LET'S GET IT ON / MARVIN GAYE



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LET'S GET IT ON- MARVIN GAYE, NASCER/TRANSAR E MORRER

   Para Marvin Gaye, sexo é vida e viver é transar. Todo o resto é sombra e pó. Se em WHAT'S GOIN' ON, disco anterior, Gaye analisava a luta das ruas, aqui ele prega a paz do sexo. Em tempo, nos anos 80 WHAT'S foi considerado pelos ingleses o maior disco já gravado.
   LET'S GET IT ON é sedução do começo ao fim. Lembro de um crítico que disse em 1995 que ainda não nascera uma mulher que resistisse ao apelo sexual de Marvin Gaye neste disco. A voz, sempre no cio, se enrola no corpo da mulher, a embala em camas de violinos, guitarras, baixos sinuosos, percussão, gemidos e multidões de notas. Música de motel? Muito mais que isso. Gaye leva a música ao sexo e sabe que isso é mais que cama e lençol, é questão existencial. Ele tem o talento para isso.
   Bryan Ferry, Rod Stewart, David Bowie, Rolling Stones... todos tentaram ser Marvin Gaye. Todos erraram o alvo, mas conseguiram no processo refrescar seu som. Ferry criou aquele tipo de som cheio de detalhes, miríades de instrumentos transitando pela canção e correndo ao redor da voz, Rod se pacificou e se fez um tipo de sedutor insaciável, Bowie se enamorou da dance music e rearranjou sua carreira e os Stones ficaram ainda mais negros com Jagger incorporando o falsete a sua voz. Nenhum deles conseguiu ser Marvin Gaye. Ferry não tem voz pra isso, Rod não tem finésse, Bowie é frio demais e Jagger se exalta onde deveria ser elegante. Mas tiveram todos a percepção de entender que em Gaye havia, mais uma vez, um caminho a ser seguido. A geração dos anos 80 também se apaixonou por seu som. De Paul Weller á George Michael, uma legião de branquelos ingleses sonhou em ser Marvin Gaye.
   A maravilhosa beleza do som negro.... As pessoas, inconscientemente centradas em sua raça ( não é bem racismo, é algo muito mais profundo ), ficam falando bobagens do tipo "qual o melhor cantor", "qual o cara mais influente" etc e tal. E se esquecem de que o melhor cantor nunca foi Plant ou Rod ou Paul ou Roger ou Van. Sempre foram os negros Ray Charles, Otis Redding, Wilson Pickett e Marvin Gaye. E que o cara mais influente é James Brown, mas poderia também ser Sly Stone ou George Clinton. A coisa é lógica, a opinião de um critico que se "esquece" dos artistas negros não tem valor. Perto do poder transformador que o Rap possuiu, coisas como Brit-Pop e Grunge são apenas surtos de saudades. E nada é menos saudosista que o som dos blacks. Eles não têm do que ter saudade.
   As pessoas inclusive erram ao dizer que os rivais dos Beatles eram os Beach Boys ou os Stones. Paul MacCartney já disse em "N" entrevistas que os discos que os "assustavam" eram aqueles que a Motown produzia às toneladas. Eles ficavam bestificados com os arranjos, os vocais, e Paul cita James Jamerson como o melhor baixo do planeta ( James é o cara do som de Gaye ). Mas tendemos a esquecer disso, e voltamos a falar a ladainha de Beatles X Beach Boys.
   A Motown tinha além de Marvin, Aretha Franklyn, Stevie Wonder, Temptations, Supremes, Miracles, Smokey Robinson, e quando os caras de Liverpool terminaram soltaram um tal de Jackson Five. Comandada por negros, era uma gravadora hollywoodiana, luxuriante, chique, e muito sensual. Nela, Gaye, casado com a filha do dono, era o Rei. Desde 1962 lançava hit sobre hit e era regravado por Van Morrison, Who e Stones. Aliás, o primeiro disco dos Beatles tem faixa da Motown.
   Acabei me alongando e deixei de falar do disco em si. LET'S é da fase cabeça da Motown, de quando os artistas da casa se lançaram em aventuras mais autorais, tocados que foram pelo clima barra pesada do começo dos anos 70. Após este disco Gaye começaria uma lenta decadência. Cocaína, depressão e falência financeira. Seu público descobriria Al Green como o novo Marvin Gaye ( Green era excelente, mas nunca foi Gaye ). Em 1984, de volta ao sucesso e prestes a ser feito o gurú da nova geração inglesa, Marvin Gaye foi morto pelo próprio pai...
   Em 1986, num número da revista Bizz, citava-se uma matéria britânica em que se dizia que o pop havia deixado apenas seis coisas que viveriam para sempre. Marvin Gaye era um dos seis. Ouvir seus discos é ser feliz.
PS: Cometi um erro nesta postagem que faço questão de não apagar. Aretha Franklyn e Otis Redding NÃO eram da Motown!!!! Eles eram da Stax, gravadora do sul dos EUA que foi o outro lado da música negra da época. Se a Motown era Hollywood ( luxuosa, sexy, glamourosa ), a Stax era mais "crua". O som da Motown tem como marca registrada os arranjos "ricos". A Stax dava ênfase maior a bateria e guitarra. O engraçado da história é que esse som "crú" da Stax, que a princípio parece mais "negro", era na verdade feito por alguns músicos brancos com origens country ( gênios como Steve Cropper e Duck Dunn ). Já o som da Motown, que poderia parecer mais pop, é 100% black.

MÚSICA DE CINEMA

   Em 1962, MOON RIVER de Henry Mancini, em 63, CHARADE, em 64 MY KIND OF TOWN com Sinatra, 1965 tem WHATS NEW PUSSYCAT de Bacharach com Tom Jones, em 1966 temos BORN FREE de John Barry e ainda ALFIE de Bacharach, em 1967 vem SOMENTE O NECESSÁRIO de Mowgli e ainda THE LOOK OF LOVE de Bacharach, 1968 tem THE WINDMILLS OF YOUR MIND de Michel Legrand e em 69 RAINDROPS KEEP FALLIN ON MY HEAD, 1970 tem LET IT BE dos Beatles e em 1971 o TEMA DE SHAFT, 72 tem THE MORNING AFTER e ainda BEN com Michael Jackson, em 1973 temos THE WAY YOU WERE e ainda LIVE AND LET DIE  de MacCartney. Em 1974 WE MAY NEVER LIKE THIS AGAIN e em 1975 I'M EASY e ainda o TEMA DE MAHOGANY com Diana Ross. 1976 traz EVERGREEN com Barbra Streisand e 77 YOU LIGHT UP MY LIFE e NOBODY DOES IT BETTER com Carly Simon. Em 1978 vem LAST DANCE com Donna Summer e mais as músicas de GREASE, e em 79 IT GOES LIKE IT GOES. Vem 1980 e temos FAME e ainda NINE TO FIVE com Dolly Parton. Em 81 TEMA DE ARTHUR com Christopher Cross e ENDLESS LOVE com Lionel Ritchie. 1982 tem UP WHERE WE BELONG com Joe Cocker e ainda IT MIGHT BE YOU  de Tootsie e o EYE OF TIGER de Rocky III . Em 1983 WHAT A FEELING de Flashdance mais MANIAC. 1984 é um absurdo: vence I JUST CALL TO SAY I LOVE YOU com Stevie Wonder, mas ainda há TAKE A LOOK AT ME NOW com Phil Collins, GHOSTBUSTERS com Ray Parker, FOOTLOOSE com Kenny Loggins e PURPLE RAIN com Prince.
  Em 1985 SAY YOU SAY ME com Lionel Ritchie e THE POWER OF LOVE de De Volta Para o Futuro e em 1986 TAKE MY BREATH AWAY além de GLORY OF LOVE de Karate Kid e em 1987 THE TIME OF MY LIFE de Dirty Dancing, em 88 veio LET THE RIVER RUN da Secretária de Futuro e em 1989 a música da Pequena Sereia... E de repente, o fim.
  Desde então nós temos a música de Titanic ( Celine Dion ), uma do Guns para um filme do Schwarza e só. Vem Pulp Fiction com sua trilha de sucesso mas toda com músicas velhas e fim. O cinema deixa de tornar big hit uma canção feita para aquele filme específico. Temos velhos rocks e pops regravados, rearranjados, revividos, mas não sucessos de rádio nascidos em um filme.
  É claro que essa lista não se preocupa com qualidade, falo de sucesso. A primeira música citada é a vencedora do Oscar daquele ano, e a que cito depois esteve entre as 5 finalistas de então.
  Poderia ainda citar um monte músicas de James Bond que não chegaram a concorrer ou ao tema da Pantera Cor de Rosa, que também nunca foi indicado. O que aconteceu? Será que até na canção de um filme a preocupação  é tanta que só se joga no já testado????

OS DESCENDENTES- ALEXANDER PAYNE

    Alexander Payne. É um diretor que acompanho desde 1998. Não faz parte do hype, portanto não tem a fama pop de Nolan, Fincher e Trier. Com Payne, nada de psicoses diabólicas, firulas de câmeras moderninhas ou temas ousadinhos. Payne conta histórias, de um modo elegante, adulto, simples. E voce sabe, ser simples é a mais dura das artes.
   Barcinski acertou ao dizer que este filme lembra os filmes dos 70's de Hal Ashby. A mesma sutileza. Mas como estamos em 2012, ele não tem a intenção reformista dos filmes da década da inquietação. Payne é um pacificador. Seus filmes são sempre do bem. Mas não o bem idealizado, é o bem que nos resta, o possível.
   Com os irmãos Coen, mais Tarantino, Curtis Hanson e PT Anderson, ele é dos poucos cineastas atuais que despertam minha curiosidade. Se Coen é o cineasta da surpresa e Tarantino o da diversão, Payne é o da finura. Veja este filme:
   Voce pensa que a mãe em coma será o centro do filme. E que teremos mais um lixo em que o pai ausente passará todo o filme em crise de consciência e a mãe será vista em flash-backs como um tipo de musa. Não. Payne, sem grandes alardes, inverte as expectativas. A mãe é apenas um objeto inanimado e o pai não é um homem ruim em crise para ser bom. A mãe é que errou e ele é apenas um homem tentando acertar. O mesmo sucede com as duas filhas. Pensamos que vamos ter de aturar mais um filme com uma pequena criança geniosa e chorona, não, a criança apenas vive sua vida de criança. E quando surge a adolescente achamos que haverá uma série de crises entre ela e o pai. Não, ela ajuda o pai. É assim todo o filme. Uma expectativa é não-confirmada, sempre. Mas tudo sem grandes lances autorais, sem tiques de "olha como sou criativo", sem frescuras de "artista".
   O centro não é a mãe, aliás. É a ilha. Ao contrário do que é dito, lá existe um paraíso sim. Eu amo aquela humidade, as plantas brotando de cada canto, a vida abundante. Mas assim como a mãe está morrendo, nós sabemos que todas as ilhas estão em coma. O centro do filme é a visão do imenso terreno que está a venda. É o paraíso. Quando a filha diz: -Mas eu quero acampar...", entendemos que a dor de Clooney pela infidelidade da esposa é supérflua. Essa raiva o moverá para fazer o certo. Não vender o paraíso.
   George Clooney é o grande ator deste inicio de século. Apesar de detestar seu apreço por politica, é um ator que tem tudo. Sabe fazer drama sem parecer patético e tem um dom fantástico para comédia. Dom que Payne também tem. O filme não tem uma só cena de pastelão, mas o diretor/roteirista consegue extrair humor das situações mais dramáticas. Além de tudo raras vezes eu vi neste século a morte ser tratada de modo tão adulto. Jean Dujardim tem uma atuação de mais "gênio" em O Artista, mas se Clooney for premiado nada haverá de injusto nisso.
   Destaque também para a maravilhosa trilha sonora feita de canções havaianas. São o contraponto daquilo que os homens vivem e daquilo que a ilha é.
   Delicioso, bonito, simples, elegante. Alexander Payne deveria filmar mais. Faz poucos filmes, mas todos são interessantes e discretos. Os dois primeiros são os melhores, mas este é o mais ambicioso. Elegantemente ambicioso. Alexander Payne ainda crê na vida.
   Sem familia, sem religião, sem aventuras e sem heróis, tudo o que fazia da vida uma experiência transcendente nos foi tirado. A única coisa que se colocou no lugar foi a ciência. Mas a ciência não pode nos ensinar a viver. No máximo ela nos ajuda a não morrer. Clooney é esse homem sem nada. Ele não sabe ser pai, não tem religião, nada percebe de aventuroso em seus dias e está longe do mundo de heróis. Tudo o que lhe resta é o frio caminho racional: deixar morrer, deixar vender. Mas mesmo assim, ao ser tomado pela ira, pela surpresa, pela dor, ele faz algo. E esse algo é a última das transcendências, ele protege a vida, nega o caminho óbvio, faz sua escolha.
   Como aconteceu no ano passado com O DISCURSO DO REI, as pessoas desacostumadas a pensar não irão perceber a complexidade embutida na simplicidade. Verão aqui como lá, apenas um filme comum, bem feito, quase banal. Mas se no filme de Tom Hooper e Colin Firth havia uma profunda reflexão sobre a fragilidade humana; neste filme de Payne e Clooney temos uma visão sobre tudo aquilo que ainda pode nos salvar.
   Em meio a crimes em série, heróis mascarados e efeitos sensacionais, é mais do que ótimo. É uma esperança.

Louis armstrong & Ella Fitzgerald - Cheek to Cheek



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ELLA E LOUIS, UMA QUESTÃO DE SABER OUVIR

   Nos anos 50 Norman Granz produziu uma série de discos clássicos do melhor jazz. Se a Blue Note e a Prestige lançavam o jazz mais de vanguarda, Granz gravava standards em versões definitivas. Louis Armstrong se juntou a Ella Fitzgerald para gravar este disco com canções irretocáveis da tradição americana. Mais que um item de classe e de perfeição musical, o disco é uma aula de audição.
   Aqui tudo é sutileza. Desde a voz de menina que Ella sempre manteve, até a rouquidão de Louis. Mas é ainda mais. A respiração de Louis é audível nas faixas que são como cristal. Voce percebe o ar entrando pela garganta de Louis e a voz saindo, suave, grave, rouca, do mais profundo vazio do diafragma. E ao mesmo tempo há a dicção impecável de Ella, cada sílaba tinindo e sibilando, letra e melodia sendo emitidas e produzidas dentro de nossos ouvidos. É um disco que nos salva da surdez.
  Oscar Peterson traz seu piano delicado e Herb Ellis dedilha uma guitarra harmônica. Na batera o mítico Buddy Rich, aqui contido. Isn't This a Lovely Day vale sózinha por toda uma carreira. Canção lançada em filme de Fred Astaire, ela transmite a sensação de frescor e de luxo que os filmes de Astaire e de Ginger passam. É uma alegria absoluta. Mas há também Cheek to Cheek, talvez a mais sublime das canções americanas. Linda como amar, inspiração altíssima de Irving Berlin.
   Impossível saber qual a melhor faixa, They can't Take That Away From Me poderia ser ela. Dos Gershwin, tem uma melodia tão bonita que o prazer de a escutar faz com que nos enamoremos dela para sempre. Aliás é bom eu ter citado a palavra prazer. Valor tão desvalorizado nos dias de hoje ( há quem goste de discos que fazem sofrer e sentir dor ), é esse prazer o objetivo e o ganho da carreira tanto de Ella como de Louis. Eles cantam com prazer, e nos oferecem o mesmo prazer. Após uma noite perfeita ( ou mesmo média ), colocar este disco para tocar é amplificar esse momento vivido e usufrui-lo por tempo maior.
   Como acontece com os bons musicais de Hollywood, saber apreciar esta obra é mostra de se saber escolher. Um presente dado a si-mesmo. Generosamente feliz.

O FUTURO DO CINEMA É AGORA

   O crítico do Estadão, LC Merten, excelente, publicou uma bela análise sobre O Artista. Elogiosa, diz que o filme levou 12 anos para ser iniciado, que ninguém queria produzir. Fico sabendo que Robert de Niro é fã do filme ( agradeceu em Cannes pelo prazer que lhe foi dado ), e que Jean Dujardim é desde muito uma estrela na França ( o que atesta nosso desconhecimento sobre o país do filme ).
   Mas o mais interessante é que Merten faz um paralelo entre o momento que o filme mostra, a mudança do cinema silencioso para o sonoro, e o momento atual.
   O cinema sonoro encerrou a época aventurosa do cinema. Produtores improvisadores, diretores cowboys e atores "deuses" desaparecem. Estúdios vão a falência, astros se tornam desconhecidos e o público muda. Ao mesmo tempo, críticos e a maioria dos envolvidos desaprovava o cinema sonoro. O público logo se apaixonou por filmes falados, mas diretores e produtores pensavam ser aquilo um tipo de vulgarização do meio. Merten diz que hoje vivemos um momento idêntico. É o fim da película, o que faz com que a fotografia não seja mais tão preciosa; o fim das grandes companhias, que torna toda produção muito mais arriscada ( a Paramount por exemplo, ao produzir setenta filmes podia se dar ao luxo de arriscar em dez, ganhava no atacado. Hoje a produção tem de lucrar em 100%, cada filme é como se fosse o primeiro ).  Mas a maior mudança é a digital. O futuro se apresenta com a não-necessidade do trabalho de centenas de técnicos ( figurinistas, carpinteiros, iluminadores, sonoplastas ) e mais que isso ( e já falei isso aqui ), o cinema tende a não mais precisar de atores ( o que seria o sonho de Hitchcock ).
   Ninguém mais vai ao cinema só para ver "um filme de Jim Carrey ou de Brad Pitt". Eles têm muitos fãs, mas sózinhos não garantem um sucesso. Precisam de história, produção e principalmente de divulgação. Antes qualquer lixo de John Wayne ou Gary Cooper tinha a garantia de lucro, pois já faz tempo que não há um ator que garanta seguramente o sucesso de um filme. Quem precisa deles? TinTin anuncia o futuro.
   Não demorará dez anos para que clones de Bogart ou de Steve McQueen sejam usados. Veremos um sonho realisado: Audrey Hepburn contracenando com Cary Grant mais uma vez. Atores que não serão vistos farão movimentos imitativos de Bogey ou de Marlon Brando e digitalmente as feições do "personagem"  James Dean ou Bette Davis serão inseridas sobre os modelos. Bonito e simples assim.
   Vamos mais longe: festivais de cinema, Oscar, não têm mais respeitabilidade. Perderam a décadas seu caráter de "Nobel". Apelativos, se fazem show de TV por saber de sua leviandade. Perderam a realeza no momento em que sua nobreza morreu ( o Oscar era sagrado porque era a única chance de vermos James Stewart ou Akira Kurosawa ao vivo. Hoje vemos na festa atores desconhecidos e estrelas cada vez mais raras e banais ).
   O Artista nos recorda então da outra grande mudança, que também parecia temporária, mas que se mostrou definitiva. Já existem pessoas que não se interessam mais por filmes normais, e isso será regra. Pessoas que não suportam takes com menos de dez cortes, cãmera parada ou cenários reais. Gente que está pouco se lixando para os atores ou a fotografia do filme. Que só procuram aquilo que lhes recorda o mundo onde vivem: o mundo digital. O filme deve se parecer com imagens de câmara de celular, video-game e internet. Histórias fracionadas, sem grandes pausas, frenéticas e não-sutis. Adrenalina eterna e em doses cada vez maiores. Cavalo de Guerra é um filme anti-novo mundo. A Arvore da Vida já vive dentro desse novo universo. É o tipo de ousadia que ainda será possível. Uma salada pseudo-filosófica cheia de imagens digitais. A pausada narração de Spielberg jamais encontrará público.
   O medo desse novo mundo faz com que a nostalgia de O Artista seja desejável. Quem vive do cinema, ou ama os filmes se sentirá grato ao filme francês. Mas todos sabemos que a arte que nos deu narrações poderosas como aquelas de Kurosawa, Ford ou Wyler está morta e enterrada. O que nos resta é torcer por mais Wall E e por menos Matrix e Spirit.
   Felizmente existem os DVDs...

CLINT/ BOB FOSSE/ FORD/ WILLIAM POWELL/ SPIELBERG/ STEVE MARTIN

   O DESAFIO DAS ÁGUIAS de Brian G. Hutton com Richard Burton e Clint Eastwood
Tudo dá errado. Pelo menos este filme serve pra valorizarmos ainda mais a Dirty Dozen. Fala sobre grupo de soldados que deve invadir a Alemanha para resgatar general. Burton está passivo, com expressão de completo tédio. Clint nada tem a fazer. Seu personagem é apenas um enfeite, um americano bonitão zanzando pelo set. Uma aventura que não tem suspense, não tem humor, não tem nada. Nota 1.
   LENNY de Bob Fosse com Dustin Hoffman e Valerie Perrine
A vida do humorista Lenny Bruce é contada como uma febre de jazz. Em luxuoso P/B, Dustin Hoffman dá uma interpretação frenética, se entrega ao personagem. O filme tem uma falha: não revela a alma de Lenny. Mas suas qualidades, a criativa ousadia de Fosse, homem que conhecia o ambiente de cabaret onde Lenny viveu. Valerie Perrine tem uma atuação à altura, sexy e vulnerável. Belo filme. Nota 8.
   SANGUE POR GLÓRIA de John Ford com James Cagney
Talvez seja o pior filme de Ford. Não se decide entre drama e comédia. Passado na guerra, brinca com situações espinhosas, nunca convence. Nota 3.
   O RAPTO DA MEIA-NOITE de Stephen Roberts com William Powell e Ginger Rogers
O diretor é fraco, mas Powell e Ginger são excelentes, e então se torna um prazer ver o filme. Feito em 1935, ele lembra muito Thin Man, sucesso de Powell na época. Ele é um advogado que desvenda um rapto. Ginger é sua namorada. Powell desfila seu humor fino, sua classe, a voz que baila pelos diálogos. Ginger, o rosto cheio de ironia, é sexy em todas as cenas. Os olhos zombeteiros e a voz em desafio constante. O filme é para os dois. Nota 6.
   O ARTISTA de Michel Hazanavicius com Jean Dujardim e Bérenice Bejo
Ele é corajoso, excêntrico e tem uma atuação genial de Dujardim. Ele faz uma mistura de Douglas Fairbanks com Gene Kelly que é comovente. Mas tem suas falhas, a foto em P/B é pobre e a história é simplória. De qualquer modo, é um filme realmente diferente, que ousa não apostar em efeitos, em sexo e violência. O Oscar 2012 toma partido, tenta valorizar filmes de bons sentimentos. Missão inglória, nosso tempo é de bad feelings. Nota 7,
   O GRANDE ANO de David Frankel com Steve Martin, Owen Wilson e Jack Black
O diretor fez o Diabo veste Prada e Marley e Eu. Se esses dois filmes eram ainda agradáveis, este é irritante. Consegue se deslocar do Alasca até o Texas e mesmo assim não ter uma só imagem memorável. Isso porque tudo é feito em close e com uma insistência ridicula em cortar e cortar e mover o foco. Todos os cortes são exagerados, eles são errados todo o tempo. E tome movimento, tome mudança de cena, tome narração de fundo ( pelo Monty Python John Cleese ). Histerismo, nulidade. A história, que fala sobre 3 homens apaixonados por observar pássaros, é desperdiçada. O que dizer de um filme sobre a natureza que exibe muito mais celulares e carros que paisagens e bichos? Steve Martin, que foi um talento imenso, destruiu seu rosto: as plásticas eliminaram seu talento facial. Jack Black faz as mesmas caras e bocas de sempre e Owen é o mais esforçado, o que não significa muito aqui. Eis um filme que demonstra o tipo de cinema televisivo que está matando o cinema cinema. Nota ZERO.
   CAVALO DE GUERRA de Steven Spielberg
Careta, conservador, pouco ousado, e delicioso. Um mestre fazendo um filme de mestre. Há idiotas que reclamaram da guerra ser "mal mostrada"... Como? É coisa daquela gente que só consegue se emocionar às porradas. Precisa de visceras e sangue para sentir. Coitados.... Outra crítica é ao encontro do soldado inglês com o soldado alemão. Para mim é uma cena belíssima. Fantasiosa, hilária, corajosa. Viagem de Steven? Sim! Que bom! É um prazer assistir esta história. Plenamente satisfatória, seu não-sucesso atesta a decadência do público de cinema e não de seu diretor. Ele nos relembra o prazer de se ver e ouvir uma história bem contada. Nota 9.

CAVALO DE GUERRA- SPIELBERG, CINEMA PURO

   Como é bom assistir um mestre em ação! Um diretor que sabe desenvolver sua história, sem atropelos, pausando as imagens, mostrando as paisagens, longe de qualquer estética que não seja a da tela grande. Gente filmada à distância, corpos inteiros, grandes multidões, cenas com vários personagens agindo ao mesmo tempo, céu e chão no mesmo take. Ah.... que coisa boa....um filme que se parece com cinema!
   Steven Spielberg adora David Lean, mas apesar de alguns criticos muito mal informados falarem que este filme lembra Lean, ele na verdade é puro "Hollywood Clássica". David Lean faria cenas muito mais longas, colocaria a ênfase no pacifismo e usaria menos diálogos. O que vemos aqui é um filme como os de Clarence Brown ou Sam Wood, competência e entertainment.
   O filme é lindo e satisfatório. O fato de não ser um big sucesso mostra onde estamos. Hoje ET seria um fiasco. Bons sentimentos não fazem mais bilheteria e Spielberg ainda acredita no ser-humano. Ele insiste em ver beleza na vida e em tentar compreender as pessoas. Não tem medo de parecer careta ( sempre foi ), infantil ou piegas. Ele é tudo isso, e hoje em tempos de cinismo chique, Spielberg se torna um original, um diferente. Daí seu não-sucesso. Seu filme, hiper-pop, parecerá de outro planeta para quem cresceu com video-games e Guy Ritchie. Ele fala de familia, de bondade e de nobreza. Alguém se importa?
   Plasticamente o filme é o mais belo do ano. Não há sovinismo, ele mostra e sabe mostrar. Poucos closes, sem efeitos modernosos, sem frescuras. Desde a primeira cena voce sabe do que se trata: uma narrativa, uma clássica e bela narrativa, com começo, meio e fim, simples e bem contada, e eu percebo: como isso é hoje raro!
   Adorei o filme! Fiquei absorvido por cada minuto. Queria que ele durasse mais. Mas vamos à história.
   Ela vai de uma fazenda pobre da Inglaterra à França durante a primeira guerra. E tudo é brilhantemente mostrado. O cavalo, que jamais é humanizado, é testemunha passiva da loucura dos homens. Vítima. Como também são os alegres soldados. Aquela guerra foi a pior por ter sido a primeira guerra mecanizada. Foi uma guerra em que os soldados e as defesas eram ainda de 1880, mas o armamento e as crueldades já eram as do século XX. Quando os soldados ingleses avançam à cavalo, de surpresa, contra as metralhadoras alemãs, vemos toda a tragédia. A quebra de um código de conduta ( ataque sem aviso ), e o absurdo de se usar espada e cavalo contra metralhadora e canhões. É um massacre. É patético. Spielberg consegue ser veemente sem mostrar uma só cena de sangue jorrando ou de membros voando. Isso é arte.
   O cavalo vive então quatro etapas: na fazenda com arreios, na guerra, numa fazenda francesa e na guerra de novo. Em todas ele sofre como um animal. Mas repito, nada há de humano nele, é sempre um cavalo, e isso faz dele algo de muito mais terrível: ele nos acusa. Seu olho natural nada pode entender, ele apenas sofre, e vai em frente. Ao contrário de O ARTISTA, que é um filme nobre mas com uma história muito pobre; aqui temos nobresa com história, o roteiro é bem articulado, sabe criar tipos críveis, sabe avançar. E temos o belo animal.
   Fato estranho acontece no Oscar deste ano. Temos dois filmes radicalmente antiquados, que optam corajosamente por não ser "como se deve ser agora". Nada de cortes e mais cortes e de cenas com dois personagens no máximo. Bennet Miller e o filme sobre beisebol com Brad Pitt é a antitese deste filme. Mundo minúsculo, pobre, nervoso e labirintico, versus o universo vasto, rico, observador e observado, cheio de história.
   Volto a dizer: Como é bom ver um filme assim. Observe a casa onde Joey, o potro, nasce. Como ela é rica em detalhes e em como Spielberg a exibe com calma, carinhosamente. Depois veja as trincheiras, os jovens soldados. Eles têm chance de se tornar gente, o diretor permite que eles falem, que seus rostos sejam conhecidos. O mesmo com a fazenda na França. Vemos a menina e seu avô por apenas vinte minutos. Mas Spielberg consegue fazer com que os conheçamos, entendemos quem são e o que fazem. Como Steven Spielberg consegue isso? Porque ele ama os personagens, ama aquele cavalo, ama o cinema. Onde a câmera toca ele cria vida. O filme se torna admirável.
   Há uma cena ao final. A silhueta do cavalo e do jovem,  finalmente de volta pra casa. O que vemos é um imenso horizonte amarelo. Isso me lembrou John Ford. É o tipo de cena que um diretor televisivo jamais fará. É o tipo de cena que fica grudada na memória de quem a vê.
   CAVALO DE GUERRA não ganhará o Oscar. Mas ficará como etapa belissima da história do cinema. Um dos últimos filmes a contar um conto à beira da fogueira. Tem de se ver. É de verdade.

ÁGUA, SOL E ARQUITETURA

   Wallace Stevens, um dos 3 melhores poetas do último século, tem uma imagem maravilhosa. Ele imagina o fim do pensamento. O que haveria no fim. A maioria das pessoas falaria numa parede. Ou uma porta. Um abismo. Depende da criatividade de cada um. Stevens imagina que ao fim do pensamento, no final do novelo de ideias, lembranças, possibilidades, medos e desejos, existe uma Palmeira balançando ao vento.
   Pense então. Em meio ao siêncio o suave barulho das folhas e do vento. O azul do céu ao fundo e a sombra dessa palmeira sobre a areia que é amarela. E ela está ao final de tudo.
   Sol e água, Água e sol. Eu penso que toda a felicidade da vida pode se resumir nessas duas entidades. Toda a alegria vem do sol e toda vida da água. Sem o sol e sem a água, a morte.
   No livro de arquitetura que leio o autor diz que toda a história da arquitetura se resume à combinação de luz e de sombra. Edificar bem é saber usar essa combinação. Ele cita os árabes, os palácios e mesquitas da Espanha como o mais elevado grau arquitetônico atingido. Colunas criando sombra nos jardins que jorram água e alimentam plantas. Deleite para os olhos ( sol e sombra ), deleite para os ouvidos ( água ) e para o olfato ( plantas e água ).
   Um pedaço de parede de Pompéia. Azul claro celeste e vermelhos ocres. Cores nas paredes que abriam a vida de seus moradores para o que está lá fora. Arquitetar é abrir para fora, é deixar a vida entrar. Sol e água. Sol e chuva. E lagos e fontes e córregos. As paredes de Pompéia anunciam sol e oliveiras e palmeiras e muita água. Anunciam gente que bebe vinho e carrega água em garrafas grandes. Peles que se bronzeiam entre panos claros. E aqueles azuis únicos nas lascas das paredes preservadas.
   São Paulo esconde a água debaixo do asfalto. E emporcalha o rio que resta. São Paulo ensombreia o sol nas sombras dos prédios que matam o céu. Feio, sujo, escuro, e muito seco.
   E a Palmeira dança ao fim de tudo.

Ronnie Von - Cavaleiro de Aruanda



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RONNIE VON É UM CARA MUITO INTERESSANTE

   Uma bio sobre Ronnie Von seria muito interessante. Ele nasceu no Rio, em berço de ouro e viveu várias etapas de uma vida complexa. Aviador, ator, cantor e compositor, apresentador de Tv, brega e chique, doido e andrógino. E sempre um gentleman. Bonito como Alain Delon, namorou várias e encontrou uma no caminho que quase o matou ( e é a única de quem ele não fala o nome ). Mas resolvo escrever isto porque ontem um amigo me mostrou o disco psicodélico que ele lançou nos 60's. Cheio de surpresas, inclusive uma vinheta de rádio e uma conversa ao telefone, as músicas têm influências de Beach Boys, Love, Who e claro, Beatles. Guitarras ácidas e baixos estourados, é um grande disco. Com a voz de Ronnie, que em meio a toda aquela zoeira soa sempre sob controle, distanciada, um Bowie antes de Bowie ser Bowie.
  Ouço falar de Ronnie a exatamente 46 anos. Quando eu tinha dois anos, minha mãe é quem fala, eu já cantava "Meu Bem", a versão dele de "Girl" dos Beatles, um hiper sucesso por aqui. Fui uma criança que cantava, os vizinhos vinham em casa me ouvir cantar. Eu ficava cantando o dia todo e pra mim sempre foi natural me exibir. Com a entrada na puberdade perdi a voz e a confiança. Bem.... E lá estava Ronnie Von na TV, com seu cabelo Chanel e terninho justo "feminino". Eu o achava intrigante e meu pai o detestava. Sei hoje que ele foi um dos primeiros caras no Brasil a escutar Hendrix e Doors. Ele tinha acesso a importações, numa época em que coisas importadas no país eram mais raras que ladrão em Ipanema.
   Depois, nos anos 70, ele entrou numa viagem de ser ator e começou a gravar músicas muito adocicadas. Mas mesmo assim existem coisas de interesse, como a faixa que posto acima, que é de 1974. Eu a escutava na rádio Difusora e gostava pacas. Mas cheio de vergonha, pois ouvir Ronnie Von em 74 já era uma vergonha. Na virada pros anos 80 ele tinha um programa de Tv e lançava músicas à Roberto Carlos, como o hit "Tranquei a Vida". Ficou doente, paralisado na cama, e quase se foi. Deu a volta, e me acredite, o cara é um sobrevivente.
   Hoje ele é um digno representante de sua geração. Conseguiu não ser um tio-doidão e nem um saudosista chato. Se empolga com Bossa Nova e Soul Music, Beatles e Blues. Seu programa de TV é uma coisa totalmente alienigena, tentativa de ser sóbrio e familiar num meio que é hoje histérico e individualista. Ele leva as coisas com seu jeito de bom filho e bom marido, sem baixarias e sem apelações. O ibope é ignorado.
   Caraca! 46 anos ouvindo falar do cara! 46 anos vendo o tempo passar nele e em mim. Falar mais o que? Respeitem o homem. Ele não é pouca coisa.