REBELDIA INDOMÁVEL, ONDE ESTÁ DEUS? ( QUANDO FILMES POP SÃO MAIS QUE FILMES DE "ARTE" )

Uma das coisas mais ridículas em certos "diretores de filmes de arte" é o fato de que muitos deles nada têm a dizer. Tudo o que eles fazem é mostrar o óbvio como se fosse novidade. Seus filmes, sempre lentos, solenes e vazios, são peças onde pessoas ansiosas por "sentido" podem pendurar todo tipo de interpretação. Na verdade esses filmes apenas são "sensações", imagens captadas que em seu vácuo pretensioso são como comerciais do próprio "autor".
Mas veja este filme. Um sucesso em 1967, é sobre um desajustado que é pego e vai pra prisão. Nada de muito cruel nessa prisão, o filme não é sobre denúncia social. Na verdade, em sua primeira parte ele é quase uma comédia. Pois bem, nessa prisão ele logo desafia o líder dos prisioneiros. Voce pensa: Ah! Captei! Eis o tema do filme! Mas não! O herói perde uma luta desse "vilão" e para sua surpresa eles se tornam amigos. Juntos, vencem jogos de azar e ganham uma aposta com os outros presos: o herói engole 50 ovos em uma hora. Mas é ao final dessa cena que voce percebe qual o tema do filme ( e esse tema é surpreendente ), o tema é Deus.
Ao vencer a aposta e ser celebrado por todos, ele é deixado sobre uma mesa, só, braços abertos e pés cruzados, exausto, como um Cristo. Acidente de filmagem? Intenção? O filme começa a unir seus pontos, é diversão pop, e é arte, arte natural, arte americana.
O herói ( Cool Hand Luke ) começa a fugir do presídio. Foge por impulso, sem planos, sem chance de conseguir escapar. É sempre recapturado, é sempre festejado pelos outros presos, e acaba por tentar mais uma vez. Há um momento crucial: quando após ser surrado, ele volta a cela. Festejado pelos colegas, ele diz: "Parem de fugir em mim. Quando voces farão igual?" O sentido se revela: os outros vivem por ele. Assistem seus feitos, sentem-se vingados, mas não movem um dedo para o ajudar ou tentar acompanhar. Adoram-no. Passivamente.
O filme seria ótimo se fosse só isso. Mas como foi produzido em 67, é um filme ateu. O herói diz não crer em Deus e é daí que vem seu sentido mais terrível. Se os outros presos têm a ele como consolo, esse Cristo do vazio nada tem. Na última cena ele desafia Deus a lhe ajudar e nenhuma resposta vem. O filme joga-nos na cara essa questão: Cristo teria percebido que ninguém havia para o ajudar?
Após sua morte seu amigo divulga sua lenda. Vemos toda sua saga ser aumentada, colorida, mitificada. Luke será o modelo dos presos. Mas será sempre só.
Paul Newman faz Luke. Seus olhos azuis de criança das ruas nunca foram melhores. A cena em que ele sabe da morte da mãe e toca um banjo é cruciante. Stuart Rosenberg dirigiu. É mais um dos vários diretores da época destruídos pela doideira geral. O filme fez dinheiro, teve elogios, mas ao contrário de Bonnie e Clyde ou A Primeira Noite de Um Homem, este Rebeldia Indomável está meio esquecido. Vale muito a pena. É um belo exemplo de arte em cinema popular.

À SOMBRA DO VULCÃO- MALCOLM LOWRY, O INFERNO MEXICANO

Este livro é um tipo de objeto de estima de escritores "machos" e críticos modernos. E é fácil saber porque. Ele é, além de bom pra cacete, um tipo de "livro de Heminguay" levado ao extremo. Na história dos últimos momentos em vida de um alcoólatra radical, temos um mergulho na prosa infernal que Heminguay ensaiou e nunca realizou.
Lowry era uma promessa imensa. Seu vicio jamais deixou que ele fosse até onde deveria ir. Não se matou aos 27. Chegou aos 48. Deu tempo de escrever quatro livros. Este é seu clássico. É um dos top do século XX. E virou filme de John Huston ( em 1984, com Albert Finney ). Bunuel pensou em filmá-lo. Sentiu onde pisamos?
Malcolm Lowry nasceu na Inglaterra. Foi marinheiro no Oriente, estivador. Se meteu em brigas, em tiroteios e usufruiu de amizades com escritores snobs. Foi guitarrista de jazz, morou na França, nos EUA e no México. Se isolou em cabanas de madeira no Canadá com sua esposa. E bebeu, bebeu muito, até se matar no interior da Inglaterra, em 1957. Um escritor de talento verdadeiro. Este livro prova isso.
E como é dificil de acompanhar essa saga do consul inglês que engole liquidos vários ( whisky, vodka, mescalina, aniz, estricnina, xarope, cerveja. ), tudo isso numa vila mexicana, no dia de finados, sob calor dos infernos e observado por vulcões imensos. A ex-esposa vai visitá-lo, ele pensa em reconciliação, mas a impotência, física e afetiva, o impede de realisar o amor.
Já foi dito que este é o único livro que nos faz viver dentro de um viciado. É fato, ler estas páginas é sentir o inferno. Ele pensa e fala, muito. As frases se atropelam, se repetem, são brilhantes, depois são tolas, estancam, voltam a se repetir, trazem humor, desespero, inesperadas conexões e mais repetições. Para ele é insuportável ver um copo vazio, a beleza está numa garrafa sobre um balcão. Ele mostra a poesia de um bar ao amanhecer, a beleza de uma bêbada solitária. Tem ilusões, acredita que cerveja é vitamina, que whisky lhe fortalece. Tenta atingir o equilíbrio da dose exata, de conseguir ficar são, bebendo.
Fui dono de bar e conheci as figuras. Reconheço alguns. Aquele cara educado, que chegava às 6 da manhã, trêmulo, que não conseguia acender um cigarro, e que ao beber se tornava um homem equilibrado para depois afundar em frases repetitivas e numa placidez de lago ao verão. O olhar de cachorro sem dono ao pedir uma dose, e a alegria ao ver o copo cheio. O livro mostra tudo isso. Assim como a vergonha não assumida, as tentativas de não se ver como viciado, o amor a toda bebida e uma estranha visão abrangente. O cônsul vê tudo, sente as conexões da vida. Ele super-sente, super-reage, super-entende. Ele parece vivo demais, intenso demais, consciente demais, e se anestesia.
O México, terra de sombras, de música incessante, de borrachos, de festa aos mortos, é o cenário. Um imenso bar gótico. E as linhas do romance correm, imagens sem fim, cores e frases ditas pela metade, sentimentos que nascem e se apagam, uma inteligencia que agoniza.
É um dos infernos mais infernais já escritos. Ler sua prosa é afundar um pouco.

SUPER 8, FILME DE JJ ABRAMS, TEMPO SEM HISTERIA

A minha geração é geração que adora lembrar sua adolescência. E como eles agora são os diretores que podem escolher temas, abundam filmes que se passam no periodo entre 1976/1979. Recordo de um dos primeiros, Dazed and Confused de Richard Linklater e depois temos Velvet Goldmine, Boogie Nights, Quase Famosos, Tempestade de Gelo, Crazy, The Runaways, o excelente Reis de Dogtown e mais um monte que me esqueço agora. Nas entrevistas Abrams tem dito que sente falta daquele estilo de vida, do modo como se filmava, da estética dos filmes daquele tempo. A saudade deve ser imensa, porque ao contrário dos filmes acima citados, não existe um motivo para se situar este filme em 1979. Apenas a nostalgia.
Uma das maiores experiências que já tive numa sala de cinema foi a de ter visto Contatos Imediatos em seu tempo. Toda a platéia teen entrava em êxtase. A saída da sala era como um tipo de saída de tenda de xamã. Sabíamos que nunca mais o cinema seria o mesmo. Nós tomávamos o poder. Nada mais de cinema politico ou de vida adulta. As telas seriam dos teens e nós mostrávamos que tínhamos filosofia, visão, arrojo. Para o bem ou para o mal. JJ Abrams também estava numa sala escura naquele ano. Este filme é todo o tempo sua homenagem a Contatos Imediatos, mas também a O Vencedor e a todos os filmes baratos de horror. É um filme tosco de 1979. O fato de hoje esse tipo de filme ser levado a sério mostra o que somos.
Nas entrevistas Spielberg diz ter alertado Abrams que sem Truffaut e Jean Vigo, o cinema americano moderno não existiria. Quem viu O Atalante e A Idade da Inocencia sabe o que isso quer dizer. Em seus melhores momentos, este filme tem o espirito leve de Truffaut. Nos seus momentos ruins, ele é apenas mais um filme de catástrofe. Felizmente ele é um bom filme. Um filme realmente bom.
Apesar de suas concessões. Na estética de 1979, um filme exibia ação após mostrar os seus personagens. Aqui se mostra o personagem em meio a ação. O que faz com que certas falas beirem o ridiculo. Mas Abrams persiste, e sua sinceridade, o fato de ele amar o que faz aqui, acaba por salvar o todo. Se tudo parece tolo, bem, a mensagem é tão bacana que acabamos por engolir a coisa inteira. Não deixa de ser engraçado, como disse alguém, que filmes que eram tratados como cinema pipoca ( Tubarão, Contatos, Blade Runner, Alien ) sejam hoje "cinema sério". Super 8 é lançado como se fosse cinema sério. Não é. Em tempo de cinema sério hiper-chato, felizmente este filme se assume popular. Mas ele tem algo a mais: estilo.
A ação é feita pelos personagens. Não vemos coisas explodindo, o que vemos são pessoas se movendo em meio a explosão. Tudo acontece ao redor de gente. Abrams pegou o melhor dos filmes de 1979: o ator está sempre em primeiro plano. Dessa forma, o que mais lembramos não é o monstro, ou as armas do exército, ou a cidade em chamas. Lembramos dos meninos em fuga, da população em pânico e da menina confusa. Os efeitos não são a estrela. O filme é sobre gente.
Porque 1979? Bem.... além da nostalgia, talvez naquele tempo sem celulares e e mail, onde a vida só podia ocorrer na rua, Abrams tenha tido o espaço poético para não ser histérico. O filme é de ação sem fim, mas a histeria não está presente. O mundo mostrado aqui nada tem a ver com o mundo de Transformers ou de Velozes e Furiosos. Não há o histerismo da máquina em disparada. O ritmo é da pelicula. Biológico. Acelerado, mas sempre humano.
Os ex-adolescentes ( alguém conseguiu ser ex? ) adoram 1979 porque foi tempo de começos mundiais. Todo adolescente se sente "em começo", mas o segredo de 1979 é que o mundo parecia "começar". Começo do punk e da música eletrônica, começo do rap. Inicio do skate e do surf como esporte profissional, começo da moda de esportes radicais. Inicio de tvs a cabo, do clip e dos video games. Foi o começo do blockbuster e do filme feito em casa. Dos zines mimeografados, dos albuns de luxo de HQ. E foi também o começo do fim. O fim das ideologias, da inocência pré-aids e do rock como música anti-sistema. Grande tempo para se ter 15 anos.
No mais há no filme um leve pedido de desculpas da América ao mundo. É quando é dito ao alien: "Alguns de nós são bons". Tenho a certeza de que, quando a América deixar de carregar o peso de ser a policia do mundo, teremos uma nova nostalgia mundial: a saudade da hegemonia americana. O filme é bom. E 1979 foi um grande ano.

KUROSAWA/ CLINT/ DE PALMA/ ELIA KAZAN/ BRANDO/ LOACH/ OLIVIER/ MANKIEWICZ

O ÚLTIMO VÔO de Karim Dridi com Marion Cotillard e Guillaume Canet
Chato... é sobre mulher que procura marido perdido em deserto africano. Soldado da legião estrangeira vai a ajudar. Ela pilota avião. Podia ser uma boa aventura. Mas não há interesse, ritmo, suspense, nada. E a personagem de Marion é rasa como de resto são todos os diálogos. Um pé no saco. O filme é de 2010 e acho que não passou aqui. Nota ZERO.
SUGATA SANCHIRO de Akira Kurosawa
Eis o primeiro filme do mestre. Feito em 1943, antes da bomba, vemos o Japão ainda de tamancos e kimono, de muita gente e paredes de papel. O roteiro fala de mestre de Judô ( uma nova arte ) que desafia os mestres de Jiu Jitsu ( a arte tradicional ). Curto e simples, é um belo filme. Nota 6.
O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS de Don Siegel com Clint Eastwood
Um soldado Yankee ferido, se abriga em escola feminina no sul rebelde. Ele seduz cada uma das alunas, mas o ciúmes das meninas e a vaidade do soldado faz com que tudo caia em violência e horror. O filme tem um belo clima gótico e realmente sentimos que ele caiu numa cilada, que será castrado. Mas ao mesmo tempo falta mais ousadia a Siegel. Nota 5.
HI, MOM de Brian de Palma com Robert de Niro e Gerrit Graham
Auge da contracultura. De Niro é um cara que filma as janelas vizinhas para fazer um filme pornô. Mas depois o filme explode em faíscas: ele participa de uma peça: Seja Negro Baby! A peça é aquele tipo de espetáculo cruel em voga naqueles tempos irregrados. O público é atacado, humilhado, e agradece por isso. É o segundo filme de Brian de Palma. Mal feito, tonto, sem rumo, solto, tolo. E mesmo assim, fascinante. Um adendo: o que se pode hoje em Londres? E em Madrid? E na Grécia? Grana. Emprego. O que se pedia em 1970? Um mundo novo. Liberdade absoluta, paz e socialismo. Algo recuou. Nota 5.
O VELHO QUE LIA ROMANCES DE AMOR de Rolf de Heer com Richard Dreyfuss e Hugo Weaving
Que bom ator que é Dreyfuss!!! Aqui ele faz um latino americano e realmente, sem nenhuma caricatura, ele se torna um latino americano do Amazonas! Richard Dreyfuss foi uma estrela nos anos 70 ( Tubarão, Contatos Imediatos ), mas ele foi sempre tão cool que jamais ligou muito para sua fama. Ainda é grande, muito grande.... Este bom filme ( e que não passou aqui ), fala de onça que mata pessoas na Amazônia. Dreyfuss é um homem velho que sempre viveu isolado, amigo dos índios e que lê livros banais de amor. Ele e alguns amigos ( e Hugo nunca esteve tão bem ) vão à caça. O filme é lento, respeitoso, nada new age. Uma bela surpresa! Nota 6.
UM BONDE CHAMADO DESEJO de Elia Kazan com Vivien Leigh, Marlon Brando, Karl Malden e Kim Hunter
Eis o gênio em ação. Brando cria o ator de hoje no fim dos anos 40. Sua atuação é tão violenta e sensual que causa espanto. Mas Vivien também está genial como a delicada Blanche Dubois, a falida dama que vai morar com a irmã em New Orleans e afunda na sordidez. Veja o modo como Brando repete o tal "código napoleonico", observe a riquesa dos cenários, os olhares patéticos de Leigh. Os diálogos de Tennessee Willians são poesia de primeira. E temos Kazan, o homem que entendia o significado da tal "crise familiar". É um filme para ser visto e estudado. Nota 9.
CINCO DEDOS de Joseph L. Mankiewicz com James Mason e Danielle Darrieux
Durante a segunda-guerra, mordomo da embaixada inglesa vende segredos militares aos nazistas. Tudo ocorre na neutra Ankara. E o filme sabe usar o clima turco. Mas tem mais: sabe criar suspense, sabe tirar proveito do rosto de James Mason ( e poucos atores sabem fazer canalhas tão bem ). Há uma frase que nos toca. O espião diz que vende segredos apenas pelo dinheiro. Seu sonho é fugir para o Rio. Diz ter visto uma vez, de um navio, um homem de smoking branco, fumando um cigarro em varanda sobre o mar, no Rio. Para ele, aquele era o homem mais feliz do mundo. Ele quer ser como ele. Não consegue. Ou quase. Mas o filme faz o que promete, é diversão de primeira classe. Nota 8.
MEU NOME É JOE de Ken Loach com Peter Mullan
Este fez sucesso em Cannes e deu prêmio de ator a Peter. Passa-se em Glasgow. Ele é um frequentador dos AA. Treina time de futebol e vive do seguro desemprego. Enamora-se de médica e tenta ajudar amigo envolvido com drogas. Loach é um homem a moda antiga. Ele se preocupa com o mundo real. Seus filmes falam do que acontece de verdade, ele não divaga. Uma informação: nos anos 60 havia uma corrente de criticos que odiavam Bergman. Diziam que seus filmes só podiam interessar a burgueses bem de vida com problemas existenciais recorrentes do tédio de se ter a barriga cheia. Que a vida real não era aquela. O tempo mostrou que aquela também era a vida real. Mesmo que de suecos ricos. Mas o que me incomoda hoje é que não se mostra mais a vida de gente pobre e normal. Sempre que se mostra um pobre ele é um traficante, um tarado serial ou uma prostituta. Parece que todo pobre americano é personagem de comédia ou louco perigoso. E todo pobre britânico seria um cara de filme de gangster. Isso não acontece com Ken Loach. Ele ainda crê na humanidade individual de cada personagem. Joe é rico em emoções, é comovente sem ser piegas e enfrenta o mundo da droga sem jamais parecer um personagem de cinema. O filme, verdadeiro e poético ao mesmo tempo, é obrigatório para quem perdeu a crença na força do cinema. Eu tenho a certeza de que é para filmes como este que ele foi criado pelos Lumiere. Um detalhe: o time de futebol joga com as camisas da Alemanha de 74. Assim, rimos aos ver o grosso do time correr com a camisa 5 de Beckembauer e o gordão com Muller às costas. Depois eles roubam uniformes e cometem aquilo que o técnico rival chama de "sacrilégio". Jogam com as sagradas camisas do Brasil de 1970. Pelé e Rivellino são citados. Escoceses pobres respeitam e idolatram a amarela camisa dos "deuses"da bola. Me parece que isso nos ensina algo. Nota 9.
O DIVÓRCIO DE LADY X de Tim Whelan com Laurence Olivier, Merle Oberon e Ralph Richardson
Fog em Londres. Fog tão forte que a cidade pára. Um casal que não se conhece fica em mesmo quarto para passar o fog. Ela se apaixona por ele, ele pensa que ela é casada.... Vemos uma comédia dos anos 30 para obter 3 coisas: alegria, calma e bem estar. Pessoas bonitas e bem vestidas em locais luxuosos esbanjando dinheiro e bons modos, dizendo frases alegres e espertas e sendo todo o tempo adoráveis. Este filme tem tudo isso. E ainda nos dá o prazer de ver Olivier fazendo Cary Grant e Ralph Richardson em seu jeito levemente louco de ser. Ver filmes como este é como tomar champagne gelada em noite de luar a beira-mar. Felizmente eles existem. Nota 7.

PAI

O pai nasce em nós como um deus em vida de crente. Ele é o mundo todo. É aquela insondável figura que conhece todo segredo, que vem lá de fora, e que fala com a voz de quem sabe. O meu tinha cheiro de Aqua Velva e bigode fininho de Erroll Flynn. Chegava em casa com a noite, adentrava fazendo barulho e suas mãos tinham moedas para meus doces. Ele era imensamente forte, viril, e à vontade. Consertava coisas: o motor da bomba do poço, o exaustor da cozinha, a porta de mola, a fechadura da sala, meus brinquedos. Criava canários e curiós e estava sempre assobiando. Nas manhãs de domingo escutava rádio na cama, alto. Bandas marciais. E lia um infindável jornal. Pouco abraçava e pouco elogiava. Era um tímido. E sempre sentiu ciúmes de cada amigo que eu encontrava. Ele mágicamente resolvia problemas. Contas eram pagas, remédios comprados. Trazia surpresas: a maior foi uma tartaruga em caixa de papelão. Da padaria vinha sempre um bolo, brioches, frango assado. Seus bolsos tinham sempre chaves, maços de dinheiro e um pente. Roncava alto, dava broncas cruéis, era um mundo em si.
Mas o pai, que foi um deus, é aquele que se torna um nada quando na puberdade nos tornamos ateus. Baixamos esse homem à Terra porque não admitimos, cheios de hormônios, que alguém possa ser maior que nós. Ainda mais um velho! E tudo o que ele é passa a nos causar repulsa: os pássaros, o ronco, a voz alta, as músicas, as camisas listradas, a padaria e o bigode. Todos os seus filmes favoritos se tornam os mais detestados e o cheiro de Aqua Velva uma lembrança a ser apagada. O tamanho da queda é proporcional ao tamanho do deus. Trocamos o pai pelo mundo.
Vem a tragédia então: O deus morre e o mundo se faz vazio. Os olhos que te olhavam se fecham. A voz que te assombrava é calada. Voce não é mais "um filho". O silêncio vence.
Hoje é dia deles. De quem fez voce. De quem te deu a vida. De seu deus pessoal.
Passei toda a vida brigando com ele. E sei que se ele estivesse vivo, continuaríamos a brigar sem parar. Porque eu queria que ele me desse algo que ele jamais poderia dar. Amor absoluto. Dar esse amor o anularia, faria com que ele deixasse de ser pai. Minha raiva por ele tinha o tamanho exato de minha mágoa. E a ironia da vida se faz dia a dia; cada vez me pareço mais com ele. A mesma voz, o mesmo modo de andar, expressões que repito, conceitos que agora eu sigo. Em fotos me assusto com meu olhar que é o dele. Me assusto? Ou me orgulho?
Ah meu pai.... a mágica da vida é que nada sabemos sobre ela. Tudo o que eu tinha certeza não foi o certo. E agora aqui estou, vendo seus velhos faroestes, sentado em sua poltrona e assinando seu nome em cada linha que escrevo. O sangue é uma coisa séria.

PETER E WENDY- JAMES M. BARRIE, UMA OBRA-PRIMA

James Barrie nasceu em 1860. Aos sete anos sofreu um trauma: a morte do irmão David, aos treze, e a consequente tristeza da mãe. Barrie se tornaria muito famoso com uma peça: Peter Pan, que estreou em 1908. Ele viria a falecer em 1937, após um casamento infeliz e uma vida de sucesso literário. PETER E WENDY é a adpatação em prosa da peça PETER PAN, feita pelo próprio Barrie. É, sem a menor dúvida, uma obra-prima. Superlativa em termos de criação, invenção, estilo e profundidade. É ainda um testemunho do que foi a infância no século XX, e do que ela não é no século XXI.
O livro começa já em alto nonsense. Nana é a babá, e ela é uma cadela. O pai só pensa em ações e dividendos e a mãe se anula em seu amor materno. Wendy, John e Michael são os filhos e numa noite, Peter Pan invade o quarto e os leva para a Terra do Nunca. Esqueça o desenho Disney, o filme de Spielberg ou o drama sobre Barrie com Johnny Depp ( todos são bons, mas nenhum o é como aqui ), esta novela tem tons de maravilhamento, de sombras e de dor que nenhum dos veículos nomeados acima pode tocar.
Algumas falas são estupendas, e quando Peter diz: "Morrer deve ser uma maravilhosa aventura!" o livro se torna gigantesco. Raros autores conseguem espelhar a vida de forma tão profunda e tão simples. James Barrie vai se aprofundando em arquétipos sobre arquétipos, e tudo parece incrivelmente natural.
Peter não tem memória. Ele se esquece. E tudo o que ele vê é a si-mesmo. Ele se ama, se gaba e crê em sua invenção. Peter cria seu mundo todo o tempo. E a contagem de dias e meses não existe. Cada dia é uma dia encadeado no dia anterior. E cada um desses dias será igual ao anterior e ao mesmo tempo totalmente novo. Peter se move em vôo porque crê poder voar. Assim como tem contato com as fadas porque deseja ter. O mundo onde ele vive é criação sua e quem lá vive deve segui-lo e adorá-lo. E todos amam Peter Pan. Barrie não tem pudor em dizer isso: a juventude é a única sedução. Ser jovem é tudo o que importa. Envelhecer é a morte. Peter Pan atrai por ser o espirito da eterna juventude, e sendo sempre criança, ele é alegre, ágil, vivo, criativo, irriquieto e desmemoriado. Ele faz coisas, não pensa coisas, ele age por impulso, nunca planeja, ele não agrada, é agradado, ele não ama, se ama.
Wendy é a mulher, e mulheres amam Peter. Elas amam seu jeito infantil que promete fragilidade. E se surpreendem com sua força e coragem. Peter tira-as da vida tola e maçante, leva-as ao mundo da não-regra, mas tudo o que ele deseja é que ela seja SUA MÃE. Peter não tem mãe, ele nem sabe o que é uma mãe, mas ele sente precisar de uma. Ela cuida de sua casa, conta histórias e remenda suas roupas. Sininho é uma fada. Ela depende de Peter. Sem sua fé ela não pode existir. É ciumenta e vingativa. Temos aí as duas mulheres que atraem Peter, a mãe e a irmã.
Com ele vivem os Meninos Perdidos. São filhos que se perderam dos pais. Peter é seu lider, seu chefe, seu ídolo. Mas o que eles realmente querem é um lar. Têm uma vaga ideia do que seja isso.
E surge Gancho. Uma criação genial, o CAPITÃO GANCHO é vitima de uma terrível melancolia. No tic-tac do jacaré que o segue há a consciência terrível do tempo que passa e da morte que virá o comer. Gancho odeia Peter porque Peter não se preocupa com nada. Peter zomba de tudo. Gancho é preocupado com etiqueta, com bons modos e ao pensar ter vencido Peter tem seu momento shakespeareano: sente o vazio da vitória. Dois breves momentos revelam um horror subjacente a história: Wendy sente atração por Gancho, e Peter sente-se como ele ao matá-lo. Gancho é o Peter Pan que cresceu.
Wendy volta a casa e reencontra os pais. Esse reencontro é feito com maravilhosa delicadeza por Barrie. E me comove o momento em que Peter olha esse reencontro pela janela e sente que aquilo não é para ele. Peter não tem casa, lar, pais. Ele voa.
Peter visitará Wendy todo verão. Mas seu tempo não se conta e ele desaparece por vários verões. Reencontra Wendy velha, que se envergonha. Ele mal percebe que ela envelheceu, só tem olhos para si. A filha de Wendy se encanta por Peter e parte com ele. A neta irá com ele também e por todo o sempre assim será...
John se torna um homem de guarda-chuva e pasta, Michael um juiz soberbo. O dom de voar e a Terra do Nunca um vago brilho esquecido.... Será?
O livro tem tantas frases belíssimas que sinto a tentação de ficar citando e citando. Não o farei. Leiam. É lançamento recente da LPM, fácil de achar e barato. O que desejo dizer é que não sei se as crianças de agora ainda são Peter Pan. Temo que não. Elas caem logo no mundo real e são engolidas pelo tic tac do jacaré. Gancho as vence e seduz com rapidez. Porque Peter não tem horário, não segue normas, cria seu mundo e sua história, corre, voa, pula e briga. Dança e canta todo o tempo e ignora todo o mundo, menos o seu desejo. Medo? Apenas um: crescer. Observe, ele não teme morrer, ele teme crescer. Crescer seria ficar em casa, obedecer, se adaptar, deixar de voar. Peter Pan tem um limite, não pode amar de verdade. Amor seria submissão. Ele é livre.
Eu diria que hoje todo homem pensa e tenta ser Peter Pan. Mas as crianças deixaram ele e Sininho para trás. Quanto as mulheres.... elas sempre são e serão as Wendys, aventureiras que nunca se esquecem da hora do remédio, da hora de dormir e do momento de voltar pra casa.
Puxa! É um livro triste pra caramba!!!!!! Mas eu amo esse Peter Pan!!!! É a melhor parte de mim, a única que me faz feliz. E quando fecho os olhos e me sinto contente é sempre ele que me faz voar e me leva por aí. Ah! Viver, Morrer, Matar ou Perder....tudo é uma imensa aventura!!!!

GENIALIDADE É UMA ESTRADA QUE SE ABRE

Uma das piores coisas que o mundo- supermercado fez, foi transformar certas palavras em absoluto vazio. Guru é uma. Reinvenção é outra. E "genial" é uma das mais vulgarizadas. Do jogador de dezoito anos ao cozinheiro de restaurante espanhol, gênio é questão de empolgação. Claro que não quero impedir ninguém de chamar seu cabelereiro de genial ou de bradar por aí que o Seu Chico faz um beirute de gênio. Mas em arte são tantos gênios que a coisa se torna até ridicula.
Para os mais rigorosos, gênio só pode ser aquele que abre novos caminhos. Ele é o grande fertilizador, o que surge do nada e faz com que uma multidão de grandes talentos flutue sob sua influência. Em gênio verdadeiro há a história em todo o seu resumo. Ele absorve todo o passado, e o devolve renovado, insuspeito. O gênio faz com que olhemos para trás vendo beleza onde pensávamos nada haver. E principalmente, faz brotar todo um novo universo.
Rigorosamente então, cada arte tem um único gênio. O homem que fez com que aquela arte se tornasse aquilo que até hoje conhecemos. Shakespeare é o caso mais exaltado. O teatro como o pensamos nasce com ele. Shakespeare absorve todo o passado, assombra seu tempo e fertiliza tudo o que o tocou. Trancado em vida de mistérios, alegre como um sátiro e ao mesmo tempo sombrio como um maldito, ele é o centro e o criador, simboliza um sempre-nascer e estranhamente ele é o futuro que sempre nos aguarda.
Na música há uma briga entre Bach e Beethoven. Se Bach é o homem que organiza e harmoniza o que entendemos até hoje por "música ocidental", é Beethoven quem se faz "músico artista". É com Beethoven que nasce o criador comprometido apenas com si-mesmo, o artista livre, ambicioso como um deus, louco e ousado, incansável. Para mim, é ele o gênio da música.
Na poesia Dante é o gênio inevitável. Tudo o que entendemos por "vida poética", por "busca pela inspiração", por musa, simbologia e musicalidade está em Dante. Cada poeta esbarra na imensa presença desse irado cantor de vingança. De sua irradiação brota toda a poesia que conhecemos. Ele eleva o poeta de menestrel a fazedor de mundos.
Na pintura a coisa se complica. Giotto, Leonardo, Velazques e Rembrandt brigam pela honra. Não me meto nessa briga, o próprio hábito de se chamar arte de coisa genial começa na pintura. Adoro todos os quatro e leio críticos que colocam cada um deles no patamar mais alto. Me parece que Giotto foi o criador, Leonardo o insaciável, Velazques o melhor dotado e Rembrandt o inventor do pintor como hoje o conhecemos.
A prosa é caso a parte. Não há na prosa um titã central. Nada que se compare a Shakespeare, Dante ou Beethoven. Porque? Há algo de operário na prosa, de trabalho de formiga, de lento construir. Como todo artista, o autor de prosa é também um egocentrico, mas ele não pode ter a cara dionisíaca do grande músico ou do poeta maldito. Seu trabalho é mais racional, menos tempestuoso. E assim, a história da prosa é feita de monstros que rugem alto, de florestas de talento, mas não de uma explosão criadora. O maior candidato a gênio central seria Cervantes, mas mesmo ele não é universo fertilizador e inventor de novas formas como o são Giotto ou Bach. De qualquer modo, O Quixote é molde e norte de todo romancista de brilho.
Chegamos então as sub-artes, e com elas vem o cinema. Ora, se na prosa já há essa dificuldade de se encontrar o centro criador, imagine uma arte tão fugaz e recente como o cinema. Mas podemos tentar vislumbrar esse gênio.
Todo gênio surge como recomeço. Se pensamos que para se ser gênio é preciso ser "muito antigo", não entendemos nada. Quando Shakespeare surge, o teatro já possuia 2000 anos de história, o mesmo com a poesia, pintura e música. O que eles fazem é criar um tipo de ponto zero. Assim, é como se o teatro começasse com Shakespeare, a música com Bach ( ponto para Bach sobre Beethoven ) e a pintura com Giotto. Quem dá essa sensação de ser o ponto zero do cinema? Murnau? Lang? Ford? Pode ser, mas é necessário ainda que ele seja um fertilizador, alguém que trouxe consigo toda uma leva de novos talentos, de gente refazendo tudo. Godard? Rosselini? Ele precisa ser um deus de potência feliz e um demonio de sombria danação, um individualista. Bunuel? Bergman? Fellini? Mas acima de tudo, ele tem de destruir o passado e fazer nascer um mundo novo. Quem mais chega perto de TODAS essas características é Orson Welles. Se o cinema criou um gênio verdadeiro, esse foi Orson.
Com tudo isso eu explico o porque de ter dito que se o rock possui um gênio esse cara só poderia ser Bob Dylan. Mito, individualista, fertilizador, criador de um novo marco zero. Sem ele o rock teria seguido o destino que se lhe afigurava: yeah yeah yeah. Pop para adolescentes caipiras. Irresistivelmente dançante, maravilhosamente impetuoso. Eternamente alienado. Mas Dylan cria um mundo novo, ele traz RELEVÂNCIA ao rock, ambição, respeito intelectual, raiva e muita inquietação. Pega todo o passado e o engole. O que ele cospe é o que entendemos por "artista do rock", um cara de óculos escuros ligado em cinema, livros e drogas. O rock, como o jazz, não tem gênios. Eles não têm tempo para os criar. Mas se os houvesse, Dylan seria o gênio do rock. Sem ele, todos os caras que voce poderia contrapor ( Lennon, Lou Reed, Leonard Cohen, Bowie, Patti Smith.... ) , não teriam existido.
Afinal, todo gênio tem de saber "como é estar por si-mesmo/ like a rolling stone"...

A INOCÊNCIA DO PADRE BROWN- G.K. CHESTERTON

Os contos policiais de Padre Brown foram enorme sucesso na Inglaterra dos começos do século XX. Chesterton, polemista refinado, tornou-se umas das estrelas da época ( e que belas estrelas: Noel Coward, HG Wells, Churchill, Russell, Shaw ). Os contos, curtos, primam pela forma de dedução lógica utilizada pelo Padre ( sim, ele é um padre católico inglês ). Uma série de pistas que são unidas e de onde se tira seu sentido. Mas, ao contrário de Sherlock Holmes, as pistas são nos dadas desde o inicio, Chesterton não endeusa seu personagem, ele é um modesto. Perto dele, Holmes é um tipo de James Bond vitoriano.
Todos os 12 contos são deliciosos. Levemente góticos, tangem todas as formas de tragédia humana. E causa um delicioso prazer observar que em alguns casos, Brown obtém a confissão e o arrependimento do criminoso, deixando-o em seguida livre para viver. Chesterton, defensor da ortodoxia católica, jamais deixa de usar exemplos de virtude cristã em suas histórias. Padre Brown compreende racionalmente os criminosos e é daí que tira suas conclusões. O autor também não perde a chance de mostrar o perigo de religiões exotéricas, de crendices pseudo-racionais e de ateus vazios. Nada de carola há nos contos. O Padre jamais prega ou moraliza, mas seu pensamento, sutil, está sempre em voga.
Ficaram famosos nos anos 30 as transmissões da BBC, em que Chesterton discutia ateísmo com Bertrand Russell, socialismo com Bernard Shaw e materialismo com Wells. A forma calma e ponderada de Chesterton, calma típica de Padre Brown, levava sempre o antagonista ao desânimo. Bons tempos do rádio.
Fácil de achar em banca, este livro é indicado para aqueles dias/noites de tédio, em que tudo que voce quer é um livro que divirta e instrua, passe o tempo em prazer calmo e instigante. Vale cada minuto gasto.

UM PLANETA CHAMADO ADOLESCÊNCIA

Eu tinha dezesseis anos quando numa varanda em Santos tive essa conversa deprê com uma prima de minha mãe....
Que nada fazia sentido porque tudo acabava em morte e cinzas. Para que viver se o fim era certo? Qual a utilidade de um livro, pra que escrever, se tudo vira passado? Falamos mais: que Deus era um consolo de fracos, que o capitalismo era canibalismo e que o socialismo era a igreja de ateus. E em meio a tanta coisa óbvia, infantil, digo que a dor era de verdade. Éramos incapazes de ver qualquer coisa que fosse mais que nossa imensa dor. Nos achando clarividentes, víamos apenas um espelho. Pois não percebíamos que o mundo era triste porque éramos tristes. Nós dois. Mas o mundo estava além de nós.
Mas eu pensava como um romântico melancólico de 16 anos.
Com o tempo passei a usar a melancolia como estilo de sedução. Mas não suspeitava que a melancolia era a parte de um todo. Pensava ser ela o todo. E via tristeza em tudo: o mar era triste, a noite era fúnebre, as mulheres eram vítimas e os bichos eram sombras. A melancolia virou depressão e a dor se tornou um eu. Único.
Quando encontrei uma muleta, tudo mudou radicalmente. A razão ocupou o lugar da dor.
Ora, se um simples comprimido fazia com que toda a minha visão da vida se modificasse, então a vida era questão de quimica. Somos um composto de reações quimicas e de evolução genética, cuidar do balanceamento quimico e compreender a evolução é entender a vida. Um macaco que deixou de estar confortável em seu planeta: somos isso. Amor é desejo de procriar disfarçado e enobrecido pelo cristianismo, guerra é uma lei geral de sobrevivência, arte é ilusão de covardes, e a religião é o grande besteirol da vida. A euforia pela ilusão da resposta é sempre ridicula, eu o fui. Converse com qualquer pessoa que pense ter respostas, seja um sociólogo, um filósofo ou um psicólogo, eles sempre cairão em dogmatismo, viverão na fé da certeza.
Mas isso foi se desgastando e foi a arte que mais fez esse trabalho. Se a quimica tudo explica a questão é: de onde vem a quimica. Se a evolução é fato, a questão se faz: de onde vem a vida? Sim, emoções podem ser desarranjos quimicos, sim, o amor pode ser desejo animal disfarçado, mas de onde vem o desejo? O que é procriar?
Dizer que a vida é triste melancolia é adolescência.
Pensar saber que tudo pode ser explicado pela razão é deslumbre de jovem adulto.
Perceber que não temos a possibilidade de entender é começar a compreender.
Continuo com minhas muletas. Não quero mais retornar ao planeta romantico. Optei por me mudar de lá. Mas, passado o desbunde pela potência, recordo sua existência e entendo ser ele apenas uma face, pequena, de um todo inalcansável.

AS ILHAS DA CORRENTE- ERNEST HEMINGUAY

Releio mais uma vez este que é um dos últimos livros de Heminguay. Foi um fiasco. Mas, não sei porque, é dos livros que mais gosto.
Sei que ele é vazio. Dividido em 3 partes, na primeira lemos sobre um pai que vive em ilha tropical, confortávelmente só. Tem um amigo bêbado, ocasionais casos com prostitutas nativas e escreve. Seu casamento foi um fracasso e ele se culpa por isso. Três filhos vêm o visitar. Há uma longa pesca e lautos jantares. E o tom dessa primeira parte é de desencanto, monotonia. Mas ao lado disso, há uma soberba descrição do mar, da praia, do sol. Há a descrição da comida, e este livro abre nosso apetite, há receitas nele que fiz em casa, bebidas. Ao lado da dor do tempo perdido, existe uma descrição do prazer, dos apetites, e do sol. O sol brilha forte todo o tempo, e tudo é mar...
Na segunda parte a ex-esposa vem o visitar. Um dos filhos morre em desastre de avião ( é época de guerra ) e a dor se instala de vez. Heminguay se desnuda na forma como o personagem enfrenta a dor. A esposa é exemplo de elegância e os tons sombrios se instalam. Se gosto do livro é por sua primeira parte.
Na terceira, ele parte em barco à caça de submarino nazista que foi visto por lá. Aqui Heminguay se perde. Como aventura é inconvincente, como narração, repetitiva. Se já li este livro 3 vezes, esta terceira parte foi lida apenas uma. E basta.
Há um belo filme de Franklyn Schaffner que segue este livro. George C. Scott nasceu para ser Heminguay. De certo modo ele é mais Heminguay que o escritor. No filme, a parte um é esticada, a parte três diminuída. É o que eu faria.
Ernest Heminguay tem quatro livros que gosto ( ainda ). O SOL TAMBÉM SE LEVANTA é o melhor. Seus livros de contos são todos bons. O volume onde recorda sua vida em Paris é ótimo. E este imperfeito AS ILHAS DA CORRENTE. Vazio, às vezes tolo, sem rumo.
Mas há algo na descrição da vida, do azul do mar e da força do sol que nos cativa. Heminguay teve o DUENDE.... a força vital que os espanhóis descrevem. Só que ele cometeu um erro: vulgarizou esse DUENDE. E o perdeu. Toda a parte final da vida de Heminguay é a dor dessa perda, a impotência criadora.
Mas ele o revê, longe, em certos parágrafos deste livro. VALE!!!!

WOODY ALLEN/ GORE VERBINSKI/ ANTHONY MANN/ JAMES STEWART/ FELLINI/ BERGMAN

O DORMINHOCO de Woody Allen com Diane Keaton
Em termos de humor puro, nenhum filme de Allen é melhor ( entendam, este é o mais pastelão,e eu adoro pastelão ). Na saga do nerd que é adormecido em 1973 e acorda em meio a revolução séculos mais tarde, encontramos defeitos de diretor iniciante ( irregularidade ) e qualidades dessa mesma juventude ( irresponsabilidade ). Uma delicia!!! E que humorista genial Diane sempre foi ! São dela as melhores cenas. Nota 7.
RANGO de Gore Verbinski
Cheio de altos e baixos, esta homenagem ao western melhora muito ao final. Seu defeito é ter um personagem central fraco. A homenagem a Clint Eastwood é excelente! Aliás, a trilha sonora paga tributo a Morricone. Nota 5.
WINCHESTER 73 de Anthony Mann com James Stewart
Primeiro dos clássicos de Mann/Stewart. Um rifle é o que move bando de homens no oeste. Na verdade há mais que isso, há o ódio entre irmãos. O western de Mann em nada se parece com aquele de Ford, onde Ford canta a vastidão e a camaradagem, Mann destaca a solidão e a desconfiança. Stewart exibe uma então nova faceta de seu talento: o dom de mostrar a fúria contida. Um filme maravilhoso. Nota DEZ.
DESTRY RIDES AGAIN de George Marshall com James Stewart e Marlene Dietrich
Stewart é um muito calmo filho de antigo justiceiro que vai a cidade dominada por chefão. Ele, com seu jeito calmo e cheio de "causos" acaba por vencer, claro. Esta comédia-western é uma graaande diversão. Há humor genuíno neste excelente personagem. Nota 8.
...E O SANGUE SEMEOU A TERRA de Anthony Mann com James Stewart, Arthur Kennedy e Rock Hudson
Aqui Stewart cria amizade com tipo suspeito e ficamos sem saber por quase todo o filme o que os une. A fotografia é espetacular. Mas a ação carece da eletricidade de Winchester 73. De qualquer modo é um bom exemplar do filme de bangue-bangue. Nota 7.
A DOCE VIDA de Federico Fellini com Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Anita Ekberg, Yvonne Furneaux, Alain Cuny e Magali Noel
Crítica abaixo ( no texto sobre a avendia Sumaré ). Numa estranha coincidência, revi este filme antes de saber que ele seria vendido em banca de jornal. A figura do paparazzo é criada e batizada neste filme. Que marca a segunda fase da carreira de Fellini. Ele deixa de ser realista e passa a se aprofundar dentro de si-mesmo. Acompanhamos Marcello ( um soberbo Mastroianni ) em sua jornada por Roma. Ele caminha para o esvaziamento, o que vemos são mortes, de mitos, de sonhos e de intenções. Roma nunca esteve tão bela, escura, misteriosa, sexy. Não é uma obra-prima, tem muitas cenas falhas, mas suas grandes cenas ( o final é histórico ) são de antologia. Nosso mundo nasce neste filme. Nota 9.
UM ESPÍRITO BAIXOU EM MIM de Carl Reiner com Steve Martin e Lily Tomlin
A excelente história da ricaça que morre e encarna no corpo de Steve é ótima. Mas Reiner perde o ritmo várias vezes. Steve Martin, o melhor humorista americano dos últimos trinta anos, brilha. Seu papel é não só engraçado, é uma peça de arte. Nota 6.
MORANGOS SILVESTRES de Ingmar Bergman com Victor Sjostrom, Ingrid Thulin e Bibi Andersson
Em coincidencia, além de ver A Doce Vida, ainda tive minha quarta apreciação de Morangos Silvestres. Que também sai em banca de jornais. Vou passar o resto de minha vida vendo este filme uma vez por ano. Já o comentei longamente neste blog. Suas imagens são de sonho. Mostram a busca de resgate/remissão de um velho médico em viagem. Nesse caminho ele descobre ter errado sempre. É genial a forma como Bergman mistura o velho homem alquebrado com suas lembranças sempre jovens. A famosa cena do sonho ainda é rica em material e em sentidos. E tem um final inigualável, o velho homem olha seus jovens pais a pescar em lago, o velho sorri para eles e todo o sentido do filme se revela. Ele está conciliado com seu inferno. Em que pese duas cenas ruins, o filme é tão superior ao meio "cinema" que só pode ser comparado a Mozart ou Tolstoi.
SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR de Ingmar Bergman com Harriet Andersson, Ulla Jacobson, Eva Dahlbeck, Margit Carlvist
Uma constatação: onde Bergman acha tantas atrizes bonitas? Esta é uma comédia de Bergman, ou seja, é um filme estranho. Fez imenso sucesso de público ( o que testemunha a favor do público de 1955 ). Conta, com ironia, a história de casais que se traem, mentem, falam bobagens e seduzem uns aos outros. E se vingam também. É dos mais imitados filmes da história. Woody Allen já o refilmou e Paul Mazurski também. Mais Altman, o próprio Allen e uma infinidade de nomes têm se inspirado nele. Há ainda uma aula de sensualidade sem culpa da vulcânica Harriet Andersson. Leve, bonito, mas com um amargor que permanece. Nota 7.
A VIDA DURANTE A GUERRA de Todd Solondz
Adorei o que Cássio Starling Carlos escreveu na Folha. Ele denuncia esses filmes "chantagistas". Filmes como Rio Congelado, Preciosa e Inverno da Alma, todos milimetricamente formatados para ganhar festivais indie e serem endeusados por pessoas "com bom coração". Quem não gosta desses filmes é rotulado de insensível. Necas!!!! São filmes ruins feitos para enganar. Fáceis de fazer, fáceis de inscrever em festivais, fáceis de esquecer. Este é um deles. ZERO!!!!!!!!!!!!!

A HISTÓRIA DO MAGO MERLIN- FRIEDRICH e DOROTHEA SCHLEGEL, o poder dos contrários

Se Deus fez com que Maria desse à luz a Jesus, então o diabo fertiliza uma virgem e faz com que Merlin nasça. Merlin nasce então para vingar o diabo, mas a força de sua mãe faz com que ele traia seu pai e se volte ao bem. Um ser que conhece o mal e o bem, que sabe ver o futuro e o presente, eis o poder de Merlin.
Criança prodigio, ele logo passa a dar provas de seus dons. Ele sabe tudo e nada lhe escapa. Abandona a mãe e parte, será arquiteto de reinos e de vitórias. Ao fim de sua saga, Merlin cai de amores por Ninyanne, torna-se seu escravo e é trancafiado para sempre em círculo. Ele sabia que ela era seu fim, mesmo assim não pode resistir, entrega-se.
Escrito no século XII, aqui temos uma versão do século XIX em seus começos, obra de casal central do romantismo alemão. Os romanticos viam nessa lenda a recuperação de vitalidade espiritual perdida, um simbolismo sem fim, imagens de sonho. Mas o que essa história significaria para um homem do século XII ?
Até o encontro com a mulher, jamais Merlin se analisa. Ele faz o que deve ser feito, age. É homem que une os contrários: homem e animal, bem e mal, etéreo e sólido. Não pense que nossos antepassados eram tão ingênuos. Sabiam que ninguém voava ou vivia para sempre. Mas ainda não haviam perdido a certeza de que existem coisas que são sem parecer, manifestações que acontecem sem testemunhas, tempo sem relógio. Principalmente, o lugar do homem ainda era central, a dilaceração ainda não acontecera. A vida era o que era, e o homem vivia como deveria viver. O universo era de Deus, e Deus era seu pai. Nesse sistema, o homem reage a vida como se tudo fosse parte de um todo, a compartimentação não existia. Merlin é então uma manifestação desse todo, homem que sabe ler e antecipar esse universo.
Lição mais importante, ele compreende que a paixão é sua perdição, mas jamais ataca ou difama a mulher. Ela cumpre seu papel e cabe a ele cumprir o seu. E é essa paixão que faz com que Merlin se indague, se questione e pela primeira vez olhe para dentro de si. Mas ele crê na vida e sabe que na vida tudo é o que deve ser.
Pequeno livro de eterno saber.