COSMOS, NOSSO AMOR DESDE SEMPRE

   Quanto mais longe a ciência chega, mais ela se vê obrigada a falar e reafirmar sua condição de "não religião". Chega a ser cômica a avidez com que eles correm a enfatizar isso. Fiquem tranquilos, todos sabemos que ciência se baseia na fé em hipóteses que deverão ser confirmadas empiricamente. A religião se baseia na fé em certezas que prescindem de confirmação. Ambas possuem dogmas e é por isso que as duas são repressoras. A religião exige obediência e a ausência de dúvida, a ciência exige o materialismo absoluto. Mas as fissuras se fazem.
   Se voce falasse para um físico anterior a Einstein, que poderia existir uma partícula invisível, ele te chamaria de charlatão. Que essa partícula pudesse mudar de massa, de peso e de comportamento, ele te chamaria de louco. E se voce então afirmasse que essa partícula tem certa inteligência e que está fora do tempo e da gravidade, bem, ele diria que voce é um mistico. Mas Einstein, que não era religioso, mas era espiritualista, bagunçou o coreto, e foi tão longe que acabou por negar parte de sua obra por achá-la fantástica demais. E é essa parte que foi confirmada nesta semana.
   Leio que há a possibilidade de que exista uma anti-matéria, de que tudo tenha sua cópia em negativo. Leio que essa nova partícula só passa a existir como matéria quando em choque com outras partúculas, que antes ela não é material. Então é o que? Espírito? Um Gasparzinho?
   Milhares de anos atrás, um bando de ignorantes, aborígenes ou celtas, intuiu que havia dentro de nós algo vindo do céu. E que esse algo não podia ser visto. Era não sólido e não temporal. Lhe deram o nome de alma. Essa tribo intuiu que a vida começara na luz e que essa luz vinha do sol e que o sol nascera no éter. Eles desconheciam a roda, a escrita e até o  fogo. Mas sentiam que era assim.
   Séculos depois, após tanta gente genial, após tanta grana, descobrimos que em nós há a mesma matéria das estrelas. Que tudo que existe foi feito da mesma matéria. E que além dessa matéria existe uma não-matéria. Vejo na TV berçários de estrelas, as mais belas imagens já vistas, e penso imediatamente no "Fez-se a Luz", da Bíblia. As estrelas nascendo naquela luz e naquele calor e a fertilização lembrando tanto as estrelas que nascem. Nossa fertilização, os espermatozóides e os óvulos. E agora a hipótese de que temos dentro de nós essa partícula sem massa e sem tempo. Uma partícula de virtualidade pura.
   Mas somos obrigados a reafirmar: Isto nada tem a ver com religião. É ciência puramente racional. Quem disse que não é?
   A ciência ainda irá confirmar todas as intuições do homem. Porque eu creio firmemente que a mente é um Cosmos, que as estrelas nascem como pensamentos. E que a mente humana, sem cultura, sem ciência, sem história, sem passado, intui seu nascimento, sua morte, sua verdade.
   Livre de toda baboseira que nos distrai, ela SABE desde sempre o que é a vida, o que é o Cosmos, o que significa existir. Quanto mais a ciência anda mais os aborigenes se tornam atuais.

ALCEU AMOROSO, BERGSON, FÍSICA QUÂNTICA, MACONHA, HIPSTERS E ARSENE LUPIN

   Tem um monte de coisas que leio hoje. Nada pra fazer no trabalho. Caraca! O tempo corre, voa, urge e ruge, vira fumaça....já fazem 25 anos que uma carga de maconha em lata foi jogada de um navio nos mares do sudeste do Brasil !!!! E passamos meses ouvindo gente dizer que havia fumado "da lata". E que era coisa forte pra "dedéu"..... 25 anos!!!! Ai mamazita!!!!!
   Um site legal pra voces: http://www.saopauloantiga.com.br/
   Eles fotografam as casas e coisas que estão por um fio pra serem demolidas. E se mexem, tentam salvar as construções. Eu pensei que só eu sentia asco das demolições paulistas. Os caras do site saem andando pela city e disparam fotos sobre fotos. Bacana e urgente.
    Se voce tiver fotos manda pra eles.
    Marcelo Coelho fala de Arsene Lupin. Fazia tempo que ninguém falava dele. Os livros que têm Lupin como personagem são "quase" tão bons quanto os de Holmes. Não sei porque, mas eu tinha a certeza de que Marcelo Coelho era fã de Sherlock. Ele é. Nós, fãs de Conan Doyle, somos todos uns Watsons.
   Matéria sobre Alceu Amoroso Lima. Ele é do tempo em que intelectual era alguém que fora educado sobre várias coisas com profundidade. Teve o francês como primeira lingua e aos 17 anos já assistia aulas de Henri Bergson no College de France. Alceu era um intelectual católico. Veja bem, não falo de religioso, falo de católico. Ele seguia as normas e dogmas. E numa época em que ser católico era ser um quase fascista de direita, Alceu lutou contra a ditadura militar e pregou pela liberdade. Sem jamais romper com o Vaticano. Sua trajetória tem um nome: Honra. Intelectual hoje opina sobre tudo sem saber muito nada. E pior, nega compromissos como se isso fosse coragem.
   O College de France ainda é o sonho de todo intelectual francês. Para dar aulas lá voce tem de ser convidado. Recebendo o maior salário entre os docentes do país, voce pode escolher o assunto de sua aula e dar esse único curso, muito curto, em todo o ano. Henri Bergson foi mestre lá. Lacan também. Bem, nem o College de France é perfeito.
   Meu amigo Pagotto leu todo Os Miseráveis, de Victor Hugo, na tela do celular. Ler o imenso no muito minimo. Eu me recuso. Ainda.
   Matéria sobre uma tribo dominante: os Hipsters.
   Mexam-se no caixão Boris Vian e Thelonious Monk! Hipsters eram os amantes de jazz. Um povo muito cool e muito angustiado. Agora é essa turminha de calça skinny, óculos de armação grossa, gorro na cabeça e blusas velhas de lã. Ninguém entende o porque de usarem esse nome. Eles se revelam pela palavra Não: não são artistas, santos, reformadores, aventureiros ou cientistas. São vendedores. O único interesse é por aquilo que funciona. Vendem a si-mesmos e são hiper-conformistas. Disfarçados de "alternativos" não têm proposta nenhuma de mudança em nada. Quando gritam por reformas é só isso, gritam para que o que existe continue a existir. Se vendem como perfil e como produto, e sabem que o melhor produto é aquele que ninguém tem. Para eles, bom é aquilo que ninguém gosta. Forma de parecer diferente.
   Beatniks queriam o êxtase, a experiência transcendental. Hippies queriam o amor livre e a droga que abria a mente para o sonho. Punks queriam o anarquismo niilista. Os yuppies queriam o consumo, a festa chic. A geração dos anos 90, apática, queria ser deixada em paz. Os hipsters querem vender, vender sem parecer ambicioso, ser boêmio sendo conformista, obter sucesso sem pagar o preço da ambição. Eles querem parecer. Nunca ser.
   Pra finalizar, física quântica.
   Quanto mais longe a ciência vai, mais ela se parece com misticismo. Então existem mais de 12 sentidos? Existe toda uma realidade que não temos como ver? O tempo se dobra nas beiradas e transforma-se em "enroladinhos"? A maior parte da matéria é invisível e indiferente a tempo e distância? Caramba! O mundo do século XIX vive nas pessoas como eu, de cultura média, mas para a ciência de ponta, a velha matéria racional e sólida dos velhos cientistas positivistas já morreu.
   Já foi tarde.

Rod Stewart - Maggie May (Original Video 1971 Totp) E TUDO COMEÇOU AQUI ( PRA MIM ). I ALWAYS LOVE ROD....



leia e escreva já!

PETER SELLERS/ COELHOS/ ANA MARIA BAHIANA/ ASTAIRE/ MILESTONE/ JOHN GARFIELD

   ROMANCE INACABADO de Stuart Heisler com Bing Crosby e Fred Astaire
Astaire, em seu tempo de vacas magras, serve de escada para o sempre bonachão Crosby. O filme tem um score com um monte de canções de Irving Berlin, ou seja, apesar de ser produção de rotina, tem momentos de alto nível. Fred Astaire canta Puttin' on The Ritz...precisa de mais o que? São alguns minutos de técnica, alegria, classe e leveza. Como é bom poder ver esse gênio na tela! Nota 7.
   EXPERIMENT IN TERROR de Blake Edwards com Lee Remick e Glenn Ford
Acabou de sair em dvd. A música, climática, classuda, bem conhecida, é de Henry Mancini. O filme tem a fama de ser um dos favoritos de David Lynch. Tem o clima doente de seus filmes. A história fala de um maníaco asmático, que persegue e aterroriza pacata mocinha. Edwards estava aqui em seu apogeu. Acabara de fazer uma das melhores comédias do cinema e iria dominar a década com seu humor ácido. Aqui, nada de humor. É suspense esquisito, pouco hitchcockiano. Nota 6.
   2 COELHOS
Filme trailer. Me peguei esperando que ele finalmente começasse. Não começa. O diretor é daquela escola que pensa assim:"Se os trailers são tão bons, porque não fazer um filme que seja um trailer de hora e meia?" Nos anos 70 reclamavam que os filmes começavam a se parecer com TV, muito close e muito corte, nos anos 80 reclamavam que eles se pareciam com comerciais de TV, imagem fake e personagens rasos, nos 90 era o clip, muito efeito e excesso de cortes, pois veio depois o filme trailer, simples flashs de pedaços de ação com letreiros e apresentação de personagens que nunca termina. O futuro será o filme facebook, perfis de personagens e ações irrelevantes... Nota 1. pela boa produção.
   O PRISIONEIRO DE ZENDA de Richard Quine com Peter Sellers
O ponto baixo desse gênio chamado Sellers. Trata da velha trama da troca de um rei à perigo por um sósia simplório. Sellers dá um show como os dois. Um snob e afrescalhado principe da Europa central e um inglês pobre, pacato e de sotaque cockney. Há um filme de Tv com Geoffrey Rush que mostra quem foi Peter Sellers. Um homem sem personalidade, que só existia em seus papéis. Sellers foi meu primeiro ator-ídolo. Morreu do coração em 1979, com 50 anos apenas. A jovem geração perdeu a chance de conhecer esse ator incomparável. Poderia estar vivo ainda...uma pena. O outro filme que fez nesse mesmo ano ( 1978 ) com Hal Ashby, Being There, é talvez, o mais influente filme a servir de modelo a nosso tempo. André Forastieri disse isso, o cinema fofo e moderno de Wes Anderson, Juno e que tais é 100% Hal Ashby. Mas este tal de Zenda leva Nota 5.
   OS BRAVOS MORREM DE PÉ de Lewis Milestone com Gregory Peck
No inicio de sua carreira, Milestone fez o melhor filme de guerra do cinema ( Nada de Novo no Front ). No final dessa inconstante trajetória ele fez este outro histórico filme de guerra. Aqui, Peck é o comandante de um pelotão que deve tomar posse de uma montanha na Coreia. Eles a tomam, mas a que preço? O filme mostra o absurdo da situação: a batalha é inutil, os superiores mentem aos soldados, a ajuda nunca vem, o terror domina a todos. Nada há de heróico, eles apenas tentam sobreviver. O filme é forte, soberbo, tem cenários inesquecíveis. Peck transmite sua autoridade de homem íntegro. Consegue parecer assustado e sob pressão sem perder a altura. Funciona. O filme é quase uma obra-prima. Nota 8.
   SUGATA SANSHIRO de Akira Kurosawa
É o primeiro filme do mestre. Fala de um jovem que tenta ser um mestre do judô. O tema de Kurosawa já se expõe: vontade sob dor, teimosia que leva a vitória, prêmio que nunca compensa o sofrimento. Mas a vida se justifica nessa luta. Ela, a vida, vence, e nós somos parte dela e nunca seus senhores. A imagem do filme está estragada, muito escura. Se o achar em alguma loja, fuja. Não posso dar nota.
   O EGÍPCIO de Michael Curtiz com Edmund Purdom, Jean Simmons, Victor Mature e Gene Tierney
Fim da carreira de Curtiz. Fim digno em produção "épica" sobre um egípcio que se torna médico e se envolve com mulher fatal. O elenco é problemático. Purdom não vingou, Mature foi o simbolo do canastrão, Gene Tierney, que foi a mais bela das atrizes, já está irreconhecível. Teria logo uma doença nervosa que a isolaria da vida. E Jean Simmons, que faz o papel da mocinha boazinha que ajuda o herói, tinha sua carreira prejudicada por Zanuck, o poderoso produtor, por não ceder a suas cantadas. Jean era inglesa e foi a mais bela das Ofélias no Hamlet de Olivier. Este filme é enorme, pesado, melodramático, sem noção, tolíssimo e apesar disso tudo, deixa-se ver com facilidade. Nota 5.
   VINGANÇA DO DESTINO de Jean Negulesco com John Garfield e Micheline Presle
Garfield é um jockey americano. Ele vende corridas, faz "marmeladas". Foge para a França, mas o destino o persegue na forma de um mafioso que ele traiu. O filme tinha tudo para ser bom. Um ator excelente ( Garfield, foragido de MacCarthy, logo morreria na amargura. Seu tipo feio, sujo, antipático fez dele o primeiro ator a parecer "gente de verdade" ), um tema ousado e uma Paris pós-segunda guerra ainda existencialista. O filme é cheio de jovens barbudos, clubes de jazz e ruas imundas. Fascinante Paris que desapareceria nos anos 60 com seu boom de crescimento. Mas com tudo isso o filme é chato. Cai em excessos de melô na figura do filho de Garfield, um menino enjoado, choroso e bonzinho demais. O filme é frustrante então. Nota 3.
   1972 de Ana Maria Bahiana e José Emilio Rondeau com Dandara Guerra, Rafael Rocha e Tony Tornado
Foi um fracasso de bilheteria esta produção cara que foi a estréia de Ana na direção. Ana foi critica de rock e o filme tem algo de autobiográfico na figura da mocinha que tenta ser repórter de rock em 1972. Há algo de Quase Famosos aqui, mas o filme, que é bom, nunca emociona. O que mais o prejudica são os dois atores centrais. O mocinho do subúrbio é interpretado de modo completamente amador. Já a repórter é um pouco menos ruim, mas Dandara, que é impressionantemente linda, tem problemas de dicção. O melhor é ver Big Boy sendo homenageado e sentir o amor ao rock que há em todo o roteiro. O filme é sobre rock na época em que gostar de rock ainda era coisa de bandido. Nesse ponto ele acerta na mosca. Era coisa de não- bandidos, jovens ingênuos, idealistas, sonhadores e que se uniam na grande irmandade dos cabeludos. O chato é que esse filme podia ser tão mais..... Nota 6.

O LEOPARDO, de GIUSEPPE TOMASI DI LAMPEDUSA

   Um dia eu teria de escrever sobre essa obra-prima. É um dos grandes romances do século XX e deixou embasbacados os leitores ao ser editado em 1954. Quem era esse tal de Lampedusa?
   Nobre italiano, Giuseppe Tomasi di Lampedusa viveu a realidade de seu personagem central. O empobrecimento da nobresa européia e a consequente mudança de valores. Escreveu pouco. Apenas este livro, editado já postumamente, e um volume de contos ( excelentes ). 
   Salinas é esse inesquecível personagem. Poderoso, rico, viril, ele foi educado para existir num mundo sólido, ordenado, imutável. Mas o que ele verá será bem diferente. Revoluções fazem do mundo algo de cambaleante e a classe dos mercadores assume o poder financeiro. Mas não o poder sobre as mentes. Aliam-se então. Vem a famosa frase de Lampedusa : " Ceder os anéis para não perder os dedos, ou melhor, mudar tudo para não mudar nada."
   O livro vale por tratado de sociologia, de história e de costumes. Dói em Salinas perceber a falta de cultura e de sabedoria da nova classe dirigente. E esses mercadores sabem, têm consciência de sua vulgaridade. Unem-se. Toda a melancolia explode no enredo. Por mais que os vulgares novos-ricos admirem o nobre Salinas, ele se encontra em posição subalterna. Olha suas coisas, suas terras, sua vida com a consciência de que é um mundo condenado. O que ele simboliza vira mito. A única verdade passa a ser a do dinheiro, não a do berço.
   A prosa de Lampedusa é magnífica. Simples e rica. Amamos o nobre e ao mesmo tempo vemos o quão duro ele é. Um pavão, um touro reprodutor. E pouco a pouco percebemos sua queda. Ele afunda em meio a herdeiros ambiciosos e inseguros e a alianças vergonhosas. Tudo tomba e afunda em cada página sublime.
  Eu amo este livro. Tanto quanto O Morro dos Ventos Uivantes ou Anna Karenina, ele demonstra e escancara alguma coisa que me é muitocara: a amarga e viciante beleza da decadência.
  PS: O filme de Visconti consegue algo de muitíssimo raro: ser tão bom quanto o livro, sendo igual e diferente. Burt Lancaster é Salinas. Seus olhares transmitem toda a dor perplexa do personagem. Ele tem autoridade, savoir faire e também uma humilhante impotência.  E há a cena do baile, uma das sequências mais lindas da história da arte. São 50 minutos em que cada frame é pleno de significado, drama e sentido. E de esfuziante e acachapante beleza. Jóia de imenso requinte, junto ao Oliver Twist de David Lean e Os Mortos de Huston, é dos raros filmes que não decepcionam os amantes de seus livros originais.
  

NELSON FREIRE, WOODY ALLEN, FUTEBOL E RAFINHA

   Nelson Freire talvez seja o maior brasileiro vivo. Ele voltou a São João del Rey para tocar no museu da cidade. Após 60 anos. Na verdade ele tocara lá aos 6 anos em 1950. Mozart. O Estadão escreveu sobre isso, hoje, uma página com várias e emocionadas linhas. Todo o texto, lindo, é calcado sobre a memória e tem como centro o reencontro do pianista com o velho piano usado em 1950. Freire o encontra em sala escondida e toca nela Mozart, só para recordar.... Depois, no palco, ele tocará Beethoven, Chopin e um bis com Grieg.
   Esse belo texto serve de contraste com o texto da Folha, mesmo dia. A folha usa também uma página inteira, mas com metade das linhas. Mas o diferencial maior vem no tom. Quando Nelson encontra o velho piano se fala de saudade e de reencontro, no Estadão. Já a Folha conta apenas que o velho piano estava desafinado... O texto da Folha é frio, distante, oco. Claro que rasga elogios a Nelson, mas exemplifica a "teen-agerização" da Folha. Blá!
   E é ainda no Estadão que vem um comentário soberbo sobre o novo Woody Allen. Não vi o filme, mas é dito que ele detona a tola superficialidade da comunicação e da internet. Lendo dá uma vontade de ver....
   SNL não dá!
   Os convidados fazem pose de convidados americanos, Rafinha faz caras e bocas de Chevy Chase, as moças lutam para ser Gilda Radner. E tem a banda...que não tem G.E.Smith. Tudo se parece com novela mexicana. Cópia, humor made in Paraguay. Eu amo o SNL de Dan Akroyd, Bill Murray, Steve Martin e Belushi. E depois as fases com Eddie Murphy, Martin Short, Will Ferrell....mas Rafinha não dá! O programa é fake. E começa a imitar o Pânico, o que é sinal de desespero.
   Roberto Carlos, o lateral, disse que a seleção de 2002 foi melhor que a de 82. OK. Uma venceu e a outra não. Porém, a seleção de 2002 jogou a copa mais fraca da história. Basta dizer que Coreia e Turquia ficaram entre os quatro top. Alguém pode me citar um craque da Coreia? E a final foi com a pior Alemanha. E com frango do goleiro....
   A seleção de 82 jogou uma copa maravilhosa, onde quatro seleções mereciam ser campeãs. E entre as quatro ( Itália, Alemanha, Brasil e França ), havia Rossi, Zoff, Antognoni; Breitner, Rummenigge e Littbarski; Boniek e Deyna; Platini e Tigana. E Maradona, Roger Milla, Passarella...que nem chegaram entre as quatro. Aliás o Brasil não chegou, a terceira foi a Polônia. Acho que não dá pra comparar. ( E quem pensar que é puro saudosismo digo que a copa de 1978 foi um lixo, assim como foram as de 1990 e a de... 2002!)
   Pondé fala de gente que entende de vinho como o plus-ultra do tolo. Falar de terroir, acidez, merlot e pinot-noir....blá!
   Existe também o "conhecedor" de arte. É aquele cara que vai no Masp, vê Van Gogh e sai vomitando teses sobre expressionismo. Há quem fale de Pollock com autoridade só por ter visto o filme de Ed Harris. Aliás a maioria fala de tudo só por ter visto em algum filme. Ou na TV.
   E é sobre isso o filme de Woody Allen. Que não vi...
  

PYGMALION- GEORGE BERNARD SHAW

   Bernard Shaw foi até os anos 60 tão representado quanto Shakespeare. Brecht, Shaw e Maugham. Esses eram os autores mais encenados, ao lado de WS, claro. WS enterrou a todos eles e continua popular como sempre. Maugham cansou, Brecht se tornou antigo e o que aconteceu com Shaw?
   O irlandês ( que detestava a Irlanda ) George Bernard Shaw foi a mais popular figura cultural da Inglaterra entre 1890- 1950. Viveu muito, nasceu na época de George Eliot e Meredith e viveu até além da segunda-guerra. Fabianista ( o fabianismo era a versão light do socialismo, made in England ), vegetariano e anti-casamento. Shaw escrevia panfletos e peças de teatro, fazia conferências e lançava modas. O mundo queria saber de suas opiniões, todos observavam sua vida. Morreu solteiro, famoso, nobelizado, cheio de sucessos no palco ( e no cinema ).
   Quando comecei a me interessar por livros ( na época das caravelas eu acho.... ), Shaw era tão famoso que mesmo tendo 11 anos eu já queria lê-lo. Ele era importante como são hoje Virginia Wolff e Karen Blixen. Paulo Francis o tinha como mestre e guia, pois Shaw era um tipo de metralhadora giratória. Suas palavras fustigavam e ofendiam e ele dava palpites sobre tudo. Mas subitamente ele saiu de moda e há quem agora o ignore.
   Bem, talvez seja uma época de bolhas de sabão a nossa, e não das granadas de Shaw.
   É famoso o diálogo dele com Isadora Duncan.... Por volta de 1920 os dois eram o homem e a mulher mais admirados do mundo. Então Isadora propôs que se casassem. O filho teria a beleza dela e a inteligência dele. Shaw recusou dizendo: "Temo que ele tenha minha beleza e sua inteligência"...
   Pigmalião, ou Pygmalion, é a peça que deu origem ao musical MY FAIR LADY. E lendo o texto vejo que o libreto do musical manteve 90% da peça de Shaw. A grande mudança é no final. A peça termina em aberto, o musical dá um final quase feliz ( e anti-feminista ). Eu prefiro o musical, mas a peça é fácil de ler e sempre divertida. As falas correm.
   O enredo é muito conhecido. Henry Higgins é um professor de fonética. Numa noite de chuva, à saída da ópera, ele conhece Elisa Doolittle, uma florista de fala vulgar. Aposta com amigo que conseguirá mudar a dicção da florista e assim enganar os snobs de Londres, que acreditarão ser ele uma Lady. Tudo isso ocorre numa Londres maravilhosamente vitoriana.
   No filme toda a atenção é para Elisa. Audrey dá seu grande show. Na peça há uma ênfase na dúvida: Higgins tem o direito de tirar Elisa de seu meio social? A educação de Elisa abre seus olhos para um mundo maior, mundo que ela não conhecia. Mas Elisa não tem o dinheiro para viver nesse mundo descoberto. Esse o drama. De que vale a educação sem a oportunidade? Educação sem avanço social e´ apenas frustração. Elisa sente isso na carne.
   Shaw continua atual. Educamos gente que jamais poderá viver no mundo que eles aprendem a conhecer e a admirar. Uma bela e intraduzível peça.
   PS: Há uma tradução que transforma ã giria de Elisa em carioquês do morro e Higgins num falador do português correto. Não funciona. Hoje a lingua correta não mais distingue a Lady da florista. Além do que não há como levar a sério um professor que distingue a lingua da Tijuca da do Leblon e da Urca. No original Higgins fala dos acentos de Fulham, Chelsea e Newcastle, acentos que são pronunciados. Elisa é uma cockney, Higgins fala o inglês da BBC. Intraduzível.

KONSTANTINOS KAVÁFIS

   José Paulo Paes traduz e fala dos vários pontos em comum entre o moderno poeta grego e Fernando Pessoa. Viveram no mesmo período, foram funcionários públicos, desconhecidos em vida. Ambos idealizaram o passado de sua nação. A diferença, vasta, entre os dois: Pessoa era um hiper-cerebral intelectualista; Kaváfis era um sensualista. Homossexual, solitário, Kaváfis ia à caça, perambulava pelos bares e ruas. Sua poesia fala desse tema, expõe sexualidade, nada teme.
  E rememora. Kaváfis nasceu em Alexandria e se considerava um herdeiro da cultura grega. Como Pessoa, teve o inglês como primeira lingua. Mas o grego logo se percebeu como helenista. Sua nação era a Ítaca de Odisseu, e muito além, o oriente helenizado. Seus versos unem Egito e Grécia, antiguidade e idade média. Paganismo e ortodoxia cristã, amor carnal e desejos transcendentes. Mas atenção: Kaváfis nunca perde o corpo de vista. O sangue e a carne mandam. Ele é sensual.
  E simbolista. Não se importa com o aparente, o evidente, o óbvio. Seu mundo é feito de noite, sombras e camas recém usadas. De peles beijadas e de um imenso passado. Ele vai a momentos decisivos da história e recria. Dá vida a heróis e a impérios esquecidos, faz de Antonio, César, Nero, Juliano, personagens. Máscaras que na verdade são Kaváfis, atores do drama que é a vida do poeta.
  Ele relembra anos idos, séculos perdidos, ele relembra jovens que amou, seu corpo em decadência, as noites de exageros. Inexiste arrependimento. Se Kaváfis lamenta, e ele o faz, é a passagem do tempo. A poesia é para ele a cura, o remédio que alivia a dor da perda. Seus versos dão vida àquilo que passou.
  Escritos de forma muito simples, Kaváfis foi "descoberto" logo após sua morte. Seus escritos, apenas 180 poemas em mais de 60 anos de vida, foram reunidos por seus amigos e publicados. Eliot, Forster e Pound logo o elogiaram e seu lugar no olimpo do século XX estava garantido.
  Leves, coloridos, vivos, ler Kaváfis é um prazer.

O MUNDO ACABOU- ALBERTO VILLAS

   Alberto nasceu em 1950 e trabalhou/trabalha na Globo, Band e SBT. Escreveu este delicioso livro sobre seu mundo. Mundo que ele confessa ter morrido a algumas décadas. Nada de chororô. Há saudade mas há muito mais alegria. Ter conhecido esse mundo é uma felicidade guardada no coração.
   O mundo que ele recorda morreu porque não é o mundo da alta cultura ou da grande história. Sejamos francos, o mundo de Plato ou de Proust está vivo. Mas o mundo de que Alberto fala, mundo de brinquedos, de aparelhos e de comidas, esse morreu. Então ele dá uma página para cada lembrança.
   Invejoso, dou aqui as minhas lembranças. Guiado pelas dele.
   PS: Quem nasceu após 1970 não saberá do que falo. Ou saberá?
   O cheiro do Vick Vaporub, que era emplastrado em meu peito para curar minha bronquite. Eu dormia de paletó de flanela e o Vick grudava no tecido. Ao lado, sobre o criado-mudo, o lenço de pano, azul e branco. Eu nunca estava sem um lenço de pano à mão.
   Os vizinhos vindo em casa ver TV. A TV só valia a pena se fosse vista em grupo. Assistir Tv a sós era coisa de maluco. Domingos vinham meus primos ver Roberto Carlos e Hebe. Durante a semana vinha Dona Mabilia, ver novela. A molecada via National Kid e Ultraman.
   Mabilia...existem nomes extintos. Valdir, Moacir, Luiz Carlos, Sandra, Maria da Conceição, Roberval, Juscelino, Ivo, Jurandir, Alaor, Benedita, Margareth e Margarida. Noémia e Nelson. Péricles e Roseli. Hoje é tudo Lucas, Gustavo, Tiago e Gabriel. E aquele monte de nomes estrangeiros de araque. Ah! e tem os sofisticados chic que ousam um Joaquim e uma Valentina.
   Tv em móveis de madeira, brilhando e perfumada com lustra-móveis Shell.
   Toda casa tinha baratas, muitas e pra matar se usava Flit. Para os pernilongos tinha uma cobrinha verde. A gente acendia a ponta e ela ia queimando e soltando cheiro ruim. Não funcionava, mas a gente usava... Pulgas na cama. Colchão de palha. Cheguei a dormir em colchão de palha e ter pulgas no lençol. Ainda existem pulgas?
   Bicicleta com espelinho retrovisor e borrachas de paralamas. Pedalar usando um Bamba preto. Eu tive um branco também. Acho que até hoje foi o melhor tênis que usei.
   Tinha um indio Apache que ficava na tela da TV antes de ela "abrir". A TV fechava às 2 da manhã e abria às 10. As pessoas dormiam e os funcionários descansavam...
   Colar figurinhas com goma arábica, uma cola com pincel, de cheiro forte e que deixava as figuras enrugadas. Quem era mais pobre fazia cola. Farinha e água. Meus primos faziam pipas assim. E funcionava. Engraçado, era um tempo em que dava pra ficar uma semana sem gastar um centavo.
   Eu ia de pasta de couro pra escola. E calça cinza de tergal com camisa branca de abotoar. O distintivo da escola no bolso. Costurado. Sapatos pretos Vulcabrás. As meninas de saia xadrez cinza e camisa branca. Meias 3/4. Atenção, era uma escola do estado. Camiseta e short nem pensar.
   "Este é Renato, esta é Cecilia. Renato e Cecilia são irmãos". É a primeira frase que li e escrevi na vida. Daí à Yeats e Homero foi um nadinha de tempo....
   Um homem de terno e gravata vinha vender enciclopédias. Eu pirava! Foi ali que nasceu meu amor aos livros. Ele vinha sexta e deixava um dos volumes em casa até segunda. Se a gente gostasse, comprava tudo. Meu pai comprou um monte: Ler e Saber, Barsa, Do Estudante.... Eu lia quase tudo. Adorava ler as coisas sobre os reis do passado, vidas de escritores e pintores e sobre bichos. Nada mudou. Ler sobre Adolfo I, Pascal e o jaguar ainda me fascina.
   Nas bancas eu ganhava Recreio. E aos nove anos comecei a ler Clássicos da Juventude. A Ilha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, Tom Sawyer e vasto etc. E ainda colecionava os fascículos de Conhecer e Os Bichos.
   O pai de meu melhor amigo escrevia a máquina em casa. Lembro de entrar correndo na casa dele e ver o pai escrevendo. Toda vez que ele ia teclar um ç ele me chamava para teclar. Tléc. Eu ficava todo-todo...Achava a mulher dele ( Meire ) a coisa mais linda do mundo! Engraçado....teclar e amar uma nova Meire....O que mudou?
   Sentar numa lata de arroz para cortar o cabelo. O barbeiro botava essa latona na cadeira, para eu ficar mais alto. Eu odiava cortar o cabelo. Hoje não preciso mais cortar...
   Os ovos eram chocados e eu ia ver, com toda a familia, os pintinhos quebrarem a casca. Piu, piu, piu... Toda casa produzia alguma coisa. Tempo de quintais, a gente tinha abundãncia de limão, couve, alface, ovos, galinhas, coelhos, banana e almeirão. Ah...e tinha uma parreira que nunca deu uva. Eu cansei de ver galinha ser morta na cozinha. Adorava ver as tripas quentes e cheirosas. Era um tempo em que na feira se vendia o bicho vivo, pra matar em casa. Trocas com vizinhos: Pode pegar as laranjas, leva este mamão, tome esses ovos...
   Minha mãe vivia costurando alguma coisa. A linha corria na máquina de costura. Aliás, toda casa tinha máquina de costura, enceradeira...se encerava até o terraço! Um cheiro de cêra maravilhoso!
   Não se comprava roupa. Isso era coisa de quem era muito pobre. Se mandava fazer. Minha mãe escolhia o tecido, o modelo e mandava fazer sob medida. Toda casa tinha seu alfaiate e sua costureira. Menos empregos no mundo, o que fazem hoje os alfaiates? ....existia até a lavadeira!
   Leite em garrafa de vidro, com nata grossa. O leite dormia na rua, de madrugada, e ninguém pegava. A garrafa era devolvida pela garrafa cheia. O primeiro emprego de meu pai foi esse: entregador de pão e de leite. De carroça, em Santo Amaro, 1950.
   Anos depois ele voltava do trabalho às 3 da tarde. E todo dia me dava 25 centavos. Eu corria à "venda do seu Roque" para comprar doces. Coração de Abóbora, Passoca, Pé de Moleque, Maria Mole, e meu favorito: um tipo de sanduiche de Maria Mole com duas bolachas Maizena. Os doces ficavam num armário de vidro, era só pegar. Nessa venda tinha de regadores e vassouras à feijão e óleo. Grande balcão de madeira e pedra, a escada para subir ás prateleiras mais altas, o menino de bicicleta que fazia as entregas a domicilio.
   Todo dia meu pai me dava um cálice de Biotônico Fontoura. E aos sábados fazia uma vitamina: ovo crú, açúcar e uma garrafinha de Caracú. Tudo batido no liquidificador. Era bom pra caramba, mas hoje eu não teria estômago. Tempos incorretos.
   Fotonovela era um tipo de HQ romântico, mas tinha fotos de atores e não desenhos. Minha tia lia. Eu coloria álbuns dos Flintstones. E adorava aqueles estojos de madeira onde vinham lápis, lapiseira, borracha, caneta, esquadro, apontador....
   A professora carimbava nossos cadernos com figuras de histórias de fadas. Quanto melhor aluno, mais carimbos. Meu irmão tinha um monte!
   Sempre adorei andar na chuva. Já com 7 anos eu tinha minha capa de chuva. Cinza, até os pés, abotoada com grandes botões verdes. E meu guarda-chuva preto. Até hoje sinto vergonha de confessar, mas eu adoro umbrellas! Chovia muito, garoava toda manhã, neblinas de cegar. No calor da sala, vendo Os 3 Patetas na TV, parecia que minha casa era a única do mundo. Era.
   Um fusca vermelho de lata. Eu entrava nele e pedalava. Tinha farol a pilha e buzina. Brinquedos eram pra se mexer. Tive uma armadura medieval de plástico, elmo, escudo e espada. Um trem à pilha, vários Fort Apache. De madeira, com indios a cavalo e a cavalaria com sabres. Ainda sinto o cheiro da madeira pintada. Uma cidade do Western. Com cocheiras, saloon, carroças, casa do xerife. Toda de madeira, enorme. Minha bicicleta era vermelha, Caloi.
   Eu estava deitado no quarto escuro e a porta se abriu. Em meio ao escuro, uma luz branca e uma buzina. Meus pais entravam no quarto, de surpresa, e me davam o Fusca! Eu tremia de alegria.
   Todo dia eu via O Pimentinha, Os Monkees e Coelho Pernalonga. A TV me hipnotizava. Eu prestava atenção em tudo, até em jornal que não entendia. Topo Gigio, Sessão das Três, Jambo e Ruivão, Circo do Arrelia, Corrida Maluca e Speed Racer.
   A carrocinha passava e levava todos os cachorros pra virar sabão. A gente sabia, sabão de lavar roupa era cachorro morto. O Phebo preto tinha cheiro forte de cãnfora e ardia na pele. Eu tomava banho dia sim dia não ( confesso, eu era um porquinho ), sempre encardido, minha mãe me esfregava com esponja de cozinha até ficar vermelho. Eu juro que não é só o Phebo que mudou. O Toddy em vidro gordo e escuro cheirava melhor, tinha mais sabor e o bolo Pullman ( sabor Califórnia ) era uma delicia!!! Será fantasia? Mas eu sinto agora o cheiro e o gosto na memória, e percebo que mudou. Basta dizer que abrir uma lata de café era cheiro se espalhando até no vizinho....
   Jogo de botões....Flamengo. Com Ubirajara no gol. Reyes na zaga. Fio no ataque. Tinha um do Corinthians com Tião e Rivellino. Eu era palmeirense, Ademir e Leivinha, Leão e Dudu. Mas meu pai me deu uma bola Pelé e virei Pelé. Eu torcia era pelo Pelé.
   Câncer de pele? Que? A gente ia pra praia pra se bronzear. Passava Coppertone, que não protegia nada, bronzeava. É aquele com a bundinha da Jodie Foster no rótulo.
   O primeiro refrigerante que tomei na vida: Crush. E eu amava Neston ( outro que mudou de gosto ), leite em pó ( comido seco ) e pão doce de padaria. Ovo cozido com gema mole, linguiça fininha bem passada, marmelada de lata, lamber o tacho de fazer bolo...
   Alguém lembra das colchas de Chenille??? Dos biscoitos Duchen? Piraquê? Aymoré? Cadê?
   Eu tinha uma japona azul marinho e meu pai sintonizava o rádio em ondas curtas. Era pra pegar rádios distantes. Uma vez conseguimos pegar a BBC. Mas normalmente pegava o Paraguay e a gente ficava ouvindo guaranias...
   Com um jornal se fazia um chapéu de soldado e com uma folha de caderno um barco. Chovia e eu corria pra lançar os barcos na exurrada. Tive meu estojo de quimica. Tubos de ensaio e liquidos coloridos. Eu queria fazer com eles um monstro japonês. Sábados íamos à bica pegar água. Eram pesados os garrafões de vidro cobertos com palha. Será que não tinha água encanada no Morumbi? Mas o banho não era com chuveiro? Mistério...
   A festa junina era em casa. Fogueira onde meu irmão queimou o pé. Balão. Quentão. Tive calça rancheira e calça de brim. Calça rancheira era a calça de Far west. Do rancho. Eu gostava era da calça de brim e de blusas de gola "olimpica". Olimpica era a gola rulê. Aliás vamos falar a verdade, eu era vaidoso pra caramba! Tanto me chamavam de principe quando fui criança que cresci pensando ser o Ronnie Von.
   Quando meu pai morreu, em 2008, eu comprei Aqua-Velva pra sentir o cheiro dele. Decepção! A Aqua-Velva não tem mais cheiro! Virou um vidrinho de plástico, sem cheiro e sem cor. Será que o mundo realmente acabou?
   Ainda existem bobs de cabelo, papel carbono, mamadeira de vidro, naftalina, velha de luto com véu no rosto, Van Ess, Modess, Colorama? Filtro de barro, pinico de louça e cristaleira?
   Enquanto eu viver, voce viver, este mundo que não morreu, estará vivo. Mundo do quase nada, do insignificante, dos bloquinhos de montar, dos pinos mágicos, bolinhos de chuva e drops Dulcora. Mundo pequeno que dá luz ao mundo grande. Pequenês que teima em ser tudo. Que bom!!!!
  

RELATO AUTOBIOGRÁFICO- AKIRA KUROSAWA

   Em agosto de 1945, logo após a derrota do Império Japonês, Kurosawa, assim como outros 100 milhões de japoneses, esperava a fala do imperador no rádio. Como todos, Kurosawa esperava uma ordem de Hiroito. Nas ruas, as pessoas se preparavam, a expectativa era a de que todos se matassem. A vergonha da derrota seria lavada com o sangue. Espadas e facas eram afiadas. Kurosawa diz que no Japão todo "eu" era uma vergonha. O japonês se aplicava para ser parte de um todo, pensar em sua vida, em sua individualidade seria egoísmo imoral, falta de honra. Naquele dia o imperador, instruído pelos americanos, poupou seu povo. A ordem era a de reconstruir, esquecer, perdoar.
   Kurosawa fala das pessoas saindo às ruas sorrindo. A vida vencera.
   Esta biografia deste que é meu diretor de cinema favorito, é um belo exemplo daquilo que diferencia o Japão do Ocidente. Toda a trajetória de Kurosawa é marcada pela teimosia, pela obstinação e pela gratidão a seus mestres. Ele foi uma criança frágil, efeminada, tendo sofrido na escola a perseguição de mestres e de colegas. Mas ele era teimoso. Se aplicava nos esportes e passou a fazer kendô. Andava horas para ir a seus cursos e encontrou por fim um professor que o entendeu. O pequeno Kurosawa amava pintar, desenhar e ler. O pai era um ex-militar, professor de educação física. A mãe era a tipica japonesa submissa.
   Metade do livro são cenas curtas dessa infancia. Gostos de comida, dias de chuva, névoas e o amigo que era como um irmão. Kurosawa lembra com delicadeza, parece pintar as páginas do livro.
   Como a maioria dos mestres do cinema, ele se fez diretor sem querer. Arrumou um emprego de produtor e se viu como assistente de diretor. Yamamoto foi seu mestre. Ele descreve os basidores da indústria do cinema, macetes de fotografia e de edição. E louva os filmes que ele assistia então ( ele é fã de John Ford ).
   Kurosawa encerra o livro em 1950, quando Rashomon vence em Veneza. Termina para não ter de falar de pessoas e eventos muito vivos ainda. Se fecha em silêncio.
   Mas ainda houve tempo para falar da descoberta de Toshiro Mifune, um fenômeno da arte de atuar, um homem meio grosseiro que dominava a tela como ninguém mais. É bonito ler os louvores de Kurosawa, ainda mais sabendo que os dois estavam brigados na época do livro.
   Para quem ama filmes, eis um texto obrigatório.
   PS: Kurosawa é meu favorito porque ele une a aventura e o drama, a pura diversão e a arte mais refinada. Tem o visual apurado de Lean ou de Kubrick, a poesia de Dreyer ou Ophuls, a seriedade de Bergman e Lang e o heroísmo de Ford e Mann. Ele é uma enciclopédia.

A AURA DE WALTER BENJAMIN

   Os homens andavam durante dias para ver uma pintura numa igrejinha em cidadezinha da Toscana. Olhavam, e sabiam que apenas lá, naquele lugar havia a chance de ter tal experiência. O ambiente da igreja, seu clima e seu lugar eram parte da experiência. Ao ir embora o homem sabia que não teria essa visão em nenhum outro lugar. Aquela visão era carregada viva na memória.
   Os homens iam ver Beethoven reger ou Schubert tocar. E sabiam que não escutariam a sexta ou a quinta em nenhum outro lugar. Eles escutavam e tiravam daquele momento o máximo possível. Era um momento único na história de uma vida.
   É disso que fala Benjamim, da aura. Por mais distante que um artista ou uma obra pareça do mundo da aura, toda manifestação artística traz em-si a herança de algo que foi criado como manifestação religiosa. Fazer arte é tentar sair do cotidiano, do aparente e óbvio e procurar criar uma visão original, única, transcendente. Por mais biológico ou corporal que um artista seja ele no fundo é herdeiro dessa tradição humana. Mas, e é essa a sacada de Benjamin, uma arte que pode ser levada pra casa perde completamente sua aura. Deixa de ser um tipo de experiência única e particular e passa a ser produto consumível e sem nada de sagrado ou secreto. Explico.
   Quando criança nunca esqueço de uma manhã em que perdido no Morumbi, encontrei em meio a um capinzal, restos de cerâmica no chão. Em meio ao mato eu achei desenhos geométricos no chão. Meus desenhos, vistos só por mim, escondidos lá para mim. A sensação que tive foi de desvendamento de um segredo.
   Na adolescência lembro dos primeiros clips que chegavam ao Brasil. Queen, Stones, Floyd...Todos me emocionava e eu achava que só eu os conhecia e só eu assistia. Mais que tudo, não existiam videos do Led Zeppelin. Espertamente, eles não se deixavam filmar. Formava-se um mistério, imaginávamos como seria o Led em movimento, eis a aura de Benjamin. Quem os assistia ao vivo sabia que aquilo era só para eles. Não seria gravado, transmitido ou vendido. O Led ali, sobre o palco era experiência só do público fã. Os Smiths no começo fizeram o mesmo.
   Um livro com aura é um livro que voce pensa que só voce o lê. Filmes censurados e proibidos tinham essa aura e vê-los finalmente liberados era uma sessão religiosa. Poder ver O Atalante de Jean Vigo, filme pouco conhecido e pouco visto,  foi uma experiência de aura. Eu sentia que só eu em todo o mundo o amava.
   A aura se cria quando há um sentimento de intimidade entre voce e a obra. Quando voce sente que ela é sua, completamente sua, e que então ela passa a fazer parte de voce. E principalmente quando há um sacrifício para vê-la, um momento decisivo, ou voce vê ali e agora ou nunca mais.
   Havia aura na dificuldade em se ver um Mizoguchi ou um Cocteau. No Dante que li numa cabana no mato. Naquele video em super 8 de Woodstock.
   O que pode haver de aura num filme com mil cópias e dez milhões de olhos? Em pilhas de Dickens recém reeditado? No cd de Schubert tocado no carro e escutado no dentista? Que arte sobrevive a Van Gogh em calendários e Mozart em filminho de arte? Que aura pode haver em coisas baixadas aos milhões? Fáceis e desvendadas, sem segredos e sem a experiência do intimo?
   O meu disco raro do Velvet Underground atingiu 12 milhões de visualizações. Não é mais o meu Velvet. Nunca mais será. É do mundo. É real e corriqueiro. Continua maravilhoso como sempre foi, mas sem aura, sem mistério e sem o amargo/doce gosto do único. São milhões de ouvintes, milhões de opiniões, milhões de audições.
   Aura? Nunca mais.

FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING

   Filósofo do romantismo, Schelling viveu entre 1775 e 1854. Contemporâneo de Beethoven, Goethe, Schiller, Haydn, Kant, Hegel, Wagner, Novalis e Holderlin....para citar só a cultura de lingua alemã. Poderia ainda falar em Schubert, Mozart, Schopenhauer... toda essa multidão de deuses vivendo e produzindo durante a vida de Schelling. O ímpeto criador fertilizando as mentes e principalmente os corações. Porque?
  Falo agora do pensamento de Schelling e arrisco a hipótese de que seu pensamento espelha a corrente sensível que pairava na alma alemã de então. Vejamos...
   A natureza e a conciência são uma só unidade infinita.
   Essa unidade, identidade de contrários, é o absoluto. Natureza e consciência, objetivo e subjetivo não são um a origem do outro, ambos procedem do absoluto.
   A reunificação da natureza e da consciência é a tarefa da obra de arte, e só ela consegue apagar a aparente oposição das coisas, unindo-as numa suprema identidade, no absoluto.
   A inteligência teórica contempla o mundo;
   A inteligência prática o ordena;
   A estética o cria;
   A mais perfeita intelecção da verdade é a que brota da criação artística.

   Essa a filosofia que permeia todo o pensamento alemão de então. O artista, cheio de confiança e ambição, sente em si a missão de criar o mundo. Vê-se como centro e como nobre. Schelling formula a perfeição sua filosofia. Não importa se hoje ela é válida ou não, o que interessa é que ela serviu a um propósito e espelhou um apogeu cultural.
   A partir daí só recuamos.