ORSON/ RESNAIS/ WC FIELDS/ JAMES STEWART/ CLINT/ DON SIEGEL

CIDADÃO KANE de Orson Welles com Joseph Cotten e Agnes Moorehead
Em termos estritamente racionais este é o melhor filme do cinema americano. Porque? Porque jamais outro filme usou tanto em tão pouco tempo. Todas as linguagens são usadas sem nunca ter aspecto de citação. É cume soberbo de cultura e jamais parece pedante. Tudo é usado em termos superlativos: roteiro, fotografia, estilo de atuação, música. Há uma exuberancia infinita, exuberancia que só pode ser comparada a certas obras de Goethe e de Shakespeare. Mas veja bem, emocionalmente ele é frio como Thomas Mann ou Góngora. Kane se coloca em Olimpo gélido. Nós o admiramos mas não o amamos. Nota DEZ.
GENGHIS KAHN de Henry Levin com Omar Shariff, James Mason, Stephen Boyd
Grande produção que nunca tenta contar a história de Genghis Khan. O que se conta é uma fábula bastante tola sobre um mongol que aspira unir todas as tribos sob sua liderança. James Mason faz um chinês hilário. O filme é de uma babaquice absoluta. Nota 1.
O ANO PASSADO EM MARIENBAD de Alain Resnais com Delphine Seyrig e Giorgio Albertazzi
Certos críticos dizem que hoje não existem mais filmes dificeis. O que existe é filme desagradável. Explico: os filmes ditos dificeis de hoje, não são dificeis por sua forma ou por sua impenetrabilidade. São dificeis de ver por sua desagradibilidade. Este filme deixa essa questão mais clara. Fora os filmes de Tarkovski, é este o mais dificil filme já feito. Do que trata? O que é? Resnais disse uma vez que se trata de cinema puro. Mas o que é cinema puro? O que vemos é um casal num hotel imenso. Pessoas ao redor. Não há interpretações, os atores posam e declamam ( de um modo chic que seria muito imitado pela publicidade ). O texto, de Alain Robbe-Grillet, fala algo sobre memória. Mas será isso mesmo? Talvez seja o único filme feito em que os protagonistas são os objetos: espelhos, móveis e tapetes. Um filme intransponível. Nota enigmática.
O CAMINHO DE SANTIAGO de Emilio Estevez com Martin Sheen
Emilio poderia ter sido uma estrela nos anos 80. Sheen, que é seu pai, poderia ter sido uma super estrela nos anos 70. Aqui eles se encontram e o filho dirige o pai num filme que fala de filho que morre no caminho de Santiago. O pai vai buscar suas cinzas e resolve fazer o caminho pelo filho. Parece choroso e bobo? Não é. Trata-se de um simples e despretensioso filme de estrada. No caminho o pai faz amizade com holandês doido, irlandês chato e americana neurótica. Nada de muito original, mas o filme se deixa assistir. O final é muito bom. E pasmem! Um filme americano recente que fala sobre a morte!!!! Nota 5.
SE EU TIVESSE UM MILHÃO de vários diretores com estrelas da Paramount
Filme em episódios. O que os une é um milionário que resolve dar um milhão para uma série de estranhos. Vemos o que acontece então. Os melhores episódios são aquele do empregado da casa de porcelana, que de oprimido passa a agressor; do bandido que não tem como gastar o cheque e principalmente o episódio do gênio do humor, WC Fields, em história de um casal que ao ter seu carro abalroado no trânsito compra vários carros para poder bater à vontade em motoristas irresponsáveis. Fields é hilário. Lógico que o filme é desigual, mas esses 3 episódios valem sua restauração. Nota 5.
SORTILÉGIO DE AMOR de Richard Quine com James Stewart, Kim Novak e Jack Lemmon
É sobre uma feiticeira que resolve namorar um mortal. O filme tem um erro terrível: James Stewart. Um ator brilhante, mas que está totalmente deslocado como objeto do desejo de Novak. Sua figura é a de um velho professor de latim, Kim parece louca em amar figura tão pouco sexy. O filme tem aquele visual chic-meio-louquinho de sua época ( 1960 ) e Kim é linda de doer, mas o romance soa falso todo o tempo. Nota 5.
MEU NOME É COOGAN de Don Siegel com Clint Eastwood e Lee J. Cobb
Um ensaio para Dirty Harry. Clint, aos 38 anos, volta da Itália e estrela este policial. Fala de um xerife caipira que vai à New York de 1968 capturar um bandido doidão. A graça do filme está no contraste entre um cowboy violento e a geração de drugs-sex e rocknroll. A melhor cena é a da festa hippie: mulheres nuas, beijos gay, drogas e psicodelismo, e Clint, andando em meio aquilo tudo com chapéu de cowboy e botas. O rosto de Eastwood diz tudo o que ele pensava dos loucos anos 60: lixo. Pauline Kael sempre disse que ele era um fascista, um republicano. Se era ou não isso não importa, mas que o cara tem caráter, tem uma crença, isso ele sempre teve. Nota 6.
VELOZES E FURIOSOS 5 de Justin Lin com Vin Diesel e Paul Walker
O primeiro era divertido. Boas corridas, boa trilha sonora, mulheres legais. Os outros já não eram grande coisa. Este é o fim da picada! O que se passa? Eu não sonho com a volta de filmes como O Poderoso Chefão ou Taxi Driver. Isso seria pedir demais. Mas uma simples aventura como aquelas com Charlton Heston ou James Coburn, seria pedir demais??? Ninguém consegue mais escrever meia dúzia de bons diálogos e criar um herói gostável? Um Duro de Matar, um novo Mel Gibson, um Charles Bronson ! Nada disso aqui. Apenas burrice, podridão e tédio. Nota ZERO.

CLINT EASTWOOD, O MORALISTA

Tudo em Clint Eastwood sempre foi uma afirmação moral. Ele jamais seguiu a corrente ( e isso te surpreende né? ) sempre manteve, inalterada, sua rota de descrença e de individualidade fria. O tempo, único crítico que nunca erra, mostrou seu acerto.
Ele é o astro de tv que mais deu certo na transição para o cinema. Sim, ele foi astro de tv nos anos 50. Rawhide era a série. Quando a última temporada chegou, ele partiu para a Itália e lá fez 3 westerns. Eis o primeiro ato contra a corrente de Clint: não tentou o western decadente americano dos anos 60. Rumou para Roma e trabalhou com o novato Sergio Leone. Acertou. Os 3 filmes mudaram o faroeste para sempre.
Em seguida ele volta à América e descobre que os tais westerns haviam feito sucesso em todo o mundo menos em seu país. Nos USA eles eram apenas cult. Mas vem Don Siegel e com ele faz Meu Nome é Coogan. Clint estoura aos 38 anos na América. E nesse filme ele já é Clint Eastwood, um solitário moralista.
Há uma cena no filme que revela quem é esse cowboy. Estamos na New York de 1968. O auge da contra-cultura. Numa festa onde todos se drogam, mulheres nuas dançam, gays se beijam e o rock lisérgico ecoa, Clint Eastwood passa em meio aos hippies indiferente, frio, distante. Olha tudo com evidente desprezo, vê naqueles moleques o que eles são: pseudo-rebeldes de araque. Estaria ele certo? Eu não sei, mas o que importa é que Clint marca posição, esposa uma moral e a mantém. Os críticos, no auge do cinema doidão, logo o chamam de fascista.
Country e jazz. Eastwood sempre foi desse mundo. Nos anos 70 seus filmes seriam os mais rentáveis e na era de Nicholson, Paul Newman e Steve McQueen ( e ainda Redford e Beatty ) era Clint o astro mais rentável. O povão caipira o amava. Uns poucos o levavam a sério. Esses poucos notavam aquilo que os outros só perceberiam a partir dos anos 90: que Clint fazia sucesso mas nunca flertava com o glamour. Jamais procurava parecer um autor. Seu amor estava nos filmes de Hawks, Huston e Ford. Os diretores invisiveis, os modestos geniais. Blasés.
Clint Eastwood começou a ser levado a sério não por ter mudado, mas quando o meio mudou. Cinema de arte e hippies sumiram do mapa, os filmes rebeldes dos anos 70 foram extintos e a droga destruiu toneladas de carreiras. O cowboy se manteve. Ficou de pé, fazendo os mesmos filmes simples e sem afetação. Grunhindo e vendo que todo cara moderninho é apenas um mero "punk".
Eu adoro seus filmes e adoro sua imagem. Me ensina o valor do tempo, a transitoriedade dos modismos e o fato de que um homem tem de escolher um caminho e se manter nele até o fim.
É a moral dos cowboys. Não há melhor.
PS: O principal: Ele me mostrou, e provei na vida real, o fato de que toda mulher procura uma rocha. Ele é o cara entre os caras.

WILLIAM BLAKE

Dependendo do comentador que voce ler, Blake poderá ser chamado de louco. Isso porque ele dizia ter visto um anjo em sua infancia. Ele mal teve tempo de ir a escola, todo seu treinamento foi para ser um desenhista, como seu pai. Acabou se tornando um dos mais interessantes desenhistas e pintores da Inglaterra e um de seus mais famosos poetas.
Blake surge em fins do século XVIII, faz parte da geração pré-romantica, geração que tentará revalorizar o folclore, a raiz do país. Temiam aquilo que a indústria poderia vir a causar, se irritavam com os horários de trabalho, a sujeira e a derrubada das florestas. Blake conta tudo isso em seus poemas iniciais, fala de meninos que trabalham e de carvão e chaminés. Tudo em linguagem popular, em formas de canção. Mas depois ele começa a desenvolver sua filosofia mística, e é então que ele fica mais interessante.
A igreja para ele, é antro de opressão, padres são arautos da tristeza na Terra. Blake começa a valorizar a Energia ( é esse o nome que ele dá ) Energia que se opõe a fraqueza da alma pura. Para ele, corpo e alma são um só ( Blake influencia muito à Whitman ) a graça está em ser um homem energético, um homem que é alma, coração e genitais.
Lucifer se torna um símbolo. Para Blake, Lucifer é o anjo/homem, o ser que simboliza a atividade criadora do homem e a impassibilidade. Um tipo de anti-padre, o verdadeiro caminho a Deus.
William Blake teve vida longa. Se tornou central para a poesia do século XIX influenciando o movimento pré-rafaelita e depois a Art-Nouveau. Mal lido sua influencia ocasionou um certo ocultismo decadente, sua melhor herança é um inconformismo criativo que se mostra sempre instigante.
" PERMANEÇO EM MINHA TAREFA
A TAREFA DE REVELAR OS MUNDOS OCULTOS.... " Isso é Blake, e de certo modo, esse é a missão de todo poeta.

BOB DYLAN, O HOMEM QUE ESTRAGOU TUDO

Coincidentemente, o rocknroll é destruído nos anos 60 por três homens que nasceram sob o mesmo signo: Brian Wilson, Paul MacCartney e Dylan.
Mas como? Esses caras destruiram o bom rocknroll???? Weeelllll.... de certa forma, sim. Pois Brian Wilson traz à velha tosqueira de Chuck Berry a finesse de arranjos sinfônicos e essa coisa do cálculo rumo à perfeição. Nada menos rocknroll que arranjos ambiciosos. Paul institui a ditadura do bom gosto, do denominador comum. Com Paul, os pais que ouviam Sinatra e Dean Martin passam a ouvir Yesterday e Here There and Everywhere. Mas ninguém foi mais nefasto que Dylan.
Bob Dylan, sózinho, institui essa praga chamada de "rock como forma de arte", outra peste chamada de "artista sensível e sofrido" e por fim, a catástrofe do menestrel e seu violão. Dylan é pai de Lennon, Morrison, Lou, e sua nefasta imagem segue até Thom Yorke e toda cantorzinha mala falando de verdades sobre seu ser. É de Dylan o primeiro album duplo, o primeiro single com quinze minutos e as primeiras letras cabeça. Ele enterrou o rock como puro fun e deu para todo guitarrista ambicioso o desejo de ser relevante, relevante como Bob Dylan.
Mas eu adoro Bob Dylan!!!!! Um cara que faz ITS ALRIGHT MA, I'M ONLY BLEEDING só pode ser um gênio. Tudo o que ele fez entre 64/74 é instigante, e foi ele quem deu respeito e dignidade ao rock. Foi com e por Dylan que escritores intelectuais passaram a levar o pop jovem a sério. Mas a herança que ele deixa, seus filhos bastardos são de lascar!!!! ( E o mesmo digo sobre Brian e sobre Paul. Geminianamente tenho uma posição ambígua sobre os 3. Amo-os e ao mesmo tempo me irrito com sua abundante produção e sua má inflência ).
Dylan foi maior que qualquer outro nome no rock ( os Beatles eram 4, os Stones eram 3 ), e ainda agora serve de exemplo aos roqueiros velhos e calejados. Há uma dignidade sóbria em sua imagem, em meio a toda aquela idolatria e pretensão ele se mantém distante, frio, quase impessoal. Nada nele mira o puxa-saquismo tipo: vejam como sou legal; e também nada tem o traço do escândalo. Discrição, sempre.
Há um filme obra-prima de Todd Haynes, NÃO ESTOU LÁ, que vai te dar uma breve idéia do que seja ser Dylan. Além do que, como cinema, é das melhores coisas feitas nos últimos vinte anos. Fernando Pessoamente ele criou máscaras onde nem ele mesmo pode mais se encontrar. Como Rimbaud, ele é um outro.
Mas esse é o problema: falar de Pessoa e Rimbaud em texto sobre rock é o fim do próprio rock!
A melhor homenagem a Robert Zimmerman seria escutar um velho disco de blues, e recordar que em meio a toda aquela confusão o que ele sempre desejou foi ser um negro velho com um violão em meio as estradas do Mississipi....
Jamais haverá outro igual.

FRAGMENTOS, MÚLTIPLAS LINGUAGENS, CORTES TEMPORAIS, IRONIA... PORQUE CIDADÃO KANE É O QUE É, O MAIS MODERNO E O MAIS VAIDOSO DOS FILMES

Orson Welles foi um gênio. Esse foi seu legado, foi seu brilho e foi sua maldição. Pois ele era maior que o meio. Seu gênio foi do tipo renascentista, ele fosse nascido no século certo teria sido um Wagner ou um Leonardo. No tempo e no lugar em que nasceu, tornou-se um pastiche de si-mesmo. O cinema era pouco para ele, a tv era nada para ele, a vida lhe foi asfixiante. Foi um menino prodigio que tocava Mozart aos 3 anos, que se apresentava como mágico profissional aos 5 e que com 15 anos já excursionava com seu grupo teatral pela Irlanda. Aos 18 causou escândalo na Broadway com seu Macbeth negro e aos 19 era famoso em todos os USA graças ao rádio, midia que ele revolucionou. Aos 21 já era um mito do cinema. Aos 30 era um velho acabado.
Cidadão Kane é inacreditável. Nunca ninguém foi tão genial em seu primeiro filme ( !!!!!! ). Primeiro filme.... A impressão que o filme dá ainda hoje é das mais modernas possíveis: ele é feito de fragmentos, de estilos que se chocam, de tempos que se atropelam e de uma verdade que é sempre inescapável. Imaginar o que deve ter sido ver este filme em 1941, o choque que causou, o espanto e a inveja que fez nascer...
Todo o cinema feito até então está explicitada aqui: os primeiros minutos, dos mais belos da história, são puro Murnau e Lang. A câmera que voa, as fusões que dançam, o jogo com espelhos, as imagens deformadas, a fluidez...
Mas todo o filme é feito dessa liberdade extrema. Cada cena tem um estilo de cinema próprio. Há coisas do policial noir, do cinema poético francês, da fábula e da montagem russa, do épico de John Ford. Tudo Welles pega e usa a seu modo, e tudo ele destrói.
Não há trama cronológica, certas cenas parecem de documentário, a câmera treme e segue os atores, algumas falas são improvisadas, algumas são estilizadas. Ele cria, sem se perder, um frenesi de criatividade, uma fragmentação estética que espelha a própria condição da vida moderna: incerteza e fluidez sem fim.
É conhecida a riquesa das imagens deste filme. Rostos imensos cortando o foco, cenas de fundo vivas e ricas, a tela se enche de detalhes, de movimento e então se congela e se crispa em drama puro. Mas há mais: Welles, irriquieto, usa coisas operísiticas, usa o humor, usa tudo que o cinema permite e tudo que ele viria a ser. Godard, Altman, Scorsese, Coppolla, Todd Haynes, Paul Thomas Anderson, Tarantino, Lumet, De Palma, Kubrick, Cassavettes... tudo está contido em cenas de Kane, ele anuncia o futuro, condensa o passado, brinca com o meio, faz dele o mais mágico dos brinquedos.
Mas de toda essa riquesa, nada impressiona mais hoje em dia que a beleza de suas imagens. Gregg Toland se esmera em cada take, se doa por ter recebido, finalmente, liberdade para ousar o que quisesse. E ousou. Sombras, focos distorcidos, câmera baixa, sets tortos. Kane esgota tudo o que pode ser feito em cinema. Filmes melhores podem existir, filmes tão ricos e com tamanha complexidade de detalhes e ideias, não há.
Falar sobre os bastidores, tão ricos quanto, do filme, deixo para quem assistir os excelentes extras do dvd. O que enfatizo é que Kane é inesgotável. É por direito o filme que mais despertou vocações de cineastas ( e de criticos também ). Para quem ama o cinema é seu Hamlet e seu As Meninas ( de Velazquez ). Tudo o que Orson fizesse depois só poderia ser decepcionante. E esperto como ele era, sempre soube disso. Kane foi sua jóia e sua maldição.

LENDO OS PRÉ-SOCRÁTICOS

Em Homero e Hesíodo voce pode ser pleno. O homem completo era homem espírito e alma, unidas. Natureza e ser, corpo atlético mais mente culta. A beleza da alma e do pensamento unidas como coisa só, vivendo em casamento à beleza do corpo e da voz. Filosofia feita em dança e música.
Mas a partir de 500 ac. as coisas mudam. O homem olha para o céu e quer saber o porque dele ser o que é. As questões colocadas então são aquelas que ainda hoje importam: o que é o infinito? O que significa a vida? O que vejo pelos meus sentidos é real? Do que é constituída a matéria? O nada é um ser?
O homem passou a ser, desde então e graças a razão, isso OU aquilo. Coerência como lei suprema. A desconfiança da intuição. Se voce é homem é um homem, se voce é civilizado não é bárbaro, se voce é democrata não é tirano, se voce é pitagórico não é eleata.
Pitágoras ainda tentou salvar as coisas. Percebeu a matemática na música e a harmonia como linguagem do cosmos. O número mísitico, o Um unidade da vida, o dois principio da harmonia, o três como matéria.
Fragmentos: Anaximandro, Zenon, Tales, Melisso.... teorias sobre o fogo, sobre a água, sobre o nada. A vida explicada como a tensão, na tensão entre opostos é que ela se faz, sem a tensão-luta não existe coisa alguma. A vida como afeto e repulsa, uma eterna busca e divisão. A vida como matéria, a vida como mentira.... As teorias se sucedem, e eu penso em como a vitória daquele que foi renegado poderia ter modificado todo o pensamento do Ocidente. Meu mundo decidido em aldeias cheias de cabras no Mediterrâneo.
Hegel e Nietzsche comentam esses filósofos. Hegel, que antes de tudo foi um historiador, nos conta suas teses, seus acertos, detalha tudo, ilumina. Nietzsche, que foi professor de estudos clássicos, fala naquele seu tom panfletário. Exalta, propaga, elogia e denigre. Mostra aquilo que se perdeu, aquilo que se deixou de entender. Mostra o caminho que deu errado.
Parmênides e Heráclito, talvez sejam os dois mais ricos em pensamento, milagres de questionamento, fogo jogado na noite. A filosofia nunca mais foi tão viva, tão próxima da realidade, tão poesia. Prova de como tudo nasce em seu vigor pleno, exuberante, direto, ribombante, e em como logo se inicia o lento caminho rumo ao vazio, a palavra pela palavra, ou pior: auto-engano.
Querer ler filosofia sem ler estes textos é como tentar gostar de poesia sem saber de ritmo.

AL PACINO/ DUSTIN HOFFMAN/ LUBISTCH/ CAPRA/ ERROLL FLYNN/ KIRK DOUGLAS

ZOMBIELAND de Ruben Fleischer com Jesse Eisenberg e Woody Harrelson
Jesse tem filmado muito. Falta ator com sua idade? Sua forma de atuação é sonambulica. Vamos dar nomes aos bois? Isto não é cinema. Não que eu saiba o que seja cinema, mas isto não é. Talvez possa ser chamado de brincadeira de internet ou game em telão. Aquelas coisas: humor chulo, visual pseudo-moderno e umas gostosas com pouca roupa ( e nada sexys ). Anuncia e exemplifica a crise do cinema de agora. O horror, o horror.... Nota Vácuo.
THE MECHANIC de Simon West com Jason Statham, Ben Foster e Donald Sutherland
É de bom tom se colocar atores dos anos 60/70 em filmes bobos. Dá uma pretensa dignidade à coisa. IanMcShane, Peter Fonda, Robert Duvall, Jon Voight têm sido muito usados nesses pequenos papéis de brilho falso. Jason ( ator de quem eu gosto. Ele é limitado, mas tem um resto do resto daquela frieza de Steve McQueen ), é um assassino profissional ( ser killer virou profissão de glamour ). Ele é enganado e mata seu mentor. O resto é ação. Adoro filmes de ação e me convenço cada vez mais ( com a ajuda de certos pensadores gregos ) que o valor absoluto da arte está no prazer que ela nos dá. Este filme não é um grande prazer, com certeza, mas é hora de percebermos que filmes de ação são cinema de imenso valor. Nota 4.
A LONGA NOITE DE LOUCURAS de Mauro Bolognini com Jean-Claude Brialy, Elsa Martinelli, Rossana Schiafino
O roteiro é de Pasolini. E pasolinianamente, mostra o submundo reles de Roma. Jovens roubam armas, andam com prostitutas, vendem as armas, perdem o dinheiro, o recuperam, gastam tudo em boate, voltam pra casa. Bolognini foi digno representante dos diretores italianos classe b. Um vasto campo que abrangia de Risi à Rossi, passando por Zampa e Lattuada. Aqui é sedutora a imagem de uma Itália cheia de favelas, ruas de terra e muita fome. Ao mesmo tempo vemos o nascimento do consumismo e da americanização ( o filme é de 1959 ). Mas, como sempre acontece com Bolognini, ele se deixa levar por um certo tédio, o filme perde o ritmo às vezes, e alguns cortes lhe fariam bem. Nota 6.
O ESPANTALHO de Jerry Schatzberg com Gene Hackman e Al Pacino
Pacino nunca foi tão engraçado. Há uma cena de "assalto" que é hilária!!! Mas o filme, feito no auge da contracultura, é triste, melancólico. É sobre um ex-presidiário ( Hackman na atuação de sua vida ) que conhece um marinheiro ( Pacino, melhor que aqui, raras vezes ). Os dois pegam carona juntos e passam a dividir sonhos. Hackman faz um tipo explosivo, do mal. Pacino é inocente, quase um bobo. Há muito de Laurel e Hardy nos dois. Com o correr do filme, Hackman se humaniza e Pacino após choque terrível se torna catatônico. É um filme que ama seus atores. Os dois têm tempo para improvisar, criar personas, nos impactar. Relembrando o filme agora ( assisti-o sete dias atrás ) o que me ficou são seus rostos, comoventes. Árido e muito doído, é um filme para quem ama filmes. Nota 8.
MARATONA DA MORTE de John Schlesinger com Dustin Hoffman, Roy Scheider e Laurence Olivier
Fez sucesso na época este thriller sobre criminosos nazi na América dos anos 70. Hoffman é torturado, enganado, perseguido e não precisa atuar. Olivier é o nazi e recebeu indicação ao Oscar. Não brilha, apenas está lá grunhindo. Scheider está excelente como o irmão que se vendeu aos nazis. ( Os nazis são agora traficantes de diamantes ). Schlesinger dirigiu 3 obras-primas em seu auge. Este não é seu melhor momento. Nota 6.
LADRÃO DE ALCOVA de Ernst Lubistch com Herbert Marshall, Miriam Hopkins, Kay Francis, Edward Everett Horton
Quando Lubistch, já diretor famoso, foi convidado a trabalhar na Paramount, o cinema americano mudou. Ele trouxe charme vienense a Hollywood. Aqui, vemos um casal de ladrões aplicar um golpe numa herdeira futil. Tudo é escapismo, tudo é chic, tudo é prazer. O modo como os dois ladrões se conhecem ( um rouba o outro e é roubado então ) é aula de ritmo. Também demonstra em imagens o nascimento de um afeto. Herbert Marshall é um tipo de ator completamente extinto. Seus modos são tão elegantes que hoje ele passaria por gay-afetado. Dá para notar também o modo como toda fala remete a sexo, sem que nada seja realmente dito. Críticos costumam apontar este como o melhor filme de Lubistch ( e alguns dizem ser ele o melhor dos diretores ), não acho. É uma comédia maravilhosa, mas ele faria ainda mais no futuro. De qualquer modo, a circulação de filmes como este justifica a criação do dvd. Nota 9.
ACONTECEU NAQUELA NOITE de Frank Capra com Clarck Gable e Claudette Colbert
A comédia de Capra é radicalmente diferente da de Lubistch. Aqui tudo é mais direto, mais febril e muito mais "sensível". Capra nunca é cínico. Este imenso clássico fala de casal que se encontra em ônibos inter-estadual. Ela é milionária em fuga do pai para se casar com noivo interesseiro. Ele é jornalista desempregado. E o filme é exemplo de perfeição: nada falha, não há um só minuto sem interesse, tudo, roteiro, elenco, direção, funciona com naturalidade. Perfeito. O casal acaba por se apaixonar e isso é muito convincente. Vemos passo a passo o nascer desse amor. Boas histórias são assim: acontecem como destino invencível. Nos convencem de que Tem de Ser desse Modo. Gable era feio e desajeitado, e mesmo assim consegue ser sempre sexy e simpático. Colbert, a mais mignon das atrizes, está apaixonante. O que mais se pode querer? Nota DEZ!
CONTRA TODAS AS BANDEIRAS de George Sherman com Erroll Flynn, Maureen O'Hara e Anthony Quinn
Erroll já estava meio inchado pelo álcool, mas mesmo assim usa seu charme desinteressado e domina o filme. Que trata de espião ( Flynn ) enviado pela marinha inglesa ao covil de piratas ( Quinn e Maureen ). Não é a ação o cerne do filme, é a relação entre Erroll e Maureen, relação que funciona. O filme é hiper colorido, alegre e bem produzido. É este o filme pop pelo qual o cinema de uma dada época deve ser julgado. É o equivalente aos filmes de terror em série e as comédias teen de agora. É por esse cinema que se avalia a saúde de uma época e não por suas excessões. Este leva nota 6.
ULYSSES de Mario Camerini com Kirk Douglas, Silvana Mangano e Anthony Quinn
É a Odisséia feita em Cinecitta. Filme tolo, com coadjuvantes fracos, mas que mostra também a imensa força do mito de Odisseu. As cena de sua volta à casa como mendigo, do affair com Circe e da vingança final são emocionantes mesmo aqui. Mas o filme no geral é constrangedor. Nota 3.

MACONHA NA RUA

Saia do armário e assuma que voce fuma maconha.
Essa é a frase mote inscrita na USP ( pra quem não sabe, USP é uma ilha da fantasia, local onde a realidade da cidade "faz de conta" que não entra. Terra que vive em algum mundo perdido entre Neverland e Paris-68 fake. ).
Eu já fumei e gostei. E daí? Também já bebi até cair e gostei. Já atirei em pardais e me diverti. E me deram morfina em mesa de operação e amei. Gostar não é argumento então. Qual é o argumento?
Deixar que eu, como adulto, escolha o que desejo fazer comigo mesmo. OK. Faça o que quiser consigo. Desde que eu não seja OBRIGADO a te aturar. Nada mais chato que um viajandão. Além do que, ele coloca em perigo minha vida, ao dirigir, e me deixa tonto por tabela, se fumar ao meu lado. Ah.... mas o álcool tem os mesmos efeitos e é legalizado! Pois é, ó caro maconheiro, se voce sabe que o álcool faz tão mal, porque não lutas pela proibição do mesmo? Um mal absolve outro mal? Então liberemos o pó, os remédios tarja preta e a pedofilia!
Maconha é um lixo. Conheço gente que virou um zé-mané de tanto fumar. É tão ruim como a birita. Com uma diferença: a erva financia o crime pesado. Se voce me provar que teu baseado não forneceu grana para uma arma que poderá vir a me matar, aí eu posso pensar em seu caso. Plante em casa, se entupa de fumaça e não venha me amolar.
Quanto a passeata foi o esperado: bando de playboys que posam de alternativos. Um barato! Provocaram os tiras até os tirar do sério. Não vi um negro, um favelado, um cara pobre. O povo freak da Vila e da PUC se divertiu nesse happening. Agora eles podem chegar nas minas e contar sobre sua coragem em pró da liberdade. Então tá.....

O CÃO DO FILÓSOFO- RAIMOND GAITA

Professor de filosofia na Austrália, a questão que introduz o texto é das mais espinhosas: Afinal, os animais possuem uma consciência? E habilmente, o que Gaita faz é nos mostrar a irrelevância dessa questão. Não só dessa, mas a irrelêvancia de várias questões.
No mundo, no universo, não existe uma razão ou uma moral. Mais que isso, em nós não é a biologia ou a evolução que explica a vida. O que a explicaria é a experiência do corpo, a vivência corporal, a lingua viva das ações. Razão, moral, ética, são criações artificiais feitas pelo homem e que são válidas apenas em seus próprios termos. O problema é que estamos perdendo o hábito de questionar VERDADEIRAMENTE as coisas. É como se tudo fosse hoje uma questão de fé. Assim, quando um evolucionista diz que o comportamento materno é herança evolutiva aceitamos isso como verdade infalível. Mas, e as mães que abandonam seus filhos? E as mães que não se importam com as mortes de outros filhos? O que Gaita nos diz é que a vida é feita de muito mais escolhas do que pensamos.
Não importa se um cão pensa. O que importa é o corpo desse animal e aquilo que ele nos diz com seus olhos, músculos e atitudes. Pensar em linguagem canina é pensar em corpo. E o que nos une a esse ser-corpo não é o fato de que todos somos bichos, ou a ideia de que ele possui uma alma. O que une homem e cão é a decisão ativa de se gostar desse animal. Em palavras mais diretas, o amor. Raimond Gaita não tem nenhum receio em usar essa palavra, amor. Para ele, a poesia explica o mundo de forma muito mais completa que a razão. Porque?
A razão tende a sistematizar e reduzir tudo. Ela floresce em mentes que não toleram o imponderável, o excesso, o inalcansável. O pensamento poético faz exatamente o contrário: mostra o complexo naquilo que é aparentemente simples. A razão, ao pensar abrir nossos olhos, na verdade os fecha. Porque nós somos certamente um corpo, carne e sangue, e falamos e sentimos através desse corpo, e nada nele pede a razão, nada nele é absolutamente racional. Ato de irracionalidade suprema: a morte. Para que nascer se sabemos que iremos morrer? A morte destrói toda ilusão de racionalidade na vida e no corpo. Ela é um irracional desperdicio.
Gaita foge das fórmulas simples. Animais são animais. Merecem não o nosso respeito, merecem ser honrados. Honrando a vida de um bicho adquirimos o direito de honrar nossa própria vida. Ao perceber, por pura vontade e poesia, o quanto há de inalcansável num gato ou num pássaro, percebemos também o quanto há de sublime em nós mesmos. É impossível viver a plenitude de se estar vivo sem honrar toda vida ao redor. Mas isso não significa dar aos bichos o status de humanos. Significa entendê-los como seres ao lado de nós, completamente incompreensíveis e por isso mesmo, ricos de possível significado.
O livro discorre longamente sobre o problema do significado. Significado que só pode ser obtido se percebermos as coisas, capturarmos sua verdade possível. Se não houver idealização a priori.
Wittgenstein é citado. O filósofo demonstra que tudo na verdade é feito de crenças. Cremos que os outros têm uma mente. Cremos que eles são como nós. Onde a prova disso na razão? O que nos leva a ter a certeza de que existe uma vida interior em todos os humanos? A crença nessa ideia. Nada disso passa pela razão.
Em outro trecho se fala de Iris Murdoch. Ela fala que se conseguirmos deixar de lado o "ego obeso", ego que nos faz crer na razão; e por outro lado abandonarmos o sentimentalismo fofo da arte, que nos faz ver tudo como lenda e destino; talvez então consigamos usando o amor e a coragem ver a vida como ela é de fato.
Gaita nos lembra então que a ciência só existe em termos de pesos e contagens. Tudo precisa ser reduzido a números mensuráveis. Como medir a consciência de um animal? Num animal nada está oculto, tudo está lá, exposto. No animal o que a ciência pode? Até que ponto nossa consciência não é criada pela ciência para honra da ciência? Até que ponto nossa subjetividade não é criação artificial da arte para glória da arte?
Pablo Casals: " Nos últimos 80 anos todas as manhãs tenho acordado e executado ao menos duas peças de Bach antes de começar o dia. Bendizo a casa. Redescubro o mundo todas as manhãs. Tocar faz-me agradecer por viver e por ser humano. Não me recordo de um dia em minha vida sem o espanto pela natureza..." Esse é o amor incondicional pela vida sem a ajuda da religião. Casals agradece a vida, não questiona a vida, a aceita. Seria isso o ser-com-o-corpo?
Isak Dinesen: "Todos os pesares são suportáveis se contarmos uma história sobre ele."
Chesterton: " A vida está presa a uma teia de aranha sutil. Cada fio é um fio que leva a outro fio. Mas há muitos que desejam a destruir. Para esses tal complexidade é insuportável. São os reducionistas, os hiper-racionais. Esses pensam que se puderem substituir a teia por algo robusto conseguirão ter a paz definitiva. Paz em suas mentes assustadas." Para Gaita, a razão não faz parte dessa teia. Se uma estrela explode nada há de racional nisso. Se voce ama alguém, nada explica isso. Se um cão pensa ou apenas sente, qual o valor desse pensar canino?
RF Leavis diz que existem dois modos de se julgar um poema: " Isto pode ser assim..." e "Isto deve ser assim, mas..." No primeiro caso temos o julgamento que aceita a teia de relações, no segundo caso o endurecedor, aquele que sempre vem com um reducionismo expresso nos "mas..."
Por fim, Gaita tem a coragem de tocar no tema dos direitos humanos. Não existem direitos humanos. Ninguém tem o direito real a nada, o que há é um afeto, um respeito devido e sentido entre os homens. Portanto falar em direito animal é falar de algo que jamais existiu. O que deve ser pensado é o respeito, a honra que deve ser dada a toda a forma de vida. Árduo e belo livro.

PROTÓTIPO DE FILME: ACONTECEU NAQUELA NOITE- FRANK CAPRA ( A ARTE É UM PRAZER OU É MASOQUISMO? )

Coisa maravilhosa tem acontecido nos últimos anos ( fato notado por Roger Ebbert ): toda uma geração de cinéfilos é criada pelo dvd. Filmes impossíveis de serem vistos se tornaram acessíveis e melhor, filmes clássicos, que tinham uma imagem deteriorada, hoje podem ser assistidos em imagem brilhante, graças a reconstituição para dvd. É o renascimento do cinema dos anos 20/30, filmes deteriorados sendo vistos hoje com sua beleza original.
Numa aula de linguística, quando é citado Bernard Shaw, me surpreendo com a quantidade de pessoas que viram MY FAIR LADY. Metade da turma. Filmes antes desbotados, hoje belíssimos.
ACONTECEU NAQUELA NOITE foi o primeiro filme a ganhar Oscars principais: filme, direção, roteiro, ator e atriz. Só quase 60 anos depois, com SILENCIO DOS INOCENTES, isso foi repetido. O filme de Capra venceu em 1934, e bateu uma concorrencia muuuuito forte. Revisto hoje, esta comédia romantica, mostra todo seu frescor, e, ao lado de LEVADA DA BRECA, é ainda o objetivo, o ápice, o everest, de toda comédia que trata de relações entre homem e mulher. Robert Riskin, o grande roteirista, criou a estrada, os outros a seguiram.
Claudette Colbert é uma rica herdeira que escapa do pai para se casar. Um jornalista durão, Clarck Gable, a ajuda sem saber quem ela é. Falando de forma bem simplificada, o filme é isso. Mas Capra, gênio que é, recheia o filme de dúzias de idéias. Não há uma só cena menos que boa, é um filme perfeito.
Vemos então a América da depressão, com seus tipos "do povo", tentando sobreviver. Ao mesmo tempo há uma gozação aos ricaços. O filme é também documentário sobre momento decisivo de um país. Comédia sempre, mas também aventura, drama, caixa de surpresas e nunca, jamais, óbvio. Alegre, feliz.
Os gregos acreditavam que a primeira função da arte é o prazer. Depois o pensamento e a união de ideais. Prazer. Para quem entende um pouco de arte, para quem já se deixou impressionar pela arte engajada, pela arte masoquista ou pela arte abstrata, o prazer acaba se revelando o valor mais sólido, aquilo que ao final, faz com que algo sobreviva. Mas entenda, não confunda prazer com superficialidade ou escapismo. Não seja tão jeca. Há prazer estético em Bergman e em Shakespeare. E há também a tal profundidade sofrida nos dois. Mas o prazer é acima de tudo o que rege sua fruição. Em Bergman e em Shakespeare, mesmo nos mais duros momentos, há sempre o prazer estético, a beleza, o dom de se saber fazer. E mais: o sofrimento jamais é gratuito.
Hoje há uma imensa massa de seres que pensam a arte como dever, como sofrimento, como masoquismo. Meu mais sincero desprezo a esses jecas do gosto. Como dizia Paulo Francis, são os caipiras que sofrem vendo Strindberg e pensam ser essa a tal cultura superior. Blá!
Voltando.... poucos filmes mostram de forma tão sublime o nascimento do amor. Amor real, que brota da diferença entre ele e ela. Gable mostra todo o verdadeiro charme viril de um homem que sabe se virar, e Claudette é a dondoca que cresce e descobre a vida. Ônibus, estradas, motéis... as cenas vão se sucedendo e algumas são clássicas ( a canção no´ônibos, a carona na estrada, o cobertor entre as camas ), o porque de ninguém conseguir mais fazer uma história assim depõe contra nosso cinema moderninho. Perto deste filme, as tolices de Kate Hudson ou de Reese Witherspoon são vergonhosas.
No seu final, as coisas se resolvem de forma graciosa, certa, leve e sem forçar a mão. Aliás nada parece forçado.
Um toque final sobre os atores. É fácil gostar deles. E é esse o maior mistério do cinema romantico. Ele funciona na proporção do quanto se gosta de seus personagens. Os dois aqui são amáveis. Os gregos estavam certos. Por mais que Haneke, Trier ou que tais reafirmem que a arte é para masoquistas, a arte é um prazer. Saber ter prazer, eis o anti-jequismo.

SENECA

Seneca tentou educar o mais cruel dos imperadores de Roma. Não pode. E perseguido, foi exilado e depois obrigado a cometer o suicidio. Hoje, 2000 anos após sua passagem pela Europa, ler Seneca é ainda de extrema utilidade.
Ele não é um filósofo, pois não cria um sistema. Não é um poeta ou um satirista. Então o que ele é? Um educador. Seneca nos ensina a viver. Com habilidade e muita arte, nos mostra aquilo que importa, mais que isso, faz de nós homens muito mais fortes. Nele não há uma preocupação moral, o que existe é uma preocupação com o valor das coisas e da vida. A pergunta é: viver bem é viver como? Seneca discute o que vale a vida, e dentro da vida, o que é a morte, a fama e o dinheiro. Nos mostra quão tolas são nossas preocupações, mostra a precariedade da vida, a tolice de todo apego, nos coloca na beira do abismo, mas jamais nos dá desespero.
Dizer que Montaigne e Shakespeare adoravam Seneca mostra seu valor. Roma em seu tempo foi o exemplo supremo daquilo que entendemos por O Império. Inglaterra em 1800 e EUA em 1950 são pálidas sombras de Roma. Detentora da civilização, berço do que até hoje nos é familiar, tempo de Juvenal, Marcial, Horácio e deste Seneca, mestre do homem realista, do ser que vive sob tensão e nunca perde a frieza. Criador do moderno herói, do herói distanciado, dono da verdade dura e desencantada, aquele que age sabendo que a ação é vã.
Tenho um amigo que descobriu Seneca via Humphrey Bogart. Esse meu amigo entendeu a ponte que os une, e essa ponte não é o cinismo, é o desencanto. Seneca soube ver o básico, valorizar o valor mínimo, dar peso ao que parecia sem peso. Foi um dos melhores cérebros que já viveram. Lê-lo nesta era de novo barbarismo, época que nega história, honra e hospitalidade, é de fundamental importancia. Mais que isso: é vital.

O ESPANTALHO um filme de JERRY SCHATZBERG ( FILMES COMO PEÇA DE ARTE )

Um bando de diretores apaixonados por cinema europeu toma a América. E dá aos atores fãs de Marlon Brando e de Montgomery Clift, a chance de inventar, criar, e ousar muito. Mas, sem querer, dois desses diretores criam o cinema-pipoca e matam tudo aquilo ( ou salvam os estúdios da inevitável falência ). Quase todos esses diretores, que não sabiam ou não queriam filmar ação e explosões, caem então, no gueto dos filmes de arte. Somente Altman, Scorsese e mais ou menos De Palma e Coppolla sobrevivem. A lista deles é imensa ( vai de Ashby até Yorkin ), Jerry Schatzberg foi dos maiores derrotados.
Numa estrada, Gene Hackman e Al Pacino pedem carona. Hackman é um tipo de cara puro-impulso, violento, macho, mau. Pacino é otimista, engraçado, bondoso, tolo. Por teimosia de Pacino, eles se tornam amigos. Cruzam o país em trens e caronas e vão visitar a irmã de Hackman. São presos e por fim visitam a mãe de um filho de Pacino. O final é digno da época em que foi feito: terrivelmente amargo.
Gene Hackman gosta de dizer que este foi o papel de sua vida. Diz que Jerry ligava a câmera e fazia com que eles improvisassem todo o tempo. Dá para notar isso. Por mais triste que seja a cena, há nela a alegria da criação. Toda a cena tem a duração que deve ter, nunca a duração que a pressa ou o mercado exigem. Gene Hackman comove quando seu tipo durão amolece. Al Pacino faz um tipo que não é seu costume: faz humor. Ele tem duas cenas hilárias, mas o que mais nos marca são seus enormes olhos escuros, a terrível cena em que ele é quase estuprado e o desespero da sua última cena. O filme, magnífico e sem nenhuma concessão, é marca de diretor cheio de caráter. A era Star Wars encerraria sua carreira. A forma iria sobrepujar o conteúdo.
Os atores da época também não tiveram fim melhor. Se Al Pacino, Jack Nicholson e De Niro sobreviveram por ter amigos que sobreviveram, e se Dustin Hoffman perdeu muito de seu status ( mas não todo ), atores estrelas da época como Robert Redford, Warren Beatty, Steve McQueen, James Caan, e até Paul Newman, perderam a vontade de atuar, reconheceram o fim de "seus" diretores e de seu tipo de papel. Atores maravilhosos e não tão famosos ( Jon Voight, James Coburn, Cliff Robertson, Robert Duvall, Lee Marvin, Elliot Gould, Donald Sutherland ) se tornaram caricatos e preguiçosos e toda uma nova geração que veio em sua cola ( penso em William Hurt, Dennis Quaid, Ed Harris, Kevin Kline, John Malkovich ) jamais pode desabrochar. Papéis como o deste filme, que surgiam em dúzias, passaram a vir aos pares.
O cinema criou uma armadilha para si-mesmo: fez nascer uma geração de cinéfilos que amam apenas a ação e o ruído, o escândalo e a sensação. Tentar fazer com que o cinema seja cada vez mais apenas ação e ruído levará à um beco. E então?