BASTARDOS INGLÓRIOS - TARANTINO

Em 1995, uma nova amiga, uma delicada menina de 18 anos, me emprestou um CD com a trilha de PULP FICTION. Eu via até então aquele modismo travoltiano com desconfiança; mas foi ouvindo aquele cd, pelo qual me apaixonei, que descobri Quentin Tarantino. Depois aluguei o VHS de PULP e assisti o filme duas vezes seguidas, num fim de semana em que descobri também ASSASSINOS POR NATUREZA.
Hoje, provando que a vida é sim um círculo, entro numa sala de cinema, com a mesma menina, que continua parecendo ter 18 anos, e continua delicada, para assistir um novo Tarantino. E o filme é circular também e é fascinante. Principalmente se voce conhecer um pouquinho das fontes do filme.
O letreiro e a música de abertura é spaguetti-western. Ennio Morricone pontua todo o filme, com sua grandiloquencia genial. Mas vai haver também um clip com David Bowie que será uma beleza.
Então vem uma paisagem bela e a famosa lentidão de Tarantino. Voce consegue perceber como seus filmes são feitos "à moda antiga" ? Não há zoom, não há câmera na mão, nada de chicote. Os cortes são mínimos, sómente quando necessários. A imagem é para ser vista, olhada, apreciada, voce realmente VÊ um filme, não é invadido por ele. E vem o diálogo. Muito já se elogiou o diálogo de Quentin. O que posso dizer é que este é seu primeiro filme maduro. O diálogo do alemão com o francês é um aperitivo, o que virá depois é ainda melhor.
Quanta ação há no filme ? Se voce notar, quase nehuma. O filme é feito de diálogos. Sintomático são os trailers que passaram antes do filme. Um, sobre mais uma produção de fim-do-mundo ( se não me engano, de Emmerich, de novo... ). Outro, totalmente digital, um desenhão travestido de filme para adultos ( o novo de James Cameron ). Nesses filmes só existe o susto, sensações histéricas, a pornografia do gozo imediato. Filmes óbvios. Tarantino, por outro lado, nos faz esperar, ele não nos assusta, ele nos conduz até a emoção final. Jamais uma porrada, sua ação é um arranjo sinfônico, tudo começa num sussurro e cresce até a coda.
O ator que faz o alemão... o que é aquilo ? O prazer que ele demonstra em fazer tal papel é passado para quem o assiste. Sonho de todo ator - troca com a platéia. Mas todos brilham. Veja a cena em que os dois alemães conversam de pé. A câmera foca no rosto da francesa, por vários segundos, mostrando sua reação ao diálgo e não o próprio diálogo. Nessa cena, o filme atinge a perfeição. Na verdade é uma comédia. Sua violência é cômica. Seus personagens são hilários, nazistas de vaudeville e judeus de anedota.
O filme não é sobre a guerra. O filme é sobre o cinema de guerra.
Brad Pitt se chama Aldo Raine. Houve um ator nos anos 50, com sotaque do sul, que se chamava Aldo Ray. Os Bastardos lembram OS DOZE CONDENADOS de Robert Aldrich, e há uma cena típica de STEVE MCQUEEN e seu FUGA DO INFERNO. Vemos cartazes dos filmes dos anos 40, e há uma linda homenagem à Clouzot. Fala-se de Pabst, de Chaplin e até Emmil Jennings aparece ( ator allemão que foi o primeiro da história a ganhar um Oscar. Era nazista. ). David Selznick é citado. Se voce conhecer esses filmes seu prazer será ainda maior. Mas mesmo que não...
A cena ( como Godard, ele divide tudo em capítulos ) do bar no porão, que termina num tiroteio à John Woo é, possivelmente, a melhor coisa que Tarantino já filmou. Vale sózinha pelo filme inteiro. Mas o final, com a tela incendiada voando em meio as chamas, é de magnífica beleza. Um filme sobre filmes termina num cinema e com a explosão de películas cinematográficas. Um círculo perfeito é feito.
A cúpula nazista morre. Mas sabemos que aquele é o Hitler do cinema, como aquele é o exército nazista do cinema. Vemos um filme. Tarantino aprendeu isso com Godard : um filme é sempre um filme, e nunca pode querer ser vida real. Mas Quentin Tarantino é americano. E ama o cinema de ação clássico, o cinema de Aldrich, de Siegel, Sturges e Leone. Une os dois, e dá isto : BASTARDOS INGLÓRIOS, um filme muito acima de tudo que rola pelas telas agora.
Um toque : se voce gostou deste filme, faça um favor a si mesmo e assita OS DOZE CONDENADOS e depois FUGINDO DO INFERNO. Voce vai se divertir demais !!!!!!!
Com BASTARDOS INGLÓRIOS, Quentin Tarantino se afirma como o melhor de sua geração, e se mostra pronto para se juntar a Scorsese, Coppolla, Eastwood como um mestre. Mal posso esperar pelo próximo...

O LEGADO DE HUMBOLDT - SAUL BELLOW

Saul Bellow é o único autor obrigatório que escreveu de 1955 pra cá. Depois da geração de Waugh, Greene, Faulkner e Camus, é Bellow quem melhor sintetiza o que de melhor se escreveu nesses últimos sessenta anos. Nele vemos fagulhas de Updike, Roth, Atwood, Murdoch, Will Self, Pynchon, Barnes e Sebald. Apenas a literatura latino-americana nada tem a ver com sua escrita. Ele é o centro, então, da Europa e EUA em livros de ficção.
Começou a escrever nos neuróticos anos 50 e logo fez sucesso. Durante os anos 60 foi autor meio recluso, deixando os holofotes para Mailer e Capote. Nos anos 70 ganhou seu Nobel, sendo um dos mais jovens autores a atingirem essa glória. Faleceu no final dos anos 90. Publicou cerca de 12 livros, dos quais uns sete são centrais em qualquer biblioteca.
Sua escrita, quanto ao estilo, é aquilo que TODO escritor tenta fazer : simples e profunda. Não há nada de complicado, de barroco, de precioso em seu estilo. É um modo de escrever nervoso, rápido, febril, e que dá a impressão de ser fácil. Mas atenção : nunca se parece com o modo jornalístico de Heminguay. Bellow se enfia na mente dos personagens, mostra seus pensamentos, seus diálogos inteiros, suas caras e sua alma. Mostra o medo e o mal, principalmente. O personagem central, aqui como nos outros que li, é alguém em crise, acuado, à procura de alguma coisa.
Bellow é para homens adultos. Creio que as mulheres não irão gostar tanto. Ele é decididamente hetero, e nada tem de juvenil. Lembra filmes de Woody Allen ( porém, com muito mais ação ). Muitas coisas acontecem em seus livros : viagens para a Africa, cenas com a máfia, brigas a socos, tiros, mortes, sexo ocasional, sexo com amor, muitas cenas de grande cidade, pensamentos sobre livros e filmes, escursões ao campo, fugas e enlouquecimentos. Tudo com humor muito negro, com rapidez, com coragem, e com um dom de saber criar personagens... nunca li nada dele que não tivesse montes de tipos bem delineados e inesquecíveis ( e bastante ridículos também ).
Aqui ele fala de um escritor ( Citrine ) de muito sucesso, que se sente culpado pela miséria de seu guru ( Humboldt ) um autor alcoólatra/ anti-sistema, que foi seu mestre e seu descobridor. Mas o livro ainda encaixa histórias sobre a cidade de Chicago, sobre máfia, sobre jogo, sexo, mulheres tirânicas, vítimas e muito mais. É hilariante, e é um pesadelo. Não é a toa que Paulo Francis dizia ser Bellow o criador da atual literatura sobre a loucura urbana. Todos em Bellow são loucos. E ninguém percebe isso, pois são loucos também.
O livro tem a mesma ação doida de filmes como WONDER BOYS ou BARTON FINK. Tem clima de carrossel descontrolado. Mas é só o clima. O livro é obra de arte refinada, revisada, lapidada, de mestre. Saul Bellow acima de tudo sabe escrever. E escreve sem medo nenhum. Seu texto é como carruagem sem freio. Ou melhor : é como Chicago, cidade que destrói a sí mesma sem parar. Se engole. Texto faminto.
É pura perda de tempo ler outro autor atual sem conhecer Saul Bellow. Nossa cidade é a cidade em que ele escreveu, nossa vida é a que ele descreveu, e nossa loucura é a observada por ele.
O LEGADO DE HUMBOLDT é um maravilhoso e delicioso presente que foi deixado para nós. Além do que, ler Bellow dá uma vontade doida de escrever muito, escrever bem, escrever melhor. Bellow É o cara!

WOODY ALLEN

Conheci Woody pela TV. Nos anos 70 ( eu devia ter uns 12 anos ) a Globo anunciava BORIS GRUSHENKO que estava em cartaz. Depois, em 1977, mesmo ainda não tendo 14 anos ( era a censura do filme ) assisti ANNIE HALL no cinema. Era o filme da moda, o filme "indiano de Danny Boyle" da época. Fui ao cine Cal-Center, na Faria Lima. Era um cinema muito pequeno, uns 150 lugares e com uma tela mínima. Era diferente ir no cinema naquele tempo. As pessoas aplaudiam o filme ao final ( apenas quando gostavam. O maior aplauso que presenciei foi para Z de Costa-Gavras. Ou terá sido para OS EMBALOS DE SÁBADO A NOITE ? Não, John Travolta era aplaudido durante todo o filme, e as pessoas viam o filme de pé, dançando. Assisti OS EMBALOS 8 vezes, todas matando aula, a primeira vez com minha mãe !!!!!!! no mesmo Cal-Center, e depois com meus amigos no Gazetão. Sempre com filas na rua. A gente sabia os diálogos de cor... )
Bem... ANNIE foi aplaudido e foi o filme daquela geração. Não da minha, daquela, o povo que hoje tem 60 anos. Ele mostrava exatamente a vida de uma certa classe média, intelectualizada, antenada. Eu adorei o filme, mas na verdade não entendi quase nada. Adorei as piadas, adorei a criatividade da direção. Mas achei Annie uma chata e odiei a cara e a voz de Woody. Naquele ano eu adorava muito mais JULIA, que perdera o Oscar para ANNIE.
O tempo passou, e reencontrei Woody Allen nos anos 80. Foi revendo ANNIE, na TV, que percebi tudo : Woody Allen era o cara que melhor representava TODOS os neuróticos do mundo. Seus medos eram meus medos, suas alegrias eram as minhas. Até seu humor era meu humor. E principalmente, sua complicada maneira de amar era a minha/nossa. Woody Allen dizia querer ter nascido Marlon Brando ou Ingmar Bergman, e era essa divisão entre o pop e o intelectual que me dividia também. Além do que, foi na trilha de MANHATTAN que descobri a música de Gershwin...
Ele faz parte da última grande geração de diretores americanos. A última que conseguiu aliar sucesso popular com realização artística. A geração de Spielberg, Lucas, Altman, Coppolla, De Palma, Scorsese, Clint Eastwood, Mel Brooks, Mike Nichols, Pollack, Lumet e um imenso etc. Gente que começou na TV ou em escolas de cinema, mas que por seu genuíno amor a arte, conseguiu fazer verdadeiro cinema, e não televisão em tela maior. Woody é central nessa geração. Seus filmes analisaram a vida de gente que todos nós conhecemos. Como disse alguém recentemente, é ótimo ver filmes que ainda são feitos para adultos. Seus filmes podem ser geniais ( MANHATTAN, HANNAH, DESCONSTRUINDO HARRY, ZELIG, CRIMES E PAIXÕES ) ou ruins ( TUDO QUE VOCE QUERIA SABER SOBRE SEXO, INTERIORES, O ESCORPIÃO DE JADE ), mas nunca são desonestos.
Disse que Allen não é da minha geração, e realmente não é. O retrato fílmico de meu tempo está em Oliver Stone, David Lynch, Tarantino e nos Coen. Já não é o tempo da neurose analítica de Woody, já é o tempo de pura piração. O que define meu tempo não é a procura da felicidade ou do eu-verdadeiro, como o é nos filmes de Allen; mas a aceitação da infelicidade da vida, e a tentativa de escapar disso pela pura ironia ou pela negação da realidade. Woody Allen sofre com a vida, mas tenta ser feliz. A partir dos anos 80 tenta-se ignorar a vida real.
Quem retrata a geração de hoje é provávelmente Lars Von Trier. Ou talvez Gus Van Sant também. Preciso dizer mais sobre uma geração que vaia moças de minissaias ???? Onde estava o Clint Eastwwod da sala para resmungar e a defender ? Fico feliz em fazer parte da geração que se uniu pelas diretas já. A geração que ainda compreendeu Woody Allen.
Ele uma vez listou tudo aquilo que o fazia querer continuar vivo. Lembro que ele citou os filmes de Bergman, Groucho Marx, beisebol e Louis Armstrong. Woody Allen me faz querer continuar vivo. Recordo que ANNIE HALL na TV, em 1989, me ajudou a superar uma deprê braba. E TODOS DIZEM EU TE AMO me recuperou de um pé na bunda em 1998. Ele é um tio que eu adoraria ter tido.
Nunca mais surgirá outro Woody porque o mundo não quer mais Woodys. Ele pensa demais, fala demais, analisa demais. O mundo em que ele cresceu era um mundo onde ainda se podia ler Dostoievski e jogar bola na rua ao mesmo tempo. Onde ele assistia Bergman em cinemas e depois ia ouvir jazz de big band num bar barato. Um mundo onde o muito sério podia conviver com o muito povão, sem problema nenhum. Mundo de imigrantes, de fim de guerra, de mobilização política e do começo da TV. Um mundo de começos, e onde quase tudo era feito em grupo. Voce ouvia música em grupo, via filmes em grupo e até assistia TV em grupo.
Os filmes de Woody Allen falam de solidão, mas repare, são cheios de gente !!!!! Não há a imagem fria do cara em sua sala com seu laptop. Não existe a falta do que dizer. Existe gente.
Se ele fizer realmente um filme no Brasil será incrível. Não sei se o Rio de hoje merece um filme de Woody. Sei que SP nada tem de Woodyano. Mas talvez ele consiga fazer o milagre de por 90 minutos nos fazer ver o Rio que ainda existe em fantasmas e em vislumbres.
Talvez ele até consiga fazer as pessoas tirarem a bunda da poltrona, largarem seus baldes de Coca e aplaudirem mais um Woody Allen film.

SHANE/GODARD/DON CAMILLO/PETER O'TOOLE

TROCANDO AS BOLAS de John Landis com Dan Akroyd, Eddie Murphy e Jamie Lee Curtis
Uma dupla de velhos milionários ( Don Ameche e Ralph Bellamy ) faz uma aposta e transforma o sem-teto Murphy em rico executivo. Não é muito engraçado. Causa tristeza ver nos extras Eddie dizer hoje, que desde esse filme ( de 1983 ) tudo o que ele fez foi só por dinheiro. O prazer de atuar se encerrou nesse filme... De qualquer modo, este é um exemplo de uma grande época da comedia americana, a da geração de Steve Martin, John Belushi, Chevy Chase, Leslie Nielsen, Bill Murray e Martin Short. Nota 5.
DON CAMILLO de Julien Duvivier com Fernandel e Gino Cervi
A série de Don Camillo fez enorme sucesso popular na Europa dos anos 50. Fernandel era um superstar por lá e assisiti este dvd recém lançado pensando em ver uma comédia tolinha e ingênua, bem nostálgica. Qual não foi minha surpresa ( boa ) ao me deparar com uma comédia profundamente humana, real e com enorme viés político !!!! Fernandel é um padre de direita, Cervi é o prefeito, comunista, e o filme trata das birras dos dois. Didaticamente se mostra o lado "rato de igreja" da direita e o lado "só nós sabemos a verdade" da esquerda. O roteiro é maravilhosamente criativo, coisas acontecem todo o tempo, o filme surpreende e jamais aborrece. Este é o tipo de filme familiar, popular e inteligente cuja receita foi perdida no histerismo do mal gosto atual. ( Claro que existem excessões ! Mas são tão poucas.... ) Nota 7.
VELOZES E FURIOSOS de Rob Cohen com Vin Diesel e Paul Walker
O fato de em 2000 eu não ter morrido na avenida Giovanni Gronchi às 3 da manhã de um sábado atesta a existencia de anjos da guarda. Após ver este filme em estréia no cinema, saí dirigindo feito um doido, insandecido pela adrenalina que o filme tem. Revendo-o agora, noto que filmes de muita adrenalina ( como Matrix, que é o melhor exemplo ) tendem a parecer embustes na segunda olhada. É como se já estivéssemos vacinados contra a adrenalina do filme e ela não mais fizesse efeito. Na verdade são filmes feitos com esse propósito : veja e jogue fora. Mas que os carros são legais, são !!!!!! A trilha sonora é do cacete também. Nota 5.
KES de Ken Loach
Um poema sobre um garoto tentando sobreviver em meio a aridez geral. O filme chega a doer de tão belo. Tem também uma partida de futebol que é comédia magnífica ! ( Porque os garotos escolhem o Totenham ? Porque os Hotspurs, assim como o Newcastle, sempre foi o time dos proletários ). Filme que dignifica o cinema, enobrece a profissão de diretor e nos faz felizes como espectadores. O segredo é só um : Loach crê no ser-humano. Seu filme é vivo como o adolescente central. Loach vê todo o mal que existe, mas também percebe uma saída. Seu filme é uma luz. Nota Dez.
O RETORNO DE DON CAMILLO de Julien Duvivier com Fernandel e Gino Cervi
Humanismo há neste filme também. Tão bom quanto o primeiro da série, aqui Fernandel mostra quão grande ele foi. Seres humanos de verdade em filme caloroso. Uma delícia ! Nota 7.
CINEMA PARADISO de Giuseppe Tornatore com Philippe Noiret, Brigitte Fossey
Devo ser o único apaixonado por cinema que não gosta deste filme. São 3 intermináveis horas... A primeira parte ainda se mantém, graças aos trechos de grandes filmes e aos cômicos sicilianos que dão um show como o público da sala. A segunda hora é medíocre. Uma boba história de amor adolescente. O filme fica um pouco menos ruim no final, quando o menino já maduro ( feito pelo grande Jacques Perrin ) reencontra seu antigo amor ( é a bela Brigitte Fossey, de Brinquedo Proibido ). Mas já se passaram as 3 horas e estamos chateados. O filme mostra aquilo que se tornou o cinema italiano ( que foi o melhor do mundo entre 45/65 ) : belas imagens e excesso de sentimento. Nota 2.
A CLASSE GOVERNANTE de Peter Medak com Peter O'Toole e Alastair Sim
Este é um exemplo daquilo que sempre repito : que entre 62/78 o mundo esteve completamente louco. Que é isto ? A história é a de um herdeiro inglês ( Peter, ótimo como sempre ) que pensa ser Jesus Cristo. Ele dorme numa cruz e abençoa todo mundo. Seus parentes fazem de tudo para o internar, mas então ele se torna um ferrenho aristocrata conservador. Crítica a classe dominante inglesa, crítica ao próprio cinema. O filme é doido, torto, exagerado e até ridículo. Mas não deixa de ser corajoso. Quando o ví na TV, aos 15 anos, fiquei muito tocado. Hoje, após tantos filmes melhores e piores... Nota 4.
O GATO E O CANÁRIO de Paul Leni
Cada vez mais percebo que do cinema mudo o que sobrevive são suas comédias e seus filmes de aventuras ( piratas e sheiks ). Este suspense de terror é chato chato chato... Um excesso de diálogos, excesso de pretensão, excesso de tudo. Nota 1.
UMA MULHER É UMA MULHER de Jean-Luc Godard com Anna Karina, Jean-Claude Brialy e Jean-Paul Belmondo
Nada, ainda hoje, é mais jovem em cinema que o jovem Godard. Ele brinca com filmes. Aqui ele destrói o som, destrói o romance, rí dos cenários. Anna está apaixonante, linda como o paraíso. Belmondo É o cara ! E Brialy exibe seu mal-humor costumeiro. O filme mostra o que é a alma feminina ? Sei lá ! Isso importa ? Temos aqui uma alegoria sobre a felicidade de se viver e de se fazer um filme. Que mais pode importar ? As cores são de sonho ( Raoul Coutard ) a trilha sonora é genial ( Michel Legrand ) e tem Anna Karina.... Nota Dez.
O CAMPO DOS SONHOS de Phil Alden Robinson com Kevin Costner, Ray Liotta e Amy Madigan
Vamos aos fatos : este filme é um cult na América. Como os filmes de Capra, ele é sempre reprisado no natal, e é o que restou da carreira de Costner. É a história de um cara que ouve uma voz lhe mandar construir um campo de beisebol. Ele o faz... James Earl Jones é um escritor recluso e Burt Lancaster ( ele é o cara ! ) faz o fantasma de um ex-jogador. Nos primeiros vinte minutos temos dificuldade em engolir tamanha asneira, mas depois, vemos que o filme é feito com tamanha convicção que nos rendemos : ok, vou me emocionar. O filme é bonito. Nota 6.
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO de Marc Foster com Will Ferrell, Maggie Gyllenhall...
Um cara metódico e nerd entra em crise e se apaixona ( como todo chavão ) por maluquinha carente. O filme é só isso. Nada há de original em sua alma. Mas como esta é a era em que se vende o velho maquiado de novo, vamos colocar um rótulo moderninho : vamos fingir que é um filme original e colocar uma escritora ( Emma Thompson, soberbamente excelente, como sempre ) que escreve aquilo que ele vive ! PÕ cara ! Não faz o menor sentido, mas é genial !l cara !!!!! Dustin Hoffman, presença calorosa num filme gélido, faz um professor viciado em café e doces melados. Ferrell foi chamado aqui de bom ator... onde ? Tudo que ele faz é parecer com muito sono. Maggie é mais uma dessas atrizes que desconhecem sabonete. O filme é enganação braba ! Mas serve como retratinho miúdo da depressão atual : cenários frios, luz fraca, gente vazia. Um horror!!!! Nota ZERO!!!!!!
MARES DA CHINA de Tay Garnett com Clarck Gable, Jean Harlow, Rosalind Russel
A Metro não corria riscos. Capitão beberrão conduz navio pelo mar chinês infestado de piratas malaios. De quebra, uma mulher duvidosa o disputa com outra sofisticada. Temos tempestades, ataque pirata, bêbados cômicos, mocinha sexy, fracasso redimido, tiros e piadas. O cinema compensava cada tostão gasto pelo povão em suas salas. Os atores dão aquilo que esse povo espera : Gable é o macho, Jean a vagabundinha engraçada, Russel a classuda e ainda tem Wallace Beery como o vilão e Robert Benchley de porre. Isto era a TV da época, um produto fácil de vender. Mas que belo produto!!!! Nota 7.
SHANE de George Stevens com Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Jack Palance
Esta crítica é para meu amigo Fernando. É a quarta vez que vejo Shane ( OS BRUTOS TAMBÉM AMAM ) e é a quarta vez que me emociono. Tudo é mito neste filme : o herói é Lincoln e será Kennedy, a esposa é toda esposa fiel, o marido é o pioneiro, o garoto é o filho arquétipo e o vilão é o MAL. Tem gente que acha que Shane é um fantasma, ou um anjo. Pode ser que sim. Para mim, ele significa o que temos de melhor em nós. Mas vamos ver o trabalho de Stevens. Note como cada tomada se parece com uma pintura. O cão no canto esquerdo, o cavalo no direito, o menino ao centro, o céu imaculado. A morte do cara na lama : o marrom em contraste com o azul, a imagem baixa, o vilão enorme. Plasticamente o filme é irretocável. Mas há mais : os diálogos são curtos, básicos, o que entendemos está no gestual dos atores e nos olhares que se cruzam todo o tempo. Ouvimos milhares de coisas que nunca serão ditas. Shane é amado pela mulher do fazendeiro, mas jamais será dito.
O filme é, depois de CIDADÃO KANE, aquele que mais teve livros publicados sobre seu significado. George Stevens foi, com David Lean, o mais perfeccionista dos diretores. Shane é um monumento ao cinema, um monumento ao western. Seu final, após aquele duelo que é uma aula de edição, é uma ode ao homem e ao heroísmo. Shane se encerra como aquilo que sempre foi, um mito. O roteiro pega todos os chavões e os limpa, purifica. Nos dá a raiz das coisas, o que importa. Não enfeita, revela. Shane é aula de honestidade, tanto de Stevens como diretor, como de Shane como personagem. O filme é aula de saúde.
Enquanto o mundo valer a pena Shane será cultuado. Com os filmes de Ford e Capra, ele mostra o que temos de melhor. Amar este filme é amar o bem. Nota ZILHÕES DE MILHÕES.

GNOSSIENE 3 - ERIK SATIE

Um eco permanece. A última imagem da terra pode ser a primeira, o derradeiro pode ser sua criação.
O espaço daquele lugar lhe parecia vazio inundado pela luz de um sol que doía.
Não era na verdade vazio pois tinha uma árvore e um ninho de ratos. O garoto matava o tempo lendo um jornal velho com notícias interessantes. Os ratos brincavam ( ratos adoram brincar ). A luz batia e se esparramava pelo capim e pelas folhas da árvore esquecida. O tempo insistia em não passar. Deitado no capim ele contava gotas de suor em sua testa.
Na casa ao lado, música de piano dedilhado com preguiça veio lhe distrair do jornal velho. Se ergueu para escutar melhor. O dedilhar preguiçoso começou a divagar e logo encontrou notas que dormiam com a luz da tarde.
A brisa que dançava com a cortina do quarto brincava com as mãos que tocavam as teclas. Ele parou junto ao portão da casa e a tarde parou de fazer hora.
No momento em que as nuvens fecharam os raios do sol a melodia começou a derreter, mas nunca a se encerrar. Os ecos de seu hesitante inicio imortalizavam o garoto e a pianista. Fragilidade sólida.
Era Gnossiene trois.
A árvore de seu amor futuro estava então plantada. Gnossiene trois. O garoto queria ver o rosto daquela que tocava. Não viu. Ouviu.
A brisa, agora vento, levou o jornal e fez com que os ratos se erguessem em suas pernas traseiras.
O simbolismo da vida, o pássaro pousado em fio contra nuvens de chumbo. Beleza impossível.
Pacto feito : a fidelidade do jovem homem. Jamais esquecer aquela tarde e jamais ser esquecido pelos símbolos da vida. Sua alma - imortal - transfigurada. Seu mapa está nas notas de Gnossiene trois. Quando a morte chegar o pássaro irá voar de seu fio e adentrar o chumbo.
A música não existe.
Cinzas flutuarão entre as asas do pássaro.

VINTE ANOS- ADEUS TIGRE...

Leio que em vinte anos ( apenas ) os tigres terão sumido das florestas. Teus filhos só conhecerão os tristes tigres nascidos no zoo. Trocamos a magnífica presença sagrada do mais belo dos animais por casacos, tapetes e afrodisíacos. Uma espécie que faz isso não pode ser grande coisa. ( E também trocamos a Amazonia por um bife ).
Mudando de assunto.
Como jamais iremos construir novamente um Coliseu ou uma catedral de Notre-Dame, toda a beleza que se pode encontrar hoje está na destruição/construção das coisas. Não procure mais beleza/transcendente ou a eternidade do espírito humano. O interesse está na obra em construção e depois em sua demolição. Nossa vida é assim.
O edifício, vulgar como é nossa arquitetura, tem como interesse único seu projeto. Sua demolição também é relevante. Sua existência é ínfima. Esta é a era do erguimento e da destruição imediata.
Procure a beleza nos escombros e no resto. Procure o amor no "talvez" e no "terminou". A realidade do dia a dia não importa mais.
Na arte nada mais pode estar terminado/polido/finalizado. É necessário o aspecto de "em construção", inacabado ou decadentemente abandonado. Tudo deve ser "quase" : quase pronto e quase extinto.
A música não interessa se não for destrutivamante anti-harmônica. Esta época não cabe em qualquer harmonia. A melodia deve ser um constante começo inacabado. O fim é como um tropeço. A música tem de ser parte do ruído ambiente.
A nobre tranquilidade do tigre não cabe neste mundo. Seu olhar não comporta esta amarga confusão. No mundo da utilidade ele é engolido por ser útil quando morto. Seu fantasma nos irá assombrar. O espetáculo da vida se traduz em demolição.

UMA MULHER É UMA MULHER - GODARD

Quando John Lennon encontrou Yoko ele perdeu toda sua leveza. Quando Godard perdeu Anna Karina tudo de colorido e vivo que ele tinha se foi. O filme "UMA MULHER É UMA MULHER" é um poema de cores fortes, música sinfonica, amor simples, livros e filosofia. O filme é homenagem a Anna, a mulher que é uma mulher, a mais bela das mulheres.
Godard irrita aqueles que vêm um filme para serem iludidos. Em seus filmes você jamais irá acreditar que o que está na tela é real. Marianne é todo o tempo Anna Karina e Emile é Brialy. A emoção nascerá de vermos Anna na tela, de olharmos o que Godard faz em 80 minutos, do que Belmondo é. Esse tipo de cinema existe apenas pelo mundo do cinema. Ele não quer ser mundo real, não quer nos iludir. Você vê um filme.
Marianne é artista de strip-tease ( o filme nada tem de erótico ) e quer ter um filho. Ela tem dois namorados. Briga com um e é amiga do outro. Mas nada disso importa. O que nos fascina é o som do filme. Godard brinca com o som da rua, com a trilha sonora que sempre entra na hora errada. Ele brinca com os diálogos que são artificiais. Tudo o que o anti-Godardiano chama de irritante é exatamente aquilo que o Godardiano ama.
O filme é Anna Karina. Por todo o tempo nós a amamos. Ela faz caretas para a câmera, chora, rí, grita, posa, dança, frita um ovo, canta, dorme, discute, anda pela rua, se veste, beija, brinca. O filme é uma homenagem a amada. O filme é retrato de amor. E o amor é uma mulher. E ela é amada por ser uma mulher. E uma mulher é uma mulher. E Anna é essa mulher.
A alegria do amor descoberto resplandece por todo o filme. Tudo nele é alegria. Mesmo as brigas são felizes. As cores são vibrantes, as citações intelectuais são brincadeiras, as ruas parecem sorrir. Os figurantes flutuam na tela. Raros filmes demonstraram tão nitidamente a sensação do amor que nasce. O filme é absolutamente jovem.
Mas não procure nele a poesia da lágrima ou o envolvimento visceral com a vida de Marianne. Não. O que há é Anna, Jean e Belmondo. O que se vê é um diretor genial em seu auge brincando com o cinema. Uma mulher fascinante em technicolor. A emoção vem da consciencia desse trabalho.
Godard é influência subterrânea no cinema de hoje porque todo bom diretor atual brinca com a tela. Dos Coen a Tarantino, de Woody Allen a Todd Haynes ( as excessões são Clint e Almodovar. Nada têm de Godard ). Todos eles nos mostram um mundo que só existe na tela, todos brincam com diálogos, cores, citações e performances, todos têm a tal "alegria de filmar". Jean Luc ensinou que uma câmera é um brinquedo. ( Lição tomada de Welles ). Godard falou que o único mundo do cinema é o próprio cinema. E nos disse : isto é apenas um filme.
UMA MULHER É UMA MULHER é absolutamente delicioso.

O PÁSSARO DE PEITO AMARELO

Começaram a derrubada exatamente no ano em que ele faleceu. Todos os passos que meu pai deixou estão sendo apagados. A primeira casa onde ele morou é hoje uma obra. lá será erguido mais um prédio de apartementos, de luxo, que será habitado por novos casais. A primeira loja onde ele trabalhou é agora uma montanha de tijolos e de canos retorcidos. Todas aquelas esquinas onde o jovem homem, que viria a ser meu pai, cruzava, não são mais esquinas, foram redesenhadas. Havia um mercado onde ele me levava para fazer as compras de Natal. Onde ele está ? E uma banca onde eu comprava os gibis com o trocado que ele me dava. Para onde ?
O primeiro bar que ele comprou é hoje uma avenida e o bar onde ele mais foi feliz é uma ruína reformada. O balcão onde eu tomava Fanta e comia misto-quente foi substituído por medíocres mesinhas de metal. O escritório dos fundos onde ele contava seu dinheiro é um depósito de garrafas vazias.
Minha casa vende telefones celulares. É a casa onde eu deitava em seu colo e ria com os 3Patetas. A casa dos patos em tanque de louça, de coelhos brancos soltos na grama, de uvas adoçando ao sol. Hoje ela é cimento que vende celulares de plástico. Onde descobrí Os Monkees e as manhãs de neblina, o que existe agora é trânsito e buzina.
A outra casa vende casas, é imobiliária. O quarto grafitado foi arrombado, exposto, deflorado. O quintal de Nicky, o mais amado dos cães, tornou-se um estacionamento e onde descobrí o amor com uma menina cheia de ansiedade e de olhar risonho, hoje há um balcão onde se fala de aluguel. A árvore que me fazia sombra e tinha cheiro verde é nada.
O lago onde meu pai criou carpas está seco. O rio de onde eu trazia peixinhos em lata enferrujada é agora um esgoto encanado. O lugar onde enterrei meu papagaio tornou-se lixo.
Todas as pegadas de meu pai estão sendo apagadas. Todos os locais onde Nicky deixava suas marcas se foram. Aquilo que meu pai viu não mais é visto por mim. O que viu Nicky passar não pode mais ver.
Quem recolherá meu rastro ? Nada do que ví sobreviverá a mim ? Tudo o que tanto amei será feito pó ?
Nestes tempos virtuais nada é mais importante que esta pergunta : O que resta de tudo ?
A videira que meu pai podava e acariciava, a rua onde ele caminhava segurando minha mão, a praça onde namorou minha mãe. O vinho que a videira daria é hoje uma laje onde passam carros. A rua é um conjunto de prédios, onde meninos passeiam e vão ao cinema. A praça é um camelódromo onde se vende e se rouba. O mundo dele ainda existe ? Meu mundo, para onde irá ?
É essa estupefação que nos faz crer em "Realidade ilusória", "Outras dimensões ", e baboseiras mais. O bicho que somos não aceita um ambiente, um habitat, um ninho que se desfaz assim. Nosso campo de caça, nosso rastro de bosta, nosso totem sagrado... onde ?
O que resta então é fechar os olhos e nada ver ? Fazer de conta que tudo sempre foi nada.
Mas eu lembro da rua de Aninha, eu sei onde fica a casa de Mauro, onde era o futebol e porque eu adorava passar por lá. Se eles se foram que deixem ao menos seus rastros ! Não esburaquem a rua de Mauro, não transformem a casa de Aninha, implodam o prédio de Jane... deixem meu mundo de pé !
Coração de melancolia nascido antes da hora ou depois da hora, mas nunca no tempo certo.
Locais de melancolia, amados quando deixam de existir, procurados na destruição.
Desconectado melancólico, como ver uma rua que não será amanhã o que foi agora ?
A loja onde meu velho comprava carrinhos Matchbox pra mim é agora um boteco sujo. Era onde eu era feliz. Ainda vou lá, passo na porta, espreito. Procuro ver se algum fantasma ficou preso naquele endereço. Bato uma foto escondido.
Nada do que vivermos então importa. Será, cedo ou tarde, destruído. Esquecido.
O vasto campo silencioso onde eu me escondia da vida é hoje um shopping center vulgar. As formigas que me fascinavam, estão enterradas em concreto. E o lodo do lago virou escada rolante.
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Um Bem-Te-Vi passa voando, agora, pela frente de minha janela. Ele pousa na árvore da esquina e toma fôlego. Canta e voa mais. Vai.
Com meu pai, na rua que não mais existe, eu ví um Bem-Te-Vi pousar numa árvore. E cantar.
Ele permaneceu.

SHELLEY E O HOMEM MODERNO

Termino de reler ADONAIS de Percy Shelley. Ao longo de centenas de versos Shelley se despede de Keats, morto tuberculoso em Roma, jovem e em seu apogeu criativo. Mas Shelley se despede também de sí mesmo : pouco tempo depois ele morreria aos 30, afogado num lago italiano, em desastre com seu iate. Nos bolsos ele levava Platão e Keats. Nascia com ele o artista sensível moderno.
Shelley nasceu nobre e rico. Sua família vinha de 1200. Cresceu amado pelo pai, em terras férteis e imensas. A criança Shelley foi educada para ser fazendeiro e artista. Vagou livre pelos lagos, grutas, bosques de seu pai; e estudou línguas, quimica, música. Nesse ambiente cheio de pássaros, flores e recantos vazios, Shelley criou sua persona poética. Tudo o que ele viu quando criança alimentou sua obra até o fim. ( E não somos todos assim ? ).
Jovem, foi expulso de Oxford por ser ateu e escrever um panfleto : " A necessidade do ateísmo". Travou contato com líderes políticos rebeldes, promovia poetas republicanos, vivia o amor livre. Shelley pregava a fidelidade ao ideal do amor, nunca a pessoa. Casou-se e foi infiel, foi pai, perdeu filho, provocou o suícídio de sua ex-esposa e de uma apaixonada. Enamorou-se da irmã do grande Lord Byron, e numa noite de festa entorpecida, ela, Mary Shelley, escreveu "Frankenstein". Orgias de ópio, de sexo, de poesia. Ele vaga pela Itália, tem melancolia, ajuda crianças pobres, doa dinheiro a amigos sem talento. Veleja e morre velejando, numa tempestade. E escreve.
Shelley define, conscientemente, o que é a poesia : uma religião para quem não tem religião. O poeta é uma antena que capta o que virá, define seu tempo. Ele, Percy, viveu intensamente o parto de nossa era. Sua obra é uma quebra, um conflito, um confronto. De um lado a natureza, a eternidade, o UNO imutável. De outro lado o vento, a mudança, o corpo apodrecido. Shelley, ateu, fala da alma que não muda, daquele centro incorruptível que há em todo homem, da força da vida. E ao mesmo tempo ele chora a folha que cai, o amigo morto, o amor que nunca se encontra. Yeats será seu melhor discípulo. O mundo é sua casa.
Percy é, com Keats, Byron e Wordsworth, o poeta que nos define, o poeta do novo tempo, a era da ruptura. do tempo que voa, da mudança que nada muda, do desumanismo. Desde então, todo artista que merece tal nome, é Byron, é Keats e é Shelley.
Byron é o criador satânico. O artista incestuoso, sádico e que ao mesmo tempo luta em guerras pela liberdade. Tem a sexualidade dúbia, um narcisismo imenso e tem fama, muita fama.
John Keats é o talentoso isolado. O ídolo dos ídolos. Pobre, sem fama, mas o mais genial. Keats cria o mito do "famoso após a morte", do talento desperdiçado.
E Shelley que é o dínamo, o incansável, o insatisfeito, o ansioso, o leão entre feras. É o jovem que rompe com a tradição, com a família, é o auto-exilado, o generoso, o sensível aventuroso.
Você encontra seus clones por aí desde então. Entre atores, músicos de rock, escritores e entre falsos poetas principalmente. O exemplo de jovens bonitos e sensíveis, correndo mundo atrás da poesia de viver, amando livremente, se drogando, e se consumindo cedo. Indo onde há vida.
Nós amamos Cervantes e Dante. Rembrandt e Velazquez. Mas o que eles eram ? É impossível ser Dante ou ser Velazquez. O mundo que os criou morreu com a industrialização. Adoramos Ésquilo e Sêneca, mas eles eram homens de um mundo povoado por deuses e por faunos. O único homem moderno antes da geração romântica é Montaigne, mas Montaigne é um mistério insondável : ele está fora do tempo ( como Shakespeare ). Shelley já nos é familiar. Seu medo é nosso medo, sua raiva é a que sentimos.
Tempo glorioso esse ! Entre 1790/1810, o mundo tendo em seus braços todos aqueles que fertilizaram os 200 anos seguintes : a louca audácia de Goethe, o orgulho profano e monstruoso de Beethoven, Napoleão criando a idéia de que tudo é possível, e os poetas românticos ingleses. Goethe nos dando a idéia de que um homem para ser grande precisa saber tudo sobre todos os assuntos; Beethoven clamando que nada e ninguém pode ser maior que a mente criativa e que mesmo um rei deve pagar para vê-lo tocar; Napoleão invadindo monarquias, ousando derrubar reinos milenares, dizendo que o tempo é hoje e agora; e Shelley, desafiando crenças, ansiando sempre por mais e sendo eternamente e belamente : jovem. Com ele nasce o mito da adolescência procurada, cultivada, acariciada. O poeta nunca mais será um sábio ancião, será antes, um jovem rebelde. Nós seremos a última geração a ouvir sua voz.
Não vou dizer da excelência de sua obra. Leia. Leia no mato, entre vozes de pássaros, ou leia de noite, a luz de velas, chovendo. Leia. Sua voz é a voz de 'MORRO DOS VENTOS UIVANTES", é a voz do que vale a pena. É dele a mais bela idéia sobre o que seja a vida :
DOMO COLORIDO, DE VIDRO
QUE SE DESPEDAÇA EM MILHÕES DE ESTILHAÇOS
BELEZA QUE SE FAZ BELEZA.
MORRER É ACORDAR DO SONHO DE VIVER
A VIDA, VAZIA, É DORMIR.
Percy Bysshe Shelley foi o cristal mais puro.

KEN LOACH - KES. ANTÍDOTO CONTRA O MAL CINEMA

A mostra de cinema deste ano tem entre seus homenageados Ken Loach. Homenagear Kenneth dignifica a mostra. Ken Loach é o último diretor de cinema realmente humanista a ainda filmar. Espero que ele viva até os 100.
Kes é uma obra-prima. Nada pode ser dito contra isso. Ao filmar a história de um garoto pobre numa industrial cidade inglesa, ele nos pega profundamente. Sem usar música melosa, sem jamais apelar para nada de chocante. Usando tudo aquilo que já vimos ou sabemos ser real. E principalmente num exemplo de sabedoria, dando voz a todos os lados.
Como seus outros filmes ( TERRA E LIBERDADE. VIDA EM FAMÍLIA. PÃO E ROSAS ) o filme se situa no limite entre ficção/documentário. O grande diretor de fotografia Chris Menges não embeleza nada. A luz é natural, os atores não estão maquiados. E que atores são esses ? Amadores, que atuam como se estivessem em reportagem. Ao contrário de Bresson, que usa amadores para que não exista a performance, Loach usa amadores que transmitam a emoção bruta. O adolescente que faz o herói é sublime. Acompanhamos sua vida torcendo por ele, cada derrota sua é uma flexa em nossa alma.
Kes é um falcão que ele captura e treina. O falcão é sua alma livre e nobre. Em todos seus filmes Ken Loach não se cansa de dizer : todo o desejo do homem se traduz em uma única palavra - liberdade. Ser livre para ser o que se é. Tudo ( escola, trabalho, religião, preconceito, guerra, ideologia, consumismo, família ) que corta a chance de se alcançar essa plenitude nos mata lentamente. Neste filme é o próprio garoto que sem o saber mata sua liberdade.
O filme exibe sua vida, sem nunca apelar : mãe ausente, irmão estúpido ( belo retrato de um pavãozinho trabalhador. Sua descida à mina onde trabalha é para não se esquecer. Há gente que trabalha no inferno. ). Professores insensíveis ( mas se dá voz à eles ). O jogo de futebol, alívio cômico ao drama poético, é exemplar da pressão que um adulto pode fazer sobre um jovem. O professor de e.física é execrável.
Uma das mais belas cenas que já ví ( e de nobreza descomunal ) é aquela em que um professor, finalmente, lhe dá voz. O rapaz exibe seu conhecimento sobre seu falcão e fascina a classe. Cena sem corte, precisa, de absoluta verdade e de absoluta emoção. Esqueçam 'Sociedades de Poetas" ou o filme de Truffaut sobre sua vida escolar, aqui está a realidade total, completa, absurda.
Ken Loach é um poeta, mas atenção, é um poeta que não fabrica poesia. Nada nele é belo, e nada é sofrimento exagerado. Loach ama a vida e ama as pessoas. Ele não mostra a beleza do campo, e mesmo o falcão é secundário. O que lhe interessa é o rosto dos garotos, suas vozes desajeitadas ( sotaques deliciosos ! ), medos e sonhos. Loach é do mundo de Ozu, De Sica, Clement, Bergman ou Chaplin : ele ama as pessoas. Loach é nobre.
O final é anti-dramático. É o esperado. Mas é de tristeza dilacerante. Você leva o filme dentro de você. Não irá o esquecer. Assití-lo é passar a olhar garotos rebeldes de outro modo ( não como anjos, jamais ! A coisa é bem mais complicada. ) É ver a armadilha onde os enfiamos e onde nos enfiaram antes. Pois tudo nega a liberdade. Tudo. Estar na escola é, hoje como sempre, aprender a abrir mão dessa liberdade necessária, vital, único desejo real que temos. Para fazer parte do jogo, a primeira regra é : jogue esse desejo no lixo e assuma outros em seu lugar. Nenhum dos quais é muito real. Mas é o que nos dão...
Assistir Kes, principalmente agora em que o cinema assumiu seu caráter de parte do jogo da irrealidade mofinizante contra a vitalidade libertária, é uma atitude obrigatória para aqueles que ainda conservam restos desse dom de viver. Viver da maneira como se pode, se deixa e se deve viver. Kes é uma ave que voa num céu cinzento opressivo. Voa nobremente, elegantemente. Caça, pousa, come, voa mais e volta. Destruir essa ave é o crime mais hediondo que um ser pode cometer. Estamos desde sempre fazendo isso. Kes é inesquecível.

BRINQUEDO PROIBIDO/BURTON/TARZAN/MIDNIGHT COWBOY/YVES ROBERT

ON PURGÉ BEBÉS/ CHARLESTON de Jean Renoir
O primeiro é uma insuportável "comédia". Verborrágica, mal feita, chata de doer. O segundo é um curta mudo sobre visitante de outro planeta que encontra uma aficcionada por charleston. O ET é um negro africano que vem à Paris num disco voador. A França deste futuro renoireano é uma decadente Africa selvagem. O filme é muito divertido, e os dois dançam maravilhosamente bem. Inclusive um moonwalk !!!!!! Para quem gosta de jazz é obrigatório. nota zero e nota 5.
A GUERRA DOS BOTÕES de Yves Robert
Famosíssimo e premiado filme sobre o fim da infância. Trata-se de uma comédia e ele funciona. Numa zona rural, bando de meninos briga em guerras, cheias de táticas e militarismos vários, contra a turma do bairro rival. Os atores infantis e adolescentes estão perfeitos e o filme transpira uma poesia simples e serena de infancia muito feliz. Em contraste, os adultos estão todo o tempo ocupados com tolas rivalidades : percebemos que a rivalidade "de brinquedo" das crianças é muito mais vital. No fim, tememos pelo dramalhão e pela apelação, mas não, a mensagem é a de que a liberdade sempre vence e de que nada é mais livre que uma criança. Belo e necessário filme. nota 9. ( Há uma cena de nú que seria impensável hoje. )
MIDNIGHT COWBOY ( PERDIDOS NA NOITE ) de John Schlesinger com Jon Voight, Dustin Hoffman, Viva !, Brenda Vaccaro
É um pesadelo urbano em technicolor borrado. O filme nada envelheceu, infelizmente as cidades continuam as mesmas. Trata-se de uma maravilhosa parábola sobre a solidão ( o roteiro, do grande Waldo Salt, é perfeito ). O tolo cowboy ( um Voight que domina o filme em desempenho histórico ) é doido por mulheres e dinheiro. A ironia é que ele vai encontrar dinheiro em gays solitários e o amor com um tuberculoso repulsivo ( Dustin um pouco caricato demais. Mas talvez o filme precise de seu humor. Sem seu Ratzo, o filme seria insuportávelmente triste ). Acompanhamos sexo homo em cinema, festinha da turma de Andy Warhol ( maravilhosa !!!! ), mulheres casadas que só querem sexo e nossos heróis, completamente derrotados e esquecidos de sí-mesmos. Schlesinger, inglês vindo do new-cinema, dirige com olhar estrangeiro, observa sem se envolver; a trilha sonora tem John Barry, o cara que fez as trilhas de james Bond, e que cria aqui um tema de harmônica que se tornou universalmente aceito como um hino a solidão urbana. Quanto a famosa cena final : é uma das mais dolorosas já filmadas. Sentimos uma profunda compaixão por Voight. Tudo deu errado para esse cowboy. Em nível simbólico, o filme, ao ganhar toneladas de Oscars, marca o fim da América dos cowboys ( se fala de Gary Cooper no filme ) e dos imigrantes sonhadores ( é este o papel de Dustin ). É o réquiem das duas forças que fizeram o sonho americano. O filme é vasto, rico, nobre e profundamente amargo. nota 9.
TARZAN de WS VanDyke com Mareen O'Sullivan e Johnny Weissmuller
Era para ser um filme médio da Metro. O sucesso foi tanto que virou uma longa série de filmes. Johnny é o melhor dos Tarzans, ele é selvagem porém amável, forte, mas jamais idiota. Mas, quem diria que a atriz que eu considero a mais bela do cinema é a mãe de Mia Farrow ? Pois é, trata-se desta Jane, O'Sullivan, maravilhosa mistura de força interior e travessuras mimadas, de uma morena como só a Irlanda fazia. Ela é a Musa. O filme cria a clássica aventura de terra distante ( é de um tempo onde ainda existiam terras distantes. Não se precisava criar viagens no tempo ou intergaláticas para se chegar à aventura. ) É uma Africa de bichos se engolindo, selvagens ameaçadores, tesouros secretos e onde, chocante para nós, tudo que se move merece um tiro. Os caras atiram em tudo, sem dó. Jane tem uma clãssica fala racista: "- ...mas Tarzan não é um animal ! Ele é branco ! " Hoje dá pra rir de tanta tolice, na época era trágico. Jackie Robinson, Paul Robeson e Jesse Owens que o digam. nota 6.
EDWARD MÃOS DE TESOURA de Tim Burton com Johnny Depp, Dianne Wiest, Winona Ryder e Alan Arkin
O melhor é a trilha sonora de Danny Elfman. Temo que os filmes de Burton não sobrevivam ao tempo ( que é o único crítico que importa ). Apesar de seu imenso talento para criar um clima de fábula, apesar de seu genuíno amor ao cinema, seus filmes carecem de força, de fibra, de élan. Este é um exemplo : revendo-o agora, desejando adorá-lo, me pego gostando de sua bondade, do visual fake e hiper colorido, da mensagem singela. Mas ele é como um doce que passou do ponto, não dá vontade de quero mais. Gostamos, mas jamais amamos. Ainda emociona Winona cercada pelos flocos de neve, mas o filme é uma refilmagem de "Juventude Transviada" em Disneylização. O filme com James Dean é imensamente maior. Nota 6.
O BEIJO AMARGO de Samuel Fuller com Constance Towers
Há quem chame Fuller de gênio. Eu não. Diretor durão, teimoso, que "não deu certo", foi descoberto pela turma dos Cahiers em 59/60 ( Truffaut, Chabrol, Godard, Rhomer, Rivette ). Este filme é obra de um louco. A primeira cena, em jazz, mostra uma puta careca surrando um gigolô. Pois essa mulher, em cidade pacata, se torna enfermeira de crianças deficientes. E o filme vira drama edificante. Depois ela faz cafetina engolir dinheiro e se enamora de pedófilo milionário. O filme é tão neurótico, suas cenas filmadas de um modo tão abrupto e seco que não há como respirar. Você o repele. A diferença é que para os fãs de Fuller ( Wenders também o adora ) esse clima é fascinante. Para mim é apenas feio. nota 2.
A BESTA HUMANA de Jean Renoir com Jean Gabin, Simone Simon e Fernand Ledoux
Crime e paixão no ambiente ferroviário. Gabin é um doente mental que lá trabalha, Simone, linda, uma esposa infiel que cometeu um crime, e Ledoux é o marido corno e assassino, viciado em jogo. O elenco está bem, com excessão de Gabin que exagera no ar fatalista. As cenas documentais que mostram o trabalho nos trens e a vida nos bares são excelentes. Mas o drama em sí é banal. Renoir é bom diretor, irregular, às vezes genial, mas é super valorizado. nota 5.
BRINQUEDO PROIBIDO de René Clement com Brigitte Fossey e Georges Poujourdy
Quando em 59/60 Truffaut e Godard dominavam as telas e os textos da França ( e influenciavam toda a crítica do mundo ) Clouzot e Clement eram ridicularizados. Eram considerados velhos, acomodados, passados. Na verdade o que não lhes perdoavam era o fato de serem bem sucedidos, premiados, ricos. Clement ganhara dois Oscars, em 50 e 52, e este filme é o seu segundo Oscar ( ainda venceu em Veneza ). Trata-se, talvez, do maior filme já feito sobre a infância. Vamos a história : Uma estrada, 1940. Gente foge dos bombardeios nazis. Confusão de carros, carroças, e de aviões que atiram sem dó. Uma menina tem seus pais metralhados ( e seu cão também ). O filme acompanha o que ocorre com essa criança. Ela vai parar numa fazenda onde é acolhida. Mostra-se então a vida dos adultos a dela e de seu novo amigo, o filho do fazendeiro, de onze anos. Os dois se tornam companheiros e assistimos a delicada história dos dois. Eles se apaixonam, mas se apaixonam como só um menino de onze e uma menina de sete anos podem se apaixonar. Pauline Kael disse que se o filme acompanhasse apenas a história dos dois ele seria tão duro que ninguém conseguiria parar de chorar. Sábiamente, Clement mostra também a vida adulta ao redor, e a vida desses adultos é uma comédia, grossa, vulgar, real. O filme então não é um drama choroso, apesar da tristeza do tema; nem é uma fábula infantil sobre adultos cruéis ( eles nada têm de ruins ). É sobretudo um poema, belíssimo, sobre a solidão da infância, sobre o mal que um adulto pode fazer sem o saber, sobre a covardia da guerra, e é sobre a morte também. A diversão das crianças é construir um cemitério de animais, para que "seus corpos não fiquem na chuva". A morte trouxe a menina para a vida do menino, ele lhe dá um cemitério de presente, e corpos de bichos que morreram. O filme é devastador, mas repito, jamais se torna um drama.
A menina, Brigitte Fossey, tinha oito anos quando fez o filme. Sua atuação é um milagre. Nunca ví nada parecido. Ela depois se tornou atriz adulta, estando até em "O homem que amava as mulheres" de Truffaut. O menino está magnífico, um pequeno amigo, mentiroso, ladrão, gatuno apaixonado, rebelde. O final desta simples obra-prima é um dos maiores manifestos já feitos contra a guerra : nos dá um soco no queixo e se vai embora, abandonando-nos grogues em meio ao horror. O que foi feito dessa criança ? Porque ela não pode ser simplesmente feliz ?
Uma das maiores tragédias de nossa época é exatamente o fato de não permirtirmos as crianças que sejam crianças. Que vaguem sem rumo pelo tempo, pela rua, pela vida. Aqui elas fazem isso, em meio ao inferno, e conseguem ser quase felizes ( no absurdo ). Este é um filme que dignifica o cinema. É nobre, humano, de verdade, inteiro. Nos faz querer fazer o bem. Mas atenção : não é um drama ! nota Dez.

é uma tela !

No começo da viagem ela pega uma telinha e passa todo o caminho vendo um show. Nada que ocorra na estrada, no caminho, poderá despertar sua atenção. Pois bem...
Leio numa revista que na exposição de Matisse a maioria das pessoas tira fotos dos quadros com seus celulares. Passam por todas as obras em coisa de cinco minutos, fotografam e vão embora. Esse texto diz que no início do século algumas mulheres desmaiavam de emoção ao ver essas pinturas. Assim como havia gente que pirava ao olhar Picasso... ele diz que as pessoas precisam fotografar para provar a si mesmas que estiveram lá. Sim. Mas dá pra pensar mais:
O futuro é hoje, já chegou. Vivemos naquele futuro onde a única coisa real É O QUE ESTÁ NA TELA. Fotografam Matisse para fazer com que ele exista, para tentar, em casa, olhando a tela, sentir algum tipo de emoção real pelo pintor. Fora das imagens eletrônicas NADA TEM VALOR.
Vejo um vídeo ( sim, eu também estou nessa ) de um show dos Rolling Stones em 1964. Não, não vou falar do estranhamento em se perceber que Mick Jagger sobrava em 1964. O que entendo, só após ler esse texto sobre Matisse, é que perdemos, e estamos perdendo cada vez mais, a capacidade de nos emocionar. Vendo aqueles jovens berrando, chorando, perdendo totalmente o controle em 1964, noto que hoje não se perde mais o controle. A emoção irracional, que antes vinha como extase estético ou frenesi dionisíaco, hoje quando se manifesta, vem como violencia pura e idiota.
Chorava-se vendo Mick Jagger rebolar. Chorava-se vendo a Portela na avenida. Chegava-se ao paraíso se escutando Mozart. Avistava-se Deus ou o Demo em cada nova paixão. Desmaiava-se vendo Matisse. Ia-se à rua brigar por Godard contra Truffaut. Se morria por Goethe ou por Rimbaud. Alguém se mata por Saramago ou por Coetzee ?
Mas as emoções estão dentro de nós. Ainda seremos humanos por algumas gerações mais. Só que estamos nos tornando incapazes de vivenciar qualquer tipo de emoção estética. Levamos fotos de Matisse ( e de Paris, da praia, da festa ) pra casa porque temos a esperança de poder guardá-las e então, um dia, descobrir seu segredo. Mas não. Nietzsche dizia que falar de um sentimento o matava. Fotografar a vida a congela, esfria, distancia, faz com que o momento se vá.
Na tela revemos o que já se foi. Dividimos isso com os amigos. E nada sentimos de muito sério. A tela prova que lá estivemos, que foi real. Mas a experiência foi apenas isso : um olhar e uma imagem. Registramos dentro de nós como imagem em tela : imagem fria.
Mas, como eu disse, as emoções estão lá, em nós, e precisam sair. E saem : violência absurda e inútil ou sintoma obscuro. Uma dor no peito, uma azia, ganho de peso. Comprimido pra dormir, mais um carro, um novo curso ( caça submarina ? dança moderna ? ), uma briga no trabalho, uma bebedeira na balada, um amor extra. A alma precisa se manifestar, ela ainda está aqui.
A menina gruda os olhos na tela enquanto o carro viaja por ruas e pontes e árvores e rios. Depois ela fala no celular enquanto desce do carro. Liga o laptop no quarto e comenta a viagem com a amiga que está no celular. Então ela coloca um filme no dvd e adormece vendo esse filme. Amanhã ela vai tirar 90 fotos da praia enquanto escuta música no mp qualquer coisa. E o inesperado estará bem longe dela ( ela pensa ), e as emoções serão controladas ( ela tenta ).
Desconcentração completa. Ninguém sabe mais penetrar no azul de Matisse. Nossa mente, bem treinada, só percebe o que brilha, o que se move, o que é editado. Tudo que parece parado nos é incompreensível. O futuro é hoje e neste tempo Matisse é um deus grego do qual não mais se entende a linguagem. Um hieróglifo sem desvendamento. Fotografamos para um dia tentar o desvendar : esse dia jamais chegará.
Se Hitler fosse hoje ninguém se sacrificaria contra ele. Faríamos protestos na internet, gozações na tv, filmes sobre ele, ongs de ajuda às vítimas. Mas não iríamos à rua, não nos alistaríamos na guerra. Porque nossa capacidade de indignação se foi. É o que mantém a turma do mal em Brasília. È o que fez Bush não cair. Nossa ação se inicia e se encerra diante de uma tela. Fora dela, bem, faz de conta que nada conta.
Se neste mundo-futuro só é real o que está na tela, então tudo o que não está nela não é real. Mas a natureza nada tem a ver com isso. Ela continua viva e ativa, como desde sempre, independente de telas ou digitalizações. Então se conseguirmos nos olhar de outro ponto de vista, de fora do que vivemos hoje e agora, percebemos que o irreal somos nós, é a tela, nossa vidinha entre câmeras e imagens. Percebemos que este celular, este pc, este carro é o que é : apenas um brinquedinho. E que TUDO o que temos aprendido a chamar de real é na verdade uma falsificação da vida, uma cópia empobrecida. A imagem na tela não é de verdade. A tela de Matisse é a verdade.
Então aquele cara berrando no show dos Stones em 1964 continua na tela até hoje. Eu o vejo agora. Seu berro não é mais real. É cópia do berro que ele deu em 1964. Mas, aí vem o diferencial, em 1964 ele NÃO GRITOU PARA UMA CÂMERA, ele gritou para o momento efêmero, ele gritou para o mundo ao seu lado, para aquele único segundo : SEU GRITO NÃO TINHA A VONTADE DE SER ETERNIZADO E REPETIDO. Ele não posava. O grito era desajeitada expressão do espírito. Portanto, apesar de ser falsamente revisto na tela, hoje e agora, ele é ao mesmo tempo mensagem inconsciente de um tempo pré-tela. Ele é puro.
Nada mais pode ser puro hoje. A menina de 10 anos posa espertamente para câmeras de celular todo dia e toda hora. Ela aprende a se olhar e a se rever. O cara que berrou desajeitado em 1964, hoje iria berrar sabendo o valor de seu berro. Seria impuro. O repetir de uma coisa vista numa tela. Um berro mais profissional, mais consciente, falso.
Fotografamos Matisse para ter Matisse em casa. Acabamos por não ter Matisse algum em casa e por não parar para observar o Matisse verdadeiro. O irreal é nosso e nada vale ou diz. O verdadeiro tem um valor que não compreendemos e diz coisas que não sabemos ouvir.
Perdemos alguma coisa de sincera nestes anos. E ganhamos imagens em tela no lugar.
Ainda iremos conseguir um dia vencer a morte. Viveremos para sempre, em telas. Vivos para sempre. E jamais nascidos fora dela.



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