Cream - Sunshine Of Your Love (Farewell Concert - Extended Edition) (1 o...



leia e escreva já!

CLAPTON IS GOD, HOJE

   Em 1964, cool era gostar dos Yardbirds, e grafitar nos muros de Londres "Clapton is God" era ato "in". Groovy baby, yeah! Os Beatles já eram, a onda era o blues inglês.
   Pra voce ter uma ideia, o que Clapton (e Mayall, Jeff Beck, Peter Green e Van Morrison ) fez é mais ou menos como se hoje aparecesse um portuga cantando música caipira de raiz ( ou samba tipo Elton Medeiros ) nos mostrando o quanto estávamos perdendo em não os valorizar. Porque a América em 1964 só queria saber de caras branquelos e bonitinhos, tipo Pat Boone ou Ricky Nelson. E de ingleses, tipo Beatles, que eram branquelos e arrumadinhos. O povo sexy preferia Stones, Animals, Them, e os Yardbirds. Eric Clapton, que hoje estará ao lado da minha casa, no Brasil-Morumbi, 2011, estava lá.
   Mas ele sempre foi um "puro". E a prova disso é que ele saiu dos Yardbirds quando a banda estourou. Na época ainda havia esse idealismo. Eric saiu porque a banda se vendeu. Jeff Beck assumiu seu posto e psicodelizou o som. Eric se juntou ao "puro" John Mayall e gravou os Bluesbreakers.
   Em 1966 ele começou a pirar. Heroina e ácido na cabeça, busca por sentido, e o sentido era uma nova sociedade. Sim meu povo, se acreditava ser possível mudar o mundo, derrotar o capitalismo, um mundo onde todo mundo fosse "doidão e irmão, man!" Surgiu o Cream.
   Um novo conceito: o supergrupo. O melhor baixista, com o melhor baterista e o melhor guitarrista. E ainda um poeta de vanguarda como letrista ( Peter Brown ). Esqueceram de chamar um cantor. Mas ok. Se o Cream é responsável pela egotrip que invadiu o rock forever, nos singles eles foram uma banda excelente. E o lp Wheels of Fire é nota dez. Em estúdio eles se continham, faziam músicas de 3 ou 4 minutos. Pop psicodélico. Ginger Baker era um baterista muito original, tocava como se sua batera fosse um tambor africano, Bruce era um baixista muito jazzy e havia Clapton. Que estará aqui ao lado, hoje. E desde sempre seu toque sempre foi fino, suave, cool. Os dedos de Eric são leves, femininos.
   Eric compôs então os dois riffs que mais grudaram em minha mente desde sempre. Me pego faz trinta anos andando pela rua e sem perceber cantarolando "Sunshine of your Love" e "Badge". O riff de Sunshine é avô de todo riff de hard-rock e o solo de Badge é plagiado por N grupos desde então. Mas, sempre um "puro", Clapton sai do Cream quando vê que não tem nada a fazer lá. Num daqueles solos free, num palco dos USA, ele pára de tocar e percebe que Jack e Ginger nem percebem. Its all over now.
   Toca então com Beatles, com Stones, com Steve Winwood e muuuuito doidão, vai ao sul dos USA para se afastar dos malucos de Londres. Que erro! Toca com os estradeiros Delaney e Bonnie, um grupo de hippies radicais, do tipo que vê Jesus Cristo em cactus do deserto. Grava Layla com Duanne Allman, pra mim, um lp que é o melhor e mais desesperado retrato do amor terminal. E estradeiro até as botas sem sola. Isso porque Eric estava amando a esposa de seu best friend: George Harrison, e ela optou por George ( e depois iria para Eric... ). Então Layla sai ao mundo e Eric quase morre. Em 1971 ele era considerado mais junk que Keith Richards.
   Volta em 1974, falando que Steve Wonder é Deus e que a heroina já era. É o Eric que conhecemos até hoje, relax, bom astral, pop adulto, meio The Band meio Steely Dan. O que a gente não sabia é que ele adorava um bourbon, na verdade litros e litros.
   Amigão. Sempre um "puro", torna-se cumpadi de Dylan, Ron Wood, The Band, e volta às boas com Harrison ( espiritos superiores, sem dúvida ). Grava com todos eles e ajuda a popularizar gente como Bob Marley e J J Cale. Pára com a bebida e perde um filho. Mas quem o viu na belíssima homenagem à George Harrison sabe que Eric é a imagem da paz. É dos poucos caras do rock que dá vontade de conversar sobre amor e dor.
   Daqui a pouco esse cara puro vai estar aqui ao lado. Um senhor que conviveu com Lennon, Brian Jones, Hendrix e Harrison. Talvez o único gigante do rock sobre quem ninguém nunca falou mal. Clapton não é God, claro. Mas ele ficaria muito bem como o arcanjo Gabriel da guitarra.

ALDRICH/ MILESTONE/ DONEN/ AUDREY/ OLIVIER/ OZON/ THOR

   A MORTE NUM BEIJO de Robert Aldrich
Superestimado. Há quem o considere genial, histórico, moderno etc. Pra mim ele é um noir confuso, maneiroso, fake. Os atores parecem não levar a sério a história sobre material suspeito roubado. O detetive é Mickey Spillane, mas tudo parece muito forçado e até mesmo tolo.  Nota 1. ( tem boa foto ).
   ANJOS DA BROADWAY de Ben Hecht com Douglas Fairbanks Jr e Rita Hayworth
É vendido como noir, mas é um drama orignal, cruel, pessimista, dirigido pelo bom escritor e grande roteirista Hecht. A chuva pontua a história sobre um malandro de terceira que tenta dar um golpe em jogo de poker. Um homem tolo e falido e uma prostituta se juntam a ele. O filme é cheio de erros, não tem ritmo, mas é corajoso e original. Parece feito muito depois de seu tempo, tem ar de filme dos anos 70. Nota 5.
   SEM NOVIDADE NO FRONT de Lewis Milestone
Só vi dois filmes que mostram realmente o absurdo da guerra: este e Glória Feita de Sangue, de Kubrick. Existem outros grandes filmes de guerra, mas todos eles têm heróis, ou usam humor, ou enfeitam estéticamente o que é apenas horror. Aqui há o inferno. As cenas de batalha são como documentário, os homens parecem realmente com medo, parece que morrem de verdade. É um clássico que nada perdeu com o tempo. Talvez hoje até pareça melhor. Nota DEZ.
   MÉDICA, BONITA E SOLTEIRA de Richard Quine com Natalie Wood, Tony Curtis, Henry Fonda, Lauren Bacall
Com esse elenco o filme consegue ser vazio. Fala maliciosamente sobre revista masculina que tenta desmoralizar psicóloga que escreve sobre sexo. Curtis é o repórter que tenta a seduzir, Natalie a tal autora. Fonda faz um vizinho casado e Bacall é sua esposa. O humor era "apimentado", hoje parece apenas bobo. Tipo de filme irremediavelmente velho. Nota 3.
   UM CAMINHO PARA DOIS de Stanley Donen com Albert Finney e Audrey Hepburn
Com roteiro de Frederic Raphael, este é realmente um filme ambicioso. Mostra a vida de um casal em vários momentos. Todos são intercalados, sem aviso nenhum vamos do inicio ao fim, do meio ao inicio, do meio ao fim de novo. O que une esses episódios é o fato de todos se passarem em estradas da Europa. Ela o conhece como mochileiro na França, e o filme mostra suas outras viagens, no final já ricos e entediados. Há algo de muito doloroso no filme, apesar do toque leve de Donen. Finney está agressivo demais, e Audrey muito passiva, o casal tinha de naufragar. Donen usa técnicas de flash-back à nouvelle vague, não parece o mesmo diretor de Cantando na Chuva. O filme é bastante insatisfatório, mas longe de ser ruim. Nota 5.
   REI LEAR de Michael Elliott com Laurence Olivier, John Hurt, Diana Rigg e Colin Blakely
Como filme ( na verdade é tele-teatro ) é ok. Os cenários são pequenos e a imagem de tv, pobre. Mas o texto de Shakespeare é não só respeitado como bem interpretado. É um filme-peça que nos arrasa. A dor se acumula, os erros se atropelam. A maldade perde, mas o bem nada ganha. Um apocalipse! Olivier dá majestade a seu Lear, ele é tolo, egoísta, cego, mas é também um Rei. Qualquer humano interessado em linguagem, texto e sentido deve assistir. Nota DEZ.
   POTICHE de François Ozon com Catherine Deneuve e Gerard Depardieu
Esposa, em 1977, tem de assumir o controle dos negócios da familia quando o marido é afastado. Depois ele volta. Depardieu é um deputado de esquerda. O filme deveria ser engraçado. Não é. Ozon faz um festival de cenas flácidas, bobas, vazias, até mesmo desagradáveis em sua inabilidade. Roteiro sem porque, seria apenas uma brincadeira? Um modo de Ozon poder usar cenários e roupas de 1977? Nota Zero.
   A COR DA ROMÃ de Sergei Paradjanov
Um dos mais estranhos filmes que já vi. Não há diálogo ou ação. A câmera mostra quadros, cenas, em que os atores posam com os objetos. Letreiros se intercalam com as cenas. Fala sobre a vida de um poeta armênio. Por exemplo, quando se fala da adolescência do poeta, o que vemos é um quadro onde o poeta posa com flores, bules e uma moça. As cenas do mosteiro são perturbadoras, em meio a todo esse hermetismo colorido, Paradjnov consegue algo próximo do hipnotismo. Se voce não dormir, pode ter uma experiência próxima do êxtase. Aliás, um critico inglês diz que ver o filme é como tomar ecstasy. O diretor foi preso na antiga URSS, acusado de homossexualismo, o filme, maldito, era raro. Hoje mora em qualquer locadora. Vale a pena? Vale. PS: porque o cinema russo é tão diferente??? Nota 7.
   THOR de Kenneth Branagh
Dá pra imaginar os executivos da Paramount/Marvel falando: "è sobre Thor, sabe como é, deuses do norte...", "Ah... tipo Shakespeare?"....., "Tive uma ideia! Chama aquele cara que fala de Shakespeare!", 'OK! Chama o Laurence Olivier pra dirigir!"....."Chefe....ele já morreu...." E então meteram Branagh no projeto. Mas retiraram de Thor tudo o que ele tinha de 'mistico". Os gibis antigos, de Lee e Kirby parecem mais adultos que este filme. Nosso tempo, que tem medo de tudo que pareça simbólico, reduziu Thor a um tipo de estudante da UCLA mimado, e Odin a um dono de fábrica confuso. Asgaard se parece com Metrópolis, um tipo de cenário dos Jetsons mais metido a besta. Fizeram de Troia uma guerra sem deuses, agora Thor é um deus sem espirito!!!! Natalie Portman está no filme fazendo suas caras e bocas de sempre, e Anthony Hopkins é Odin. Porque? Shakespeare, chefe!!!!! Nota 1. O martelo é cool.

NARRAR: AMOR E MORTE

   Primeiro modo de viver o começo de um amor.
   Ela veio e me deixou de quatro.
   Segundo modo.
   Ela é linda e é meu tipo.
   Terceiro modo de viver esse nascer.
   Eu estou perdido, meu coração me dá raiva por ser tão ruim pra mim mesmo.
   Uma narração. ( Modo quarto )
   ... e naquele dia de nuvens pesadas, ficamos sózinhos mesmo em meio as ruas lotadas. E quando a noite veio não percebemos que havia tempo. Eu e ela transcendendo os lugares e o tempo e tudo em mim se encantava com a música de sua voz. Então pegamos o carro, que já era nosso, e pegamos a estrada indo ao mar esquecidos de compromissos do dia. Ainda era escuro enquanto deitados em pedras, ouvíamos o rugido do mar batendo em espuma. Eu sei que ele queria me contar novas. E ela dormia enrolada em cobertor, o céu amanhecendo frio, e as ondas querendo participar de nós. Meu amor foi sacramentado no mar. As estrelas foram as testemunhas...

   Modo de viver a morte do pai.
   Ele morreu e é triste.
   Modo de viver a morte do pai.
   Estou mal e a morte não faz sentido.
   Modo de viver a morte do pai.
   ... e eu chorava sem dor, e as pessoas pareciam mais vivas. Conversava com ele, que não era mais 'ele', era agora o pai que tive desde antes de antes. Sentado sobre a grama, eu sabia que seus ossos e carne teriam de ser deixados lá. O carro rodava pela rodovia e o céu me parecia cúmplice. Os ossos ficaram na terra, mas o mais precioso ia comigo no carro. Meu pai era mais vivo que nunca em mim. Sua mão minha, sua voz minha, seu espirito aqui. Eu pai, eu filho, eu sua vida e sua morte...

   Falar é nosso bem.

WISLAWA SZYMBORSKA, ALGUÉM LÊ ( 3 EM 1000 )

   Juro que é verdade.
   Eu estava ontem, 8 de outubro, na livraria Cultura da Paulista. Eram 14 horas e eu fui só pra comprar o livro dessa poeta polonesa, ganhadora do Nobel de 1996. Na prateleira dos poetas, vi três livros dela. Resolvi ir ver primeiro os dvds e depois pegar o livro. Mas um garoto se meteu na minha frente e pegou um dos livros. Puxa! Melhor eu pegar logo o meu. Fui olhar os dvds já com o livro de poesia na mão. Antes de voltar à rua, dei mais uma olhada, e acabei comprando um William Carlos Willians. E eis que um jovem louro pega o último livro de Wislawa e o leva à caixa. Acabaram.
  Wislawa ainda é viva e continua a escrever. Está com 90 anos e é feliz. Foge do hype e publicou muito pouco. Viveu a guerra, a ditadura comunista, a liberação. Na introdução dizem que a Polonia é hoje o país da poesia, dos melhores poetas. Leio esse livrinho ontem mesmo. Afinal, ele saiu só agora, 15 anos após o prêmio. É estarrecedor como nosso mercado é pobre de traduções.
   Sua poesia é simples em vocabulário, em sintaxe. Nada parece muito hermético, modernista, elaborado. Mas isso é enganoso. Sua poesia é filtrada, lapidada, ela trabalha até achar a palavra mais exata, mais clara, definida e definitiva.
   E tudo o que ela escreve é cotidiano. Uma pedra dá mote a um poema. Mas essa pedra se faz a eternidade, e o diálogo é o diálogo entre o ser e o não-ser. Quando ela fala de um gato é apenas um gato ou é o absolutamente "gato" ?
   Todos os poemas me lembram um córrego limpo ou uma nuvem. E ela escreve de nuvens e de guerra também. Ela nunca é intimista, é íntima. Não fala só, mas fala com voz única. É a poesia possível neste tempo que abomina poesia.
   Mas acima de tudo é livro pra devorar, e pra reler e pra deixar de herança pros netos.
   "Meus netos, eu sei que não tivemos o Goethe que voce continua a estudar. E que nunca conseguimos produzir um Shakespeare ou mesmo um Byron que nos desse heroísmo. Mas neto meu, tivemos Wislawa Szymborska! E ela nos consolou."
   Coloquei 3 em mil porque um de seus poemas fala que gostar de poesia é coisa de 2 em mil.

WALTER BENJAMIN, HISTÓRIAS PRA CONTAR

   Ao fim da primeira guerra mundial, Benjamim percebeu que os soldados que voltavam do front nada tinham a contar. Comparando suas cartas com as cartas de soldados de outras guerras, comparando suas memórias com as memórias de outras guerras, ele percebeu que tudo o que eles tinham na mente eram lamentações, dores, angústia e vazio absoluto.
   Walter Benjamim, membro da escola de Frankfurt, foi dentre todos os seus colegas o que escrevia melhor. Isso porque ele unia à frieza do materialismo seus estudos sobre a cabala. Ele procurava unir o limite racional da ciência da época, à espiritualidade da religião e do espirito. Seus textos tiveram um impacto imenso. Na época da pura razão, ele logo notou que o interesse por astrologia, cientologia, quiromancia e paranormalidade, era uma vulgar mecanização de um anseio verdadeiro do homem, o anseio por transcendencia, por sentido, por visão.
   O homem sempre contou histórias. Cada viagem era uma história, cada novo local dava motivo a um novo contar. Viajava-se não para chegar, mas sim para usufruir do caminho, para se ter histórias. Ao voltar, essas histórias eram contadas oralmente, para a comunidade. Jamais existiu sentido em se contar uma história para uma pessoa. Era um representante do grupo contando para o seu povo. Quando a escrita suplantou a oralidade, esses textos continuaram a ter o caráter de "contar uma história". O texto era uma experiência contada para todos. Não por acaso, as mais clássicas dessas histórias falam de mar, marujos, cavaleiros e soldados, são viajantes, pessoas que vão ver o que existe além, e que retornam para nos contar. E que por terem estado lá e vivido aquilo, são SÁBIAS. Toda história de então é uma procura inconsciente por sabedoria. E a sabedoria é saber por ter vivido, é conhecimento feito e realisado.
   A primeira guerra desmoralizou o soldado. Pela primeira vez não havia a menor possibilidade de que o soldado pudesse voltar como herói. Pior que isso, diante de um tanque ou de um avião, o soldado se sentia ridiculo. O centro da guerra passa a ser a máquina, o homem, morto aos milhares, se vê como um nada, um assessório que lá se encontra para cuidar da máquina. Ao retornar, aturdido e esvaziado de dignidade, o que tem ele para dizer aos seus? O que contar? Apenas a dor e o choro. Uma geração que ia de carroça a escola e caçava pássaros com estilingue, se viu jogada em meio a bombas, máquinas de matar e fumaça venenosa.
   Sem história para ser contada o homem não existe. O que nos dá dignidade e sentido é a história que temos a contar. Mas para que essa história se produza é preciso tempo, fruição. Numa viagem a pé ou a cavalo voce tem o tempo necessário para usufruir da paisagem, para experimentar o que o cerca, para provar e observar a vida. Histórias ocorrem a seu redor todo o tempo, e voce tem o vagar para as elaborar. No trem isso não ocorre. A história deixa de ser uma fruição e passa a ser uma partida e uma chegada. Voce sai de uma estação com a mente já alojada na chegada, e tudo o que acontecer no trajeto lhe será INDIFERENTE. A substância da experiência se desfaz, a sabedoria se torna impossível, pois passou-se por um trajeto sem que se pudesse usufruí-lo, portanto, vivê-lo.
   O romancista moderno ( estes pensamentos que aqui cito são da década de 30 ), se separa da comunidade. Escrever passa a ser ato solitário, distanciado da sociedade, em absoluto recolhimento. Pior que isso, se escreve para si-mesmo, não se procura comunicar nada. Romance passa a ser BUSCA DE SENTIDO. Todo romance, de Balzac a Thomas Mann é uma tentativa de se encontrar sentido, de se achar uma HISTÓRIA onde aparentemente só existe vazio. Não se usufrui a vida, não se experimenta o trajeto, não se adquire a sabedoria para ser contada e passada a nova geração. Tudo o que se escreve é a busca por sentido, ocasionalmente o seu encontro, mas sempre cifrado, individualizado, em segredo.
   Benjamim ainda fala sobre o perigo da informação. Toda a manhã recebemos um milhão de notícias, e no entanto, todas aparentemente iguais. Informações que são prontamente esquecidas. Nos tornando cada vez mais pobres de HISTÓRIAS. Pior: a informação deve ser sempre nova, deve nos afetar IMEDIATAMENTE.  Passamos a cobrar isso do romance, que seja sempre imediato/novo e próximo a nossa realidade. Paradoxo, sendo assim ele nada tem a nos ensinar, ele deixa de ser sábio, torna-se INFORMAÇÃO.
   Fim da aula.
   E penso no empobrecimento de conversas, na falta do que dizer sobre uma viagem, um amor, um luto. Em como nada mais é narrado, contado. Na sensação de que as pessoas passam pela vida sem história. Odiando a estrada e ansiando por chegar rápido. Pulando em noitadas sem narração. Nada historiando, indo logo pros finalmentes. Romances muito mal escritos. Sabedoria? Em gotas ela é vendida, portanto, torna-se informação.
   Talvez seja por isso que eu tanto escrevo aqui. Eu não sou um romancista. A vida tem sentido, sempre possuiu sentido pra mim. Eu sou um contador de experiências, um velho à fogueira, um avô, um professor. Sou guardião de sentidos, sentidos em filmes, em músicas, em filmes. Sou memória.
   Walter Benjamim está muito perto de mim.

REI LEAR- WILLIAM SHAKESPEARE, O MUNDO FAZ SENTIDO?

   O mundo como planicie onde o que impera é o ciúme, a incompreensão. O ruim se fortalece, o bom padece. Shakespeare ergue um monumento. Difícil lembrar de texto mais capital. De Dostoievski à Bernanos, todos beberam aqui.
   Lear é o rei-patriarca. Que se deixa levar por duas filhas invejosas, e renega a única que o ama, Cordelia. Pois Cordelia é incapaz de verbalizar ( e assim vulgarizar ) o amor que sente pelo pai. Lear é vaidoso, deseja adulação, homenagem.
   Ao mesmo tempo, em outra casa, vemos Edmundo, o mal, filho bastardo, enganar Edgard, seu irmão, e através de trama bem urdida, fazer seu pai, Gloucester, renegar o bom e ingênuo filho, Edgard. Edgard foge e se faz mendigo, louco em meio a lama-caos. Rei Lear é sobre o amor, e esse amor, amor entre pai e filhos, único verdadeiro, é também o caminho para a dor, a loucura e a morte. Terrível mensagem da peça: amamos apenas nossa origem ( o pai ), mas esse amor nos arruina.
   As filhas invejosas de Lear o expulsam de casa, e ele enlouquece. Outro tema, a dor da velhice, a dor da impotência. O rei vaga na chuva e na planicie, vaga e simboliza todos nós, sem lar, sem prole, sem honra, sem razão. O bobo o acompanha, Kent, nobre fiel o segue disfarçado e Cordelia se casou e vive longe, na França. As dores crescem: o pai de Edgard e Edmund, graças a tramóia de Edmund tem seus olhos arrancados e passa a andar sem rumo também. Imagem que não nos abandona: todos os bons vagam, cegos ou loucos, a esmo. Esse pai, Gloucester, acaba por ser guiado pelo filho mendigo, Edgard, sem o saber. É salvo do suicidio, é guiado por aquele que renegou injustamente.
  Edmund torna-se amante das duas filhas más de Lear. A violência cresce e atinge seu ápice no duelo dos irmãos, Edgard e Edmund. O mal é vencido, mas surge a terrível ironia da peça....
  O pai de Edgard morre e Lear entra em cena com Cordelia morta em seus braços. O velho rei, patético, lamentando a filha morta é daquelas cenas que jamais serão esquecidas por quem a viu. E brota a certeza, o mal é eliminado, mas a vitória não é do bem. Ficamos estupefatos. Não existe catarse em Lear, não há alivio. O mal deixa herança, deixa destruição, o bem persiste, mas não vence...
   Rei Lear, com sua linguagem chegando aos limites do cognoscível, demonstra o quanto nosso público teatral decaiu. No Globe Theatre, a ingressos que equivaliam a uma cerveja, o povão ia em massa ver Rei Lear ou Macbeth. Urrava de prazer, recitava as partes conhecidas, ria com o absurdo. Hoje, Shakespeare é entendido apenas pelos letrados, pelos atentos, pelos cultos... Porque? Estaremos mais burros?
   Walter Benjamim dizia que perdemos a humanidade. Nosso dom ( base do ser humano ) de compreender narrativas, de se deixar conduzir pela palavra, foi perdido em prol da mecanização. Hoje compreendemos somente o que é mecânico, o que tem um sistema claro e único, o que é plano e funcional. Será?
   Shakespeare nos recorda do quanto fomos grandes, de como nossas emoções podem ser vastas, da distância que nossa lingua pode percorrer, e de como perdemos a alma em favor do poder.
   A versão que assisti tem Olivier como Lear. Talvez um Lear bonito demais, mas como é bom ouvir sua voz em frases perfeitas e claras! Bravo!

TOMAS TRANSTROMER

   Um suéco. Nunca o li, mas já gosto. Seus temas são meus temas: a tentativa de encontrar transcendência no pequeno universo que nos sobrou. Há uma frase ótima: O mundo da matéria é como uma festa, em que não fomos convidados. Penso: Sempre que falam do maravilhoso mundo que virá, próteses, robots, pílulas e engenharia genética, me dá uma certeza intuitiva: e NÓS com isso?
   Um suéco. Me parece que seus temas são os mesmos de Bergman. Mas a diferença é que Ingmar por ser mais velho é mais materialista, desencantado, final. Tomas vê uma luz que foi vedada à Ingmar. Suécos pensam demais por não precisar brigar.
   O artigo do Estadão dá de pau na Folha. E Tomas é muito elogiado. O comparam a Swedenborg e a Blake. Se for por aí o homem é um deus. Mas ele gosta do pequeno, então talvez seja um deusinho.
   Unânime a opinião de que foi justo. Eu acho ótimo não terem premiado Roth ( um chato ).
   Sua poesia ensina a viver melhor, mas não edifica; conversa e compreende. É isso que Vinicius Jatobá diz. Não li Tomas, mas já estou gostando.

A ALMA DE UMA CIDADE- RENATO SÉRGIO ( O RIO DE JANEIRO FOI UM DIA LINDO )

  O Rio existiu ou não? Dizem que existiu, dizem que se foi por volta de 1980...
  Renato dá aulas de carioquice e escreve aqui uns capítulos em que se elogia a preguiça, a safadeza inocente e bem-humorada, a amizade, o talento, e os botecos cariocas ( botecos que em São Paulo são moda e centro de caretice explícita ). Renatinho fala de Jardel, de Irene, de Leila, de Clovis, de Joãozinho, de Carlinhos, de Walmor, de Fernando, de Di, de Vinicius, de Paulinho... Renato escreve em bom carioca: frases cheias de malandrice, de cor, de rebolado, de ritmo, de sabor apimentado. São frases curtas, diretas, espertas, solares, quentes, risonhas, tesudas, orgiásticas.
  O Rio foi um paraíso idilico. Acabou em droga-lixo e roubalheira. O Rio foi inocente. Não pense que na malandragem cafa do Rio de sempre havia o embrião daquilo que ele é agora. Não. O que havia era inocencia, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi vitima fácil, porto para o aporto de parasitas que nada sabiam de malemolencia e sorrisos amigos da onça. Renato sabe e diz.
  Havia uma doce sofisticação nobre por lá. Uma doce falta de ambição. Entre ganhar mais um milhão e jogar um frescobol a escolha era sempre pela praia. Entre gravar mais um disco e namorar a menina era sempre namorar a menina. E tudo isso entre ruas que eram amigas de amigos e de meninas sozinhas em fins de tarde de barquinhos e de beijinhos que haviam de ser dados. Não havia melhor lugar no mundo pra morar que Ipanema.
  Mas esse Rio se foi. E o carnaval virou competição. E o samba virou funk. A bossa se fez pornografia. E o Rio, ilhado, sufocado, desamado, tornou-se o bode expiatório do Brasil.
  Renato escreve bem pacas. E seu livro é bom a beça. Valeu!

ROBINSON CRUSOE- DANIEL DEFOE, O NASCIMENTO DO HOMEM MODERNO

   Escrevo aqui observações minhas sobre texto de Ian Watt ( e aula de M. Pen ).
   Calvinismo. Ao contrário do catolicismo, aqui o trabalho é um bem e não maldição. O homem deve, quer e pode trabalhar. E se for iluminado, obterá sucesso. Bens materiais. Mas deve ser modesto, jamais ostentar, e mesmo rico, continuar na labuta. A natureza existe para ser domada pela razão e pelo trabalho, civilizada. John Locke diz que o homem progride por ser inquieto, essa inquietude é sua benção. Pascal, francês, é seu oposto: o homem é amaldiçoado pela inquietude, deve procurar a quietude.
   Robinson Crusoe, livro- produto, feito para vender, é lançado em meio ao século XVIII, época da consolidação de Inglaterra e Holanda como modelos do futuro. Robinson é inquieto, e portanto ele viaja. Vai a Africa buscar aventura e a aventura é só uma: enriquecer. Depois vem ao Brasil e fica por aqui ao longo de quatro anos. Faz-se católico ( por interesse ) e latifundiário, negocia escravos. Viaja mais e naufraga nas costas da Venezuela. Encontra sua ilha, isolado por mais de vinte anos.
   Na ilha o que faz Robinson? Lastima o destino? Chora sua solidão? Fosse latino, provávelmente. Mas ele trabalha, cria e é absolutamente feliz. Eis nosso nascimento: ilhados em trabalho, felizes em ganhar o dia. Felizes?
   Robinson faz casa, faz encanamento, faz ferramenta, arma e plantação. Mas acima de tudo ele domina a ilha, domina a matéria, se faz dono do mundo. Ele é um INDIVIDUALISTA.
   Tem um Deus, afinal é cristão, mas esse Deus é visto como algo seu, um ente com quem ele dialoga. Sua ética é dada pela sua consciência, Robinson fala consigo mesmo, mede seus atos, e sempre vai em frente, nada pode o deter. Essa ética se molda a sua ambição.
   No mundo medieval, Robinson Crusoe seria impossível. Sua aventura deveria ser em grupo, sua ilha seria um reino de encantamento, seu Deus seria distante e inflexível, seus laços com familia e cidade fariam dele um poço de saudades. Ele choraria a distancia das mulheres, da igreja, dos amigos, lamentaria as dificuldades, temeria a natureza. Jamais seria feliz na sua ilha ( que nem seria vista como sua ). Mas não aqui, aqui Robinson se adapta, vê oportunidades, progride. Faz ciência.
   Gênese do mundo que herdamos, aventura sobre a vida desterrada, personagem sem laços com ninguém a não ser com sua própria ambição, dono de seu nariz, e habitante de mundo onde o único sentido é ganhar dinheiro e deter poder, não seria ele nosso trisavô? Mergulhado no mundo em que vivia, Defoe criou a bíblia do mundo do capital.

CONVERSAS COM PICASSO- BRASSAI

   Entre os anos de 1939/1944, Brassai, fotógrafo e escritor de origem húngara, travou amizade e conviveu com Pablo Picasso na Paris da segunda-guerra. E travar contato com Pablo era viver com as dezenas de pessoas que gravitavam a seu redor. Celebridade desde os anos 10, as casas onde Picasso vivia eram invadidas diariamente por amigos, mas principalmente por turistas, compradores de arte e jovens artistas em busca de direção. O livro, descrição do cotidiano do gênio espanhol, consegue fazer algo muito raro em livros desse tipo: faz com que nos sintamos em companhia de Picasso. E estar com ele é acima de tudo um prazer, uma inspiração.
   Henri Matisse está no livro. Matisse, verdadeiro negativo de Picasso e seu único rival de fato e de direito.
Mas vemos por lá também Sartre e Simone, Camus, Miró. Jean Cocteau com sua elegãncia fulgurante e Jean Marais. Ficamos sabendo de fofocas dos surrealistas, de Breton e Dali, de Jacques Prevert. Conversas com todos eles e ainda com Henry Miller, Man Ray e Malraux. Mas é Pablo quem mais nos fascina.
   Picasso não gosta de artistas que posam como "artistas". Ele gosta de quem faz coisas. Ama toureiros, poetas, garçons, cães, gatos, cabras, e principalmente mulheres. Sentimos nele seu segredo revelado, Picasso ama a vida com paixão amorosa e com rancor furioso. Ele é vivo, muito vivo. Jamais está só, embora tente. Há sempre gente anunciando visita, americanos ricos, jornalistas, autores. Picasso, em mundo que ainda tinha vivos Heminguay, Mann, Huxley e Eliot; Stravinsky, Chagall, Hesse e Faulkner, é o artista central do planeta, o gênio entre gigantes. Mas ele não faz pose. Se veste sempre mal ( ternos amassados, bonés sujos, e principalmente shorts sem camisa, o torso nú ), suas casas ( imensos apartamentos e palácios no campo e praia ) são vazios. Poucos móveis, muito espaço. Salas cheias de pó, de caixas de fósforo, de maços de cigarros, de telas e tintas, de esculturas e tralhas pegas na rua. Picasso vasculha o lixo, atrás de coisas interessantes: uma velha caixa de madeira, um caco de espelho, um brinquedo quebrado. Ele dá vida à esses objetos, faz de um pedaço de papelão, uma muralha chinesa; de uma garrafa, um ser de mitologia. Picasso cria sem parar, usa as mãos, esculpe, gruda coisas, pinta, e olha tudo com seus imensos olhos de louco. Nada joga fora, nada lhe é indiferente. Vê em cada coisa uma possibilidade de criação. E faz.
  Sua esposa vive em casa vizinha, casa bem decorada, luxuosa, rica. Pablo mora no caos, bagunça que lhe inspira, caos onde ele dá vida. O livro, cheio de fotos, é delicioso, instigante e dá desejo. De criar, de fazer, de olhar.
  Quem já viveu em casa grande sabe o que irei falar.
  É preciso espaço para ser solto. Paredes onde eu esparramava tinta e portas que eu quebrava ( com arte ). Para criar é preciso sujeira, pó, caos, é necessário poder mudar tudo toda hora, revirar, buscar um carburador e o pintar de dourado, quebrar um relógio de parede e fazer dele um robot, usar um velho rádio como palácio de indios apaches. Dormir no chão e sonhar com a chuva caindo dentro. Nunca fui artista, nunca tive talento algum, mas eu me inspirava então, naquela enorme casa de caos ( e de cães ) e me soltava com tintas, com martelos, com o corpo.
  Este livro me lembrou essa fase de minha vida. E ainda volto a viver lá !!!! Volto sim !