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BURT BACHARACH

Quando penso nos anos 60 a trilha sonora que vem a minha mente é feita por Burt Bacharach. O som de trompete que ele usava em suas canções é o som da época dos Beatles. As pessoas se enganam muito com aquele tempo. Quando voce olha os hit parades da época percebe que o rock era apenas um estilo em meio à uma profusão de estilos musicais que vendiam muito. A trilha sonora de The Sound of Music ( A NOVIÇA REBELDE ), foi o album mais vendido de então. E nomes como Herb Albert, Andy Willians, Nancy Sinatra, Dionne Warwick, Johnny Mathis, Matt Munro, Tom Jones, vendiam mais que Grateful Dead, Janis Joplin ou The Who. Eu nasci em 1962, mas consigo lembrar que a trilha de radio, de cinema, de TV, não era rock. Era um tipo de POP suave e colorido, simples e bem humorado, bonito e cheio de "bossa", o som de Burt Bacharach. O rock só se tornaria o REI da Paradas absoluto após 1969, com a geração pós Beatles, gente como Elton John, Eagles, Bee Gees, Abba, Led Zeppelin, James Taylor e todos os vários estilos que se abrigariam sob o nome geral de POP MUSIC. -------------- Houve crítico em 1965 que diria que toda a música era a história de 4 letras B : Bach, Beethoven, Brahms e Bacharach. Sim, ele era famoso assim. Homem bonito, casado com atriz famosa, Burt era perfeito para a era da TV. Seu estilo agradava o fã mais velho, aquele que amava Sinatra e Tony Bennet, e também o jovem menos radical, o garoto que ouvia Beatles, Simon e Garfunkel e o som da Motown. Sua música era bela, bem escrita, leve e maravilhosamente otimista. Era escutada no cinema, no dentista, no supermercado, no aeroporto, na TV, em corredores de lojas. Era tão presente como a minissaia ou a brilhantina. E era talentoso, extremamente talentoso. San José é uma das canções mais bonitas já ouvidas. É de uma alegria contagiante, é eufórica sem ser tola, tem silêncio e tem timbre ricamente construído. Mas ele fez mais, muito mais...Whats New Pussycat é absurda, é amorosa, é das minhas mais queridas canções. E The World needs Love é comovente e mágica, uma obra prima de poesia popular.... Ele morre hoje, aos 95 anos, em um mundo que é o negativo radical de seu universo. Sua música respira e retornará quando este momento estúpido passar. No futuro renascimento Burt Bacharach será reavaliado e terá seu momento renovado. Porque a beleza, a beleza de verdade, ela sempre volta. Pois é imortal.

TOSCANINI REGE A SEXTA DE BEETHOVEN

Para quem não sabe, Arturo Toscanini é considerado o maior maestro da história. Em seu tempo seus rivais eram Furtwangler, Bruno Walter e Stokowski. Nascido no final do século XIX, ele estreia como maestro titular no Rio de Janeiro, regendo Aida de Verdi. Logo está no Scala de Milão, depois na Filarmônica de New York e por fim na Orquestra da NBC. Transmitindo por rádio, e desde 1948 por TV, seus concertos educaram o público americano. A classe média dos EUA, nos anos 40 e 50, consumia a música erudita aos milhares. Muito desse mérito se deve à Toscanini. --------------- Ouço hoje um cd RCA com uma gravação da Sexta de Beethoven, obra que conheço decorada. A orquestra é a da NBC e Toscanini realizou este trabalho em 1951. Ano passado ouvi alguns cds com regência de Toscanini e não gostei muito. O som parecia embolado e o tempo acelerado demais. Mas aqui o que ouço é a perfeição. Até agora é a melhor execução da Sexta que escutei na vida. Nos primeiros acordes eu já sinto a força do som: Poderosa, a orquestra soa poderosa, rica, forte, complexa e feliz, muito feliz. Toscanini italianiza Beethoven e isso não é problema algum, pois Beethoven era fortemente influenciado por música do sul. O CD continua rodando e o segundo movimento é ainda melhor. Colorido, ele baila e cada naipe tem sua hora realçada. Quando entra o terceiro movimento eu estou exultante, é uma execução heroica. A percussão explode em sons sanguineos e as cordas nunca caem na melosidade fácil, toda o grupo trabalha em comunhão exata e mesmo assim podemos ouvir cada nuance. O movimento final coroa toda a obra: é troféu de campeão. O que ouço é o modo como a Sexta deve ser tocada, ela dá o devido tamanho à Beethoven. Bravo!

ZOLTAN KODALY - QUARTETO DE CORDAS NÚMERO 2

Quarenta anos atrás, solitário mas nunca sozinho, eu descia a rua Cardeal Arcoverde em Pinheiros, SP. Era o começo da noite de um maio frio. Os carros passavam soltando muita fumaça e os postes emitiam pouca luz. Lojas sujas e pequenas, alguns bares cheios e barulhentos e os muros do cemitério. Eu havia recentemente descoberto a existência da morte e por isso andava bastante cheio de medo. Tudo parecia sem sentido porque tudo deixaria de existir. Hoje eu sei que nada há de original ou estranho nesse sentimento que provei, de certo modo agora em 2022 esse é o sentimento que norteia toda nossa cultura, inclusive a popular. Mas em 1982 isso era estranho pois o clima geral era sempre de celebração. Olhando em retrospecto, foi um tempo festivo, não só no Brasil como no ocidente, mas não para mim. No vigor dos meus 20 anos de idade eu me arrastava pela calçada. Se voce quiser saber como era meu mundo mental assista M, de Fritz Lang. E se quiser ouvir a trilha sonora dessa neurose, escute este quarteto. --------------- Nunca saberemos se a música expressionista do século XX conseguia colocar em música o mal da época ou se o mal da época encontrou na música sua trilha sonora. O que eu sentia está expresso nessa música. Cada sombra, cada beiral de balcão, o muro do cemitério e o contorno dos túmulos, as pessoas passando, a fumaça pesada dos ônibus, tudo pode ser sentido em cada acorde. Kodaly fragmenta sons que irrompem e afundam no vazio, retornam, súbitos, e passam espectrais. É gótico, é soturno, é tchecoslovaco. Entenda, não é triste, não é desesperado, não é feio, pode até mesmo ser belo, ele é após o sentimento, é uma espécie de sentimento vago, que ameaça ser e nunca é. Pode ser chamado de potência contida. Triste é Mahler, desesperado pode ser Chopin ou Liszt, mas aqui, nos anos 30 do século XX, há a desconfiança do sentimento "normal". Há a dúvida: belo? triste? O que é isso? -------------------- Ouvir Kodaly em 1982 era insuportável para mim porque era como assumir meu mundo de então, mundo que eu não queria assumir. Hoje é apenas música. "Apenas". Zoltan Kodaly foi um desses pesquisadores da Europa Oriental que renovou a música do mundo. Indo ao folclore de seu país ele encontrou harmonias e melodias que o inspiraram a tentar algo novo. Da turma de Bartok, ele jamais atinge a abstração do seu colega, mas consegue expressar as dúvidas, medos e sensações da época. Eu gostaria de saber quem está expressando nosso tempo absurdo.

MAIS CONSIDERAÇÕES SOBRE AGHARTA

Há uma cidade dentro da Terra e seu nome é Agharta. Uma lenda, uma crença, um folclore ancião. Miles pega esse nome e faz dois shows no Japão que serão a descoberta de uma cidade dentro de nossa alma. Esse o sentido do nome do disco. E a música, arte imaterial, a mais espiritual das atividades humanas, é a ferramenta para chegar até lá. Mas, que música? Miles sabe e intui: voce não irá falar com sua cidade profunda por meio de um mapa. Nem por um discurso. Não haverá um caminho, apenas um deixar ir. Ou seja, um ritmo. Uma percussão. E não será um avanço ou uma construção, mas sim uma repetição em círculo de um ritmo, um groove. Porque não se quer ir ao longe, mas sim ir onde se está, porém, para dentro. A música deverá girar sem se mover, perfurar e assim adentrar. O corpo ajuda. Como ajuda? Se tornando vazio. Perde-se e pede-se que o corpo abra mão de sua solidez. Ele se desmancha em dança. Esvai-se. Primeiro a cabeça que se faz um átomo em movimento circular. Depois as mãos que viram cometas. E o ritmo leva os quadris ao modo sexual. Não é mais voce ouvindo, é voce parte da música. Não há garantia, o êxtase pode não ocorrer, ele é raro. Mas haverá o perigo. Duende-dionísio. Frenesi-perder-se-deixar ir-entrar. A coisa gira. --------------------------------------- Eis a imagem da coisa girando.

O MAIOR DISCO GRAVADO EM TODOS OS TEMPOS: AGHARTA, MILES DAVIS, O MAIS PERIGOSO DOS SONS

lar Era 1975 e Miles estava no Japão. Em Osaka, ele resolveu gravar dois shows. Um de tarde e outro à noite, no mesmo dia. O disco da tarde seria este, Agharta, e o da noite seria Pangea, o seu disco seguinte. Voce acha muito? Pois saiba que Miles estava com problemas de coração, dores horíveis nas pernas e ombros, viciado em morfina, cocaína e ansiolíticos. A dor era tanta que ele se ajoelhava para poder apertar os pedais do trompete. E mesmo assim...Agharta é, para mim, o mais poderoso disco já gravado. -------------- Lançado em 1976, album duplo, uma faixa por lado, ele foi massacrado pela crítica. Dizem hoje que Agharta é, ao lado do Metal Machine Music de Lou Reed, o disco mais divisor de águas, mais anti-fãs habituais, um dia lançados. Odiaram Agharta. Odiaram muito. Chamaram de "insuportável", "Monótono", "apenas um som sem inspiração que se estica por hora e meia". Disseram não ter melodia, nem harmonia, falaram que Miles não compusera nada, não criara nada, o disco era um desperdício de vinil. A resposta de Miles foi exemplar: "Eu faço o que eu quero." ---------------- Após este disco Miles Davis ficou 6 anos sumido. Voltou em 1981, mais POP, mais comportado, quase yuppie. Ao mesmo tempo começou a ressurreição de Agharta. Toda uma geração de punks, funks, avant garders elogiavam o esquecido disco de Davis. Os Beastie Boys sempre o citavam. David Byrne. Prince. Beck. E eu então o escuto num sábado. Ouço domingo. Ouço segunda. Ouço terça, ouço hoje. Ele é inesgotável. O melhor disco que ouvi na vida. -------------- Ele começa e eu me sacudo todo. Não posso parar. Transe. Hipnose. É funk. É jazz. É noise. É absurdo. E é simples. Miles disse que é o disco que ele ia gravar com Hendrix. Mas ele morreu. Então ele chama dois guitarristas: Peter Cosey e Reggie Lucas. Baixo, Michael Henderson. Batera, Al Foster. Percussão, Mtume. Sax é Sonny Fortune. Dizem que a plateia japonesa adorou. Aplaudiram por 15 minutos. Em 1975 só eles gostaram. Porque viram a coisa nascer na hora. ------- A bateria funkeia e o baixo vai junto. E o resto segue atrás. É um disco afro, a batida manda. É diabólico. O transe está presente por todo tempo. E Miles usa um equipamento eletrônico que produz ruídos, que distorce o trompete, que assombra e tempera tudo com cores de pesadelo. Dá medo. E é sexy. O duende desceu naquele palco e graças aos deuses isso foi gravado. O duende tomou Miles e Miles conduziu os músicos. Falam que ele os regia com os olhos. Cada olhar era uma nova mudança. Tocava de costas para a platéia. Sem agradecer aplausos, sem apresentar os músicos, sem estar ali. A guitarra de Cosey, um negro misterioso que sumiu na história, solando todo o tempo, vudu na tarde do Japão. O sax de Fortune, Coltrane solto, os timbres metálicos do synth sem teclas, botões que produzem fantasmas, o trompete que é angústia, morte, dor, sangue e orgulho. E eu? ------------- Eu ouço e no meio do disco me sinto na beira do abismo. Algo de Miles e de seu duende me é ofertado. Sinto que basta um passo para eu entrar no transe. O disco é como uma noite na selva sem possibilidade de manhã. ------------ O maior disco porque ele é Stravinski e é Duke Ellingoton. É Sly Stone e é Psicodélico. É Can e é Velvet. É negro ao máximo. É 1975 e é algo que não nasceu. Um aborto. Após este disco não haveria como Miles continuar. Morte ou mudança. Ele morreu 6 anos e depois mudou. De novo. Sim, um gênio. ----------------- Eu quero o escutar de novo. O carnaval de eletricidade dionisíaca. O duende me chamando outra vez. Ao mesmo tempo tenho medo. Pois há um perigo nele, a despersonalização de Dionísio. O disco é uma droga, um alucinógeno. E é pra dançar, porque toda arte quer ser música e toda música quer ser corpo. Eis o fato: ESTE DISCO É CORPO. CARNE E SANGUE. Não o ouça com a razão. Não o sinta no coração. Ele é carne sexual, carne que se come, canibal e assassino. Por isso seu perigo. Por isso sua enganosa monotonia. Pois ele é INSTINTO. E instinto É. Ele É. A hora e meia não é tempo é lugar. O disco não anda e não passa, ele permanece. É um momento imortal e imorrível. E eu posso o escutar eternamente. E falar dele pra sempre.

WILLIE NELSON - STARDUST. AQUELAS CANÇÕES TÃO FUNDAMENTAIS

Nos anos 20 e 30 os EUA construíram um repertório musical sem igual no mundo. Aquelas canções populares, cantadas por gente como Al Jolson e Bing Crosby e que depois seriam o Eldorado de Sinatra e Dean Martin, Tony Bennett e Sarah Vaughn. As letras espirituosas, adultas e as melodias que são tão bem elaboradas que todo jazzista as usou e usa como tema de seus voos. Se o pop pós anos 1960 acabar, aquele do rock, soul, funk, country e disco, este pop, o de Gershwin e Porter, Irving Berlin e Kurt Weill permanecerá. ------------- Em 1978, Willie Nelson, famoso no country music, resolve lançar um disco composto pelas canções que ele mais ama cantar. E essas melodias são aquelas de Ella Fitzgerald, Sinatra, Mel Tormé, Joe Willians. O pop da Broadway pré rocknroll. A gravadora vê com suspeita esse projeto. Mas Willie vai adiante. O disco se torna um fenômeno. Permanece dez anos entre os 200 primeiros da Billboard. Ganha um Grammy. E surpreende a crítica mundial. ------------- Bateria discreta, contra baixo suave, violão dedilhado, um teclado sibilante. Booker T. Jones produziu e tocou orgão. O resto da banda é o grupo habitual de Nelson, de seus discos country. Mas aqui nada há de country. Eles tocam um quase jazz, um quase soul, um pop perfeito. A voz de Willie Nelson é inesquecível, perfeita. Em Moonlight in Vermont ele produz um milagre: sua voz soa como um saxofone, um sax tocado por Lester Young ou Ben Webster. E atenção! Willie não canta em scat, ele não faz "be ba be bom boom da", ele canta a letra, com perfeita dicção, e cada palavra soa como um arpejo de sax. Eu quase entro em transe. É um dos grandes momentos deste disco único. ---------------- Há ainda minha canção favorita, September Song, de Maxwell Anderson e Kurt Weill, a mais linda canção pop já composta. Eu devo ter escutado dezenas de versões dessa canção, de Kevin Ayers à Sinatra, de Lotte Lenya à Ian McCullough, de Bryan Ferry à Lou Reed, e esta é uma das melhores. Willie não chora, erro cometido por Ian McCullough, não é frio demais, erro de Lou Reed; ele transmite emoção no ponto exato, a dor do destino em toda sua inexorabilidade. ----- O disco tem mais. São dez faixas sem falhas. Dont Get Around Much Anymore de Duke Ellington, uma das músicas que mais cantarolo em toda minha vida, melodia magnífica, aqui em versão apurada. Apuro que se nota em todo o disco. São dez motivos para se amar a canção popular. São dez motivos para se amar Willie Nelson. O caipira de trancinhas de índio, o maconheiro mór, é muito, muito mais elegante que 99% dos cantores de terno que se apresentam para a rainha. Um disco dez!

LEONARD COHEN LIVE IN LONDON 2008.

Primeiro deixemos claro: Leonard Cohen não tem nada a ver com rock. Quem leu a bio dele sabe disso. Nada em sua vida tem o espírito que guia TODO rocker, seja Iggy ou seja Dylan. Cohen queria ser escritor, queria cantar suas letras, nada nele vem do amor aos blues, ao country ou à estrada. Ouvindo suas canções, principalmente na melhor fase de sua carreira, a fase final, percebo que Cohen fazia o mesmo tipo de música que Paolo Conte, Joe Dassin, Harry Nilsson, a canção pop não rock, não funk, não soul, não country, a canção que é música, música bem feita. Seus músicos não são músicos de rock, sua presença de palco, cheia de humor, não é a do rock star. Leonard Cohen apresenta suas letras, como fazia Brassens, como fazia Gainsbourg. Penso que o final da vida de Cohen foi ideal. É o fim que Iggy Pop amaria ter ( e até flertou em alguns discos ) mas não poderá ter, e é o final que Bowie não teve tempo de criar. É preciso falar das letras de Leonard Cohen. Eu as adoro. Ao contrário de Dylan, quando Cohen fala de uma chama, a chama é uma chama mesmo, uma chama de fogo ou uma chama religiosa; já em Dylan essa chama pode ser tudo, depende do contexto ou do momento da vida de Bob Dylan. Cohen é direto, explícito, sólido. Isso porque ele se exercitava na prosa realista, no policial, no relato direto. As letras são então maravilhosamente claras, e ditas em sua voz, educada e de dicção precisa, faz de suas canções base para suas narrativas. Dylan coloca névoas em tudo, ele é profundamente simbólico. Cohen é transparente como Lou Reed. ( Os dois não se parecem em quase nada, Lou procura o choque e é ateu até os ossos, Cohen procura a elegância e é sempre religioso. Os dois sussurram e sabem brilhar no escuro ). --------------- Este CD duplo, ao vivo, é de uma beleza absoluta. Som sempre preciso, sopros e backing vocals, violões e um contra baixo sedutor. Cohen fala com a platéia, é engraçado, simpático, sedutor. É um show que toca o sublime. Confesso não gostar da inevitável Suzanne. Nem de So Long Marianne. Mas há a obra prima Tower of Song, a encantadora e encantatória The Gypsy's Wife, e muito, muito mais. Se as letras são das maiores do pop, as melodias possuem a fibra e a nuance que a voz de Cohen requer. Uma presença gigante. ---------------- Devo tecer uma diatribe aqui: é que Leonard Cohen é um dos queridinhos do tipo de ouvinte que mais me faz rir. O sujeito "inteligente e chique". Se Van Morrison virou o cantor dos filmes românticos dos anos 90 e Eric Clapton o guitarrista de sessentões ricos, Leonard Cohen é pior ainda. É o poeta dos velhos chiques que se enxergam como ainda tipos sedutores. Sedutores e perigosos. ( Fossem apenas velhos sedutores ouviriam Rod Stewart e Seal. Mas se acham perigosos, misteriosos, cultos demais. Ou seja, são um cliché ). Leonard Cohen, como os citados, não tem culpa alguma. Ele canta para adultos que já viram o inferno e que crêm na luz. Se o inferno é apenas a queda das ações ou a luz é um novo Mercedez, Cohen não tem culpa nenhuma. ------------------ Joe Cocker, uma voz milagrosa e um bêbado incurável se tornou cantor de motel. ------------------------- Entendo o porque de Leonard cantar sempre usando terno completo. Ele sabia ser do tempo de seu pai. Avisava não ser rock. E tinha a feitura correta, medida, adulta, bem feita que os bons alfaiates possuem. Dizem que os homens começaram a deixar de ser homens quando jogaram fora paletó e chapéu e passaram a se vestir como adolescentes eternos. Leonard Cohen era adulto. E HOMEM. Homem como homem é. Não um heroi. Um cowboy. Um soldado. Um homem que cresceu. Que envelheceu. Que ama as mulheres sem pudor algum. Um grande disco.

WHEATER REPORT

NADA é mais anos 70 que o chamado jazz rock. Que na verdade nada tem de rock. É jazz elétrico. Jazz tipo jazz, com a única diferença de usar baixo elétrico e teclados eletrônicos. Isso faz com que o baixo seja muito mais forte. Além do que, nesse jazz tipo elétrico, o baterista pode tocar alto, bem alto. Por causa desse volume, puristas o chamaram de rock. Tolos não? Nada há de rock aqui. ------------- O Wheater Report era o mais respeitado dos grupos de jazz elétrico. Tinha Wayne Shorter no sax, e Shorter tocara anos com Miles. Havia ainda Joe Zanwill no teclado, que também era ex Miles. Mais Alex Acuña na batera e Jaco Pastorius no baixo. Todos são feras, mas a estrela logo se tornou Jaco. Em 1976 o cara mudou toda a história do contra baixo. Colocou o som grave lá em cima, o baixo passou a ser o centro do som. Mais do que Chris Squire no rock ou Bootsy Collins no funk, Jaco deu ao baixo absoluto protagonismo. Na mãos de Jaco, ele sola, é maestro, dá a harmonia e ainda repercute. É sim o maior baixista da história da música. Qualquer música. ----------------- Pastorius. como todo gênio, era esquisito. Se drogava muito e não tava nem aí pra nada. Morreu cedo, nos anos 80, na rua, quase como mendigo. Mendigo mesmo sendo famoso, muito famoso. Lembro que em 1981, na banda que eu tinha, meu baixista falava de Jaco como fosse ele um tipo de deus. ( a banda não podia ter dado certo....eu queria ser a versão masculina de Chrissie Hynde ). Todo baixo quando bem tocado é hipnótico. Nosso inconsciente o segue como rato atrás do cheiro de comida. Nossas mãos rebatem, nossos pés marcam o ritmo. Jaco nos subjuga. ---------------- Anos 70 eu disse. O jazz elétrico é mais anos 70 que o disco ou o rock progressivo porque ele traz a mente coisas que só os anos 70 tiveram. Dentre elas o hiper ego trip, as camisas floridas e a intelectualidade numa boa. Jazz elétrico é tudo isso. É som bonito transado numa nice. Por hoje eu estar amando quem toca bem, ter desenvolvido o prazer de ouvir, jazz elétrico caiu no meu gosto, pela primeira vez.

SONATAS PARA VIOLONCELO E PIANO OPUS 38 E 99, JOHANNES BRAHMS. CELLO POR MSTISLAV ROSTROPOVICH, PIANO RUDOLF SERKIN.

O violoncelo é o mais exigente dos instrumentos. Não apenas dificil de tocar. Ele afasta o ouvinte que não gosta de música erudita. O timbre do cello é sério, grave, solene, sofrido, jamais choroso. Se voce entrar no mundo do cello, voce logo perceberá que ele é elegante, sóbrio, formal. Brahms foi durante todo o século vinte um dos cinco compositores mais tocados e gravados, e ao mesmo tempo foi um dos mais atacados. Chamado de mal humorado, chato, sem emoção, rígido, ele, finalmente, a partir dos anos 70 encontrou sua justiça. Brahms é perfeito. Sua música é plena de invenção, de orquestração rica, complexa. Ele dominava sua arte como mestre que foi. Eu adoro Brahms. ------------------- Rostropovich foi o maior voloncelista da história. Sim, maior que Casals. Não há o que comentar sobre sua execução sem parecer óbvio. O que digo é que escutar esse duo é descobrir a riqueza da nossa audição. Piano e Cello dialogam e nos contam revelações. O cello afirma melodias, o piano abre paisagens soberbas. Tudo aqui é delicadeza forte, detalhes explicitados pela arte. Serkin é um grande pianista, claro, mas aqui ele se supera. Seu toque é de beleza perfeita. Não há arte que atinja o mundo que a música atinge em alguns, poucos, momentos. Aqui ouvimos e vemos um desses mundos. Há toda uma filosofia metafísica aqui. Ela se esconde em Brahms. Rostropovich e Serkin nos revelam.

BERCEUSE- CHOPIN POR MAURIZIO POLLINI.

Pela cortina, atráves do tecido branco. Meio dia, sol. Uma abelha. Água em um copo. Vidro. Não, nada disso! Outro tempo: Matando aula, estou na rua. Sento no meio fio. O suor gruda nos meus cabelos ( Meus cabelos! Deus! Eu fui um adolescente de longos cabelos românticos! Vejo em fotos: eu era bonito... ). Continuo: Sentado no meio fio são três da tarde. Um sobrado ao lado, todo branco. O quarto, lá no alto. Tem uma cortina branca. Voa ao vento da tarde. Alguém lá dentro toca piano. Estranho! Não sei se era um disco. Não sei se era um pianista ou uma mulher. Mas era ela. Sempre foi. Então eu ouço. E o sinal do intervalo toca na escola, a minha, lá no fim da rua onde estou. Gritos de crianças abafam o piano. Me ergo e vou pra casa. Eu sei que ela está agora comendo seu lanche. Com sol nos cabelos. E as mãos, distraídas, passam pela boca que mastiga. Camisa branca. O tempo se foi e eu estou de volta à mesma escola. E aquele sobrado ainda existe. Mas não ela. O amor agora é outro. E a escola, aquela, apagou seu restro dentro de mim. ----------------- Ouvir esta música é tudo isto. E é mais ainda. Chopin era uma afirmação da alma diante da matéria. Sua música é uma prece. Arabescos. Cascatas de notas. Cristais. Cenas de Max Ophuls. Preciosos momentos. Pollini, um grande, está a altura da missão. A música é a mais abstrata das artes. Construção invísivel de inefabilidades impossíveis. E duram. A ferramenta é o tempo. ---------------- Postarei o viedo de um menino indiano. Seu sorriso é isto.

PRÉLUDES VOLUME 1. CLAUDE DEBUSSY POR ARTURO BENEDETTI MICHELANGELI

Debussy chegou perto do segredo. Há um mistério na música que nunca iremos descobrir. Como se ela estivesse aqui antes. Fosse componente primeiro do que é o todo. Música que é colhida pelas pessoas, não criada. Como a luz ou o calor, ela está. Debussy intuiu isso sem precisar pensar, pois não se pensa o impensável. A música é a realidade básica. Debussy colhendo música. ------- Os Prelúdios são pequenas peças que exploram tudo aquilo que o piano pode dar. São ventos pianísticos. São névoas em teclas. Sol sobre as mãos. Ouvir é voltar à um mundo não perdido. Mundo hoje obscurecido, porém sempre presente, permanente para além de nós mesmos. Mundo de Claude Debussy, aquele de cristal, da luz sobre e entre o cristal, das vozes abafadas pelo veludo das cortinas e almofadas. ----------- Quando vejo essas novas fotos de Plutão, vermelho com nuances de azul turquesa, ouço no distante mundo a música de Debussy. Porque ela está lá e além de lá. E é esse o segredo de toda música. A digital da criação. A respiração do começo e do que será fim. ------------- Arturo Michelangeli é um dos dois grandes pianistas da Italia, o que não é pouco. Seu Debussy evita a armadilha do excesso de delicadeza. É um Debussy viril. Bravíssimo! --------- Como adendo eu percebo aqui o toque de Kind of Blue de Miles Davis. Eis o jazz impressionista modal. Bill Evans bebeu tudo daqui e Miles levou isso para seu sopro. Como eu disse, a música é um segredo e Miles também o intuiu.

VLADIMIR HOROWITZ TOCA RACHMANINOFF

Criticos não gostam de Rachmaninoff. Acham sua música popular demais. Hoje ele é um pouco mais aceito. Não muito. Talvez porque hoje nada no canon erudito seja popular demais. Eu gosto dele. Claro que há em sua música algo de exibicionista. É música feita para pianistas estrelas. Difícil de tocar, são milhões de notas. Ele jamais coloca duas notas, ele coloca dois milhões. O piano, o mais vaidoso dos instrumentos, rodopia em meio a acordes que nascem como gotas numa tempestade. O pensamento do autor russo é: Se é para dizer, façamos um discuro. Estou sendo severo? Claro que não. Em que pese seus exageros, Rachmaninoff é sempre belo. Estrela no começo da era da música gravada, negou a música de seus colegas ( Stravinsky, Prokofiev, Bartok ), por isso a má vontade da crítica. O mundo dele é o do romantismo de Liszt e de Chopin. Vladimir Horowitz, o mais mitológico entre os pianistas super stars, está em casa. Seus dedos sorriem. Todas as notas estão aqui. Neste cd da RCA, ele executa a sonata 2, o prelúdio 32 e o terceiro concerto, este com a orquestra da RCA sob Fritz Reiner. Tudo gravado ao vivo entre 1951-1981. Melancolia e brilho harmônico em doses sem avareza. Feliz o tempo que produziu coisas como essas.

LISZT POR RUBINSTEIN

Arthur Rubinstein é, provavelmente, o mais famoso pianista dos últimos cem anos. ( Horowitz não é tão famoso ). Ouço uma gravação dos anos 50 onde ele toca o primeiro concerto de piano de Franz Liszt. A orquestra é a da RCA e o maestro é Wallenstein. Esta é a primeira peça musical clássica pela qual me apaixonei, já a mais de 35 anos. Tem portanto um lugar especial em mim, e claro, já ouvi várias execuções dessa peça. Pois qual a minha surpresa ao me sentir muito incomodado com esta leitura? O andamento é tão veloz que quase parece uma marcha militar e Rubinstein, que coisa!, parece deixar de lado algumas notas! ---------------- Franz Liszt é um dos compositores mais fáceis de se gostar e por isso um dos mais fáceis de serem subestimados. Este concerto, belíssimo, se tocado com lentidão, revela um sentimento melancólico hipnotizante, uma teia de notas que nos levam ao sonho e a divagar sem freio algum. É romantico ao extremo. Tocado em alta velocidade ele se revela apenas uma peça de salão, fundo de festa ou pior, exibição de técnica. Rubinstein que me perdoe, mas não gostei.

PELLÉAS E MÉLISANDE, SUITE- DEBUSSY

Leia abaixo o texto sobre os três noturnos para entender o que é a música de Debussy. Aqui temos a suite retirada de sua ópera de sucesso. Imaterial e atemporal, cheia de silêncios e ecos, pré-histórica e filha do século XX, sem passado e toda futuro, antiga como o kosmos, sem tempo e sem ação, buliçosa. ------------------- Eu já transei ouvindo esta obra. E funciona. ( Por este comentário voce não esperava não é? ). O enroscamento de corpos nús, a anulação do tempo, a comunhão de hálitos, a sofreguidão seguida do descanso, a maciez dos corpos, o ato mais básico da vida, a simplicidade levada ao ponto mais sofisticado, o refinamento do gesto, a penetração pagã, a amoralidade sem regra, a delicadeza do coração, a animalidade do fazer, o instinto sem vocabulário. A música se casa com meu corpo e com o corpo dela. Experimente. ----------------- A música de Debussy é um ato de curiosidade.

TRÊS NOTURNOS - DEBUSSY

Debussy foi inspirado por uma pintura de Whistler para compor esta obra prima ( e o cd coloca na capa uma obra de Miró....por Deus, que idiotas! ). Para mim, sim, a música fala de Whistler, pintor que amo apaixonadamente. Mas, assim como a pintura do americano possui algo de "antes da pintura", a música do francês, um gênio sem dúvida, fala de algo que é anterior a fala. ---------------------- Uma das imagens que mais me fascina é a paisagem que imagino do planeta antes do homem. Adoro pensar e inventar esse mundo. Um planeta antes do advento da humanidade, portanto um mundo sem testemunho recional, sem narrativa possível, um mundo sem tempo. Nessa paisagem não há antes ou depois, não há amanhã. Anos ou segundos nada significam. Animais são presenças, nada mais que isso. Nada menos. -------------------- A música de Debussy, sobretudo nos Noturnos é a melodia desse mundo, harmonia e ritmo sem história. Pois a arte de Debussy surgiu como se do nada e se foi ao nada de onde veio. Toda música é imaterial mas esta é pré-matéria, é como uma brisa que passa pelo mundo sem homens. Música que não parece ter sido fabricada, parece sim ter sido colhida da natureza. Ela é como um raio do sol ou uma pétala que cai. Acontece, independe da vontade de alguém. É antes do alguém. ---------------- É portanto natural. --------------- Claudio Abbado rege a Filarmônica de Berlin em 1998. Já ouvi versão mais delicada. Mas é boa esta.

RIMSKY-KORSAKOV

Ouvi hoje, último dia de 2021, 4 obras de Rimsky-Korsakov. Para quem não sabe, eu adoro esse russo do fim do século XIX. Se Mussorgsky é considerado o mais genial e Tchaikovski é o mais famoso, Korsakov é aquele que deu à Russia seu primeiro compositor perfeito. --------------- Sheherazade. Ouça a abertura. O modo como os violinos entoam a melodia magnífica, sensual, e o pizzicato que ecoa essa melodia. Depois, no segundo movimento, o lamento de amor no deserto. Podemos sentir as dunas e o calor no diálogo de violino e oboe. O movimento final é um festival de melodias e sons em ebulição. É belo, mas é efervescente. Viril e vivo. ----------- Quanto a execução: uma das melhores da história da Filarmônica de Berlin. Karajan. Gravação límpida. Cristalina. ---------------- Depois ouvi o Capricho Espanhol. Mesma orquestra, agora sob a regência de Lorin Maazel. Música festiva, alegre, pura. Korsakov conseguiu pegar certo sabor ibérico e o unir à alma russa. É Cadiz com tempo de Moscou. Impressiona o gênio do russo para a orquestração. Ele usa todos os recursos que tem a mão sem parecer puro exibicionismo. ------------- Depois do inevitável Voo do Zangão, uma das coisas mais pop do repertório erudito, ouço Festival da Páscoa Russa, uma miríade de climas e de cores criadas por som. A música tem algo de mágico pelo fato de ser uma linguagem universal, atemporal e imaterial. Se Deus tem uma voz, ela é puramente música, sem a palavra.

BORIS GODUNOV - MUSSORGSKY

Não causou grande impacto em seu tempo, fins do século XIX, mas hoje é considerada a obra central da música russa. Não é pouca coisa. --------------- Mussorgsky morreu cedo e colocava nesta ópera sua certeza de posteridade. Era um homem vaidoso. Acertou. Desde seus primeiros acordes, uma empolgante melodia pontuada por sinos e ruídos de latas, sentimos prazer. E arte meus queridos, só vale se for um prazer. ------------ Russa até os poros do dedo do pé, a obra, prima, chora e grita, tradição russa, e tem ritmo, outra característica eslava. Após Beethoven a grande inovação da música do século XIX foi descobrir os ritmos eslavos, tchecos e húngaros, russos e poloneses. Mussorgsky antecipou a modernidade do século XX. ----------- Acima de tudo é música bela. Bela sem ser óbvia. Há fogo aqui, muitas chamas e lágrimas, que rolam sem pudor. Os coros são mágicos e o contraste entre voz e orquestra é tapeçaria de mestre. Genial. Merece ser central. -------------- CD de 1984 com a orquestra da rádio da URSS. Fedoseyev rege.

INSUPORTÁVEL, SALOMÉ DE RICHARD STRAUSS

Eis o moderno do começo do século XX. Serei eu um retrógrado? Mas como, se amo Bartok, compositor bem mais radical que Strauss? Posto isto, eu positivamente odiei Salomé. Mais que isso, parei aos 40 minutos. Não aguentei continuar a escutar essa massa histérica de vozes em briga alucinada. Que coisa sem sentido! Strauss, compositor de algumas coisas que gosto, mas sempre dando a sensação de ser hiper valorizado, apresenta aqui uma ópera que não apenas faz barulho, ela enerva. ------------------ Sempre em velocidade, a orquestra ataca literalmente. São os sons cacofônicos dos cartoons de Tom and Jerry. Porém, sem humor ou jazz. E acima de tudo, vozes que gritam, que discutem, que desarmonizam. Te parece bom? Não, não é. Pois inexiste o ponto que faz sentido. Seria bom se toda essa gororoba fosse temperada com um contraste, algum momento que nos dissesse: eis a coisa! Mas não... é confusão sem fim. E que parece não ter começo. ---------------- Salomé é inescutável e indesculpável. A tentativa, tola, de se fazer sobressair no tempo de Stravinski e Schoenberg. Não rolou. Fim.

LE NOZZE DI FIGARO - MOZART

A suprema genialidade de Mozart incomoda a todos que a estudam. Porque, ao contrário de Haydn ou Beethoven, ele não foi um inovador. Sua arte é a do seu tempo. Não anuncia o futuro, não cria novas formas, não ousa mundos criados. Mozart aperfeiçoa, aumenta, faz melhor e maior, mas não invanta novidades. Segundo fato: ele não foi nem revolucionário e muito menos sofrido. Não há nele nada de filosófico e as tintas existenciais que dizem haver em Don Giovanni é questão de quem o escuta, não de quem o compôs. Mozart é então um gênio sem raiva, sem desejo de transcender, sem ousadia inédita. E mesmo assim trata-se de um gênio absoluto, talvez o maior. ------- Esta ópera, vibrante, viva, um de seus sucessos em vida, é de uma alegria de viver contagiante. Tudo aqui é luz, é amor, é sorriso, e mesmo nos seus momentos de drama sentimos como se Mozart piscasse um olho para nós. Ele diz o tempo todo: Veja! Isto não é lindo? --------------- Meio termo entre o mundo alemão de Beethoven e o mundo solar e italiano de Rossini, a Austria do católico Mozart era então, por volta de 1780, uma terra de misturas. Língua alemã, religião de Roma, vizinhança turca, territórios eslavos, tudo nela era sedução de contrastes. Mozart, viajando entre Viena e Praga, lutava para se afirmar nesse universo. Ele se sabia artista, mas queria luxo, queria vencer, queria poder. Le Nozze di Figaro é tudo isso. Mundo colorido que nos faz viajar longe. Acima de tudo obra de suprema beleza. --------------- Georg Solti é o homem certo para reger. Filarmonica de Londres em 1981. Kiri Te Kanawa começava seu reinado, uma voz de sonho. Feminina ao extremo, voadora, flexível, viva. Há ainda Lucia Popp, Frederica Von Stade, Samuel Ramey...quem conhece ópera ama todos eles. ----------------- É um tipo de arte morta? Bela questão. Se eu a amo e se eu a escuto morta não está. Arte morta é aquela que deixa de ser apreciada por deixar de fazer sentido. Digamos então que é uma fórmula mágica que se perdeu no vento. É isso.

JANACEK E STRAVINSKY, MÚSICA RELIGIOSA

Bach é considerado, com justiça, o maior mestre da música cristã. Mas, fato observável, sua música é profundamente luterana e portanto, racional. Quando ouço Bach posso sentir a presença de Deus, e isso é maravilhoso, mas não sinto o mistério inescrutável de sua existência. Talvez isso fique mais claro ao falar desses dois compositores, ambos compuseram música religiosa no século XX, ambos tocaram o abstrato. -------------- Janacek é o maior compositor da antiga Tchekoslováquia, e isso não é pouco, o país produziu vários mestres. Sua Missa Glagolítica é assombrosa. Usando coro e orquestra, Janacek penetra onde vive a imagem, ou melhor, a ideia de Deus. Não estou especulando se Ele existe ou não, o que afirmo é que Sua centralidade em nossa mente é indiscutível. Nega-Lo é também O aceitar. Não se nega aquilo que nunca existiu, e a ideia é a pedra que edifica nossa civilização. Tudo isso está na música de Janacek. Ele faz a melodia, a harmonia da Pedra, da base primordial. É primitiva, ancestral, e incrivelmente moderna. Se voce tem problemas em acessar sua mente porfunda, isto poderá lhe causar medo, mas caso contrário, o mistério que há aqui é muito sedutor. É a obra de uma alma vasta, cheia de raízes eslavas. ------------------- Stravinsky, o mais famoso compositor moderno, causou espanto quando resolveu na parte final de sua carreira fazer música religiosa. A Sinfonia dos Salmos se inspira em Bach e o reexecuta como modernidade. Percebemos o esqueleto de Bach, mas é Stravinsky 100% aqui. E é soberbo! Vemos a religião, cristã, das catacumbas. É o osso da fé. O russo retira toda a história e toda a pompa e o que fica é o rito nativo, o começo da saga. É a religião corpo, sangue, espírito, é a música mistério. -------------- Que fique bem claro: ambas as obras causam prazer. Vamos esquecer essa tolice jeca de que música erudita é uma obrigação, ou um sacrifício. É prazer, prazer todo o tempo, ou é nada. Se voce não sente prazer, esqueça. Ouvir estas duas obras é usufruir de encanto. ---------------- Janacek é regido por Rafael Kubelik, um maestro perfeito, um rei da concantração. Stravinsky é corretamente regido pelo super star Karajan. ------------- Sensacional.