ideias desde antes do movimento, ideias conhecidas, explícitas, flagrantes. O populacho precisava de pão, mas também sabia que a velha ordem morria ali. Eles não roubaram comida apenas, mataram os donos da comida. Em Londres alguém gritou palavras de ordem contra os donos das fábricas dos I Pods??? Algum jovem ladrão deseja a morte de Steve Jobs??? Revolução seria a destruição do poder, e o que se viu foi o contrário, o desejo por aquilo que o poder produz.
Londres é o futuro. A imoral barbárie, o vale tudo, o eu quero-eu posso. Um arrastão. Por ter sido na outrora relevante Londres, as pessoas tentam encontrar algo que dê nobre ressonância ao fato. Necas! Arrastão como numa praia do Rio ou em centro paulista. Só isso. Ato que anuncia o fim da virtude. Não é uma revolução, é a morte da ideia revolucionária.
Pobre tiozão....

A VERDADEIRA VIDA DE SEBASTIAN KNIGHT- VLADIMIR NABOKOV

Nada é pior que um livro frustrante. Podemos perdoar um livro ruim, afinal, a expectativa que tínhamos não foi jogada ao lixo; mas um livro frustrante é uma brochada. É o caso deste livro do grande Nabokov, autor que é um dos maiores do século XX e que tem LOLITA e FOGO PÁLIDO entre os monumentos das letras universais. O que acontece com este livro é trágico, principalemte porque ele começa em muito alto nível e então despenca para o nada.
O irmão mais novo de um refugiado russo, nobre, procura escrever uma biografia fiel sobre esse irmão, irmão que foi um escritor de talento. Uma biografia mentirosa, rancorosa, recém lançada, é que o motiva a essa empreitada. Até aí tudo funciona. Nabokov esparrama prosa saborosa em cada sentença. Há uma complexidade de múltiplos espelhos e melhor: toques de humor cáustico em frases inesperadas. O livro cresce e voce fica absorvido pela busca de pistas desse irmão misterioso. Mas de súbito o humor se torna drama pesado, pior, inconvincente. Quanto mais o irmão, que jamais é nomeado, se aproxima da verdade, mais o livro naufraga. As coisas se atropelam, os novos personagens parecem ocos, Nabokov se esvai em nada.
Uma pena, pois o assunto é fascinante. O irmão poderia ser o próprio autor e o livro que lemos pode ser a própria biografia, que assim se faria uma auto-biografia. Mas o que parece é que Nabokov perde a mão, talvez o interesse em seu livro, perde o amor ao personagem central.
Vladimir Nabokov foi filho daquelas famílias nobres russas que fugiram ao ocidente com a revolução de 1917. Ele acabou adquirindo um inglês perfeito e se tornou um mestre das letras americanas. Lolita é eleito desde que saiu ( 1955 ) um dos melhores livros do século XX. E é, sem dúvida. Hoje Nabokov está um pouco fora de moda, não só por seus temas amorais, mas principalmente por sua escrita quase barroca. Ele escreve muito, fala bastante, tem o que dizer e não se censura. Embeleza, enriquece, é um anti-minimalista.
PS: Um dos charmes da década de 20 eram os refugiados russos. Em Paris era normal ser servido em cafés por garçons que foram condes em St. Petersburgo, e contratar um chauffeur que fora um rico proprietário de terras na Ucrânia. Nabokov não passou necessidades, seu pai as passou por ele. Sua prosa sempre tem um jeito snob, refinado, bastante conservador. Ou seja, não é para hoje, não é?

OLIVIER/ VISCONTI/ RAY/ RENOIR/ CLAUDIA/ HUXLEY/ STAMP

ORGULHO E PRECONCEITO de Robert Z. Leonard com Greer Garson, Laurence Olivier, Maureen O'Sullivan e Edmund Gwenn
Olivier compõe um excelente Mr.Darcy. Sua mistura de timidez com altivez atinge a medida certa. O roteiro deste belo exemplo de produção MGM, ou seja, muito luxo, é de Aldous Huxley. Sim jovens, houve um tempo em que gente como Huxley, Faulkner e Hecht trabalhavam para Hollywood. O roteiro consegue condensar o romance de Austen em duas movimentadas horas. Não senti falta de nenhuma cena. Há uma versão recente deste livro igualmente boa. Nota 8.
VAGAS ESTRELAS DA URSA de Luchino Visconti com Claudia Cardinale, Jean Sorel e Michael Craig
Logo após o soberbo O Leopardo, Visconti fez este pesado drama sobre casal de irmãos que tem relação dúbia ( incesto? ). Claudia, estranhamente feia, é uma recém casada que leva o marido inglês a mansão onde ela e irmão cresceram. O irmão, meio doido, logo tenta voltar aos tempos de contato íntimo com a irmã. O filme não flui. Visconti tenta se renovar, pega alguns tiques da nouvelle-vague e se perde. O visual é estranho, às vezes se parece com tv. A questão é: quem se interessa por personagens tão vazios? Nota 4.
MORTE EM VENEZA de Luchino Visconti com Dirk Bogarde
Dificil falar desse filme. Porque? Por ser um dos mais esquizos filmes já feitos. E também por ser exemplo de um tipo de filme velho, morto, mumificado. Vamos aos porques. Ele é esquizo por ser ao mesmo tempo ruim e excelente. Excelente são as roupas de Piero Tosi, figurinista mais famoso do mundo. Um desfile de detalhes, cores, requinte, soberba. Excelente são os cenários e a fotografia de Pasqualino de Santis. Veneza no explendor. A produção reformou e restaurou um hotel de verdade para filmar o luxo de 1911. Excelente a trilha sonora de Mahler, de tristeza cósmica. Então a gente fica meio hipnotizado ( se voce for um esteta ) admirando o visual e escutando a trilha sonora. Mas por outro lado, o filme em si é risivel. Discussões filosóficas sobre arte, pedantes e redundantes; movimentos de câmera irritantes e atores conduzidos como zumbis empaturrados. O efebo é anódino e Bogarde interpreta Thomas Mann como um entediado burguês. Detalhe: é um filme com som à Jacques Tati: diálogos que não se ouvem e muito som ambiente, o que ressalta seu caráter visual, de turismo em Veneza. Não é um filme, é uma coleção de souvenirs de uma viagem de um velho. Fofocas: Visconti era tão perfeccionista, que na obra-prima O Leopardo, ele atrasou a filmagem em horas para que em cena as champagnes estivessem na temperatura exata. E observe em como Dirk Bogarde tem o rosto de Johnny Depp!!!!!!! Nota 5.
BILLY BUDD de Peter Ustinov com Terence Stamp, Peter Ustinov, Robert Ryan, Melvyn Douglas e Paul Rogers
Navios ao mar. Preto e branco fantástico de Robert Krasker. Um marujo ingênuo é recrutado para a guerra. No navio ele se verá em conflito com o mal nada ingênuo. Stamp faz um retrato preciso, seu marujo é exemplo do bem e do bronco, é tolo e é angelical. O filme jamais filosofa por nós. Ryan é o mal, e o mal vence. Uma aula de cinema. Nossa mente fica completamente ligada ao filme, ele diverte e faz pensar. O final é digno de grandes filmes, exato. Nota 9.
O ATALHO de Kelly Richardt com Michelle Willians, Bruce Greenwood e Paul Dano
Western de arte. Argh!!! Para mostar três meninas cruzando um riacho são gastos vários minutos. Há quem confunda arte com fazer sofrer. É o pensamento do jeca: se voce quer arte, sofra de tédio. Imagens escuras, múrmurios, ação lentíssima, pseudo-profundo. Um porre!!!! Pra que fazer isso? Nota ZEEEEEEERO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A SALA DE MÚSICA de Satyajit Ray
Um nobre empobrecido. Um palácio sujo. Um rio vasto. E muita música. Com poucos elementos Ray faz um imenso filme. É cheio de falhas. Algumas cenas são excessivas e outras chegam perto da caricatura. Mas perto do valor de seu todo é uma obra de poesia cósmica e original. Cinema atemporal, belo e sincero. Nota 9.
O SEGREDO DO PÂNTANO de Jean Renoir com Dana Andrews, Walter Huston, Anne Baxter, Walter Brennan, Ward Bond
Pântanos. Belas imagens da água e lodo. Um jovem atrás de seu cão conhece condenado que lá se esconde. A história corre através dessa relação e da relação do jovem com seu pai e com sua vila. Renoir fugiu da França nazista e fez alguns filmes americanos. São bons filmes, mas não procure o estilo Renoir neles. São impessoais. Nota 6.

ARNALDO JABOR

Muito bom o texto dele no Estadão de ontem. Ele chorou com o filme de Woody Allen, na hora em que Cole Porter canta ao piano. OK. Voce menino inteligentinho antenadinho, voce pode dizer: eis um filme comum que pegou o pessoal do passado, o tipo "homem inteligentão desligado"... eu sei que voce prefere os filmes de "arte" feitos calculadamente para impressionar gente como voce ( A REDE SOCIAL, CISNE NEGRO, MELANCOLIA ), aqueles produtos de filosofia fácil, que ditem aquilo que voce já sabe e sente, com o visual que voce conhece e um certo climinha tristinho e escurinho... Mas o que Jabor diz, e eu digo, é que não há nada que vá te fazer chorar quando voce tiver 70 anos. Talvez apenas o seu umbigo em horas de terapia. Por não saber nada sobre cinema voce cai fácil na colonização desses dois únicos tipos de filme que voce entende: o filme tristinho e o filme pop fofinho.
O que voce não pode saber, e jamais saberá, é que existe uma coisa chamada paixão e é sobre isso que Jabor fala. Paixão pelo povo de 1920 em Paris, pelos intelectuais ferinos e elegantes da New York dos anos 30. E pelo cinema sem moda e sem cálculo. Cinema que não é pro seu narizinho sensível e bonitinho.
Amava-se Tarkovski como quem ama o Corinthians. E era-se anti-Bunuel como quem é anti-Gaviões. Questão de paixão baby. Eu chorava ao PENSAR em ir aos bares onde Heminguay, Cocteau, Man Ray ou Capa estiveram ( e chorei ). Sabe o que eu ganhei com essa paixão? Cor, sangue, faro e muito espírito. E é o que eu procuro e não acho no cinema de agora: paixão viva. Tarantino sempre demonstra essa paixão viva. Tem mais uns cinco ou seis que também têm isso. Mas eles não conseguem fazer um movimento. Pior, para voces, ó seres inteligentinhos, eles são apenas pop. Afinal, não falam do "sentido da vida". Surpresa pra voce baby: seus falsos gurus falam o que voce quer ouvir. Nada de novo no front.
Como paixão o cinema morreu a vinte anos pelo menos. A reverência que cheguei a ver no fim dos anos 70 ( que era demonstrada pelo fato de que filmes eram aplaudidos e seus letreiros de encerramento acompanhados até o fim ), se encerrou. Recordo aplausos em "cena aberta" para Annie Hall e Z de Costa-Gavras. E discussões acaloradas sobre Rede de Intrigas e Lenny ( na sala de cinema, entre estranhos ). Parece que quem ia ao cinema era mais vivo.
Hoje o fime de arte é um tipo de cantiga de deprimidos que embalam bonecos mortos em seu colinho flácido. Nada têm a dizer e nada despertam de novo. Porque voce pode com seu pensamento inteligentinho estar pensando: Esse cara é saudosista! Mas o que voce não consegue perceber é que o que desejo ( pasmem! Eu ainda desejo algo que não me é oferecido para ser desejado!!!!! ), é exatamente o novo, a surpresa, o inesperado.
Belo texto Jabor!!!!!

A SALA DE MÚSICA- SATYAJIT RAY, UM DIRETOR COMO NENHUM OUTRO

Índia. A vastidão sem fim de um rio. Um horizonte que não termina. Um palácio a beira desse rio. Decadente, sujo, úmido. No terraço vive um velho que foi rico, e seus serviçais. Esse homem não desce aos outros andares faz muito tempo. Em flash-back saberemos o porque.
Ray criou o cinema de arte na India. Antes dele só havia Bollywood. Nascido rico, Ray usou o que tinha e o que não tinha para fazer seu primeiro filme. Este é o segundo, feito em meio a trilogia de Apu. No caos da falta de recursos, Ray fazia a direção, produção, cenários, figurinos e ainda ajudava na fotografia e na música. O milagre é que seus filmes são plasticamente maravilhosos, amplos, abertos, e também são lentos, sujos, cruéis até, mas sempre belos. Chega a emocionar vermos um tipo de vida, um tipo de cinema tão diferente do Ocidente. O tempo é outro, os sets são outros, a língua ( deliciosa ) é exótica, os rostos são estranhos. Mas há em seu cinema o mesmo espírito do cinema de Mizoguchi: nobreza. Ray ama seus personagens, mais que isso, ele nos faz sentir esse amor, mais ainda, ele nos faz sentir a dor do tempo que se vai, das mortes inevitáveis ( sempre há uma morte em seus filmes ), dos erros e dos vicios.
O erro aqui é o orgulho. O nobre decadente perderá tudo por seu orgulho, por se sentir obrigado a ser superior sempre, por acreditar em seu sangue, por vaidade sem fim. E por seu amor a música. O filme é cheio de cenas de música, todas lindíssimas, porque ele insiste em fazer saraus para e pela música. Gasta o dinheiro que já não tem com músicos e festas para seus amigos. E no ápice do filme, já no tempo presente, ele dá a última festa e o que vemos é uma execução perfeita. Música indiana ( Ustad Vilayat Khan ) que empolga, e dança que beira o sublime. Atenção às mãos da dançarina, é nas mãos que vive a arte da dança hindú. Toda a melodia é traduzida em movimentos que voam e falam.
O nobre fica extasiado, e parte numa última cavalgada, rumo ao fim. Bêbado.
Difícil fazer justiça ao cinema de Ray. Ele não deixou herdeiros ( ou todo o cinema do terceiro mundo o é? ). Seus filmes devem ser vistos em tranquilidade. Nada têm de filosóficos ou religiosos. São belas observações, isentas, sobre a vida da India de seu tempo. E se há uma moral em sua obra é apenas esta: a vida passa como dor, mas existe um momento em que ela vale a pena e se explica. Cada um de seus filmes mostrou esse momento. Um nobre.

DÁ PRA CRER NISSO???? Ô SE DÁ !!!!!!

Dá uma olhada no vídeo daí de baixo. 50 anos de pop em cinco minutos de inspiração profética. É um momento de um filme de 1941, uma comédia clássica. Do começo ao fim, do r and b ao rap, do rock ao disco tá tudo mostrado nesses cinco minutos.... Conclusão? Caraca!!!! Como a América foi fértil um dia!!!!!

POR ONDE VOCÊ ANDOU, ROBERT? - HANS MAGNUS ENZENSBERGER

É um autor que frequenta sempre os postulantes a vencedor do Nobel. Poeta, ensaísta, crítico, romancista. Aqui, em tom de literatura juvenil mas na verdade com implicações adultas, ele conta a saga de Robert, um adolescente alemão de classe média, que sem saber como, acaba por viajar por sete locais e sete épocas diferentes. Ele se vê na Sibéria dos anos 50, na Austrália de 1946 e por aí vai.... Fantasia? Sim, da melhor safra, e penso em como eu adoraria ter lido este livro aos 16 anos ( Mas quando eu tinha 16 este livro não havia sido escrito! )
Aventura. Como é bom ler um livro de ação bem escrita. Coisas acontecem, crimes, fugas, guerras, quase amores... E Enzensberger consegue algo muito raro: nos sentimos nos lugares onde a ação se passa. Quase podemos sentir o cheiro da Estrasburgo do século XVII ou ver a ordem e o asseio da Amsterdam de 1617. Mas nada há de romantico aqui. Robert percebe a pobreza de cada cidade vista, a falta de bens que lhe são tão comuns hoje, a falta de comida. Enzensberger nunca glorifica o passado, ele sabe que cada um só pode viver em seu tempo. Quem vier amanhã também nos achará limitados.
Dificil saber se a intenção do autor foi "quântica". Há um flerte com a noção de que todo tempo é aqui/neste lugar/agora. Que os ontem acontecem indefinidamente para todo o sempre. Que o futuro e o passado moram em todo presente. Mas ele não aprofunda nada disso, apenas sugere, felizmente!
Precisamos de mais autores como Hans Magnus. Que escrevam com gosto e não com sofrimento. Que parecem sorrir de prazer ao criar e que não nos obriguem a sentir pena de seu dom. Aqui temos um muito bom livro, que diverte, absorve e toca nos tais "temas sérios". O que mais voce quer? Não temos mais um Henry James ou um Joseph Conrad. Um Enzensberger está de bom tamanho.

BILLY BUDD, O MAL ENCONTRA A INOCÊNCIA

Acaba de ser lançado o dvd do filme de Peter Ustinov, Billy Budd. A Veja também o comenta nesta semana. O que dizer? Se ando pegando no pé de certos filmes que nada têm a dizer e se fingem de filosofia, este, aparente aventura marítima, é arte absoluta, arte que diverte também, mas que faz pensar, pensar bem. O livro original é de Hermann Melville e Ustinov, ator que aqui se faz diretor, se mostra a altura do que a história lhe exige.
Em fins do século XVIII, a marinha inglesa, em guerra, recrutava a força qualquer marinheiro civil inglês que fosse pego. O ambiente no navio mercanto "RIGHTS OF MEN" é de camaradagem, mas o navio de guerra 'AVENGER" recruta a força Billy Budd e o que vemos é como esse marujo muito jovem se vira em seu novo trabalho.
Billy é orfão, ignorante, bronco, um rapaz sem nenhuma cultura. Mas ele tem algumas coisas que o ajudam: é bonito, acredita na vida e em sua inocência persevera em teimosa obstinação. Billy crê em seu mundo. Acredita que a verdade prevalece, que o bem traz o bem e que todos gostam de quem for um bom camarada. Esse Budd é feito pelo iniciante Terence Stamp, e Stamp está a altura de Billy Budd. Ele jamais se torna um anjinho piegas, nunca faz humor. O marujo do bem é um tolo, um iletrado, e Stamp nunca nos deixa esquecer disso. Mais, ele o faz sempre sorridente, e nesse sorriso vemos algo de "quase maligno" em Budd.
Voce já deve ter visto Terence Stamp em algum filme atual. Ele se tornou uma estrela nos anos 60, mas na loucura da época se perdeu por todos os anos 70, retornando a vida nos 80/90. Foi Priscilla, a Rainha do Deserto que o recolocou no mercado. Se na juventude seu rosto transparecia inocência, hoje é o rosto da maldade. É um dos vilões mais usados. Voltando ao filme....
No navio, Billy entra em atrito com o encarregado da disciplina, papel feito de forma magnífica pelo sempre marcante Robert Ryan. Se Billy crê no bem, Ryan é o mal. Ele tem êxtases em cada chicotada dada em cada marujo ( o chicote era norma na marinha inglesa de então. Foi norma no Brasil até o século XX ), e passa a sofrer intensamente com a bondade de Billy Budd. Os diálogos entre os dois são maravilhosos, Billy levando o bem adiante em lógica natural absoluta e Ryan usando o mal como escudo onde se protege de seu desencanto. O filme não freudianiza nada, não evangeliza nada, não faz poesia, ele conta a história, dá chance a 8 atores soberbos e se encerra em final afiado, cruel, incômodo.
Obrigatório. É um filme para todo adulto que goste de filmes.

CLINT/ PAUL NEWMAN/ MARLON BRANDO/ FRED ASTAIRE/ RITA/ POWELL

SUPER 8 de JJ Abrams
Simpático filme de um sub-spielberg. Uma repórter ( não lembro o nome ) ao escrever de Abrams falou dos caras vindos da tv e que não deram muito certo. Ela esqueceu do principal, James L. Brooks, um diretor vindo da tv ( Mary Tyler Moore, Taxi, Os Simpsons ) e que ganhou Oscar de direção ( Melhor é Impossível ). Este filme, leve, bem levado, efeitos sem exageros, é uma competente diversão de fim de tarde. Um alivio. Nota 7.
A MARCA DA FORCA de Ted Post com Clint Eastwood
Em 1968, retornando de seu auto-exilio italiano, Clint faz este western. É sobre um vaqueiro que é enforcado e sobrevive a isso. Ele se torna delegado e parte à vingança. Há algo de Dirty Harry aqui, mas falta ritmo ao filme, falta direção. Sinto em dizer, é chato. Nota 3.
REBELDIA INDOMÁVEL de Stuart Rosenberg com Paul Newman, George Kennedy, Dennis Hopper, Harry Dean Stanton
Kennedy levou Oscar de coadjuvante e o filme foi sucesso de público em 1967. Newman é um cara que cumpre pena de dois anos por danificar parquimetros. Na prisão rural, ele se torna uma lenda por seu jeito safado-cool de ser e por suas fugas que nunca dão em nada. Filme pop de primeira. Se voce o assistir como aventura ficará satisfeito, mas se pensar sobre suas cenas verá uma parábola sobre Jesus Cristo. Tudo com humor, drama e uma atuação maravilhosa de Paul Newman. Um ator sempre adorável. Assista que vale muuuuuito a pena. Nota 8.
ZORRO, THE GAY BLADE de Peter Medak com George Hamilton e Lauren Hutton
Em 1978 foi considerado o pior filme do ano. Hoje é cult. Zorro tem um irmão gay. Quando ele se machuca, o gay assume seu posto. Chanchada simpática, mas muito menos engraçada do que se desejaria. Motivo: o irmão gay aparece pouco. Hamilton faz os dois. Foi considerado o pior ator do mundo na época. Nem tanto, o afetado com suas roupas de cores fortes é boa criação à Mel Brooks. Nota 3.
OS QUE CHEGAM COM A NOITE de Michael Winner com Marlon Brando e Stephanie Beacham
Em seu grande ano ( 1972 ), Brando fez 3 filmes: O Chefão, O Último Tango e este gótico inglês. O roteiro conta o que teria acontecido na mansão de Os Inocentes antes do filme de Jack Clayton. Ou seja, é um prólogo a Henry James e seu A Outra Volta do Parafuso ( que no cinema é o clássico Os Inocentes ). Brando é um brutal e infantil trabalhador rural. Ele é amigo dos filhos do patrão, um casal de crianças que o tem como ídolo. Os dois começam a imitar Brando em tudo, principalmente em sexo, pois eles espionam Brando em suas cenas de sexo sádico com a professora dos dois. O filme tem um belo clima soturno e filmes passados no campo pantanoso inglês são sempre interessantes. Mas tem mais, uma excelente trilha sonora de Jerry Fielding e uma atuação magistral de Brando. Enorme, cruel, sensual, simpático e ruim, tudo o que ele faz é violento, estúpido, errado. Ele faz crescer muito o filme com seus olhares tortos, as mãos de animal e a voz que é um sussurro primitivo. O roteiro tem momentos de quase tolice, mas Brando salva tudo por estar quase sempre em cena. Winner era considerado um diretor enganador em seu tempo ( anos 60/80 ), mas este filme está longe de ser ruim. Boa diversão para madrugadas de insonia. Nota 7 ( por Brando ).
O DIA DEPOIS DE AMANHÃ de Roland Emmerich com Dennis Quaid e Jake Gyllenhal
Todos conhecem esse filme. Posso jogar nele a filosofia de Pascal: imaginação. Usamos nossa imaginação para acreditar estar vendo um belo filme de ação. Mas o que vemos na realidade é um filme sem imaginação, sem suspense algum, sem alma. Neve, gelo, e o prazer doentio de se ver o planeta morrer. Os efeitos são ok, apesar dos lobos ridiculos. Quaid foi um dos atores mais interessantes nos anos 80 e envelheceu muito bem. Ainda tem aquele ar de malandro boa gente. Já o tal Jake é a cara dos anos 2000: um nerd inofensivo com olhos de mangá. Nota 4.
BONITA COMO NUNCA de William A. Seiter com Fred Astaire e Rita Hayworth
Uma menina que atende na 2001 conversou comigo quando comprei este dvd. Ela fala como pode existir gente que gosta de cinema e não assiste os clássicos. Falo que essas não são pessoas que gostam de cinema, são pessoas que gostam de ir ao cinema ou de ver dvd, o que é muito diferente de gostar de cinema. Ela descobriu os filmes clássicos através dos musicais, o que é uma coincidência, pois eu também tomei contato com a velha Hollywood via musicais. Aqui temos o gênio de Astaire na Buenos Aires made in California. Lá, ele se envolve com filha de rico argentino que não quer que eles se casem. Mas ela, Rita, o ama.... Como em quase todo musical, a história é um quase nada, mero acessório para as canções e danças e também as frases espertas dos diálogos. Não é um dos grandes musicais, mas é tão bom olhar para Fred, ele nos dá uma alegria tão leve, tão prazerosa é sua visão... assim como a beleza de Rita, no momento em que ela começava a ser estrela. Agradável, alegre, é aquele mundo do musical em que a gente pensa: Ok, nada a ver com a vida real, mas e daí? Viva a ilusão!!!!! Nota 7.
UM DE NOSSOS AVIÕES NÃO REGRESSOU de Michael Powell
Feito em plena segunda-guerra, fala de um avião que é atingido pelos nazis ao voltar de um bombardeio em Dusseldorf ( foi bombardear a fábrica da Mercedes ). Caem na Holanda, e o filme mostra seu retorno a Inglaterra ajudado pela resistência holandesa. Um elogio ao povo holandês, e os nazis não são pintados como demônios. Powell fez várias obras-primas, mas este filme, de certo modo propaganda de guerra, não é dos maiores. A volta acontece de forma fácil demais, sem grandes perigos, simples. Nota 6.

O FILÓSOFO MAIS FORA DE MODA: PASCAL

Termino então Os Pensamentos de Pascal. E se na primeira parte ele pouco se ocupa explicitamente de religião, todas as 150 páginas seguintes têm a questão cristã por assunto. E em meio a elas um pensamento que me assombra ( por sua clareza exemplar ): Ateus pedem uma prova da existência de Deus. A resposta de Pascal é a mais engenhosa que já li: César ou Xerxes se mostraram em todo seu poder e magnificência. Todos então foram obrigados a submeter-se a eles: bons e maus, ricos e pobres, falsos e sinceros. Se Deus, ou melhor, se Jesus viesse a Terra e se mostrasse em todo seu poder, quem o seguiria? Todos, seduzidos por sua força, por seu poder, por sua garantia de proteção. Mas, do modo como as coisas se dão, sómente os que possuem fé, os bons, os não-egoístas, os humildes podem aceitar a existência de um Ser que só existe em seu coração. Seguir alguém que é poder visivel e é presença que obscurece nada prova, amar alguém que não se mostra e é busca no infinito, isso prova muito.
Com esse pensamento não se dá por encerrado o debate, debate que Pascal reconhece ser necessário sempre, mas se dá uma lógica perfeita, uma aposta numa possibilidade que vai além do existe porque eu creio, ou o não existe porque nunca o vi. Nas páginas em que Pascal fala sobre a necessidade da crença ( os que não creem são alegres e sempre infelizes, os crentes são tristes porém felizes ), há algo de muito claro, muito certo e ao mesmo tempo terrível. Jesus veio ao mundo para se sacrificar. É fato. E aí há algo que esquecemos: ele poderia ser um super-herói, ou um poeta bardo, ou um filósofo. Mas não, foi um pobre traído pelos amigos, solitário. Porque? Jesus simbolizaria nossa sina rumo a perfeição. As suas adversidades são as nossas mesmas e sua morte na cruz é a morte de nosso eu. Sim, pois a frase mais chocante em Pascal, e que ele repete várias vezes é de que é preciso ODIAR A SÍ-MESMO. Odiar o eu. Qual a lógica nisso? Se voce odeia seu eu voce deixa de se guiar pelo seu desejo, e se voce deixa de se guiar por seu desejo voce deixa de temer a morte, pois teme a morte quem não aceita o fim dos sentidos, dos desejos, do eu. O ego é a fonte de todo o mal do ser e do mundo. Tudo aquilo que vem do ego é sempre ódio ao outro e vaidade sem fim. O que o eu quer é ser atendido, adulado, e preservado. Jesus é o anti-ego, a submissão ao outro, a doçura e o sacrificio sem vaidade, anônimo. Para Pascal, é impossível ser feliz com amor ao eu.
Mas há mais, muito mais....
No homem existem apenas duas fomes válidas: a fome de espírito e a fome por justiça. Todas as demais sendo empobrecedoras e anti-humanas, fomes de animais. A imaginação tolhendo toda a compreensão da vida. Imaginamos o que o outro é, o que ele quer dizer, o que devemos sentir, o que somos e o que não somos, o que a vida significa, e assim jamais vemos a realidade.
Pascal, filho de seu tempo, tem um pensamento que me é detestável. O de que por não falarem e não criarem alternativas de comportamento, os animais são máquinas que comem e dormem, seres sem sentimentos, sem alma. Descartes dizia o mesmo. O excesso de racionalismo leva sempre a isso, por não serem racionais os animais seriam objetos que se movem. Felizmente esse é um pensamento cada dia mais morto ( o que prova por outro lado que pensamentos menos racionais e mais abstratos nos dominam agora ).
No homem haveria uma luta sem fim entre paixão e razão. Jamais se deve optar por uma das duas, deve-se fazê-las escravas de si. Ser o senhor da razão e o dono da paixão, pois razão sem freio torna-se egoismo e paixão se faz vicio.
Pascal usa um belo argumento para ilustrar a crise do homem ( sim, se fala da crise do homem desde essa era, aliás essa crise nasce na geração de Pascal e Espinosa ): o cego que um dia viu o mundo tem saudade da visão, um paralítico que um dia correu sente falta de andar, mas alguém que já nasceu cego ou entrevado não pode ter saudade do que nunca conheceu. Pois bem, se o homem sofre dessa nostalgia de tempos melhores, se ele sente que sua vida poderia ser maior e melhor, é porque um dia ele assim o foi. Não inventamos essa saudade do nada, ela é recordação verdadeira, nostalgia de algo de real que foi perdido. Saudade de uma felicidade que houve e foi quase esquecida. Saudade da fé verdadeira, fé sem dúvida, sem crise, sem pudor. Saudade de Deus.
Tudo em nós tende para nós mesmos, queremos ser amados. Isso é injusto. Devemos tender para fora, amar. Nascemos portanto maus e depravados. Eis outro pensamento pouco "simpático" de Pascal. E é maravilhoso ver o pensamento de um homem que nunca se preocupou em ser simpático ou róseo, um homem da religião verdadeira, e não da igreja auto-ajuda-veja-como-somos-todos-inocentes. Pascal pede que nos ajoelhemos, que joguemos a vaidade ao lixo, que amemos a Deus mesmo não tendo garantia nenhuma de sua existência, que sejamos para fora de nós e nunca dentro do eu.
Mais ao fim, Pascal faz uma leitura da religião judaica que deve irritar muito aos judeus. Ele não a condena, mas diz que o judaísmo teve como única missão a de ser o berço do cristianismo. Que tudo no velho testamento é anúncio de Jesus, preparação para sua vinda, e que os atos dos judeus tinham de ser como foram no teatro da vida humana. Anunciar o Cristo, não crer que Jesus fosse esse Cristo, condená-lo, ignorá-lo e crucificá-lo. Esse o caminho a ser refeito por todo cristão, de hoje para todo o sempre. Se Jesus viesse como rei ( que era o que os judeus esperavam, um novo Davi ), ele seria um usurpador, um exemplo impossível de ser seguido, um ditador.
Pascal..... será que passei quase meio século enganado?
Aliás, em mundo de eus inflados e exibidos, de desejos atendidos, de sorrisos infelizes, existe filósofo mais fora de moda e mais necessário?

BLAISE PASCAL, TUDO É IMAGINAÇÃO

O século XVII é considerado o século da grande revolução espiritual. O racionalismo se torna centro da mente humana. A partir de então, para se saber algo sobre qualquer coisa, são necessárias duas operações da razão: dividir a coisa a ser conhecida em partes mensuráveis, e estabelecer um método ordenável para a explicar. Todo o universo passa a ser então uma questão de peso, tamanho e distância, toda a experiência uma questão de método e o que não se enquadrar nesses requisitos básicos será ignorado.
Blaise Pascal nasce nesse ambiente. Mais que isso, ele nasce na França, em familia de posses, único filho homem de pai erudito. E é esse pai que logo percebe a precocidade do filho. Aos 7 anos ele já resolve problemas de matemática e lê a obra de Euclides. ( Voce já notou que é a partir desses anos 1600 que a matemática passa a ser a rainha do conhecimento ). Pascal se torna geômetra, e cria a primeira máquina de calcular da história. É ele o homem que primeiro caminhou na direção do que seria o computador. Pois bem. A partir dos 30 anos a vida de Pascal dá uma guinada. Ele se torna jansenista. Se voce já viu algum filme de Bresson sabe um pouco do que seja o jansenismo. Não? Direi.
O jansenismo é uma corrente cristã francesa que prega o absoluto despojamento. Não é como o franciscanismo, nada há de mendicante. O que se faz nele é um rigor absoluto, a certeza inabalável de que tudo o que vem do corpo é impuro e que todo o prazer deve ser evitado. Assim, qualquer espécie de experiência prazerosa precisa ser purgada. O catolicismo romano logo passou a perseguir os jansenistas que viam no catolicismo vaidade e luxo.
Mas não se assuste, a filosofia de Pascal não é pregação. Falarei aqui do inicio de seu mais lido livro, Os Pensamentos. Para Pascal, vivemos em ilusão. Tudo o que pensamos, falamos, sentimos é tingido pela fantasia. O homem é incapaz de viver na realidade. Jamais falamos o que pensamos, na verdade mal sabemos o que pensamos. Nossa mente funciona sempre na apreensão do futuro e nas certezas do passado. O presente nos é desconhecido. Futuro que não existe e nunca será como pensado, e passado que é valorizado de forma fantasiosa. Para Pascal, a vida é movimento, jamais somos o mesmo dois dias seguidos. Nossos amigos mudam, as coisas mudam. Nada é igual a nada, não existem dois dias iguais, não existem dois seres iguais. Mas somos incapazes de apreender essa transformação incessante, não conseguimos ver a exuberância da vida e então ignoramos as coisas. Cremos que todo bago de uva é igual a seu vizinho, queremos crer que todo cão é como outro cão, sentimos segurança crendo que todo homem é igual. Mas nosso coração intui que não é assim.
Pascal no inicio fala também sobre as distrações. O homem é incapaz de ficar quieto em seu quarto. Vem daí toda a dor de viver. Porque? Porque precisamos de distrações, não suportamos viver em nós-mesmos, olhar para dentro e saber que tudo é abismo. Nossa vida tem apenas uma certeza, a morte. As distrações nos livram, futilmente, dessa certeza. É por isso que trabalhamos, jogamos, flertamos, viajamos. Pascal diz: dê à um jogador o prêmio do jogo e voce verá um homem infeliz. Dê uma lebre ao caçador de lebres e voce verá um caçador entediado. O homem é infeliz por "sonhar com o repouso e só poder viver em movimento". Toda sociedade que endeusa as distrações é infeliz. A distração é a medida da dor.
E a vaidade é parte desse todo. Vaidade é tudo. Filosofamos para que alguém nos admire, amamos no intuito de sermos admirados e invejados por vivermos nosso amor. Exibimos nossas dores como um tipo de troféu de nobreza. E cometemos a maior das vaidades: posamos de corajoso e realista ao bradar que a vida é dura e que a morte é certa. Não há maior vaidade que a de se dizer que Deus não existe e que tudo é um nada. A vaidade da pseudo-coragem. ( Bergman? Nietzsche? ). Mas esse mesmo realista que se gaba de sua coragem isenta de consolos, é o mesmo ser assustado que necessita de jogos, bebidas e sexo para se distrair. Estar em solidão consigo mesmo lhe é insuportável.
Animais vivem o aqui e agora, na realidade do movimento, do presente. A razão do homem lhe impede qualquer contato com o agora e o repouso vazio.
Pensador que escreve bem, Pascal tem suas diferenças com Montaigne ( Pascal o considera um vaidoso que fala apenas de si-mesmo e é incapaz de parar e pensar sózinho ) e com Descartes ( que seria um ordenador racional assustado ). Nada há de místico em Pascal, ele pensa em ordem e não em maravilhamento, mas critica a cegueira e o medo no homem.
Esse é o começo de seu admirável e canônico livro. Já é um dos meus favoritos.

ELEGIAS AMOROSAS= JOHN DONNE

John Donne é poeta central em toda a história das letras inglesas. E viveu nos áureos tempos da virada, o momento em que o poderio inglês se afirma nos mares e a nação se enche de orgulho e de fé no futuro. Nesse mundo, em que o racionalismo-otimista se expande por todos os cantos, Donne começa escrevendo poesia erótica, amorosa, e vive esse universo sensual sobre o qual escreve. Na parte final de sua vida Donne se faz religioso, Deus passa a ser seu tema. Por favor, não pense que ele foi um libertino arrependido. A religião entra na vida de Donne como natural desenvolvimento de sua história. Em seus poemas de juventude já notamos que existe nele a fome da experiência. É como se após desvendar todos os recantos da carne, ele comungasse com os mistérios da alma.
E aqui está uma edição portuguesa, tradução excelente de Helena Barbas. Poesia feliz, exultante, poesia do êxtase. O poeta convence sua amada a se dar, prega a inconstância, mundo onde ninguém é de ninguém. A musicalidade impera, cada poema é um tipo de canção erudita. Imagens sobre imagens, pele e pelo, curvas e geografias carnais, teses de liberdade, sínteses de sedução.
"As mulheres são para os homens, não para mim ou para você", este o tema da elegia 3, Changes, elegia que demonstra a volubilidade das mulheres, a mudança constante da vida. Pois deixar de mudar é ser lago imundo, quando somos rios. Ricos.
E Donne reclama depois da mulher a quem ele tudo ensinou e que agora se vai ( Donne é humano, a vida é mudança, mas ele quer que ela fique um pouco mais ), ela se vai, sábia, dar a outros o que ele lhe deu. Na elegia 9 ele faz o elogio do Outono e com ele das mulheres outonais. Uma aula de imagens que correm em constante velocidade, sonoridades que hipnotizam, sensualidade sem fim. E vem a elegia 11, Bracelete, talvez a minha favorita. Ele lamenta a jóia dada a sua amada, ouro que revelou ao pai da moça o amor secreto dos dois. Donne faz comparações entre os metais e o amor, divaga nos meandros de seu sentimento, flui entre suas sensações.
Na elegia 15 ele cospe em postulações a infidelidade da mulher. Elas mentem, todo o tempo, a mentira é condição de ser mulher. John Donne se faz agressivo, virulento, ferino, maldoso. Mas isso não impede, antes realça o fato de ser um poema cheio de gênio, de som e de fúria, vivo para sempre. No 19 ele vai para a cama com ela, e na cama é desvendado todo o segredo do claro corpo da amada. Amada que nunca é "amada" à moda romântica, é desejo carnal, volúpia, sagrada volúpia. "Deixa que minhas mãos se percam atrás na frente entre".
Não citarei mais frases de Donne. Impossível escolher. Procurem ler este poeta metafísico, carnal, vermelho de sangue e azul de anjos. John Donne é além do tempo.