Aretha Franklin - I Say A Little Prayer



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ARETHA E WHITNEY

   Belo texto no Estadão sobre Whitney Houston. O autor, que é americano, fala que nos EUA ele seria vaiado se dissesse o óbvio: Whitney era uma cantora ruim, fabricada, fria, sem qualquer sinal de verdadeiro talento. O canto que ela emitia nada tinha dela-mesma, era banal e poderia ser confundido com o canto de qualquer outra cantora de seu tempo. Pior, ela institui esse tipo de cantor hiper-produzido, exibicionista e vazio. Um canto sem emoção, sem pensamento, sem personalidade. O sonho da indústria: linha de montagem de vozes.
   O autor ( Lee...o que mesmo? ), conta que a madrinha de Whitney, Aretha Franklyn, não foi ao enterro e disse que Whitney era uma estrela. Só isso, uma estrela, não uma cantora. E como uma estrela moderna, ela torrou 100 milhões em drogas. Drogas usadas com o único objetivo de se drogar.
  Aretha Franklyn era/é uma grande cantora. Tem tudo aquilo que Whitney nunca nem sonhou em ter. Personalidade, sentimento genuíno e pensamento. Cada canção de Aretha traz a marca de tudo aquilo que ela pensa, vive e sente. Uma voz sem igual, única, como únicas eram as vozes de Ray Charles, Wilson Pickett ou de Otis Redding. Aretha canta, e canta e canta. Toda a saga negra na voz. Confundir sua voz com a de qualquer outra cantora é impossível. E essa marca se chama arte.
  Ouvir Whitney é uma experiência vazia de significado. Escutar Aretha é uma aprendizagem. Na morte de Whitney, pobre moça, os louvores são de sua madrinha, a inigualável Aretha Franklyn.

MORRISSEY

   Como aconteceu com Bob Dylan no rock dos anos 60, Morrissey é um belo talento nefasto. Se Dylan sem querer instituiu a praga do "rock relevante", Morrissey inaugurou o lixo do "rock em meu quartinho". Ele feminilizou o rock inglês e o transformou nessa coisinha fofa e sensível que suportamos até hoje. Mocinhos que amam seus ursinhos de pelúcia, com maço de rosas nas mãos e pensamentos "belos" na cabeça...Morrissey matou a virilidade do rock inglês.
   Mas assim como Dylan é infinitamente melhor que seus seguidores, Morrissey transcende a caricatura anódina que fazem seus seguidores. Ele é original, ele tem bom gosto, e ele tem um verniz de humor que seus fãs raramente percebem. Morrissey segue a linha de Oscar Wilde e de Evelyn Waugh, seus fãs são apenas seguidores do lado mais óbvio de suas letras. Chatos.
   Os Smiths eram ok. Mas eles dominaram a ilha de Thatcher. E criaram toda uma linhagem de meninos sensíveis. Chorosos e assexuados. Fico pensando que foram eles quem mataram a linha Clash-Jam-Specials, uma linha viril, anárquica, esperta, que foi engolida pela onda melancólica. Mas Morrissey não tem culpa nenhuma. Ele apenas fazia boas músicas. E era fã de Mott the Hoople e T.Rex. Pegou a Inglaterra num momento Culture Club e Duran Duran. Foi fácil dominar. Depois de Johnny Marr, nenhum guitarrista inglês ousou fazer pose de macho. Todos passaram a balançar a cabeça e a franja como Johnny Marr sempre fez. Nunca mais Mick Jones.
   Leio que João Gilberto, apesar de sua genialidade, trouxe uma maldição à MPB. Todos os cantores após ele se afeminaram. Passaram a cantar delicado, suave, feminino.
   Quem diria? Morrissey é o João Gilberto da Inglaterra.

OSCAR 2012, O ANO DA CRISE

   Pela primeira vez Hollywood admite que houve um filme falado em lingua estrangeira melhor que os feitos nos EUA/Inglaterra. Sempre existiram obras-primas em japonês, italiano ou suéco, mas Hollywood sempre acreditou que no fim das contas, seus filmes eram melhores. Porque isso acabou ontem?
   Um filme francês, de um diretor desconhecido, vence com facilidade aos velhos queridos da América ( Spielberg, Scorsese, Woody Allen e Malick ) e a novos queridos ( Alexander Payne, Brad Pitt e Clooney ). Como? Fácil entender.
   Quem vota é quem faz filmes. E essa premiação é um pedido de socorro. Hollywood, aquela que faz os filmes, e não a que contabiliza custos, aquela que ama o cinema, se encantou por um filme que faz tudo aquilo que eles não mais podem fazer. Um filme que não é parte dois de nada, que não é HQ, que não fala de gente doente ou doida, que não explora violência, que não tem efeitos. Mais que isso, é um filme que fala de amor, bondade, tempo e de cinema. Que lhes lembrou o que significa fazer parte dessa "arte".
   E acima de tudo: Que se pode fazer um filme de coragem. Pois nada pode ser mais arriscado que fazer um filme em P/B, mudo e sem tiros e explosões. Hollywood, sabendo que está num buraco, homenageia a si-mesma num filme estrangeiro.
   Porque o cinema como eu o conheci acabou. Os poucos bons filmes ainda feitos são irrelevantes. O que ficou são 10 monstros anuais que estouram nas bilheterias e um imenso resto que nada significa. Para minha geração ( a mesma de Alexander Payne, Todd Haynes e PT Anderson ), cinema era a arte mais importante. Kurosawa, Fellini ou Bergman eram mais geniais que os melhores escritores, poetas, pintores ou filósofos. Um grande filme era como uma igreja. Assim era para milhões de pessoas. Isso acabou. Cinema é hoje uma sala de emoções simples e baratas. Os filmes se tornaram vazios, bobos, nulos. E os atores choram por isso, os diretores suspiram pela liberdade perdida. Mas a culpa foi deles mesmos. Hollywood deseducou seu público e no processo o perdeu. Cinema já era.
   O Artista nos exibe o auge de uma crise. Em lindo filme que é como um ET no mundo atual. Bravo!
   Quanto a cerimonia....Excelente ver Billy Crystal de volta. Eles perceberam que o jeitão MTV dos últimos anos desmoralizava a festa. Billy foi engraçado, elegante e com timing perfeito. Jamais deveria ter saído.
   Thomas Langmann, produtor do Artista, citou Claude Berri. Claude foi um produtor e diretor excelente, mas Michel, o diretor, dedicou o Oscar a Billy Wilder. Ele falou: -Dedico o troféu a 3 pessoas, Billy Wilder, Billy Wilder e Billy Wilder.
   É um fato. Quando Fernando Trueba ganhou seu prêmio de filme estrangeiro também dedicou o Oscar a Billy. -Se eu acreditasse em Deus dedicaria o prêmio a Ele, como não creio dedico a Billy Wilder! Reza a lenda que Billy lhe ligou no dia seguinte: -Alô...é Deus falando...
   Europeus adoram Billy.
   Achei Angelina feia. Achei Natalie pavorosa. Milla estava bonita.
   Jean Dujardim tem a cara mais simpática do mundo. Espero que saibam honrar seu talento com roteiros que tenham a ver com ele. Já sei que não vai dar certo. Não se escrevem roteiros para atores simpáticos. Os poucos que surgem são todos de Clooney e Pitt. Então que Jean fique na França.
   Meryl tinha de vencer um dia. Pena que em filme tão ruim. E é sempre um prazer ver Colin Firth. De tudo que não vi, sinto vontade de ver apenas o filme sobre Marilyn e Olivier.
   Aposentaram a orquestra.
   A melhor coisa da noite foi a cena de Intriga Internacional no telão. O rosto de Cary Grant e o avião o perseguindo. Cinema em seu apogeu.
   Hugo é bonito mas O Artista é melhor. O Oscar tá pequeno. Hollywood passou trinta anos apostando em filmes idiotas. Namorando adolescentes. Adolescentes são infiéis por natureza. Agora é tarde. Os adultos ficaram adolescentes. O cinema errou.
   O Artista não.

NOITES TROPICAIS- NELSON MOTTA, UM CARA LEGAL

   Eu não havia percebido até então, mas Nelson Motta está em dois momentos muito rocknroll da minha vida. O primeiro é em 1973, quando o vejo apresentar o programa SÁBADO SOM na tv Globo à tarde. Foi o primeiro programa na tv brasileira com clips de rock estrangeiro. Nelsinho aparecia de cabelão, já trintão mas aparentando uns 18 anos. Apresentava a banda a ser exibida, dava um breve histórico. Era um cara sorridente, simpático, sempre de altíssimo astral. Nelson Motta jamais mudou. Continua sorridente, leve, e só se tornou "um coroa" após os 60 anos. Ah sim, o segundo momento rock foi em 1981, quando na tv Bandeirantes ele apresentava o moderníssimo MOCIDADE INDEPENDENTE. Um programa new wave, hiper editado, que apresentava grafiti, videos, poesia, sexo, funk e pirações nas noites de sábado, 21 horas. Foi um fiasco e durou só dois meses. Mas eu vi.
   Neste livro Nelson conta sua vida. Ou deveria. Na verdade ele fala de todo mundo que ele conheceu. E ele mesmo passa ao lado. Nelson sempre foi um grande conquistador. Do tipo passivo. As mulheres o pegavam, Muitas. Por ser sorridente, do bem, calmo e relax. E o livro é como ele: solar. Alegremente escrito, sedutor e despretensioso. Show.
   Tem tanta história boa que fica dificil pra mim falar de alguma. Começa lá no fim dos anos 50, a única época na história do Brasil em que a inteligência dava hibope. Os anos JK. Havia na música uma enorme distãncia entre a zona sul e a zona norte ( não que isso seja bom ). Na zona sul se ouvia jazz, na zona norte samba. E samba do tipo canção, de vozeirão. Na zona sul tudo era bossa-nova. Na zona norte nem se sabia o que era isso. E em apenas 3 anos essa primeira bossa se torna "velha". É chamada de elitista. Vem uma nova bossa, politizada, de esquerda. A mpb será marcada para sempre por essa divisão: direita e esquerda, politizada e alienada.
   Nelson conviveu com essas duas panelas. Na verdade conviveu com quase todas. Da bossa de esquerda veio Elis Regina e Chico Buarque. E ao mesmo tempo surgia no suburbio e em SP a Jovem Guarda, que era de direita e alienante. Imensa divisão: gostar de Roberto Carlos é ser burro. Só um cara quebra esse preconceito: Jorge Ben. Jorge, sempre quieto, calado, calmo, é o cara que é enigma. Para a turma da USP, ele é um "autêntico". O que ele faz é samba, é raiz, é Brasil. Mas para a Jovem Guarda ele é pop. Se apresenta no programa de tv de Roberto, é rock. Na verdade Jorge Ben é Jorge Ben. Um gênio intuitivo. Ele era o futuro. Mais que Elis, Edu Lobo ou Vandré. Mais que Eduardo Araújo ou Simonal.
   E houve Tim Maia. Amigo de rua de Erasmo Carlos, com 16 anos foi pros EUA. Lá foi logo preso e cumpriu pena. E enquanto isso seu amigo Erasmo se tornava estrela no Brasil. Recebendo essas noticias por carta, Tim em nada acreditava. Quando voltou viu que era real. Apareceu na Jovem Guarda mas ninguém gostou. Ele estouraria só em 1970. Tim Maia era soul, era funk, era a maior voz do país. As melhores histórias do livro falam dele.
  Uma delas: Quando moleque Tim trabalhava entregando marmitas na rua. Levava as marmitas numa vara, pendurada nos ombros. No caminho ele ia bicando todas as marmitas. Um feijão aqui, um bife lá, um doce...Vem daí seu problema de peso.
  Nelson fala da tv Record. Do marketing com a Jovem Guarda, da prisão de Erasmo ( corrupção de menores ) e das brigas com outro programa da casa, O Fino, de Elis Regina, que odiava Roberto Carlos. Aliás ela também abominava bossa-nova e foi rival feroz de Caetano Veloso. Só nos anos 70 ela reveria suas posições e até gravaria esse povo. Nos virulentos anos 60 o que mais se sentia era raiva.
   Belas histórias da Jovem Guarda, em que pela primeira vez patroas e empregadas eram vistas juntas num teatro. Depois do show as patroas iam com os cantores às boates dançar. Mas, puritanas e esnobes, não faziam sexo com eles. Erasmo e os outros iam aos lugares mais populares depois que as patroas se iam, onde aí sim, levavam as suburbanas à cama. O maior comedor era Jerry Adriani, que inclusive foi namorado de Maria Bethânia (!!!!!! ), e de Nara Leão ( que fazia parte dos inimigos da Jovem Guarda ).
   Nelson foi casado com Elis e com Marilia Pêra. E teve um zilhão de amores famosos ( que ele, elegante, não conta ). Nos anos 70 ele manda histórias hilárias de Raul Seixas e Paulo Coelho, dos festivais de rock desastrosos, da ditadura, dos Secos e Molhados e das casas noturnas que fundou.
   A Dancing Days foi a primeira disco do Brasil. Um Shopping na Gávea lhe cedeu o local de graça. Na casa ele cria garçonetes/cantoras que serão as Frenéticas. Com ingressos baratos e sem consumação, a casa une globais e surfistas, gente da zona norte e sambistas, playboys e modelos, domésticas e prostitutas. Depois a Dancing Days se muda pro morro da Urca e o sucesso aumenta. Se vai de bondinho, a pista é ao ar livre e se vê o Rio lá de cima.
   Em 1980 ele abre a PAULICÉIA DESVAIRADA em SP. Essa eu conheci. Julio Barroso de Dj, uma parede de telas de tv, zebras e onças, sujeira chique. Muuuuuito pó e new wave.
   Como tinha de ser, quando entram os anos 80 a coisa piora. Muita droga, muita ego trip, a explosão do rock. Nelsinho fala de Lobão, de Lulu Santos e da Gang Noventa. Ele namorou a estonteante May East. E lá no fim do livro ele volta a Tim, que fica como um tipo de espírito doidão que acompanha a história desde 1958 até 1998.
  Falo que todos deveriam ler este livro. É divertido, é informativo, é duca. Nelson Motta escreve fácil, leve, escreve ágil e a gente fica sabendo de um monte de porques, coisas que nos marcam até hoje, enquanto se diverte. Como ele falava no começo de SÁBADO SOM:
  - Alô Alô juventude animada!!!! Vamos ler que é de primeira!

HUGO- MARTIN SCORSESE, BALADA DE AMOR AO CINEMA ( MAIS UMA )

   Na verdade se trata de um filme de divulgação. Scorsese cria toda uma "moldura" para apresentar a quem nunca viu, as imagens dos filmes de Georges Méliés. Contextualizando as películas que nos restaram desse mágico/poeta francês, Martin torna Méliés palatável`aos não-cinéfilos. Eu adoraria que ele fizesse isso com Michael Powell também...
   Recordo de ter assisitido "Viagem à Lua" em 2000, deitado no chão da Oca, no Ibirapuera. Era uma exposição sobre Picasso e eles projetavam o filme de Méliés no teto da construção. Deitados em almofadas, eu e mais 60 pessoas nos deixávamos sonhar. Foi bacana.
   Vamos ao filme.
   Ele é chatinho, e é maravilhoso. É chatinho em todo seu miolo. Se insiste demais em repetitivas cenas do policial atrás do menino e há uma lentidão exagerada em muitas ações. Martin se aproxima perigosamente do pior de Spielberg, parece se deixar envolver pela obra que faz e se apaixona por seu set e por seus personagens. Mas... dito esse "mal", vamos ao "bem".
   Todas as cenas com Ben Kingsley são ótimas e gostaríamos que fossem em maior número. Notamos então que o problema é de escalação. O ator que faz o menino é fraco. Nunca nos deixamos levar por ele. De qualquer modo, os primeiros vinte minutos do filme, sem diálogos, são excelentes, e toda parte final é irretocável. Emociona. De verdade. E acredite, este filme é quase "silencioso".
   Ninguém poderia prever que 2012 seria um ano "francês" para o Oscar. Temos Woody Allen, este filme e Jean Dujardim com O ARTISTA.  Mais que isso, um ano de saudades da década de 1920. Mas Martin, espertamente, usa a mais moderna tecnologia para nos levar ao passado. O filme tem um visual rebuscado. É bom de se olhar.
   Harold Lloyd tem um trecho de filme mostrado. E há uma sequencia soberba com cenas de Buster Keaton, Douglas Fairbanks e Chaplin. Scorsese é um educador. Nos faz ver a mágica alegria dos filmes desses gênios.
    Na história do orfão que deseja consertar um boneco para entender sua vida, temos muito do próprio diretor deste filme. Martin Scorsese tem passado os últimos trinta anos consertando filmes que se estragaram. Salvando películas de se transformarem em vassouras ou saltos de sapato. E como o menino, foi seu pai que lhe deixou a semente da cinefilia. Scorsese tem tirado do limbo autores geniais, tem revitalizado carreiras, tem nos revelado memórias. Exatamente como Hugo faz com Georges.
   Quando o cinema surgiu ( e estamos falando de 1900 ), duas vertentes logo se apresentaram. Aqueles que viam no cinema um modo de exibir "o real", e os mágicos, que viam na tela um caminho para o sonho. Méliés foi o rei da magia. Para ele uma câmera não era um instrumento de reportagem, era uma máquina que produzia alucinações. Seus filmes são loucos, festivos, inquietos. Com a guerra ( 1914 ), seu tipo de cinema saiu de moda, foi taxado de alienado. Morreu pobre e esquecido. Ao lhe prestar tributo, Scorsese homenageia o veículo, a origem francesa do cinema, o ambiente onde ele foi gerado, o poder da magia. Não nos esqueçamos: o cinema nasce no mesmo meio que nos deu Proust e Renoir. A Belle-Époque.
   Há no filme uma fascinação pelo mecânico, pela engrenagem, há a despedida, o adeus a um tipo de técnica, ao filme do século XX, mecânico/químico. Martin Scorsese diz adeus ao velho filme, e adentra o cinema digital do nosso tempo.
   É um belo e muito imperfeito filme. O ARTISTA é bem mais ousado e em sua proposta muito mais "perfeito". Mas Hugo, mesmo com sua chatice, fica em nossa memória como algo de bonito e de nobre. Para tempos de cinema tão cínico e vazio, não é pouca coisa.

Caribbean Moon - Kevin Ayers (1973)



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Boney M - Ma Baker 1976



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ALMANAQUE DOS ANOS 70- ANA MARIA BAHIANA ( FOI DE VERDADE? )

   Como diz a autora, os anos 70 dão a sensação de que jamais existiram. Para quem viveu neles, as lembranças se parecem com sonho, são todas irreais, como se tudo aquilo tivesse acontecido em um não-mundo e em um não-tempo. E para quem nasceu depois, fica a impressão de que a década foi um tipo de parque de diversões brega. Foi. Nenhuma década se parece com ela.
   O que se pode dizer de um tempo que teve o punk rock e o Abba? A seleção da Holanda e Fio Maravilha? Idi Amim Dada e Margaret Thatcher? Foi no minimo divertido pacas! Não que Idi Amin fosse divertido, mas a diversidade de lideres era absurda e absorvente. Aliás, ainda existia essa coisa chamada liderança. A crise da Europa é acima de tudo uma crise de homens. Um Churchill ou um De Gaulle dariam jeito na bagunça. Depender de um playboy francês e de uma burocrata alemã é o kaos.
   Os anos 70 foram tão esquisitos que Stanley Kubrick era sucesso pop. E as pessoas iam no cine Iguatemi ver filmes com sexo explicito. Lixos como Caligula ou Histoire D'O. O cinema da década é muito esquizo. Hoje existem filmes esquisitos ainda, mas nos 70 eles eram sucessos de público. A década ia de Star Wars e Inferno na Torre a Taxi Driver e Um Dia de Cão. Woody Allen, Al Pacino, Coppolla e Scorsese são a cara da época. Assim como Jack Nicholson, De Palma e Spielberg. O cinema ali virou um cada um por si.
   Foi a década do eu. É quando as pessoas deixam de seguir gurus e passam a fazer "análise". Os analistas nunca foram tão pop. E os astrólogos também. Foi o tempo que criou a ditadura do desejo. Liberar os seus quereres. Transar o sexo numa boa. E tome swing e gay power.
   O que dizer de um tempo que criou a pornochanchada e os Secos e Molhados? Que tinha Clint Eastwood e os Dzi Croquettes? Na verdade os anos 70 inventaram o século XXI. Do mundo interligado à música sintética, tudo foi criado aqui. Inclusive os anti-depressivos.
   Topless nas praias e a praga da cocaína. Tanguinhas e as primeiras celebridades que são famosas por serem famosas. Mas ao mesmo tempo havia Milan Kundera, Italo Calvino e Saul Bellow. Escritores sérios eram ainda muito pop. Philip Roth era uma estrela. John Updike também. E Capote era uma celebridade.
   No Brasil a TV´passou a ser rei. E os enlatados dominavam. Enlatados eram séries made in USA. O futebol do Rio ainda era o melhor e o basquete brasileiro era um dos top 5 do planeta. Tempo das costeletas de Emerson Fittipaldi e de várias mortes nas pistas.
   Uma década onde se usava sapato plataforma e camisa justa pinky não pode ser séria. Lapelas imensas e saias de cigana. Não se procurava a elegãncia sóbria, se desejava o fun. O exuberante excessivo.
   Os Z-Boys criaram o skate profissional e os australianos o surf moderno. Mark Richards, Cheyne Horan, Ian Cairns. E o rock de estádio nasce com o Queen. E o Aerosmith. E Van Halen. O que dizer de um tempo que criou Bruce Springsteen e o Village People? Kraftwerk e Kiss.
   Drogas eram tudo. Mesmo para quem não sabia o que era droga. Porque nas cores dos móveis ( minha mãe tinha um quarto todo roxo com luminárias vermelhas, voce ficava doidão só de entrar nele ), e nos desenhos infantis ( os Bugaloos ou Hardy Boys ), tudo era como uma viagem drogada. A década parecia ser escrita por algum roteirista junky.
   E nessa levada, as pessoas viviam da pura euforia à mais absurda deprê ( que se chamava bode ). E ficavam muito na rua. Era a época em que balada era ficar caminhando pelas ruas cheias de bares, a pé, entrando em todos e não ficando em nenhum ( quando saio eu ainda hoje tento fazer isso ). No fim da década, com a disco, é que veio essa coisa de se enfiar num clube e passar toda a noite trancado.
   O que dizer de um tempo que teve Benito di Paula e Raul Seixas? Lixo nunca foi tão luxo. E arte nunca foi tão profana. O grafiti e o rap nascem aqui também.
   O primeiro filme "sério" de HQ ( Superman ) e o primeiro filme adulto de sci-fi ( Aliens ); e na TV o Saturday Night Live. Além do Muppet Show e Columbo. Que mais voce pode querer? Chacrinha !
   Ainda não havia silicone. As mulheres tinham o corpo da Rose di Primo, cheio de curvas e muuuuuito bronzeado. E os homens mais desejados eram como Robert Redford, magros e nada malhados.
   A autora lembra de uma coisa esquecida: brinquedos eram pra fazer a criança se mover. Nada de coisas pra ficar parado. Brinquedos pra ir pra rua. Ou pelo menos pro quintal. Foi a última década de quintais.
   O que dizer de um tempo em que as torcidas nos estádios não eram divididas? E em que o comunismo ainda era "o futuro"? A giria mais usada era "um barato". E eu pegava carona na avenida Paulista. Era um barato, um sarro, alucinante, odara. Voce parava na janela do carro e dizia: " E aí cara? Vai uma carona?"
   Quem viveu os anos 70 se apaixonou pelo tempo. Taí esse monte de filmes passados naquela época, filmes de diretores apaixonados por aquilo tudo. Desde Boogie Nights passando por Quase Famosos, Dazed and Confused e Crazy. Aliás Tarantino vive nela até hoje, Todos os seus filmes são 70's.
   Ter tido 12, 14 anos em 1976, 1978, e ter ido às bancas comprar Mad ou Homem-Aranha, montado numa Caloi 10, usando uma camiseta Hang Ten, com tênis Bamba e os longos cabelos descoloridos ao vento... De bermuda de calça jeans cortada e com More Than a Feeling na cabeça... Que baratão!
    Mas....aquilo tudo foi real??? Um presidente como Jimmy Carter, ele existiu? Clóvis Bornay e Asdrúbal Trouxe o Trombone, foram pra valer? Não foram delirios de mentes cheias de peyote?
    É doido isso. Para todos nós, os anos 70 parecem sempre ontem, enquanto os anos 80 parecem muito antigamente e a década de 90 se parece com algo muito distante. Os 80 e os 90 têm um aspecto de vida muito real, de coisa sólida, e portanto mortal. Já os 70 ao se parecer com delirio escapam dessa temporalidade. Não foi um tempo, foi como um parente maluco. Ele morreu, mas tá aqui.
   Que bem louco!

   Uma década que nos deu Boney M e Kevin Ayers.... dizer o que? Viva o excesso!
  

RECONCILIAÇÃO E UM CHORO MUSICAL

   Para a felicidade faz-se necessária a reconciliação. Sem ela não há como.
   Acordar ouvindo a música que vem do quarto. A luz entra pela minha janela e no vizinho um cachorro preto dá um latido. O galo canta no meu quintal. No teto do meu quarto há um friso de madeira. Imagem de Cristo com um coração vermelho.  E vem música do quarto de meu pai.
   Ele sempre acorda com o rádio ligado. Chorinho. O despertador dele faz um tic-tac ensurdecedor.
   Da cozinha vem cheiro de café. Coado em coador de pano velho. As xícaras são de louça verde-água. Meu pai bate a colher na xícara após mexer o café. Pela porta aberta da cozinha entra sol. Estou de pijama. Móveis de fórmica verde e fogão vermelho. Na parede de azulejo branco há um termômetro com um desenho de uma baleia: SFC, Campeão Paulista de 1969.
   Nas gaiolas dos canários meu pai sopra as cascas do alpiste. E troca a água dos bebedouros. Ele os pega nas mãos e beija suas cabeças.  Quem não teve pai que cuida de canários nunca vai saber o que é ter um pai que cuida de canários.
   Voltar pra casa. Tantas canções falam de voltar pra casa. Essa casa de canários e de chorinhos não existe mais. Esse país de canários e de chorinhos não existe mais.
   Andando pela rua escuto chorinho vindo da mercearia. A cadência malemolente do pandeiro casando com o dedilhar suave das cordas. E a flauta que voa entre as notas. Música que tem perfume e cor. E da rua entro no barbeiro. Ele coloca uma lata de açúcar sobre a cadeira. Sento sobre a lata e ele corta meu cabelo. Descubro que isso não dói.
   Em casa meu pai bota graxa na bomba do poço. Com um pincel. Enquanto faz isso ele assobia um chorinho alegre.
   Quem não teve um pai que assobia um chorinho alegre enquanto põe graxa na bomba do poço não sabe o que é ter um pai que assobia enquanto põe graxa na bomba do poço. Que tem 14 metros de fundura e onde jogo pedras pra ouvir a água fazer "tchum".
   O paraíso que ansiamos é o retorno á casa. Ao lar. Que é impossível, eu sei. Mas a reconciliação com esse mundo é o único modo de se começar a ser feliz. Abraçar o menino de pijamas e admitir o amor ao homem que cuida dos canários.
   Sobre as parreiras que se entrelaçam numa armação de ferro, ele joga uma lona pesada. A sombra se faz sobre a terra seca. Entro agachado.  Aqui dentro a sombra que refresca e as folhas das parreiras. Lá fora o sol forte castigando as alfaces e as couves altas. Deito sobre a terra e afasto as pedras. Do vizinho vem a narração de uma novela de rádio. As vozes do narrador, do mocinho e da namorada sofredora. Fecho os olhos e nada penso. Minha mãe começa a estender lençóis brancos. Eles voam ao vento. Olho as mãos dela esticando lençóis. Faz-se uma parede de pano branco que voa. Vela de navio. Volto a fechar os olhos e deitar sobre a terra. Uma lagartixa preta corre entre as barras de ferro que sustentam a parreira. A lona esquenta e começa a cheirar como lona quente.
   Se eu ganhar um bilhão e namorar as vinte mulheres mais lindas e interessantes do mundo, ainda assim, sonharei com essa tarde. Porque o homem é o único bicho que tem infância. Mais que isso.
   E uma enchadada na lama faz com que milhões de minhocas gordas apareçam. E os filhotes de pato correm e começam a engolir todas elas. Alguns deles comem tanto que o papo incha e toca na lama preta. Patos são burros. E os pombos brancos voam em formação no céu. Meu pai cria pombos de pés rosa. Pombos do mato, limpos e de bicos claros. Gordos.
   Começa a amanhecer. Meu pai liga o rádio. Um pandeiro e uma flauta.
   Eu pensei que a vida fosse sempre assim.
   Ela é.

PERFEITA TRADUÇÃO DO QUE SEJA O DESEJO: A TUA PRESENÇA, FAIXA DO DISCO QUALQUER COISA DE CAETANO VELOSO

  É uma batida só. Que se repete e se repete e não muda e não sai. Não se transforma. Bumbo e um toque de violão. A voz. A voz é como um lamento ou uma prece. A voz é uma voz que sabe-se presa do desejo. Porque o desejo prende. E é um não.
  Ele fala da presença. Pois o desejo faz da pessoa que se deseja uma presença que a tudo mata. Pois ela está em todo lugar e todo lugar deixa de ser todo lugar. Tudo vira uma única coisa: o desejo.
   E a batida cresce e o desejo cresce.
   Mas é arte, então o desespero é prece e a canção é quase uma espécie de reza. O desejo absoluto sempre chega a ser religião. E faz dessa negação de si uma confirmação de ser. Contradição.
    Uns violinos zumbem. Negra e morena.
   Quanto desejo pode um homem sentir?
    Uma canção linda mais que bela linda e bela, desejo.
     Mas quero falar de mais....
     Depois tem Jorge da Capadócia. Que é uma prece de Jorge Ben e que pede proteção.
     E tem surpresas: Eleanor Rigby em ritmo de samba.
                               For No One em ritmo de bossa-nova.
                               E Lady Madonna como MPB.
     Não é homenagem aos Beatles. É pra Paul e pra Tom Jobim. Mostra que a Bossa cabe em tudo. E mais: as 3 ficaram muito, muito boas. For No One chega a ser genial.
     Um PS: Minha mãe me disse para minha imensa surpresa que ela adora Seu Jorge. E eu nem sabia que ela sabia quem é o cara! Ela pede uns cds dele. Seu Jorge, devo admitir, sacou a coisa certa. Tudo aquilo que tenho escutado de mpb Seu Jorge misturou. Quem escutar a versão Caetano de Lady Madonna vai entender.
    PS 2: Qualquer Coisa foi a primeira canção de MPB que gostei. Tem aquele tipo de rica orquestração que só aqui se fazia. Ela decola e voa. Eu tinha 11 anos. Mas só comprei o disco e fui o entender aos 18.
    Sem PS agora: O cara canta muito! Este disco é quase só voz e violão.
    É pra ouvir no escuro. E assobiar. Entre 1972 e 1982 Caetano foi infalível.
    Tá dito.