OS VIVOS E OS MORTOS- JOYCE E HUSTON

No começo da estrada a coisa veio como golpe de vento frio em meu rosto. Melhor, um tapa e uma palavra dura : - Acorda !
Após esse acordar eu olhei para todos os rostos e não mais pude vê-los em sua fantasia falível.
A vida me revelou sua jóia. Pedra gelada que queima as mãos de quem a acaricia.
Você vive e vê um milhão de finais...e aquilo que não parte, afundando em saúde e beleza, desfaz-se lento e macilento, na triste morte de coisas esquecidas.
Dia a dia a vida entrega-se aos finais. Se tudo é finito o que tem valor ?
No começo da estrada essa neve cai sobre minha cabeça e clareia a visão de meu futuro, se tudo parte e fenece, o que faz a vida valer ?
Melhor ser então o que morre logo, com ombros altos e brilho na face a se deixar roer pelas dores das manias e os ritos da senilidade. Pois não existe amor velho.
Se os outros soubessem... é impossível ambicionar perante a ruína e é grotesco pensar em glória ao se saber onde todas as glórias vão.
Livros e música e tudo o que permanece é a Lua que faz silêncio e o negro vazio do céu.
Meu amor permanece por ter sido morto jovem. Permanece como um cantor e como sua canção. Amor que não conheceu a secura de rugas e a tolice de papadas.
E desde aquele vento frio estourando em meu rosto nada tem valor perante a Lua.
Suas alegres conversas são rolhas voando e caindo no lixo. Esta festa tem a duração de um ronco. Mas o canto daquele amor falido, esse nos acompanha até o vazio.
Toda a rua tem sua morte e em todo dia há mortos esquecidos. Nada será amanhã belo como agora, a não ser o amor falecido...

Escrevo isto após assistir " os vivos e os mortos" de Huston e após reler "the dead" de Joyce.
Em meio ao tolo bla bla bla de uma noite, nasce a lembrança de uma paixão morta.
E nada vivo tem o peso desse amor falecido.
Conto e filme, tanta coisa e só isso.
Conto, tudo.
Filme, lindo.
Joyce também percebeu cedo que só a morte importa.
Huston desde sempre só flertou com ela. Esperou-a para fazer seu filme mais pessoal.
É só isso.
A Lua fria e o vazio do céu. E alguém que também percebeu...

CRAZY HEARTS/ VIRTUDE SELVAGEM/ HUSTON/ MASTROIANNI

PERGUNTE AO PÓ de Robert Towne com Colin Farrel, Salma Hayeck e Donald Sutherland
Muito fã de Fante sentiu vendo este filme o que senti vendo Alice de Tim Burton e o Sherlock. Espero que agora compreendam minha aversão. Se é pra ser tão infiel a obra original, porque não criar uma ficção completamente nova ? Muito simples : é mais fácil usar a griffe já estabelecida. Burton fazendo Alice causa um hype que não causaria Burton criando uma nova história. Towne, que foi grande roteirista ( Chinatown ) dirige sem qualquer tesão. O filme é banal. Mas ainda poderia se salvar se o ator fosse menos ruim. Bandini clama por um Montgomery Clift, um frágil/agressivo. O que temos é Farrel. Repare que ele interpreta como cartoon. Parece que sua fonte são as "ricas" expressões faciais do Spirit ou de Clark Kent. Existe algum filme com Hayek que valha a pena ? Acho que só os de Robert Rodriguez. Nota Zero.
CRIME EM PARIS de Henri Georges Clouzot com Bernard Blier e Suzy Delair
Que maravilha!!!! Totalmente restaurado, a fotografia em p/b cintila. É, óbvio, sobre um assassinato. Sabemos quem é o culpado, mas a polícia irá descobrir ? O policial é atuação soberba ! Aliás todo o elenco brilha. E é de surpreender o liberalismo do cinema frances da época. O policial tem filho negro adotado, há uma paixão lésbica e os tiras são todos sádicos. Isso num filme de 1947 !!!! Os críticos da nouvelle-vague odiavam Clouzot. Truffaut dizia ser ele o símbolo do cinema velho. Depois, quando passou a dirigir, François se arrependeu dessa opinião. Clouzot sabia tudo. Seus filmes, espécies de Hitchcocks mais falados, são sensacionais. O Salário do Medo é uma obra-prima e este não fica tão longe. Sujo, cheio de sombras, atemporal. Nota 8.
O MÉDICO E O CHARLATÃO de Mario Monicelli com Vittorio de Sica e Marcello Mastroianni
Jovem médico chega a aldeia do sul da Itália, lugar com 50 anos de atraso. Lá, ele sofre apuros para convencer o povo a largar o charlatão-curandeiro que os atende. Comédia de Monicelli. Alguém sabia fazer melhor ? Mastroianni faz o típico papel do começo de sua carreira : o bonitão tolo. Não fosse Fellini, que lhe deu outra estrada em Dolce Vita, ele seria desperdiçado para sempre nesse tipo de papel. Vittorio rouba o filme, o charlatão é criação de gênio, mentiroso, charmoso, frio, inteligente. "- Trouxeram sua fé ? Trouxeram sua crença ? Trouxeram seu amor à Deus ? Trouxeram 20 mil liras ? " O filme se passa na típica aldeia pobre dos filmes italianos da época, é um paraíso de gente cômica e mulheres bonitas. Um prazer. Nota 7.
CRAZY HEART de Scott Cooper com Jeff Bridges, Maggie Gyllenhall, Robert Duvall e Colin Farrel
O filme é apenas Bridges. Não é sua melhor atuação ( o Vendedor de Ilusões é seu grande papel ) mas lhe deu o oscar. Demorou. O filme não é nada parecido com o de Mickey Rourke, quem disse isso não viu este filme. As músicas são boas ( T Bone Burnette ) mas podiam não ter essa maldita mixagem anos 80, a bateria soando muito alta e tudo parecendo limpo e sem erro. Quanto ao filme, que fiz força para gostar, é uma banal história sobre alcoolismo e estrada. Com paisagens de western ele consegue ser chato. Fico pensando em como filmes como este e Up in the Air ou Guerra ao Terror conseguem tanto destaque. Não são ruins, são comuns. Nunca foi tão fácil conseguir chamar a atenção com tão poucas idéias. Desse jeito, Clint e Resnais vão filmar pra sempre.... Nota 3.
O SENHOR DA GUERRA de Franklyn Schaffner com Charlton Heston e Richard Boone
Muito reprisado na velha Record dos anos 80. A história, cheia de pseudo-exotismo, fala de nobre que toma posse de castelo miserável na Normandia em 1100. É sempre bom ver a idade média retratada sem muita produção, mas o filme se leva a sério demais. O texto, raso, tenta ser Shakespeare. Não dá ! Heston e Schaffner melhorariam muito dois anos depois com o excelente Planeta dos Macacos. Este é nota 4.
VIRTUDE SELVAGEM de Clarence Brown com Gregory Peck, Jane Wyman e Claude Jarman
Technicolor....eu cheguei a ver o technicolor no cinema. Minha mãe me levou para ver Cantando na Chuva ( uma reprise em 1975 ) e pirei com aqueles azuis e verdes. Mas um dia se criou outro sistema de cor, o Eastmancolor da Kodak, ( nos anos 60 ), sistema muito mais barato e o Technicolor deixou de ser utilizado. A diferença é que o Technicolor é muito mais brilhante, artificial, operístico. As cores gritam e ainda me lembro do assombro que era ver cores mais coloridas e vibrantes que as da vida "real". Estranho...com o technicolor a sensação era a mesma de se ter miopia e colocar óculos : voce olhava a tela e via a vida focada e colorida pela primeira vez. O eastman é como é, as cores da rua, mas o technicolor eram as cores do sonho...
Dito isto, este é um clássico do cinema technicolor. Foto de Charles Rosher premiada. É um filme museu. O mundo que ele exibe está completamente extinto. Acompanhamos a saga de um menino nas matas da Florida. O filme exibe sua transformação em adulto, seu rito de passagem. O filme é piegas, o menino ama tanto o pai que chega a dar enjôo, o bosque é belo ao excesso...e com tudo isso, o filme é maravilhoso. Se voce ainda tiver salvação, não for cínico terminal, irá penetrar naquele cotidiano de caça ao urso, refeições fartas, enchentes, colheitas e socos. Irá perceber que neste filme existe alguma coisa que perdemos, coisa que só se perde uma vez : inocência. Passe por cima do excesso de " hey pa " do garoto e mergulhe sem medo na emoção simplória deste filme sobre natureza, e principalmente, sobre a dor de se largar a infancia. O final, quando o menino "perdoa" os pais é perfeito. Ele é obrigado a ser homem, finge aceitar isso, mas na última tomada vemos que ele sonha com a infãncia, será sempre só.
O pai, aliás, repete isso várias vezes : crescer é ser só.
O filme tem ainda uma das mais belas cenas de infãncia do cinema : o garoto correndo pela floresta com bando de gamos. A simplicidade extrema falando tanto...
Foi imenso sucesso de público e crítica, premiado, e tem Peck, muito jovem, ensaiando seu mítico Attichus Finch, papel que lhe daria a eternidade no futuro.
Bem, é um filme piegas, simples e povão; mas macacos me mordam, como consegue ser tão bom ? Nota DEZ.
OS VIVOS E OS MORTOS de John Huston com Anjelica Huston e Donal MacCann
Em 1987, sabendo que ia morrer ( quem não vai ? ) Huston, usando máscara de oxigênio e em cadeira de rodas, dirigiu esta adaptação de um conto de James Joyce ( The Dead, talvez o melhor conto que já lí ). Fala de uma reunião de Natal em Dublin. Músicas, comidas, bebidas, danças e festa. E também inseguranças, dúvidas, ódios, dores e um segredo revelado. É só isso. A maestria de Joyce foi a de fazer com que uma sala e meia dúzia de pessoas comuns consigam nos fazer ver a transcendencia da vida. Huston quase chega lá. Seria impossível chegar.
Que belo caminho !!! Do Falcão Maltês até aqui.... O filme, que é só conversa e dois cenários, prende a atenção dos que conseguem ainda escutar palavras. Os atores estão ótimos e as cenas finais explodem em poesia triste. Huston se despede da vida falando de um amor que sobrevive a morte. De um falecido que continua a modificar a vida. Que belo Adeus......nota Dez.

CATOLICISMO

Se eu acreditasse em Deus eu seria católico. Explico.
È claro que não gosto do passado intolerante da igreja. A hipocrisia, inquisição etc. Mas quero falar de hoje, de agora, e penso que não há melhor antídoto para as loucuras do tempo presente que uma dose de catolicismo na veia.
Americanos odeiam católicos. Católicos não acreditam em escolha. E o poder escolher é a base da religião americana. Um americano crê que ele pode ser o que deseja. Pode seguir qualquer seita cristã, pode fazer de sí o que sua vontade conseguir. A tradição religiosa da Europa é oposta a isso. Sua família tem uma religião e voce faz parte dela. Se voce rompe com isso, um preço é pago. Americanos odeiam pensar em preço. É esse modo de pensar ( somos aquilo que queremos) que faz com que a psicanálise seja tão mal entendida nos EUA .
Mas não pense que este é um texto anti-USA. Comunas pensam em religião como ópio. Uma tolice. Religião não é ópio, não é só política, ela é parte do ser-homem, do existir. Negando ou aceitando, todos fazemos parte de uma sociedade religiosa.
Na Alemanha, na Inglaterra, na Suiça e na América, desde sempre é de bom-tom detestar padres. Pessoas cultas sabem que em conventos e em seminários impera o sexo. Para esses sábios nórdicos, sexo é sempre uma doença. Lí a pouco que nos EUA sexo continua a ser uma perversão. Não é parte da vida, é show de taras, de neuroses, de sofrimento ( vide Madonna e agora os rappers e Gagas... sexo como loja pornô ). Católicos são mais sensuais porque para eles sexo é tentação do mal, um delicioso pecado. "Estou gosando! Perdoai-me !!!! " contra " Fuck me !!! I'm sick !!!!"
Perseguem-se católicos. Só judeus são mais perseguidos. Padres são pedófilos ( como se professores, médicos e técnicos esportivos não fossem ), Roma é mentirosa ( tudo que envolve política é ), toda freira é lésbica, todo padre é gay. Para o mundo não católico, preso no supermercado do goso imediato e do tudo-posso, abrir mão de sexo é não só mentira, é impossível. Será ?
Tendemos a hiper-valorizar nossos remédios. A adorar aquilo que nos consola. Para o sem sentido mundo moderno, sexo é viver. Quem ouse negar isso é falso, ou pior, só pode ser pervertido. É inadmissível que alguém abra mão daquilo que te parece tudo.
Católicos também incomodam pela mania de falar em morte, ressurreição, pecado, proibições. Para o mundo século XXI tudo pode, desde que seja sua verdade sincera. Ser voce mesmo, não se deixar doutrinar, isso é ser livre. Livre do que e para que ? Não interessa. O pensamento infantil mágico, o pensamento de que se eu quiser eu tenho, é o pensamento mais anti-católico possível. No catolicismo, Deus é juiz, ele decide e escolhe, somos peças de um tabuleiro.
Admiro muito quem nasce católico e se mantém firme em sua fé. As seduções fáceis são muitas. Crer em "preço a pagar", pedir perdão a Deus, saber que não somos donos da vida e da verdade.... me parece um modo de pensar e viver muito são para tempos doentes. Além do que há algo de familiar, de confortável em tudo isso.
Respeitar pai, não roubar ou matar, não dar falso testemunho, não cobiçar a mulher do próximo.... o mundo precisa desses "nãos" para funcionar, o homem precisa desse pai para ser feliz.
Volto a dizer, se eu acreditasse em Deus não teria dúvida em ser católico.
Nascí católico. Vejo a vida como um católico a vê ( a saga de um Cristo expiando culpas ) sinto o amor como um católico ( a mulher como santa/puta, o amor como sofrer no paraíso ) faço as perguntas católicas ( o que é certo ? como perdoar ? como encontrar a luz ? ) mas me falta a fé, e sem fé me falta tudo.
Jamais faria como certos seres, que envergonhados de crer num Deus tão "vulgar", pegam sua fé e a jogam no supermercado de igrejas, achando que basta querer para se tornar budista, umbandista, kardecista ou sufista. Passam a vida usando religiões como remédio, budismo para nervosismo, kardecismo´para o medo de morrer, outra para ganhar dinheiro.
Voce nasce numa religião e mesmo a negando será sempre um ex-católico ou um ex-judeu.
Uma bela religião essa de São Pedro, incompreendida, usada para fins errados, aviltada e odiada por todos que se sentem culpados, mas é a raiz do mundo latino.
Sou um ex- católico. Não odeio ou combato católicos. Não caio nessa lei de mercado.
Mas lí Nietzsche, Voltaire, Darwin....

PARA QUE SERVE A PINTURA ?

Indo ao MASP. Ausente. Pensando em tudo que dá pra pensar. Andando. Apressado. Olhando e ignorando a gente que passa e as coisas que vão.
Diante de Chagall.
Olhar um quadro ( gravura ) é sempre estranho. Primeiro voce sente um frio na mente. Nenhuma emoção. Seu cérebro está condicionado a só enxergar imagens em movimento ( estamos virando bichos ), e diante de voce há uma imagem estática. A primeira vontade é a de andar, fazer um travelling pelas imagens, para que assim elas se movam.
Mas voce permanece. Continua olhando. Sem emoção nenhuma. Sem analisar. Olha e olha. Então voce começa a perceber que tudo alí é redondo, que não existe solidão nas imagens e que há uma imensa inocência naquilo tudo. Voce anda e vai às imagens coloridas. Animais, gente, aldeias, peixes, galos. Chagall é o último artista feliz. Note : ele não resolve fazer arte feliz ( como o fez Matisse ). Ele é feliz. Nosso mundo, 2010, é de Picasso e Braque, Chagall é a mensagem do que perdemos. Sinto ser irrecuperável.
Uma imagem vermelha. Lágrimas em meus olhos. Alí vejo o que eu poderia ter sido.
Uma imagem em verde. Canção em meu mais profundo. Eu vivi aquilo. Um eu que me veio de meu avô. Ele sabe toda aquela canção.
Mas é pra isso que serve a pintura ? Não. Ainda não.
Saio da sala de Chagall. Quero ver os holandeses.
Todo aquele que ama pintura começa pelo sensacional. Dali ou Bosch ou Van Gogh. Depois voce começa a entender Klee, Picasso e Kandinski. Mas ao final, voce percebe que o momento maior esteve sempre em Velasquez, Rembrandt e Caravaggio. É como ler. Primeiro Heminguay ou Hesse, depois Dostoievski e Kafka, e no fim, Cervantes mais Tolstoi.
Eis Rembrandt................
Chagall é um poeta maravilhoso. Mas aqui está um deus ! O dono de um segredo perdido. Se Chagall fala a meu coração, se ele canta em minha alma, Rembrandt é a própria criação. O quadro é um ato de divinização.
Mas é para isso que serve a pintura ? Será ?
Tem um gigantesco Van Eyck por perto. Um retrato. Milhões de fotos digitais tiradas no desespero de eternizar alguma coisa.... E aqui, um plácido retrato a óleo. Eterno. As duas mil poses que voce faz para as lentes mostram menos de seu ser que esta única pose deste modelo. Ele vive e está completo aqui. Seus retratos digitais são histéricos. Macaco fazendo pose. Neste óleo mora uma alma. Lânguida.
Saio do MASP e pego um bus.
Entra uma menina linda. Seus olhos sorriem e refletem a luz do sol forte. O nariz tem uma leve curvinha para cima e percebo que há uma pinta no pescoço. Ela se senta ao meu lado e usa uma correntinha no pulso. Na rua passam arbustos verdes por onde a luz passa filtrada. Minha ansiedade se foi, estou estranhamente calmo.
Quando chego em casa abraço meu cão e almoço olhando as maritacas brincarem na mangueira. O verde de suas penas e o verde das folhas. Meu cão está feliz.
Eu aprecio.
Entendí.

MIKE NICHOLS/ MOULIN ROUGE/ O SEGUNDO ROSTO/ ALEC GUINESS

QUINTETO DA MORTE de Alexander MacKendrick com Alec Guiness, Peter Sellers e Herbert Lom
Os irmãos Coen refilmaram este filme usando Tom Hanks. Foi um fiasco ! Este é o original. A velhinha é deliciosa. È dela esta comédia muito inglesa em que grupo de ladrões se enrola para eliminar sua senhoria. O filme não é a genialidade que eu esperava. Sua fama é exagerada. Mas tem um show de todo o elenco e um roteiro que vai num crescendo até seu impagável fim. Not 7.
INOCENTE SELVAGEM de Nicholas Ray com Anthony Quinn, Yoko Tani e Peter O'Toole.
Assiti este filme vinte anos atrás, na tv Manchete, de madrugada. Na época o considerei genial. Mostrando como o gosto muda ( no meu caso, com o dvd aumentei muito minha exigência ) revendo-o agora fiquei abestado com sua tolice. Tudo é constrangedor. Quinn faz um esquimó ( o filme é história sobre cotidiano esquimó ) muito mexicano e toda a trama é pobre e previsível. Uma besteira. Nota 1.
ARDIL 22 de Mike Nichols com Alan Arkin, Anthony Perkins, Martin Sheen, Jon Voight, Orson Welles, Art Garfunkel.
Primeiro foi um best-seller com conteúdo, de Joseph Heller. Uma impiedosa sátira à guerra e as corporações. O livro previa a transformação da guerra em negócio privado. O filme, super-produção, num tempo em que se faziam super-produções de "arte", foi gigantesco fracasso de público e de crítica. Por dois motivos : o principal, ele teve o azar de ser lançado com MASH, que é muito melhor e muito diferente. Segundo, é um filme hiper azedo. Tudo nele é desesperança, as cenas são muito cruéis e ele caminha para um final negro e vazio. Mas é um grande filme. Tem uma das mais fantásticas fotografias da história ( de David Watkins ) toda feita às 14 horas ( sim meus caros, podia-se dar ao luxo de filmar toda a película às 14 horas de cada dia ) o que fez do filme um pesadelo "onde todo dia é 14 horas do mesmo dia ". Os atores começam interpretando como em farsa, depois vão se transformando em realistas e terminam num estilo quase documental. Nunca se filmaram aviões tão potentes, pilotos tão perdidos, lideranças tão maldosas. Cenas fortes se sucedem e ele, sem música, sem extras ( parte do clima de pesadelo é obtido pelo quartel sem extras, vazio, só com oficiais ) vai pegando seu interesse, sua atenção. É um filme invulgar, muito ambicioso, corajoso e louco. Atenção aos extras do dvd. Mike Nichols e Steven Soderbergh comentam todo o filme, cena a cena. Soderbergh, fã da fita, confessa já ter visto incontáveis vezes este gigantesco paquiderme, cheio de erros, e com acertos magníficos. Ardil 22 é belíssimo !!!! Nota 9.
CRAZY de Jean Marc Valée
Escreví crítica abaixo. É um filme que me derrubou visceralmente. Mostra com bela sinceridade a fase mais cruel da vida : a adolescência. Voce se apaixona por toda aquela família, principalmente os pais. Filme canadense, com colorida estética anos glitter. Nota 9.
MOULIN ROUGE de John Huston com José Ferrer e Zsa Zsa Gabor
Oswald Morris cria bela fotografia. O filme se parece com tela de Toulouse-Lautrec. E é o que acompanhamos, a vida de Henri de Toulouse-Lautrec. Belos cenários, belas roupas, belas cores. Péssimo roteiro. Huston dirigiu o filme sem interesse ( na maioria de seus filmes ele pouco se interessava ). É um enfadonho e raso novelão sobre um deficiente físico. Nota 2.
O SEGUNDO ROSTO de John Frankenheimer com Rock Hudson
Que bela geração essa americana de 55/65. Lumet, Nichols, Arthur Penn, Peckimpah, Mulligan, Roy Hill, Schaffner, Pollack, Cassavettes e este viril Frankenheimer. Este filme, que tem uma fotografia em p/b do mestre James Wong Howe, fotografia de um modernismo ainda não igualado, é o mais asfixiante pesadelo que já assisti filmado. Conta a história de uma empresa que faz "renascimentos". Voce paga uma quantia e tem seu rosto redesenhado, sua voz remodelada, e novo nome, profissão, endereço, biografia. Todo seu passado é jogado fora e voce recomeça do zero. Mas o filme mostra isso, hoje um sonho mais desejado que em 1966, época do filme, como um pesadelo kafkiano. Nada faz sentido, a vida se torna vazia e sem objetivo, tudo se esvai. Rock Hudson, em atuação perfeita, se rebela e tenta voltar atrás. È impossível, ele pertence à corporação. Seu grito na cena final é momento de horror cósmico. Trata-se de um filme desagradável, corajoso, viril sem respiro. E tem uma cena de cerimônia dionisíaca com pré-hippies muito boa. Nota 8.
REVELAÇÕES de Robert Benton com Anthony Hopkins, Nicole Kidman, Ed Harris, Gary Sinise
O texto é baseado em Philip Roth. O elenco é excelente ( com excessão de Nicole. E houve época em que se achava ser ela grande atriz.....) mas o filme, dirigido pelo flácido e molenga Benton, é uma bomba. Pensar que este diretor já foi roteirista de gênio. E ainda possui um Oscar de direção por Kramer versus Kramer.... Boas idéias são todas desperdiçadas e o filme tem alguns momentos de inacreditável ruindade. Nada convence. E ainda é cheio daquele jeito meio deprê e escuro de filminho de arte anos 2000, diálogos ditos baixinho, momentos de silêncio, violência em surdina... dá um tempo!!!!!!! Que saco! Nota Zero!!!!!

RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM - JAMES JOYCE

O pai. Acompanhar esse pai às tabernas. Ele é um bom aluno. Escola de jesuítas. Padres. O catolicismo irlandês. Jesus e Maria. Ele e ele.
Stephen Dedalus. Dedalus fala com Dedalus. No mundo infantil de Stephen só existem padres e ele mesmo. E a injustiça. Os castigos dados pelos padres.
Cada parte do livro ( pequeno volume ) é uma etapa da vida de Stephen. Para onde ele caminha ? Descobre o sexo com uma puta. A culpa. Um dos mais tortuosos capítulos já escritos : Dedalus cai do céu. Ele cai, desaba, mergulha na vida. Adeus à igreja, adeus a inocência. A consciencia culpada luta com o corpo desejante. Santos e Jesus. A escrita é um labirinto.
Stephen adora andar pelas ruas. Caminha e caminha. Para onde ele vai ?
Já crescido, um jovem. Discute teoria estética, discute a Irlanda. Um poço de rancor, de ira mansa, um caminho de solidão.
O livro é isso : da infãncia ao despertar de um jovem. Ele nunca posa de vítima, Dedalus sofre mas assume. Escolhe partir. Sem família e sem Irlanda. Nada de amigos. Todos os outros personagens do livro são fantasmas. No mundo de Stephen existe apenas Stephen. O livro é luxuriantemente moderno. O corpo começa a falar.
Não é fácil esse caminho. Nem mesmo para o leitor. O livro fala e fala e fala. A igreja ocupa o centro. Ícones e vestes de sacerdotes. E as ruas sujas. O texto é tortura tortuosa. Voltas e caminhos. E jóias entre as vielas escuras e podres.
" Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida ! Um anjo selvagem lhe tinha aparecido.... " Esse é o caminho de Dedalus. Mas há mais :
Ele percebe que toda arte que nos dá repulsa ou que nos atrai não é válida. A arte superior SUSPENDE a vida. Não causa nem repulsa e nem atração. Olhamos suspensos. Paramos. Tudo o que nos pega pelo sentido da atração ou da repulsa é pornográfico. Explícito. O prazer estético se encontra na SUSPENÇÃO. O momento onde não existe nem atração e nem repulsa, nem prazer e nem dor, onde não há tempo. Voce enxerga com a alma, não com o corpo.
É esta a mais bela e perfeita definição do que seja arte que já lí. Não fosse por mais, o livro valeria por ela.
Deve ter sido duro ser Joyce. Ele não baixa a guarda nunca. Não amolece, não agrada, jamais deixa de fazer o que quer fazer. Ele tem o rigor e a fé do jesuíta. Crê no seu destino, crê em sua mente e nunca se corrompe. James Joyce era meio santo. Este duro, crispado, irado livro é um atestado de fé. A fé de Stephen Dedalus em James Joyce.

MAL DO SÉCULO

Um cara bem sucedido. Descreva esse cara...... excelente saúde, físico perfeito, jovem, sorridente. Vários amigos, vários amores, sempre fazendo coisas legais. Antenado às novidades, rápido e ágil, cheio de poder. Engraçado, acabamos de mirar uma máquina. Funcional, revisada, último tipo, leve e rápida, belo design. É a descrição de um carro ou um celular.
Depressão. Um homem jamais conseguirá ser máquina.
Um cara invejável. Pele sem mancha ou ruga. Magro´porém forte. Sangue sem colesterol. Taxas corretas de açúcar. Não fuma ou bebe. Alongado e concentrado. Sem gastrite e sem prisão de ventre. Oito horas de sono. Verduras e legumes. Muita água. Dentes brancos.
Depressão. Um homem jamais é apenas seu corpo.
Coragem. Honestidade. Honra. Inteligência. Lealdade. Fé. E poder também. Esses eram os valores pelos quais a humanidade sempre se pautou. Ser um bom filho, um bom pai, um bom cidadão e um bom cristão. Objetivos hipócritas, porém, humanos. Qualidades INTERIORES.
Hoje. Fotos tiradas às centenas. Para provar ao mundo o quanto sou vivo, o quanto sou bacana, o quanto sou feliz. Não mais existo perante Deus e cidade, existo apenas em seu olho. Me coloco em imagens de tela, em vozes distantes, tento existir. Veja : eu sou isto que voce é.
Ontem. Eu existo pelo meu nome. Sou Silva, filho de Silvas. Sou brasileiro, sou paulista. Mais, sou filho de Deus. Existo visto por Deus. Sou continuação de meu pai.
Diz minha gurú ( Maria Rita Kehl ) citando Winnicott : a vida só pode ser agora se houver uma narrativa. O passado carregado para o futuro. Pois o futuro nunca existe, é apenas uma idéia, e o presente torna-se passado no momento em que surge. Apenas o passado nos dá o CONFORTO da segurança.
Máquinas não têm passado. Ela é somente um presente. O corpo não tem futuro. Será a morte. Sendo máquina e corpo vivemos sem passado e sem futuro. Um hoje que é nada.
Mal deste século : DEPRESSÃO.
Não quero e não posso ser máquina. Não sou apenas um corpo. Páro. O deprimido renega a máquina, ele deixa de funcionar. O deprimido nega o corpo, ele sente dor e medo. Ele quer ser humano.
Mal do século XIX : histeria e esquizofrenia. Não sou amado por Deus. Não tenho família ou país. Estou fora do coração do mundo. Não consigo crer ou seguir as regras. Quero ser livre.
Hoje o mundo é o doente do século XIX. Não cremos, não pertencemos, não temos regras. Somos livres. Herdamos a saudade de ser humano.
Onde meu lar ? Todo o tempo nos vigiamos. Ser máquina de ponta, ter corpo funcional. Dá pra crer que não era assim ? Que ninguém se preocupava em parecer jovem, parecer alegre, ter dentes brilhantes ? É inacreditável, mas a pressão já foi bem menor.
Máquinas são revisadas. Precisam fazer aquilo para que foram feitas.
Pensamos que a vida é uma doença. Funcionar é saúde. Quem funciona é máquina, humanos vivem. Viver é envelhecer, perder, chorar, ter medo, ficar doente e morrer. Viver é falir. A vida não " funciona", ela é. Remédios e virtualidades para esquecer de viver. Curar a vida.
Sem envelhecer nada cresce. Sem o vazio da perda não existe ganho do novo. Sem choro não se toma decisão. Sem o medo a vida nada vale. Sem doença não existe a interdependencia. Sem a morte inexiste a criatividade. Se viver é anti-funcional, curar a vida é não viver. Quarto limpo e vazio onde nada acontece.
O deprimido grita por acontecimentos. Sua vida acontece. Ela desaba.
Mesmo eu, ser saudade, que ora pela idade média, que ama os simbolistas decadentes, eu, homem-passado, homem vitoriano, sou miserávelmente um humano século XXI. Apressado, afobado, estressado. Tentando se curar da vida e se deprimindo. Me comparando a máquina ( e sempre perdendo na comparação ) e querendo ser um corpo ( todo o segredo da vida TEM de estar na química e na biologia !!!! ). Um filho do século, procurando os rastros de seus passos e nunca os encontrando. Vazio como o quarto limpo.
O homem hoje pergunta : O que quero ? O que tenho ?
As perguntas sempre foram : O que sou ? De onde venho ?
O deprimido ainda pergunta quem é. Ele sabe que já perdeu.

C.R.A.Z.Y. - JEAN-MARC VALÉE

O cinema é sempre a última das artes. Tudo o que acontece antes em pintura, música ou literatura, aporta uma ou duas décadas mais tarde nas telas. Só a partir de 2000 é que a geração que cresceu/nasceu no ambiente glitter/punk dos anos 70 começa a dar suas cartas. Esse tipo de filme Bowieano, que tem como representantes Todd Haynes, Stephan Elliot e Alexander Payne, traz agora este deslumbrante, obrigatório, raro, magnífico : CRAZY.
Valée dirigiu em 2010 o ótimo YOUNG VICTORIA, e pouco antes nos deu este CRAZY, filme muito pessoal e uma jóia rara. Vamos ao roteiro.
Acompanhamos a história de uma família canadense. Católicos ( o filme é cheio de belas e engraçadas cenas na igreja ) e francófila. Essa "saga" começa em 1960, com o nascimento do quarto filho homem. O pai, fã de Aznavour e de Patsy Cline, e os irmãos, um intelectual, um rebelde e outro que é esportista. E nosso herói, Zac, que talvez seja gay. Que talvez seja um tipo de santo. Ou ainda apenas um cara tentando existir. Assistimos seus aniversários ( ele nasce em 25 de dezembro ), seu crescimento, sua camaradagem com o pai. A infância dele é comédia, mas o filme se torna drama na segunda etapa. Em belo corte, eis Zac adolescente, começando a descrer da igreja ( há uma cena belíssima ao som de Sympathy for the devil na missa ) descobrindo maconha e com o quarto, lógico, cheio de fotos de David Bowie. Fico pensando o que David deve pensar dessa dúzia de tributos que o cinema lhe tem prestado neste século XXI. Ziggy era mesmo um cara do futuro...
Zac começa a ter dúvidas sexuais e a barra se torna muito pesada. Brigas com o pai, com os irmãos, isolamento na escola, rompimento com a igreja. Mas, aí vem a habilidade do filme, ele jamais pesa, jamais se torna dramalhão, o filme prefere brilhar, ser imparcial, mas jamais frio. Ele flui. Nunca tenta ser arte, opta por contar sua história. E atenção : apesar da belíssima cena com a música Space Oddity, não é nunca um filme de rock.
Na terceira parte Zac vira punk e nesse começo de anos 80 a coisa pesa ( e os 80 foram muuuuuito pesados ). O filme, então, se torna magistral. Mergulha no drama sem medo e toca profundamente qualquer um que se recorde do que é ser adolescente. Confusão, violência e decepções. Confesso que desde PEIXE GRANDE um filme não me derrubava tão profundamente. Tudo está alí. Toda a merda de se escolher tudo de ruim. Todas as opções de Zac são erradas. Mas não só dele : pai, irmãos, amigos, todos erram sem parar. E nenhum tem qualquer culpa. Menos a mãe. E essa é uma das coisas mais belas do filme. A mãe, sem ser modelo de heroína, é sim o símbolo dessa coisa dolorosa chamada maternidade.
Mas é, e voce só percebe isso ao final, o pai o grande personagem desta obra tão bonita. É ele quem nos derruba. Percebemos a solidão patética, a bobice sem jeito desse ser que sempre se obriga a ser modelo e nada entende ou consegue salvar. Os minutos finais, que luto para não revelar, são hinos à reconciliação e a paternidade. É um filme vasto.
Coisa idiota se tornou o cinema. Se fala tanto ( às vezes merecidamente ) em Clint, Kar Wai, Almodovar, Guerra ao Terror, Van Sant, Coen e etc. E filmes como este passam em branco. Cada vez mais se destaca apenas o que já nasce eleito para ser destaque. O que já vem com griffe. Morreu o boca à boca, e dessa forma os azarões não vingam. Este filme é infinitamente superior a qualquer concorrente a Oscar deste ano ou do ano passado. Quem o viu ?
Jean-Marc Valée tem talento imenso. Espero demorar para ser corrompido por alguma adaptação quadrinhesca. CRAZY dignifica a arte.

ESQUIMÓ

Esquimós nunca falam eu. É estranho pensar, na língua deles não existe a palavra eu e consequentemente, meu. O " eu quero " se torna " ele Tony quer ", o " meu desejo " é dito " o desejo daquele Tony ".
Nosso mundo é língua/palavra. Como pensa quem não se vê como ser único e sim como ele ? É provável que olhem a vida e vejam nela parte de sí. Não um " eu e aquilo ", mas um " ele é aquilo ".
Os esquimós crêem que Deus é um urso. O mundo foi criado pelo urso e para o urso. O urso é o eu. O homem é o homem, ele- o homem.
Nesse modo de pensar, nada é de ninguém. Eles não são donos de nada, inclusive de suas esposas e filhos. As mulheres podem se divertir com vizinhos e os amigos podem pedí-las emprestadas. Os filhos são criados pelo iglú onde moram.
Daí voce pode pensar : - E daí ? O que um esquimó criou de útil ?
E eu te digo : - Já notou que a necessidade de criar, de progredir, só nasce na falta de alguma coisa ? Só cria quem precisa, quem sente uma necessidade.
Quem sabe o esquimó não esteja pleno ? ( Até alguém o convencer de que ele precisa de um Samsung prateado ).
Os esquimós fazem sexo às gargalhadas. Eles transam rindo. Isso revela muita coisa....
Mas se o urso é Deus, como pode um homem-esquimó matar um urso ?
Lí em algum lugar que a tragédia do homem urbano é matar animais inconscientemente. Voce devora hamburgers e bifes sem saber o que são. Voce não sabe, mas sua alma sente isso.
Os esquimós criaram um belo modo de sublimar essa culpa ( e onde eles vivem, ou voce mata ou é morto ), eles têm a certeza de que TODO ANIMAL MORRE ALEGREMENTE. O esquimó não caça o bicho, ele é que resolve se dar em sacrifício feliz.
Se o urso-deus criou o mundo, nada mais natural que ele se dar como alimento para seus filhos, sua criação.
Em nosso mundo não há nada que chegue perto de tão bela justificativa para a morte. Nós comemos hamburger porque é bom e os animais que se fodam.
Fico pensando em quantas possibilidades de vida e de entendimento da vida nossa mente comporta. Quantos deuses podem ser criados e quantas palavras não poderiam ter deixado de existir ou novas combinações não poderiam fazer novo sentido.
Um mundo sem o conceito de " eu sou " é um mundo completamente alheio a nosso entendimento.
" Ele é Tony " significa em última instância a sábia constatação de que a vida não é nossa, de que ser Tony é ser um papel fora de nós-mesmos e de que a alma interior, único eu-válido, é parte, e não indivíduo, de um grande bicho universal.
Ver um urso perdido em gelo, à deriva, é ver a perdição de um deus.

PARA OS QUE AMAM DEMAIS...SIREN - ROXY MUSIC

Um carro tem seu motor ligado e parte acelerado. Esse é o primeiro som do primeiro disco que escutei do Roxy. Todos os seis primeiros discos deles são sublimes, de qual falar ? Falo do quinto, que foi meu primeiro. Tem Jerry Hall na capa, vestida de sereia. Ferry a namorava na época. Casal glamour. Mas ela foi à um show dos Stones e Jagger a fisgou. Foram então quatro anos negros para mr. Ferry. E um longo casamento entre Hall e Mick....
O disco.
Love is the drug. O Roxy cria com Bowie, e quase ao mesmo tempo, a dance-music branca. Isso é love is the drug. O baixo de John Wetton domina a faixa. Ela é como seda. Um cadillac negro rodando de madrugada. Música deslizante, mas que não é retrato do que virá. Love is the drug é a risonha descoberta do amor. Mas para Ferry, o amor sempre dói e já nasce saudade.
End of the line. É um piano tocado só pra voce. E a voz.....a voz de Bryan....é o próprio ato de amar. Bryan canta com voz de fado português, de canção celta, de Chet e Piaf...de corações aviltados. Ouvir end of the line é como navio partindo pra lugar algum, é um lenço ao ar. Canção que traduz a paixão em seu final, a morte da vida, e uma beleza inatingível. Uma pausa para o piano no meio da canção...quando a voz de Ferry volta voce chora. End of the line são lágrimas sem fim e sem motivo. Meu paraíso final e´aqui. Se eu pudesse eu viveria para sempre neste end of the line. O final da jornada : o piano e sons de fundo. A beleza nos consola. Só a beleza salva. End é a beleza. Aos 14 anos resolvi ser fiel a End of the line. Cumpri.
Sentimental fool. Começa como loucura terminal. A guitarra de Phil Manzanera toca agudos e desafinamentos. A banda entra então redimindo essa folia esquizo. Quando a voz desaba é uma melodia de amor apaixonado. Que se traveste no hino dos tolos. Sim, bobos de amor. Pagando o pato. Mas creia, a música vira outra coisa, se torna uma queixa, uma descrição de musas, um caminhar a cadafalso. Todo o disco é bela dor de amor. O Roxy só pensa em termos de beleza.
Whirlwind. É a típica canção do primeiro Roxy. Cinemática confusão de imagens glamourosas. Caleidoscópio e carrossel. Uma festa exagerada de musicalidade e de fogos no céu. O brilho no olho da amada amante. Um espoucar de rolhas e cascata de espuma champagnolante. O solo de Phil é soberbo e a música é toda soberba. O Roxy é para muito poucos.
She sells. Tardes de sol com vento e a lembrança detalhada de tudo o que ela falou. Quando ela cruza meu olhar o céu é já. A canção é pop assumidaço ! Quem dança ? Termina em mais um hino. Este celebra a alegria doce. Este chora a tristeza orgulhosa. Porque toda beleza é dor ? Porque toda alegria é sarcasmo ? O Roxy cria a alegria dolorida e a beleza sarcástica.
Could it happen to me ? Aqui o céu se revela. Medievais sopros e a voz divaga. Ferry é o cavaleiro que volta ferido. Quando descobri o quanto a arte pode ser beleza eterna. Foi aqui. Foi aqui que nasceu tudo ! Tão simples e absurda. Os erros que cometi jamais seriam perdoados e meu futuro estaria em seu inicio, dormindo. Aqui.
Both ends burning. Tocou as três da tarde de um maio de 1976 na rádio Difusora. Fazia sol. A gente não esquece. Foi a primeira vez que escutei o tal de Roxy Music. Dois meses depois eu comprei este disco. Por causa de Both ends burning. Em 2010 eu ainda estou burning!!! 34 anos !!!!!!!! Ela ainda é cristal sobre veludo negro. O synth de Eddie Jobson sibila como vento em morros uivantes. Ainda canto alto fazendo backing para mr. Cool. Em 1976 eu parei meu jogo de botão para escutar a canção no Motorola vermelho e branco. Imaginei um amor perfeito só meu. Continuo burning.
Nightingale. Sempre amei janelas que dão para quintais. E sempre parei para escutar pássaros. Eis a janela e a ave : nightingale. Paul Thompson domina com doida bateria. Pequena canção assobiante ? Não. Há algo de oriental aqui. Uma tapeçaria é o disco. Aqui tece-se a lã do prazer. Andy Mackay toca oboe. O arranjo é a Arábia do delírio. Mas é amor. A voz com violinos é o êxtase. Voamos sobre todos os rouxinóis. Keats !!!!!!!!!! Única certeza da vida : Vale sim a pena viver !!!!
Just another High. O final. Desde seu primeiro acorde : céu. Ferry anjo e ajoelhado, reza ao amor. Não há maior hino a fé no amor. Um crazy guy. Crer no amor. Crer no céu. Crer no calor da paixão. E chorar. Permanecer no hello e no goodbye.... o solo é aceno de conhecimento. Bryan aos 25 anos no auge da poesia. Mergulhando no abismo do futuro fanado. Nada é certo e tudo é claro aqui. Just another high é o próprio amor. Oh como é bom ver voce.... just another crazy guy...... uma menina eterna e um cara doido desde sempre........
Siren é sim canto de sereias perdendo todo marinheiro de ondas vazias. Disco hino, disco guia, memória e estrela cadente. Siren é milagroso.

PARA SOLITÁRIOS E SONHADORES DESMAIADOS

O que mais me espanta nos caras de 11/16 anos de minha escola é seu pavor pelo vazio. Para eles o nada é impossível. Não conhecem o silêncio, estão sempre ouvindo algum som ou alguma conversa. Acordam e compulsivamente se conectam à sua rede. Rede aliás é lugar de peixe preso ou de dormir à sombra... nome que revela muito : ser capturado e adormecer.
Essa galerinha sabe tanto e nada absorve porque abominam a concentração. É impossível para eles fazer coisa nenhuma, parar e pensar, alimentar uma ilusão. Se mexem sem parar. Falam, ligam o celular, aumentam o volume, beijam e beijam e ficam, se conectam, e fazem tudo para não ficar um só minuto solitários. São estações de um gigantesco circuito.
Faço parte disso.
Leio muito menos do que lia. Me concentro mal. Escrevo pior e ouço música enquanto faço coisas. Chego em casa e ligo a tv, o computador, o rádio. Janto de frente para a tela. Menos tempo com meus cães. E usufruo menos de meus filmes. Pego de meu mar de vazio em rede de aço. Mais um.
Mas eu conheci o outro lado. Eu ficava no sitio do meu pai e dava pra crer, firmemente, estar na Rússia em 1880. Eu li Poe a luz de lampião e ficava um mês sem tv, telefone ou música. Era sol e bichos, água e livros, conversas no escuro e chuva com lama. O mundo podia explodir, meus contatos podiam morrer, eu não saberia. Era um tipo de lua de mel comigo mesmo. Dormir ouvindo meu pensamento.
Mesmo em casa não havia esse apelo magnético pela rede. Tardes inteiras sem nada pra fazer, tardes em que o tempo parava, longas e sem sol, em que eu me deitava no chão e ficava olhando o teto da sala. Tardes flanando pelas ruas que eu amo tanto, escutando a água correndo pela sarjeta, o vento nas folhas, vozes de crianças jogando taco, cães que latem. Tardes de sentar na calçada e ficar olhando as pessoas que passam e o sol se deitar. Um absoluto vazio na mente, um nada fazer e nada pensar. A felicidade.
A tv era lenta. Sem controle remoto eu me desligava quando vinham os comerciais. Ela ficava ligada e eu ficava distante. O ato de colocar um vinil para tocar convidava a ouvi-lo inteiro, dava preguiça de pular faixas e colocar outro disco. Tudo tinha de ser feito inteiro. Não existima botões para pular tudo. Voce não podia editar o tempo. Então, relaxava e pensava...
Agora eu chego a assistir quatro canais ao mesmo tempo e a escutar cinco cds em meia hora. Leio três livros ao mesmo tempo ( quando ruins ). E sinto ao final que não assisti coisa nenhuma, não escutei nenhuma música e não li algo que me lembre. Travo contato com um milhão de coisas e nada me penetra. Estou na rede.
Meu sonho é desligar tudo e voltar a pensar. Mas é sonho de fumante e de alcoólatra : adiado. A sedução do vicio é grande, mesmo sabendo que meu tempo é acelerado e gasto no desejo de se ter mais tempo. Tudo que é moderno nos promete mais rapidez para termos mais tempo para ser gasto em mais rapidez. O canal é mudado com um clic do sofá. Mais eficiência. De que vale se a tarde passa voando e dela nada recordo ?
Amontoados em rede, os peixes se debatem e não podem ir para lugar algum. Todos estão juntos nessa, ninguém está só. A vastidão do mar ficou pra trás. Nosso destino é a lata.

A SEGUNDA BANDA MAIS IMITADA ESTÁ DE VOLTA

E o Roxy Music, cansado de ver tanta banda "jovem" tentar ser roxy e morrer na praia, fará nesse verão europeu uma tour pelos festivais. Bom. Os babys johnssons que nunca ouviram irão pensar que os roxys estão copiando alguma nova bandinha de Londres... Mal sabem que Ferry ( o luxuoso ) e cia são roxy desde 1971 ! Naquele tempo hippie eles já eram chic.
Misturam rock com baladas com art com barulhinhos com humor e com muita poesia. Neguinho gostar de Suede, Radiohead, Franz, e que tais e ignorar roxy é tão idiota quanto gostar de futebol e ignorar a copa do mundo.
Eles voltam com todos menos Eno. Pois é, nada é perfeito. Acho que Eno não quer mais palco. Eno... o cara que produziu de Devo à U2, passando por Bowie e Talking Heads. O cara que criou o pop atual. Porque antes de tudo ele foi Roxy !
Não é ruim ver o Roxy aos 60 anos. O som deles não fica ridículo se tocado por vovôs. Sinatra, entende ? Se voce estiver na Europa e tiver um minimo de gosto. leve sua champagne, suas rosas vermelhas e sua almofada. Faça um brinde ao Roxy, jogue flores ao palco e se ajoelhe na almofada. O Roxy é para ser venerado.