GODARD/ TRUFFAUT/ RALPH FIENNES/ SOKUROV/ CUKOR/ ROSALIND RUSSELL

   BANDE À PART de Jean-Luc Godard com Frey, Karina e Brasseur
Livre como o fogo e filmado em locais gelados. Tem cenas em escola de inglês e nas ruas feias. Filmado em poucos dias, fala de uma dupla de ladrões que envolvem moça ingênua em crime. Várias cenas históricas: a corrida no Louvre, a dança no bar, o olhar para a câmera de Anna Karina. Adorado pelos diretores jovens dos anos 2000, confesso não ser dos meus Godard favoritos. Irregular ao extremo, perde o foco em vários momentos. Mas vale conhecer. Nota 6.
   FARENHEIT 451 de Truffaut com Oskar Werner e Julie Christie
Em sua bio Truffaut diz ter tido problemas nas filmagens. Falava mal o inglês e Werner tinha ataques de estrelismo. O filme é frio, distante, sem emoção. Mas está longe de ser um erro. No futuro os livros são proibidos. A TV é a grande ditadora. O livro de Bradbury acerta em várias antecipações: a ditadura do "bem estar", a tela sempre presente, o sexo como ginástica. Ainda recordo da impressão que me causou quando visto na TV Cultura, aos 15 anos. Hoje é apenas um curioso drama frio. Nota 6.
   PRINCESA POR UM MÊS de Marion Gering com Silvya Sidney e Cary Grant
Uma atriz fracassada se passa por princesa da Europa. O plano, armado por seus ministros, visa fazer dessa "nova" princesa algo de mais simpático aos americanos. Grant faz um repórter que se envolve com ela. Na época Cary Grant ainda não era Cary Grant. A Paramount ainda não sabia do star que tinha em contrato. O filme, classe B, é apenas uma bobagenzinha fofa. Nota 3.
   OS 3 MOSQUETEIROS de Paul WS Anderson
Dumas para teens. O visual é da França de Richelieu, mas as pessoas e os fatos são dos EUA de 2012. Absolutamente desinteressante. Nota ZERO.
   CORIOLANO de Ralph Fiennes com Ralph Fiennes, Gerard Butler e Vanessa Redgrave
O texto de Shakespeare transposto para hoje. O mundo como lugar de conflitos e de revoltas. Estranho ouvir os versos ditos em 2012.... Eles acabam por funcionar. Dão ao drama a profundidade e a eloquência do bardo inglês. O problema é que o visual do filme é excessivamente rebuscado, ofusca o trabalho dos atores. Bela tentativa de Fiennes. Nota 6.
   O SOL de Sokurov
Nenhum diretor em atividade é mais corajoso que o russo Sokurov. Ele não faz a mínima concessão. Aqui ele acompanha o imperador do Japão nos dias em que é obrigado a se mostrar como "humano". O que vemos é um homem-criança perdido em dias e salas. Lento, simples, solene, real, rebuscado. A arte de Sokurov não conhece limites. Nota 7.
   OS REIS DO SOL de J.Lee Thompson com Yul Brynner
Um desastre! Tribo Maia viaja aos Eua e toma contato com indios de lá. Brynner, hiper-vaidoso, é esse indio. Uma chatice.... Nota Zero
   ESCOLA DE SEREIAS de George Sidney com Red Skelton e Esther Willians
Um rapaz volta a escola para tentar convencer a esposa, que lá trabalha, a voltar para ele. O filme é um musical sem vergonha. Brega ao extremo, mistura comédia, dança, jazz, burlesco e carnaval. Me lembrou chanchadas da Atlântida. Antes da TV, um filme como este era o equivalente a zapear por vários canais. Nota 6.
   AS MULHERES de George Cukor com Norma Shearer, Joan Crawford, Rosalind Russell, Joan Fontaine e Paulette Godard
Caso único: um filme que só tem mulheres. Em duas horas não vemos o rosto de um só homem. Nem como figurante. O que se mostra são as fofocas, os dramas e as invejas de um bando de mulheres ricas e casadas. O centro é uma "boa esposa" que perde o marido para uma predadora. É óbvio que a boazinha é Shearer e a má só podia ser Joan Crawford. De pior o filme tem seu moralismo tolo e atrizes irritantemente compostas ( Shearer e Fontaine, duas estrelas insuportáveis ), de melhor há a presença da esfuziante Rosalind Russell ( uma das maiores comediantes da história, ela é adorável ), e o sex-appeal de Paulette Godard, uma das mais interessantes atrizes da época. Cukor foi um grande diretor de mulheres, ele penetra no mundo de salões de beleza, almoços entre amigas e quartos de vestir. Bom gosto e bons diálogos. Nota 7.

O MONO GRAMÁTICO- OCTAVIO PAZ, AS PALAVRAS E A PRESENÇA...

Em meu primeiro ano de faculdade, era 1984, lembro que nossa excelente professora de português nos mandou fazer uma redação baseada na apreciação do Bolero de Ravel. Após ler aquilo que eu escrevera, um texto confuso sobre sonho, engano e verdade, ela me aconselhou a ler Octavio Paz, autor que ela considerava formular as mesmas questões que me inquietavam. Ela acertou. Mas só comecei a ler Paz nos anos 2000. Este é o quarto livro que leio desse autor mexicano.
Diplomata, ele servia na India quando escreveu este enigmático e lúcido texto. É um relato de viagem? É poesia? É filosofia? Quem sabe? Paz anda pelo caminho de Galta e vê uma parede suja e ruínas de um palácio. Macacos e homens nús que se pintam com cinzas humanas e com bosta de vaca. Uma mesa no vizinho e uma sombra de fim de tarde. Tudo lhe causa impressão. E tudo lhe faz questionar o tempo, a escrita e as coisas.
Somos seres que pensamos o mundo, olhamos e nos vemos no mundo, narramos o mundo, mas a angústia é a de que o mundo não nos vê. A tarde e a árvore são indiferentes a nossa presença. Não nos conhecem, ignoram. A tarde a a árvore podem ser destruídas por nós, feitas um nada, e mesmo assim continuarão a ser ignorantes sobre quem somos. Exilio.
A linguagem nos exila da vida. Ao dar nome a árvore não mais podemos a ver. As palavras tecem um véu entre a coisa, que não tem um nome, e o nome a que a nomeamos. O que vemos é uma árvore e não aquela árvore. A vida é uma linguagem, mas a linguagem não pode ser uma vida. Esse o tema principal do livro. A linha da escrita e do pensamento se tece no tempo e na materialidade do começo/meio/fim. Mas a árvore não conhece e não exite nessa linha. Nós a vemos em palavras e linhas, ela não é isso. Nos é inalcansável.
Mais: o eu foge  de nós. Nunca nos sabemos como eu. Passamos a vida a procura desse eu que foge por não ser explicável e traduzível em palavra. O vemos e então ele já se foi. Mas entre aqueles homens sujos, que sabem que nossa voz "é apenas um ruido como o ruido dos macacos e dos periquitos", ele percebe o estar-estando, o ser-sendo.
Eles andam pelas estradas da India, como seus avôs faziam e como seus netos farão. Não há uma linha ali, há um momento que vence o tempo. O agora é ontem que é amanhã. A linha se faz um caracol. Vida que prescende da palavra. O homem sem nome que está como a árvore. Reconciliado. O agora é um agora desnarrado. Sempre o mesmo e jamais igual.
Os animais falam entre si, mas nós falamos com as coisas e com nós mesmos. Nunca estamos calados e nunca conseguimos dizer aquilo que quer ser dito. Falamos esse discurso na árvore, na tarde e na Lua. Eles não.
A poesia tenta dizer o real e não pode. Ela não nomeia o que não tem nome, ela "desnomeia" as coisas. Faz o processo enlouquecedor de tirar das coisas seu nome. Rasga o véu da linha e tenta restituir a árvore sua condição verdadeira. Não consegue, mas toda poesia continuará tentando. Fazer da linha um momento que não passa e não corre.
Problema da escrita: ao ser lida ela se desfaz. Lemos e misturamos as linhas, interpretamos, sentimos, destruímos. Esquecemos. Lemos a árvore a ao lê-la deixamos de ler a árvore. E por ter sido lida ela não poderá ser o que é. Será um texto destruído. A árvore não é uma palavra, mas fazemos dela uma palavra, e lendo essa palavra perdemos a palavra. Dupla perda.
Paz fala ainda de sexo, do corpo. Pois mesmo um corpo nos é inacaptável. Vemos partes, uma coxa, uma boca, um sorriso, mas não vemos a totalidade do corpo. Ele sempre será fragmento, silaba de um discurso.
Livro que pode ser lido em fragmentos aleatórios, prosa em poesia, Paz pensava o próprio ato de pensar e escrevia sobre a razão de se escrever. Ele desconfia das palavras, vai contra os linguistas, diz que as palavras nada dizem, que a verdade sempre escapa, que o dito é o desimportante. Que a verdade não consegue ser pensada em linguagem. Octavio Paz nunca teve medo. Questiona o que vê, o que aprendeu e até o que sente. Em nosso mundo de texto e de imagem virtual, Paz faz uma falta tremenda.

WHITE, WHITE, JABOR, DR.REY, FRASIER, QUEEN E VITÓRIA

Arnaldo Jabor escreveu ontem sobre a experiência de se assistir um filme de ação hoje. Ele fala do ruído, do movimento sem parar, da aversão ao pensamento. As duas horas que satisfazem plenamente, mas que deixam um vazio após a experiência. Quando o filme acaba, nada fica com você. Faltou Jabor falar que o efeito desse cinema sobre a mente é idêntico ao efeito da droga. Euforia, adrenalina e depois o silêncio vazio. Vem então a dependência e a aversão a lentidão e ao tempo-morto. O cinema não é mais relevante. Ele é um tipo de passatempo oco, que ainda impressiona algumas pessoas que não conseguem ler, e usam o cinema "de arte" como grife de cultura. O cinema dito "de arte" é ainda mais vazio que o cinema de ação. Vende tédio como sofisticação, ideias velhas como coragem e absoluto narcisismo impotente como estilo. É também uma droga que deprime, acalma, pacifica. Blá!
Um milagre aconteceu! Jack White conseguiu alguns anos atrás criar um riff que se tornou tão popular como Smoke on The Water ou Satisfaction. O riff do White Stripes é cantado em todos os jogos da Euro. Um riff de rock se fazer hino é coisa que não ocorria desde 1980, quando Back in Black virou tema de jornal. Isso faz com que eu lembre de 1977, quando em meu curso de inglês tivemos aula sobre um single recém saído. Ele tinha de um lado We're The Champions e do lado b, We Will Rock You... Quem diria que naquele vinilzinho vivia a trilha sonora de todo o esporte das décadas seguintes?
Dirigir de manhã cedo escutando Barry White....em seu tempo ele era uma vergonha, hoje é chic. Eu sempre achei ele o máximo!
Mostra de filmes de Satiyajit Ray. Por um real. A Canção da Estrada é um dos mais originais e belos filmes já feitos. Obrigatório para quem nunca viu, Ray é um nobre fazendo cinema. Um quase deus olhando a miséria da vida. E se pondo em meio a seu povo. E tem uma trilha sonora de chorar de alegria. Filmes como esse fizeram do cinema uma arte central. O tacho que se raspa hoje é o tacho feito por Ray e muitos outros.
Um amigo elogia a série vitoriana da TV. Engraçado como as novas gerações só aceitam novidades vindas em pacote televisivo. Orgulho e Preconceito é a era vitoriana em seu aspecto mais bonito. Mas ninguém viu. Já a tal série.... Meu amigo sacou que aquela época é um calmante para nossos tempos. Sim. Etiqueta, valorização do "melhor" e segurança social aparente. Eu creio que o fascínio pela época de Vitória e de Eduardo vem das porcelanas e dos guarda-chuvas. Aqueles ambientes de janelas embaçadas, sofás de veludo e lareiras imponentes dão um sensação de conforto e de consolo irrecuperáveis. O Discurso do Rei exibe a fratura que matou e enterrou esse mundo. My Fair Lady é o melhor retrato desse tempo em filme. Eu amo os livros escritos nesse tempo. E.M.Foster, Conrad, Wharton, Henry James, Woodehouse....
O Saturday Night Live se revela absoluto fiasco. Pena.... Erro de cálculo. Botar um programa de humor em concorrência com bundas, sensacionalismos e a hipnose de Silvio Santos é missão inglória.  Domingo a noite é horário de vlae tudo pela audiência. Mundo cão x Mundo idiota.
Dr.Rey é o ponto mais baixo que podemos chegar?
Reassisto Frasier. O segredo de uma série de TV, aliás, o segredo da TV, é a amizade. Gente na sala, na tela de TV, se torna um tipo de amigo consolador. Se o cara na TV consegue criar esse vínculo, vem o sucesso. No cinema ninguém precisa criar amizade pelos tipos na tela para os aceitar. Na TV não é assim. A gente os recebe em casa. O Dr. Frasier é o amigo que eu queria ter. Penso que quem ama House ou amou Friends sentiu o mesmo. É por isso que a TV nunca poderá ser completamente arte. A ofensa e a provocação antipática são impossíveis na TV. Por mais crua e sanguinolenta, sempre haverá um cara bacana e uma mocinha bonita no meio da coisa. Um amigo pra se ver em casa.

PONTO ÔMEGA- DON DELILLO

   Numa galeria há uma instalação. Numa tela, o filme Psycho de Hitchcock é exibido em velocidade lenta e sem som. O filme passa a durar 24 horas. O livro começa nessa exposição. O tema é o tempo, o tempo como convenção e o modo de se modificar sua existência.
   Num deserto. Um velho. Ex-conselheiro de guerra. Na verdade é um intelectual que se fez conselheiro no Iraque. E um jovem. Que tem um projeto de fazer um filme com esse velho. Um filme sem cortes, em tomada única. "Como Sokurov em A Arca Russa", diz o jovem cineasta.
   Nesse deserto desaparece uma pessoa.
   O livro é isso.
   Um momento no tempo. Curto, 100 páginas, sufocante, cheio de ideias obscuras. Se voce quer começar a ler Delillo é este o livro. Não por ser o melhor, mas por ser o menos trabalhoso. Ele observa a vida de agora com ira. Ira fria.
   Incomoda.

A VIDA DO CORPO

   Li um texto em jornal, de J. Coutinho, onde ele fala da tomada de poder do corpo. Com o fim da idade religiosa, o que vemos hoje é a ditadura do corpo e assim vivemos suas leis como verdade única.
   Tudo em nós é então voltado aos valores corporais e tentamos o impossível, dar sentido à vida pela via biológica. Tudo se torna corpo: emagrecemos ou sofremos com nossa gordura, nos enfeitamos e passamos a vida toda preocupados com nossa aparência. Ser feliz passa a ser conseguir ser bonito, saudável e com atividade sexual plena. Tatuagens, piercings, centenas de sapatos, cirurgias plásticas, maquiagem, academias de ginástica; esses passam a ser os mantras do corpo. O espelho se torna o altar, o cirurgião plástico e o personal trainer são os pastores.
   Felicidade é ter saúde, sorrir com dentes brancos e "parecer" feliz. Neste mundo que matou a alma, tudo se resume a nosso corpo. Procuramos nele a felicidade, o bem e o sentido. O que ele pode nos dar? Óbvio, ele nos responde com suas limitações, tudo o que ele pode nos dar são prazeres efêmeros, prazeres corporais. Passamos a crer então que a vida em sua totalidade é este corpo, que ela existe dentro desses limites, que a vida é apenas isso, eu e a relação com meu corpo.
   Nesse mundo corporal nada pode ser mais temido que o mundo da alma que o nega. Se o corpo é imediatista, temporal e óbvio, o mundo da alma lhe parecerá sem razão, atemporal e incompreensível.
   Não tenho o menor interesse em saber se há ou não uma alma. O que falo é de alma como tudo aquilo que não é carne e exterior. A religião é criadora e ditadora desse mundo. Quando a matamos, instituimos outra ditadura, a corporal.
   No reino da alma a busca não é por beleza, saúde e vida longa. Procura-se honra, tradição e o salvamento da alma. Se hoje ansiamos pela sobrevivência, creia, houve um tempo em que a vida da alma era o objetivo. O corpo era para ser escondido, negado, ignorado. A alma era a grande preocupação.
   Interessante notar que hoje é o oposto em sua forma mais radical. Esconde-se qualquer sinal de vida interior, a alma é negada, escondida e silenciada. Ninguém se guiará por honra, por uma tradição ou pela salvação. Os valores serão sempre o prazer, a saúde e a beleza física.
   Começo um livro de um muito importante autor atual que eu nunca lera ( mas de quem ouço falar a vinte anos ), Don Delillo. Nessa novela o personagem principal diz que caminhamos para a volta à pedra. Que desejamos retornar a condição de coisa, que nosso corpo ansia pela não-consciência de si, pelo não-ser. Tornar-se um tipo de pedra, que jamais deixa de estar lá, e que não pensa em si-mesmo, uma coisa em repouso. Para Delillo, nossa história é a jornada de matéria que criou auto-consciência, e que ao fechar seu ciclo se fará matéria sem consciência outra vez.
   O texto de Coutinho se casa a perfeição com essa ideia de Delillo.
   No fim do texto o brasileiro diz que não devemos reclamar da vida vazia e sem sentido. Essa é a vida possível ao corpo e nós a criamos e apoiamos todo o dia. Comer, dormir, gozar. Se enfeitar, se cuidar, ficar forte, reproduzir. Fora disso, nada. Eis a vida corporal.

EU ME LEMBRO, SIM, EU ME LEMBRO- MARCELLO MASTROIANNI, VIVO, BELO E PROFUNDO

   Quando em 1996 Marcello Mastroianni foi a Portugal fazer aquele que seria seu último filme ( foram 170 ), uma pequena equipe foi com ele, para fazer o belissimo documentário que tem o nome igual ao deste livro. Os nomes só poderiam ser iguais, pois o livro é a transcrição do texto que é dito na película.
  Marcello solta a memória e viaja por lembranças. Não há nenhuma ordem cronológica e não se faz nenhuma pergunta. Ele fala aquilo que sua lembrança diz e coisas como casamentos ou amores ficam de fora. Cinema, infância, sonhos, medos, viagens, frustrações e amigos. Esses são os temas aos quais Marcello viaja. Fala sem pretensão, nunca procura ser sábio ou original; e acaba por ser cativante. O livro, que pode ser lido em duas horas, é tudo aquilo que o livro sobre Clint Eastwood não é.
   Talvez os dois livros demonstrem a diferença entre Clint e Marcello. Mais que isso, a diferença entre uma visão de vida á americana e à italiana. A história de Clint é objetiva, cronológica, sensacional e cheia de fatos. Marcello é subjetivo, foge da cronologia, conta coisas inuteis e viaja em ideias e sonhos.
   Ele recorda a mãe, o avô carpinteiro, o cheiro da madeira. As ruas de terra, as meninas. Fala de Tchekov, de Kafka, de Stendhal. Recorda Visconti, De Sica, Monicelli e Fellini. O modo maravilhoso de filmar de Federico Fellini. Uma festa nos sets, tudo em improviso, sem roteiro e sem falas, apenas breves instruções, o amor de Federico pelas pessoas, pelos rostos, pelos tipos ricos e diferentes. A imaginação que crescia sem parar, que aumentava tudo, que engolia o mundo.
   Mas o livro é de Marcello, um ator que ama Gary Cooper, Astaire e Clark Gable, mas que diz ser o cinema de seu país o melhor já feito. O cinema italiano tem mais vida porque tem espaço para o improviso, para o acidente, para a criação em grupo, sua pobreza faz dele mais colorido e muito mais real. E nesse mundo criativo nasce o cinema como caldeirão de misturas, uma sopa de ideias.
   Mastroianni foi central nesses 30 grandes anos do cinema da Itália. Seu rosto nos filmes de Germi ou de Scola o colocam como ícone. Cinéfilos tendem a adorar certos rostos. Bogart, Brando, Buster Keaton, Jean Gabin, Toshiro Mifune, Max Von Sydow e uns poucos mais. E no centro o rosto de Marcello, face vista em dezenas de filmes eternos.
   Para quem desejar entender a arte de Marcello aconselho que comece com DIVÓRCIO À ITALIANA de Germi.  Depois adentre aos Fellinis, Viscontis e De Sica.
  Memórias são nossas. Nada é mais nosso, nos pertence de forma mais completa que a memória. Ele cita uma canção dos navajos que fala disso. Deixo-a como um canto a esse ator perfeito e homem admirável:
  "Guarde na memória tudo aquilo que voce viu/ Porque tudo aquilo que voce esquece/ Torna a voar com o vento"
   As memórias de Marcello agora são um pouco minhas também. Salvas do vento, aqui comigo.
   Bela leitura.

CLINT EASTWOOD, NADA CENSURADO- MARC ELIOT

Acabou de sair no Brasil, pela Nova Fronteira esta bio sobre aquele que é, talvez, o maior astro vivo do cinema. Eu falei astro, não ator, e eu sei que hoje Brad Pitt ou Will Smith atraem mais público, porém Clint é uma estrela desde 1966!!! Mas, que pena, este livro é um lixo e aconselho a que não leiam. O retrato que Eliot pinta é sem cor, sem brilho, sem nenhum interesse. Terminamos de ler e quase nada conhecemos sobre o homem, o que aprendemos é apenas aquilo que os jornais falaram nessas décadas.
Clint nunca sonhou com o cinema. Foi levado a ele "sem querer". Gostava de filmes e de jazz, principalmente William Wyler, Billy Wilder e John Ford. Era bonitão e acabou sendo "achado" por empresário de atores. Pontas em filmes classe Z, e o estouro numa série de TV. Clint é até hoje o ator vindo da Tv que mais deu certo na telona. Foi pra Itália, fez os três westerns com Leone e o resto é lenda.
Ele entra na década de 70 como a maior atração de bilheteria do cinema, posto que mantém até o meio dos anos 80. A crítica adorava odiar seus filmes, o público amava. Clint Eastwood criou três tipos que passaram a ser imitados a exaustão: o solitário sem nome e sem história, o vingador violento e aterrorizante e o caipira perdedor. Em cada um deles ele chegou ao extremo, fez o mais solitário dos homens, o mais cruel dos heróis e o mais ingênuo dos caipiras. E só a partir de 1992 é que afinal crítica, Oscar e colegas passaram a ver o quanto ele era central no cinema atual.
Vaidoso, mulherengo, egoísta. Clint é um maníaco por comida saudável, por dietas, vitaminas e ginástica. Segue um programa para viver até os 150 anos. Clint tem sete filhos com cinco mulheres diferentes. Manteve casamentos com amantes, filhos escondidos, namoradas abandonadas, e foi sempre sovina em pensões e reconhecimento. Seduzia suas atrizes e as descartava ao fim do filme. Um Don Juan sem romantismo.
Foi prefeito da cidade de Carmel nos anos 80. A antiga prefeitura proibira o sorvete de casquinha nas ruas e ele se candidatara apenas para liberar a volta do sorvete. Tomou posse, liberou o sorvete e se desinteressou pela administração. Amigo de Reagan, a América pensou que ele seria o futuro lider conservador do país. Necas. Clint é individualista, se diz nem republicano e nem democrata.
O livro gasta páginas e páginas para falar de processos de divórcio, batalhas por direitos e jogos de poder. É chatíssimo! E tudo o que fala de menos árido é o que falei acima. Sem nenhum humor e arranhando muito de leve a superfície, o que Eliot passa é a imagem de um homem desinteressante, desinteressado e sem vida interior. Óbvio que não é defeito de Clint ser assim, com certeza é problema do livro ser escrito de forma desinteressante, desinteressada e sem vida.
Clint Eastwood é famoso por fazer filmes que sempre custam menos que o esperado e que são filmados em poucos dias. Ele faz tudo com pressa, sem grandes preparações ou pretensões. E acerta. Tem instinto. Marc Eliot não tem. O livro parece escrito a duras penas, com dificuldade, sem prazer algum. Ele erra.

O MAR- JOHN BANVILLE

   Vencedor do Booker Prize em 2007, este livro apresenta um grande problema: sua metade final. Ele arranca cheio de promessas e de belíssimas imagens, e então cai numa maçaroca de auto-piedade e de vazio sem porque. Se perde. Banville nega aquilo que tem de melhor e aceita a vulgarização da vida e da morte. Faltou coragem a esse bom autor. Se no meu texto abaixo falei que ele era um dos melhores autores vivos, digo agora, ao terminar seu livro, que ele não é um dos melhores. Frustrante.
   Um homem viaja para uma praia. Sua esposa acabou de morrer após longa agonia. Na praia ele se recorda do fim de sua infãncia e de momentos de sua vida adulta. Por todo o primeiro terço do livro, temos uma encantadora sensibilidade. Cheiros, cores e vozes são nos dadas de presente. Banville consegue fazer com que lá estejamos com ele. Mas de repente ele se perde. Abre mão de sua fantasia e sucumbe ao comum, longas descrições do nada, de fatos sem o menor interesse e sem arte. Quando Banville perde o interesse pelo jovem personagem o livro sucumbe.
   Bons livros crescem durante a leitura. Livros excelentes já começam em alto estilo e conseguem subir ainda mais. Obras de gênio continuam a crescer após fecharmos a capa. Este não é ruim, é impotente. Promete e desiste. Contenta-se com muito pouco.
   Pena.

SOBRE A CASA DA JOÃO MOURA EM PINHEIROS

Voce olhava pelo portão alto e o que via?
Uma alameda ladeada por árvores altas que sombreavam o cascalho do chão. Depois um gramado e a casa que começava com uma escadaria de mármore branco e dava seu primeiro sinal em azulejos azuis e janelas de vidro colorido. Tudo ali era detalhe e a casa nos convidava a pensar e a ver. Formara gerações, histórias sendo vividas e pedindo para que as revivêssemos. Dava para se escutar as vozes das crianças que brincavam ao redor dos muros e a buzina de um Ford que passava sonolento pela rua.
Mas é hoje e o que importa é o que é visto neste momento. A casa quebrava a monotonia de ruas idênticas, descartáveis em sua procissão de prédios sujos, caixotes de concreto e sobradinhos aos pedaços. Ruas alinhadas ao acaso, postes intrusos e fios que embaralham a vista. Mas ao avistar aquele portão de ferro, alto e com a sombra de cipestres e pinheiros, voce parava e tinha o convite de reentrar numa narrativa. A casa existia, se afirmava como história, dizia das mãos que a fizeram e dos olhares que a acariciaram. A música risonha de suas tardes de sábado em que as crianças se sujavam no quintal e folgavam antes do banho na banheira rosa, e os chás da tarde em que a avó pensava nos chás de outro tempo. Missas de domingo e o leite entregue pela carroça com um cavalo negro. Nos quartos havia o som das tábuas do piso, elas rangiam e anunciavam os passos do pai de bigodes duros.
A rua se adormecia.
Hoje entre o lixo de papéis velhos e de carros sebentos, a casa sobrevivia lembrando a quem soubesse lembrar de que homens são uma história. Homens narram e quando deixam de narrar morrem. Mesmo que continuem a comer e a dormir, estão mortos. Homens sem história são carcaças. Um mecanismo de presentes sem fim, destruindo e fazendo, erguendo e desfazendo, esquecendo sem parar nunca de esquecer. As pessoas passam pela rua, agora, e não ficam. Suas vozes não permanecem. A casa permanecia. Nos lembrava de que alguma coisa deve perdurar. Testemunhas existem. Trazem a afirmação de que a vida agora poderia ser mais. Se a vida era mais sendo menos, ela agora poderia ser muito mais sendo um pouco menos. A casa cantava baixinho nas noites que de tão iluminadas destruíram as sombras.
Então agora eu olho o portão e o que vejo?
A alameda enlameada e as árvores como galinhas de granja que esperam a hora. Meus olhos percebem um monte de tijolos e mais nada. Tudo o que era contado se transformou em silêncio. A melancolia de histórias antigas estapeada e feita apreensão de novo decreto. O ar toma o espaço onde lembretes vicejavam. O cuidado de uma narrativa, agora violada. Marcas de rodas onde antes pés descalços se pertenciam.
O homem odeia a beleza porque ela o recorda seu triste fracasso. O fracasso humilhante de não saber ver. O homem que olhava e nada ouvia naquela casa, obteve sua suja vingança. Reduziu a nobreza à altura de sua insignificância. O caso não é mais o de não conseguirmos construir a beleza, a coisa piorou, e hoje não sabemos amar a beleza. Aquele monte de tijolos é como uma antiga princesa estuprada e caída numa rua qualquer. É como o riso de dentes podres de um rufião vingativo.
No lugar da casa me dizem que será feito um shopping center.
Ando lendo John Banville. Pode colocá-lo entre os três maiores autores vivos. Ele sente como eu.
     

RAYMOND CHANDLER E O ADOLESCENTE EM NÓS

   Raymond Chandler cresceu como um almofadinha. Um menino mimado que estudou na Europa. E então, surpreendentemente, se viu na maturidade como pai de Marlowe, um dos detetives durões da literatura noir. Chandler era o oposto de Marlowe. Marlowe era aquilo que Chandler imaginava que seria o "ser um homem". E nessa atitude adolescente reside o fato de ele ser tão importante até hoje. Ele dá voz ao sonho de QUASE todas as gerações mimadas do pós-guerra. Escreveu aquilo que todos nós imaginamos ser a real vida do homem urbano de ação. Uma rede de ladrões, prostitutas, falsas virgens, ricos sacanas e solidão estóica. Tudo bobagem. A realidade de Chandler é tão real quanto o cinema de Tim Burton. O que eles criam é bom, muito bom, mas é irreal. Chandler trabalhou o sonho de adolescentes de 1945. Burton, com seus filmes que são todos como quartos vitorianos de bebês insones, deu imagem ao sonho ruim de teens de 2000.
   Hammett é muito mais sólido que Chandler. Porque Dash esteve lá. Foi detetive e foi parte da sordidez. Chandler tem um pé na tradição inglesa do conto de detetive. Ainda há algo de mental nele, de puramente dedutivo. O problema é que Chandler é fraco em lógica. Seu mistério nada tem de tenebroso. A solução do crime é sempre frustrante, não se produz o "Ah!" de Conan Doyle. A arte de Chandler reside em sua descrição. Acabamos por penetrar e fazer parte do ambiente que ele descreve. Após ler Chandler nos sentimos muito mais machos. Intuitivamente ele tocou no nervo adolescente de todo proto-homenzinho urbano. O desejo de ser um cafetão, um jogador de poker de beira de porto, um velho marujo, enfim, um cara frio vivendo em perigo, um cara com história pra contar.
   Esse tipo de ideal está hoje quase extinto. Mas foi lei em várias décadas. Penso que foi substituído pelo ideal do homem saudável. Nada de cafetão, jogador ou marujo. O cafetão lembra aids, o jogador lembra cigarro e doença mental e o marujo é um velho com câncer de pele. Mas entre 1945 e 1985 essa ideia do homem marcado, meio sujo e muito estiloso era o objetivo. Chandler ajudou a criar esse ideal.
   O cinema adorou. Chandler escrevia ao estilo "cortes e sets". Pedia por um ator tipo Bogart ou Lancaster ( na verdade ele sonhava com Cary Grant, o que mostra a diferença entre Hammett e ele ).  Quando Marlowe surgiu nas telas na pele de Humphrey Bogart estava completo o feitiço. Todo homem com cojones seria Bogey.
   Autores policiais continuam a seguir a trilha de Chandler. E de Hammett, Cain, Goodis... Irônico é pensar que o melhor autor no estilo noir acabou sendo Patricia Highsmith, uma mulher....
   Ler Chandler hoje é lembrar de uma masculinidade perdida. Fria, sórdida, cheia de bebida, fumaça e ruas escuras. E que traz embutida uma nobreza modesta, a sensação de um dever que será cumprido. É um mundo que nunca existiu. Mas a qualidade de uma época não seria medida pela ilusão criada?

SINDBAD, O TERRESTRE

    Sinbad O marujo; desse todos já ouviram falar. Mas Sinbad, o Terrestre foi esquecido. Pois acabo de o ler. Escrito na mesma época, por volta de 780/800 de nossa era, e talvez composto pelo mesmo autor, temos aqui, como no outro Sinbad, o dominio do maravilhoso. Tudo pode acontecer. Mulheres viram pássaros, cavalos voam, o tempo corre, reinos malditos e reinos do bem, magos e demonios. A diferença do outro Sinbad é a de que este é muito mais sofrido, muito mais poeta e se trata de um adolescente dominado pela paixão.
    Ele é enganado por um velho alquimista e se vê deixado em montanha, para ser devorado por pássaros. Escapa e começa aí sua saga. Ele cruzará a China e atingirá o Japão, reino que na época era considerado o mais misterioso do mundo. A paixão o move. Se apaixona por princesa ao vê-la de banhar. Interessante ver que o amor dos dois é flagrantemente sexual. Nada disfarça o caráter carnal do amor de Sinbad, ele quer o corpo da princesa e a rapta para poder a seduzir. Quando eles se separam o que ele sente é a nostalgia das pernas e do sexo dela.
   O livro se passa na rota da seda, estrada que ligava a China ao mundo árabe. O comércio mandava na região, a salada de linguas e de religião. O islã, movimento ainda recente, é reafirmado em cada aventura, e costumes arcaicos são revividos. O mais encantador sendo o da vizinhança. Se voce encontra alguém na estrada deve servir essa pessoa, pois foi Deus quem a colocou em seu caminho e portanto voce tem uma divida com ela. Várias peripécias do livro se pautam por esse costume.
   É interessante também tomar contato com um mundo onde os sentimentos explodem livremente. As pessoas sofrem até desmaiar, choram por semanas e se jogam á vida sem exitação. Há uma absoluta crença na vida, as coisas não são postas em dúvida, tudo é aceito e vivenciado. Sinbad viaja, e como viajante se joga à vida que se oferece.
   Ele amadurece nesse caminho, os anos passam, tem filhos e acaba por voltar a seu país ( o Iraque ), onde a mãe o reencontra. Viajamos com ele, em meio a poesia amorosa e de saudade, vemos o que ele vê.
   Belo livro de uma coleção de textos antigos da Martins Fontes. Vale muito procurar.

MUITO TEMPO ATRÁS O MUNDO ERA ASSIM...

    Ser triste era um charme. Já era uma tristeza fake, mas olhos lacrimejantes e poucas palavras eram sinal de beleza. Bowie, que era um tipo de juiz de elegância, dizia que a beleza só era possível onde morasse a tristeza. Dizia, porque ele faz agora o que, inteligente que é, deve fazer: sair de cena; e em época de hiper-exposição, faz-se o silêncio... Mas voltando a meu tema...
    As pessoas modernas de então tinham de ser deprimidas e tinham de fazer terapia. Todo mundo frequentava analistas. E todo mundo tinha mapa astral. Essas pessoas nunca saiam em fins de semana. E essa é uma das mudanças que mais me assombram: as pessoas modernas saem sexta e sábado!!!! Se saía às terças, quartas e quintas. Os outros dias eram para a ralé. Tanto que nos fins de semana tudo era mais barato. A gente dava risada de quem marcava saídas sexta-feira.
   Amigos marcavam pré-balada em casa. Voce ia à casa de alguém e bebia lá. Ou fazia outras coisas. Ás vezes até terminava de se produzir. Mesmo heteros davam uma importância imensa ao visual. Armani, St.Laurent, Yes Brazil, Forum, Soft Machine ( era minha favorita ), Ellus, e um monte de marcas "do Rio" que sumiram. Ah...esqueci da Benetton!!! Então voce ia na casa do amigo e ouvia música ( Bowie ) enquanto bebia e se aquecia para a noite. Aliás, não se usava a péssima palavra "balada". Balada era tomar droga em grupo ou ir viajar à praia.
   Se ia muito à casa de amigos. Conversava-se muito. Conversas de seis horas eram coisa banal. E o assunto era sempre o eu emocional. Qual a minha praia, pra que eu existo, onde devo me achar. Como eu disse, ser triste era chique. A cocaina mandava e era considerada droga de rico, coisa hollywoodiana. O povão ia de maconha e cola. Ninguém tinha 200 amigos virtuais, então eram uns 20 amigos do peito. Se telefonava muito, onde se conversava por horas e em natáis e aniversários se enviava cartões. Eu mandava flores para meninas. Com cartões românticos. Sinceros. Espero que alguém os tenha guardado.
   Um disco era para se ouvir inteiro, lado um e lado dois. Lia-se a ficha técnica. O nome do engenheiro de som era muito importante. A música era levada muito a sério. Ao tirar o celofane do vinil voce tinha a sensação de estar desvirginando uma sacerdotisa grega. O cheiro de disco novo era como incenso. O lançamento de novo clip era cerimônia compartilhada com os 20 amigos.
   Na minha faculdade tinha gente que via espiritos. Tinha gente que havia morado no mato sem comunicação com ninguém. Tinha gente que tomava LSD para ver um deus. Todo mundo era meio louco. Não a loucura do toc ou da deprê, era a loucura da esquizo. A cidade parecia um manicômio.
   Alguns amigos usavam cabelo roxo e outros calças rosa com sapatos azuis e vermelhos. Isso não seria nada demais não fosse o fato de que eles transformavam esse visual em politica. A ideia de um novo mundo.
   Os criticos de cinema não falavam de filmes pop. Batman ou De Volta Para o Futuro eram ignorados. Critico falava de arte, bilheteria ou fofocas de ator não interessavam. Criticos eram metidos, arrogantes e adoravam fazer um escândalo. Metiam o pau sem dó. E chamavam de deuses a quem amassem. Os sentimentos eram exaltados.
   As casas noturnas tinham garçon. E ninguém pagaria o mico de fazer fila. Fila!!!! Ora, que humilhação!!! Em aviões, cinemas ou boates, voce tinha a mordomia assegurada. Espaço e alguém te servindo, isso era a mordomia.
   As profissões mais IN: arquiteto, artista plástico, fotógrafo e cineasta. Jogador de futebol NÂO era levado a sério, assim como artista de TV ou cantor popular. Ensaio de moda com jogador ou noveleiro, nem em sonho. Sim, foi tempo de extremo esnobismo. Asfixiante esnobismo. Regras de beleza e de charme a granel.
   Comprava-se muito menos livro, se lia mais. Escrevia-se menos, sabia-se escrever melhor. Havia vazio para pensar e para aprender. Se os cinco canais de TV não tivessem nada pra ver, se o cinema não exibisse um filme bom, voce era obrigado a não fazer nada. Então voce lia, ou ia à casa de um amigo, dava um telefonema, escrevia, pensava. Hoje voce se perde em 200 canais e nada vê. Ou fica zumbindo com a cara enfiada no Facebook.
   O mundo mudou muito e não mudou nada. Transava-se na mesma quantidade, mas era mais no carro e menos no motel. E não se usava camisinha. Voce ia numa corrida só, sem parada para higiene. Se beijava menos, se amava igual. Como não existia celular, se sentia mais saudade, e como não se podia mandar torpedo, se vigiava menos. Ficava-se ligado em pensamento, em sonho e em planos. Ainda havia a possibilidade da incomunicação. As suspeitas eram menores, pois quanto mais se está ligado mais se exige prontidão.
   Não se dava tanto valor a animais de estimação. Para se achar um petshop era uma corrida. Estacionava-se na rua e se passeava na rua. A molecada ia pra lanchonetes de rua aos domingos de tarde. E havia a experiência de sair de um filme e se cair na rua. O choque do filme com a escuridão da rua de noite, as sombras, o silêncio, o carro distante. Sorvete na rua, hot-dog na rua, encontro na rua. Cheguei a transar na rua. E jogar bola nos jardins, de madrugada, bêbado, na rua.
   Eu não vivi completamente esse tempo e acho que ninguém viveu. Todos estavam envolvidos com um eu tão profundo que não podiam ver a vida fora. Essa década é pra mim uma nebulosa triste, fria, cheia de amores imensos, sofridos, e de ícones heróicos, impossíveis. Não sei se hoje é pior. É mais futil, sem dúvida. E muito menos perigoso. Talvez a chave seja a de que em 1982 a adolescência mandava. Hoje somos crianças bem alimentadas, saudáveis e felizes.
   Adolescentes são egocentricos, são vaidosos, acham que sabem tudo e se preocupam com seu ser todo o tempo. Experimentam, tentam matar o mundo antigo, são ansiosos. Amam demais, choram demais e vivem tristes. E riem como malucos. Crianças dormem. E sonham. E brincam de ser adulto. Repetem tudo aquilo que os pais fazem. Sem saber o que aquilo significa.
   Acho que essa é a diferença. Adolescentes brincam de descobrir. Crianças descobrem a brincadeira.,