DO AMOR - UM TESTEMUNHO

Quando comecei este blog tive a resolução de não fazer um blog-umbigo. Não escrever um diário. Mas, foi inevitável, nas entrelinhas ele é um diário. Daquilo que assisto, vejo, ouço. Mas lendo este blog voce não saberá, nunca, se estou feliz ou triste, amando ou solitário. Disfarço meu umbigo. Prefiro ver o dos outros.
Dois amigos pedem para que eu repita aqui uma conversa que tive com eles. Sobre amor. É meio umbigóide demais pro meu gosto. Serei breve então.
Com 45 anos, apesar de aparentar 44, acho que aprendi alguma coisa sobre esse tal de amor. Pouco. Mas alguma experiência adquiri. E sei que aquilo que mais atrapalha é o tal de " e viveram felizes para sempre..." Eu explico.
Tive três amores do tipo absoluto. E dois do estilo feliz. No absoluto TUDO é amor. Eu comprava cds pensando em tocar pra ela, eu via filmes só com ela. Se comprava uma camisa tinha de ser aprovada por ela. Telefonemas que duravam até 10 horas... Trabalhava pensando nela e cobrava suas visitas ao meu trabalho. Ciúmes até de seu passado. Eu morreria por ela e não percebia que esse tipo de amor é a morte do próprio amor. Os amigos só existem se a amarem também e precisam escutar o quanto ela é incrível. Na verdade eu me apaixonei por mim mesmo, " pela história fantástica e original" que eu pensava estar vivendo. Cada reencontro era um momento de sublime felicidade.
Mas há um problema : "e viveram felizes para sempre..." O ar se torna rarefeito. O mundo inteiro passa a ser só ela e como eu a amo e ela me ama, nasce a OBRIGAÇÃO de ser feliz. Ela tem de me fazer feliz, pois ela é tudo e só ela deverá me bastar. E eu devo fazer o mesmo por ela, pois no universo dela só eu existo. Que lindo né ? Que trágica armadilha !!!!!! Nas 3 vezes em que estive envolvido em amor desse tipo, o fim foi o mesmo : violento. ( Não físico, mas violentamente devastador ). Cobranças de felicidade, de dedicação ( por mais que voce dê não há como ser tudo para alguém ). E a velha frase : " Voce não era assim!!!"
No fim o que sobrevive é o desejo sexual e uma sensação de que poderia ter sido e não foi.... Nunca poderia ser!!!!!
Tive também dois amores felizes ( e que terminaram em dor também. Mas de outro tipo. A dor do fim de um sonho e não do fim de tudo. )
É um amor em que o mundo cresce e não diminue como no outro. Não há o desejo de que o outro seja tudo, mas sim de que vivamos tudo com o outro. Cresce o interesse pela vida, pelos amigos, voce se abre. A comida parece melhor, o sol brilha mais, seus olhos se abrem para coisas que voce não via. O círculo de amigos aumenta, o trabalho rende mais, voce conversa sobre tudo. Neste amor ela é uma companheira de vida e não a própria vida. Instintivamente voce nota que este amor não o fará feliz para sempre. O fará sim, melhor para viver.
Cobramos demais do amor. A vida se tornou entediante e queremos que a pobre menina seja tudo. Penso que o segredo é entender que o amor resolve seus problemas amorosos. É óbvio!!! Mas seu trabalho, sua família, amigos, saúde, dúvidas existenciais... continuarão como sempre. O amor não vai te salvar de voce mesmo. Ele poderá clarear as coisas, torná-lo mais forte, mas não " feliz para sempre".
Ah sim.... meus amores felizes terminaram. Em suave e difícil desgaste. O tempo venceu. Na verdade o fim do amor é ainda mais misterioso que seu nascimento. Quem sabe ?

ACABOU CHORARE - NOVOS BAIANOS

Quero mais. Só rock é pouco e jazz é pouco também. Como alguém pode só escutar ópera ou quartetos de Haydn ? Eu quero mais. O som de Ravi Shankar e de Trenet. Música pop da Itália e da Espanha. Mariachis e guaranias. Cabe todo som na minha cabeça. Música é para expandir.
Voce odeia MPB à priori ? Pobre de voce. Entre o lixo inominável e a pretensão cabecista existe muita coisa mais que boa. Porque voce, menino do Brasil, devia saber que o som do Brasil é acusticamente insuperável. O segredo nacional não é a ginga ou a percussão. É a harmonia. No som que se fazia no país tudo podia entrar, harmonicamente. A grande música pop do Brasil é fluxo de maré, é embalo de acalanto, é doce e ensina a viver. Pode salvar vidas.
Mas não cabe, talvez, em seu mundinho de trevas.
Bom gosto e bom astral. O disco começa se pondo em campo. Brasil Pandeiro é escalação de seleção, carta de deliciosas intenções. O tabuleiro está posto. Ele é baiano.
Quando então entra Preta Pretinha o gol é de placa. Nascer com esta canção... ela é tudo aquilo que poderia ter sido o Brasil. E é aquilo que a gente insiste em tentar ser : bonito. Talvez seja a mais bonita das canções. É ingênua, é solar, é esperança de vida. Preta Pretinha justifica toda a música nacional, de Caymmi até agora. Quando entra a percussão as meninas dançam e eu sorrio e penso : viver pode ser bom.
Mensagem de todo este disco/manifesto : VIVER PODE SER BOM.
Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer... eu sou um pássaro que vive avoando/ vive avoando sem nunca mais parar/ aiaiai saudade não venha me matar...
O disco não precisava de mais nada. Mas vem Tinindo Trincando que é uma festa de maconha e álcool barato. As cores dançam e o otimismo é rei. Swing de Campo Grande é ressaca carnavalesca. Jogar bola, ver as meninas e cantar, fora isso nada faz sentido, a vida é só bola, menina e violão. Se não é tinha de ser.
É engraçado, na MPB não existe o ódio... rockeiros cobram dela algo que ela não tem, ódio. É como cobrar harmonia de punk rock. Outro mundo.
Acabou Chorare. Se a gente perder de vez o dom de cantar o amor tudo estará perdido. Esta canção é amor de verdade e eu sei, se não se sabe cantar a raiva é porque se vive no amor. Chorare é tristeza confortável. Amor quente, lindo e pra sempre. Beijo em nosso ouvido.
Mistério do Planeta. Uma viagem filosófica baiana. Aquele nada que é tudo sendo coisa alguma. Mas o violão é lindo. Aceitar a vida. O mistério de cantar e imaginar esta letra.
A Menina Dança. Malandrices de quem chega sempre e nunca parte. Tanta malandrice irrita corações azedados. Me dá vontade de viver mais quatro décadas. Repetindo tudinho aquilo que fiz. A menina dança e eu danço com ela. No meu olho.
Besta é Tu. Besta é tu. O quanto cabe de alegria numa canção. Quando eu tinha 18 anos esta canção fez com que eu vendesse meus discos cabeça. Num mundo ideal todas as músicas seriam assim. Num dia ideal a gente acorda ouvindo isto. Porque não viver neste mundo/ se não há outro mundo.... Eu pulo e sorrio. Besta é tu...
Um Bilhete Pra Didi. Música estradeira de bananas e de garotos que vendem caranguejo.
Quantas vezes desci a Serra ouvindo isto ? E me sentindo e tendo consciência de estar completa e absolutamente feliz. O sol no verde, a água espumando e o cheiro... e o mar lá no final. Lindo.
ACABOU CHORARE é viajar para a idéia solar. Mas não vou cabeçar... sem filosofices, o disco é lindo e alegre. Nenhum país faz nada parecido. Este tipo de canção é só aqui. Não é pouca coisa.
Eu ia lhe chamar/ Enquanto corria a barca.... Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer......

GIMME SHELTER - IRMÃOS MAYSLES, O INFERNO EXISTE

Ao final de uma excursão vitoriosa pela América, os Rolling Stones têm uma idéia : um show e um filme para comemorar esse sucesso! Um show grátis. Ótimo, mas a prefeitura de SanFran veta o show na última hora e na véspera eles conseguem o autódromo de Altamont. O show é marcado para sábado de manhã, a montagem do palco se inicia sexta de noite. Os Hell Angels farão a segurança. O desastre está anunciado.
Para quem não sabe, este filme é dirigido pelos irmãos Maysles, e eles são considerados, inclusive por Walter Salles, geniais como documentaristas. O filme é uma obra=prima. Não estou falando de rock, ele vale como cinema documental, ele mostra TUDO. Uma das mais terríveis imagens do inferno na Terra. Vamos por partes...
Jagger e Watts assistem o filme na sala de edição. E em sua primeira parte, o que vemos, é o último show no Madison Square Garden e a preparação de Altamont. O palco, a luz, o som sendo montado com milhares de loucos presentes, palpitando, perturbando, arrumando encrenca e se drogando. Quando palco e bastidores estão prontos, o que vemos, aturdidos, é que existem centenas de loucos sobre o palco e dentro dos bastidores. Em nossa era de shows hiper-profissionais, ver isso é como assistir ato de extrema irresponsabilidade : o cenário do caos.
Antes de chegar na Califórnia, a banda dá uma parada no Muscle Shoals, o mítico estúdio onde Otis Redding, Aretha e os Booker T gravam. É um barraco de lata no meio de uma fazendola!!!! É emocionante! Recordo de Steve Cropper dizendo que enquanto eles gravavam, os racistas ficavam jogando pedras no telhado e esperando lá fora para surrar os músicos.... Nesse estúdio eles gravam you gotta move.
Em Altamont começa o show. O Flying Burrito Brothers abre. Na época Keith estava muito amigo de Gram Parsons, e Gram era influência sobre o som dos Stones. Eles tocam e é o único momento de boa música em Altamont. Os Burritos eram magníficos!!!!! Mas a coisa esquenta. Os muito doidos Jefferson Airplane sobem ao palco, palco onde estão uns cem Angels fazendo nada e tentam tocar seu pop psicodélico. Não conseguem. Os Angels começam a provocar e Marty Balin, o vocal, parte pro pau. E o pau come no palco e na audiência. Ondas de violência irrompem em todo canto enquanto patéticamente Grace Slick fica tentando acalmar o povo. Vemos gente nua na platéia, mas não é mais a nudez de Woodstock, é uma nudez monstruosa, decadente, ofensiva. Em quatro meses, apenas, todo o colorido de Woodstock se tornava este negror horrendo de Altamont. A doce ilusão, falsa, de Hippies e flores, mostrava aqui seu lado real : vômito, violência, estupidez, drogas pesadas. As cameras mostram tudo, vão fundo, closes em dezenas de pessoas em surto psicótico. É terrível !
Os Stones chegam e tentam tocar. Jagger, gayzérrimo, satanico, esperto, tenta fazer seu show, mas é impossível. Há uma cena, longa, maravilhosa : Jagger dançando e um Angel, dois metros distante, de pé no palco, encarando Mick com fúria no olhar. Sentimos que aquele cara o detesta. E ele fica lá, ao lado do microfone, como se o palco fosse seu.
Um cão cruza o palco, perdido. Um pastor alemão. Moças sobem no palco, gente sobe e desce, e Jagger canta enquanto isso. É hilário ? Não. Alí eu vejo onde morrem os sonhos. As pessoas mostram sua face. Matam um negro na frente do palco. Ele aponta uma arma para Jagger e os Angels o matam com paus e facas. Na nossa frente. Tudo anunciava isso. Eram mais de 500 mil loucos, em bad trip. Eram centenas de Angels, passeando de motos em meio aos hippies, prontos para brigar. Eram centenas de brigas, todo o tempo. E era a postura satanica dos Stones, postura que eles abandonariam nesse dia/noite. Jagger sentiu medo, muito medo. Eles haviam ido longe demais, todo o lixo do mundo os seguia. A banda se torna então uma paródia de sí-mesmos, inauguram nesse pavor o rock moderno : circo, it's only rocknroll.
No estúdio há um longo close em Charlie Watts. Apenas isso. Vemos o mais doce dos Stones. Esse é momento de puro cinema. De soberbo cinema. ( E eu penso em como a MTV matou esse tipo de filme. Não se faz mais filme para cinema com bandas. )
Outra coisa que notamos : como era bonito ver Jagger e Richards juntos. Aqueles meninos que se conheceram por acaso num trem em Richmond e que fizeram da caretésima Inglaterra o lar da mais sexy das bandas. O negócio deles era glamour e os dois formavam um casal perfeito : Mick era o dandy e Keith o pirata.
O mundo mudou demais em cinco anos. Não temos consciência disso, mas entre os yeahs yeahs yeahs de She Loves You e o inferno de Altamont se passaram apenas cinco anos !!!!!! É outro planeta ! Onde havia uma doce ingenuidade juvenil, nasce em dezembro de 1969 uma horrenda decadência agressiva. A mudança foi rápida demais, radical demais. A loucura foi demais.... dionísio tomou conta de Altamont.
Assista Gimme Shelter. Sabendo que é um documentário sobre pesadelo. Um anti Woodstock e um anti Beatles. Os Stones são aquilo. Jagger tocando blues para Tina Turner no backstage é o real Mick Jagger. Mas eles morreram naquele palco. Foram trucidados. Como faziam as bacantes dionisíacas na Grécia arcaica. ALTAMONT FOI A ÚLTIMA NOITE DIONISÍACA DO PLANETA.
O horror, o horror, o horror......
PS;
Há um vídeo no youtube onde em 1966 os Stones tocam HAVE YOU SEEM YOUR MOTHER BABY STANDING IN THE SHADOWS em Amsterdam. O público perde o controle e agressivamente começa a invadir o palco e interrompe o show. Numa aula de cool, a banda não se importa e Brian Jones gargalha. O duendismo é exatamente isso. Veja.

AS AVENTURAS DE AUGIE MARSH - SAUL BELLOW

" ... e esse espetacular engrandecimento antigo, com suas ruínas de arte e inúmeros signos nobres, eu conseguia apreciar, ainda que não quisesse ser simplesmente esmagado pela grandeza daquilo tudo. Mas no poder moderno do luxo, com seus batalhões de trabalhadores e engenheiros, são as COISAS em sí, os produtos, que são eminentes, e o indivíduo não chega nem perto de ser igual à imensa soma delas."
Eis aqui SAUL BELLOW em AUGIE MARSH, conseguindo dizer o porque de eu me sentir tão mal perante a arquitetura moderna e tão bem perante cidades antigas. Andando por Roma ou Veneza somos esmagados pela grandeza da obra de GRANDES HOMENS. Cada monumento tem o nome e a face de algum herói. Prédios não remetem a ser humano nenhum. É apenas uma coisa. Esmagados pelo inanimado, sem pensamento, pelo absolutamente não humano.
" ... que em qualquer vida de verdade, voce tem de sair e ser exposto fora do pequeno círculo que abarca duas ou três cabeças na mesma história de amor. Experimente ficar, para ver, do lado de dentro. Veja quanto tempo voce aguenta."
Augie Marsh nasce em Chicago. Não conhece o pai e sua família é sustentada por parentes e pelo serviço público. Augie Marsh aos 10 anos é um malandro de rua. Vende jornais, tenta roubar e idolatra um tipo de chefão do crime. Acima de tudo, ele tenta agradar, não criar atrito, e segue sempre alguém. Augie é feliz.
"... e é isso que a humanidade sempre faz. Ela é feita desses inventores e artistas, milhões e milhões deles, cada um tentando a seu próprio modo recrutar outras pessoas para representar papéis coadjuvantes e apoiá-lo no seu faz de conta."
Augie percebe cedo que tudo é mentira. Ninguém, NUNCA, diz aquilo que realmente pensa ou sente. E desse modo, todos passam pela vida sem poder ser o que se nasceu para ser. Augie Marsh se apaixona, tenta estudar, rouba livros e os vende, mora em pulgueiros, e conhece gente, muita gente, gente rica, gente pobre, louca, sã, felizes e tristes. Tem um irmão demente e outro ambicioso que se tornará a proto-imagem do yuppie voraz.
".... como se, quando chegava o momento, deixássemos a companhia de quem quer que estivesse conosco e fôssemos reservadamente sair no braço com nosso antagonista eleito no seu esconderijo secreto."
Tentam enredar Augie no mundo dos milionários. Mas ele não cai, ele esnoba o dinheiro. Foge sempre, mas ao mesmo tempo está sempre de volta. Ajuda um aborto, se envolve em sindicato e vai pro México em caçada a águias e cobras e amor ( que sempre termina em desespero ).
" ....A GRANDE INVESTIGAÇÃO DE HOJE É QUANTO UM SUJEITO PODE SER MAU, NÃO É MAIS O QUANTO ELE PODE SER BOM."
Quem diz isso é Padilla, um dos caras que nosso herói conhece nessa jornada. Um dos muitos que fazem com que Augie se movimente, todo o tempo, logo ele, que tanto queria ficar parado. Porque Augie logo descobre que voce só pode ser voce se estiver parado.
"... no mundo da natureza voce pode confiar. Nele voce já sabe. Mas no mundo dos artefatos voce tem de ter cuidado todo o tempo. Nele voce tem de saber, e não dá pra ficar com tanta coisa na cabeça e ser feliz."
Num livro que tem um milhão de grandes pensamentos, talvez este seja aquele que mais me toca. Vivemos cada vez mais, em mundo onde PRECISAMOS saber coisas. Números de código, datas e horários, cruzar uma rua e pegar um táxi, pagar contas, ligar maquininhas, responder mensagens, cuidar do corpo, cuidar da beleza, proteger o patrimônio, cumprir horário, cumprir metas. Sobra espaço pra ser voce ?
"... tédio é a convicção de não poder mudar. O homem murcha quando pensa ser a mudança impossível. Mas não é engraçado ? Passamos toda a vida com medo da mudança e procurando o que nos faça estáveis. O amor por exemplo."
É um livro devastadoramente rico. Vem a guerra e eis Augie perdido num bote salva-vidas no meio do mar e depois eis ele casado e rico em Paris. E corneado.
Mas quem é Augie? Seria ridículo eu dizer que ele é todos nós? Mas ele é. Saul Bellow, gigante, consegue criar um adorável Candido do século XX. Otimista teimoso, apaixonado, desiludido, medroso, enganável e totalmente perdido. O livro é um colosso.

PRESTON STURGES, ERNST LUBISTCH, THE YOUNG VICTORIA,MIZOGUCHI

O CONDENADO de Carol Reed com James Mason
Na Irlanda, revolucionários fazem assalto. O líder é ferido e o filme, escuro, sombrio, mostra sua tentativa de sobreviver na cidade suja. Reed foi um dos gigantes do clássico cinema inglês ( e autor do Cidadão Kane de lá, O TERCEIRO HOMEM ). O filme é muito forte, mas este dvd tem sérios problemas de legendagem. Nota 7.
CRISÂNTEMOS TARDIOS de Kenji Mizoguchi
Nesta história de um filho de ator, ator que sofre por não ser tão bom como o pai, há todo o esteticismo belíssimo de Mizoguchi, o mais clássico dos diretores do Japão. Todo movimento de câmera é preciso e os cortes, quando há, são suaves e muito necessários. Voce observa o filme, não o assiste ou analisa. Nota 7
A ROSA PÚRPURA DO CAIRO de Woody Allen com Mia Farrow, Jeff Daniels e Danny Aielo
Um dos mais melancólicos filmes de Woody. Sua mensagem central é a de que nada nunca muda na vida real, e portanto, o que nos salva é a fantasia. O roteiro brilha em idéia, mas falha em emoção. O herói sai da tela e os personagens do filme de onde ele fugiu se revoltam. Eis Woody sendo Charlie Kauffman antes de Charlie ser moda. Mas o ator que faz o herói seduz a mocinha por quem o personagem de ficção se apaixonou. E ela, e eis o centro do filme, opta pelo ator, pelo real, e é traída por ele. No fim, uma cena magistral, Mia Farrow, totalmente desolada, assiste no cinema a Fred Astaire e Ginger Rogers e volta a viver. Um elogio ao cinema de quem realmente o entende. Nota 7.
THE YOUNG VICTORIA de Jean Marc Valée com Emily Blunt, Miranda Richardson e Jim Broadbent
Delicioso. O filme ainda não estreou por aqui e se estrear vá ver. É romantico no sentido antiquado do termo, ou seja, tem bom gosto e boas intenções. Faz bem , voce termina o filme se sentindo em paz com o mundo. Conta o início do reinado de Victoria, a rainha que fez da Inglaterra aquilo que pensamos sobre ela ainda hoje. ( E que acabou em 1960, mais ou menos ). Os atores estão muito bem, leves e bem dirigidos. Bela surpresa! ( E é lógico que eu, vitoriano que sou, me apaixonei pelo filme ). Nota 7.
AMANTES de James Gray com Joaquim Phoenix, Gwyneth Paltrow, Vinessa Shaw
Psicólogos irão gostar. Mas o mundo precisa de mais um filme sobre gente deprimida? Deprimidos do tipo mais chato, vivendo em seus ambientes de cores pastéis e pouca luz? O que nos interessa na vida banal daquele cara? Ele é apenas um mala. O filme padece da atual síndrome cabeça: confunde fazer arte com ser triste. É a arte da impotência. Nota 1. ( Sorry Leo ).
LADRÃO DE ALCOVA de Ernst Lubistch com Herbert Marshal e Miriam Hopkins
Uma festa! Se voce quer saber o que é o tal Lubistch touch, eis aqui a resposta. O filme, delicioso tipo champagne e caviar, é aula de luxo. Cheio de pequenos toques de estilo e esfuziantemente alegre. Trata de casal de vigaristas, ladrões, e fala de seus golpes e sua tentativa de enrolar uma jovem milionária. Herbert é o rei da sofisticação e Miriam está bastante engraçada. O roteiro é um festival de frases de duplo sentido, ele faísca. Os cenários têm aquele luxo irreal da Paramount dos anos trinta, tudo brilha em branco e prata. Este é um dos filmes míticos da época e demorou muito para que eu finalmente o encontrasse. Valeu esperar, não me decepcionou. Esperava diversão de classe, é o que ele é. Nota DEZ.
TINHA QUE SER VOCÊ de Joel Hopkins com Dustin Hoffman e Emma Thompson
Uma comédia romântica sobre gente comum e com mais de quarenta anos ( ele, mais de sessenta ). Ninguém tem tiques de neurótico. São sofridos, são humanos. Ele viaja para Londres a fim de assistir o casamento da filha. A nova família da ex não o aceita. No fundo da solidão, ele conhece quarentona que ainda solteira, cuida da mãe ex-doente. Ele força o romance, segue-a por uma tarde. Ela cede devagar. Duas solidões se encontram. O filme nada tem de artístico. Conta sua história, simples, com humildade. E funciona. Porquê? Neste tipo de filme é necessário que nos apaixonemos pelos personagens. Isso acontece. Emma é apaixonante. Ela se faz desajeitada, meio tímida, desiludida. Dustin é o mais humano ator de sua geração ( Nicholson faria deste personagem um bufão e De Niro o transformaria num perigo ), ele sofre, erra muito, tenta acertar e acaba nos acertando. Se voce tem mais de 40 é obrigatório. Trata-se de uma raridade : filme adulto sem ser metido. Filmes como este antes eram a regra, hoje nos surpreendem. Nota 7.
CONTRASTES HUMANOS de Preston Sturges com Joel McCrea e Veronica Lake.
Uma obra-prima. Filme favorito dos Coen, é a história, maravilhosa, de um diretor de cinema que resolve fazer um filme sobre os pobres ( nome do filme que ele quer fazer : O BROTHER, WHERE ART THOU...). Se disfarça de mendigo e cai na estrada. Mas o estúdio o segue, lhe dando toda a cobertura possível. Ele conhece atriz fracassada e acaba desistindo de sua idéia. Mas, em cena mirabolante, torna-se um mendigo de verdade e é preso numa prisão rural do sul. O filme diz todo o tempo que somente pessoas privilegiadas se interessam por filmes sobre a miséria. Quem é pobre sofre demais com essa chaga para querer vê-la nas telas. Pois bem, na prisão rural, em cena de gênio, se passa um filme para os presos. Um desenho de Mickey e Pluto. Os condenados riem e ele se pega rindo. Sua teoria desaba : o povo precisa de risos, e quanto mais cruel é sua vida mais voce necessita disso. Voltando a Hollywood ( ele escapa da prisão em cena genial e bem sacada ) o diretor fará mais uma comédia.
Preston antecipou aqui seu final de vida. Nascido em família trilionária, ele foi o primeiro roteirista a virar diretor, abrindo o caminho para Wilder e Huston. Foi educado na Europa e era um tipo de excêntrico Professor Pardal. Seu grande prazer era inventar coisas. Aliás ele ia para o estúdio de pula-pula !!!!! Mas se tornou alcóolatra e seus filmes foram perdendo a graça. Terminou pobre. Este filme, vinte anos adiante de seu tempo em estilo e malícia, começa com letreiro homenageando todos os palhaços do mundo. Nós é que somos homenageados por seu prazer. Uma obra prima absoluta, engenhoso, sempre surpreendente, vivo. É fácil notar este filme como fonte da vivacidade dos Coen. Nota DEZ!!!!!!!!!!!
CONTATO de Robert Zemeckis com Jodie Foster, Mathew McCornaghy
Algumas cenas são tão infantis que dá vontade de rir. É ciência para crianças e o filme tem aquela tara por teclados e telas. Exibe nerds como heróis de nosso tempo. Mas os vinte minutos finais são mágicos. As imagens das galáxias, a viagem pelo tempo, o reencontro com o pai. Dói pensar o que este filme poderia ter sido se feito com mais coragem. Nota 5.

ROCK INGLÊS

Mas música não era só música!!!!! Caramba! Era uma coisa muito suja e muito suicida que podia te deixar totalmente doido ou soberbamente feliz. E voce ia pra rua querendo alguma coisa completamente nova da vida. Queria morrer ou viver para sempre!!!!!
Mas a música não era apenas música!!!!!!! Cacete! A gente sabia que os mineiros em greve de fome morriam com o jogo duro de Thatcher. E sabíamos que se ela dobrasse o movimento trabalhista inglês, a Inglaterra, derrotada, a suja Inglaterra dos cockneys desdentados, dos anarquistas cuspidores, dos torcedores mal encarados do Arsenal, os fãs de Sham 69 e de Madness e de Buzzcocks, nós sabíamos que se eles perdessem a Inglaterra se tornaria uma terra de cuzões. Eles perderam....... mas a música ainda significou muito por algum tempo.
A maioria silenciosa venceu e a festa acabou. Música, por melhor que fosse, se tornou apenas música. Veio aquele Duran Duran e aquele Culture Club. E Paul Weller virou dandy. O cara de boca suja e vômito de Guiness virou personagem cômico de filmeco de Guy Ritchie. Perigo nenhum. Nenhuma mudança a vista. E esse monte de bandas que fazem apenas música.
Mas voce sabe. Acreditamos no perigo. E eu me postei, ferozmente, do lado contrário. Tanto acreditei na ferocidade dos punks que ferozmente me fiz conservador. Odiava aquilo tudo porque eles odiavam e destruíam tudo que eu amava. Hoje eu sei : fui o vencedor. Hoje eu sei : eu tinha que ter perdido. Maldita vitória.
Quando vejo Sham 69 tocando em Reading, Borstal Breakout, vejo energia revolucionária autêntica. Não é um garoto dando tudo de sí por AMOR A UMA BANDA AMADA, é a ira POLÍTICA, a raiva em estado bruto, a música que não significa música, ela quer dizer ATITUDE. Não há referência a nada. Não há o respeito a nada. Eles estão pouco se lixando para Kinks, Stones ou Dylan. Eles expressam uma atitude, uma POSIÇÃO PERANTE A VIDA, TOMADA DE PARTIDO, COMPROMETIMENTO RADICAL, CORAGEM DE ERRAR. É por esse motivo que o rock inglês de hoje me interessa tão pouco. O país que sempre fora o mais irado, mais político, mais comprometido com a realidade, hoje produz bandas que respeitam demais as bandas do passado, que amam demais Beatles, Small Faces e que tais, que amam até mesmo a rainha!!!!!! Não consigo levar a sério! A pretensa rebeldia é sempre a rebeldia copiada durante a infancia, em frente ao espelho, raquete de tênis na mão, imitando o Sham 69 ou The Jam. Ou esse monte de deprimidos profissionais, pseudo artistas que cresceram querendo ser Morrissey ou Robert Smith. Só engole quem nunca conheceu a delícia e a dor do artigo genuíno. Músicos que só pensam em música. Bandas que só têm por referência outras bandas. Essa eterna repetição de coisas dos anos 80..... que saco!!!!!!
E a Inglaterra, pobre nação, que foi terra do rock mais irado e azedo, do cinema mais engajado e de escritores fedidos, é hoje lar de drogadinhos meninos de calça justa e cabelinho despenteado. Cuja atitude significa apenas atitude, cuja raiva é apenas raiva, e cuja música é somente música. Bláaaaah!
O Arsenal virou time de futebol arte! Socorro!!!!!!!!!!

WOODSTOCK NÃO TEVE MÚSICA. MAS FOI CINEMA.

Acaba de sair uma caixa com 4 dvds de Woodstock. Tudo remasterizado etc e tal. Um monte de extras, o filme inteiro ( que ganhou o Oscar de melhor doc ) e shows que aconteceram no palco mas que ficaram fora do filme oficial. Waaaaaal.....
Eu já conhecia o filme a décadas e ainda recordo de quando ouvi o disco pela primeira vez ( imaginando como seria o filme ). O filme é esquisitaço. Pois ele é um gigantesco e partido em dois, documentário. Profundamente bom e irritantemente ruim. Explico sem explicar : tudo o que parecia ótimo em 1969 é hoje péssimo, e aquilo que era posto de lado então é o que mantém o filme relevante. Por partes.
Nunca conhecí alguém que fosse razoávelmente interessado na vida que não mostrasse desejo de ter estado no festival. ( Mesmo fãs de forró e de rap ). Porque ? Drogas, sexo e rocknroll ? Mas isso tem em qualquer rave de hoje. ( E vendo o filme noto como toda rave que presta é Woodstock até os ossos ). A primeira coisa que choca vendo o filme é em como, quarenta anos depois, aqueles caras, se descontarmos as gírias antigas, são fisicamente idênticos as pessoas que encontramos em Ilhabela no reveillon, em bares da Vila Madalena e em cursos de teatro ou yoga. Em compensação, aqueles velhos, aqueles policiais, os caretas em geral, desapareceram. O homem de gravata e chapéu, cabelo rente, calça de tergal. A mulher de anágua e meias, de laquê.... desapareceram. Sem aqueles tolos hippies de 69 não usaríamos camisetas e jeans, bermudas e colares, brincos e cabelos diferentes.
Mas foi só isso a revolução ? Visual ? Não. Diz-se que os hippies perderam. Que eles não mudaram o mundo. Será ? Olho Woodstock e acho o mundo de 69 próximo do nosso. Eles enterraram o homem estilo John Wayne ou Sinatra. Para o bem e para o mal. Hoje falamos de sexo, de drogas, de ecologia, de socialismo, de gays. Acredite : isso tudo era tabú. Se voce era um pouquinho esquisito, antes de 68/69, voce era um freak, e seu destino era a chacota ou pior. Aquele milhão foi à Woodstock para poder ser freak. O lado ruim é que desde então muita gente é esquisita por modismo.
O filme foi dirigido por Michael Wadleigh e tem Martin Scorsese como co-diretor e editor chefe. Como cinema o filme é belíssimo. E muitas cenas anunciam TAXI DRIVER e principalmente GOODFELLAS. ( O helicóptero ameaçador ). É um filme feito de câmera na mão, travellings e zoons. E as falas são maravilhosas ! Os alto-falantes anunciam : " Atenção! O ácido marrom que está sendo vendido não dá boa viagem. Voce está avisado, mas se mesmo assim quiser provar o problema é seu." Eles realmente acreditavam estar mudando o mundo. Que a partir dalí ninguém mais iria ligar para dinheiro, cobiça, posse ou crime. Uma tolíssima ingenuidade para nossos tempos. Mas também uma bela dor de cotovelo para nosso mundo cansado. Um jovem que acreditou de verdade nisso, voce sabe, conheceu o paraíso, mesmo que por apenas 3 dias.
Loucura. Ao mesmo tempo que o exterior daqueles jovens nos é familiar, que suas caras de chapados e seu sexo free nos sejam conhecidos, seus sonhos e seu delírio feliz nos é totalmente desconhecido. Há uma cena em que os produtores se abraçam ao ver que o festival rolou ( mesmo que sem lucro ) que é comovedora. Eles estão falidos, e estão completamente felizes. Ver seus rostos nos faz pensar.
O que define a juventude é sua virgindade. O novo é verde e ser jovem é ser ignorante ( abençoadamente ) da maldade e do limite. Toda geração jovem teve a crença de estar mudando o mundo. Desde Napoleão. Sim, os românticos foram os primeiros a crer nessa mudança, a arrogantemente querer mudar tudo e se enxergar como a melhor das gerações. Livres. Essas ondas se repetiram desde então. ( Isso não havia antes ). Assim foi com os realistas, os socialistas, os fascistas, os modernistas, os beatniks, os existencialistas, e os hippies, filhos de tudo isso. A fé total num novo mundo. A certeza de se fazer parte de um GRUPO PRIVILEGIADO que estava sendo o protagonista de uma história sem igual. A crença no herói.
Nossa geração se parece infantil. Mas é um infantilismo cínico. Jovens que não crêem em nada e que NÃO POSSUEM A CORAGEM DE AO MENOS IR AO FUNDO DE SUA DESCRENÇA. Penso que nosso infantilismo é na verdade senilidade. Como velhos desdentados olhamos para aqueles jovens nús escorregando na lama e pensamos : " Voces são porcos! Voces perderam! Apostaram no perdedor!!!" Bem... eles viveram. Tiveram a coragem de apostar. Nós jogamos no seguro. Saltamos no abismo em tela de computador. Eles foram lá e se jogaram. O que ganharam ? O que voce ganhou ?
Peguei a rebarba daquilo. Peguei a reação. Punks, glitters. Eu realmente acreditei que os punks haviam destruído tudo. Eu pensei que a queda do muro era o paraíso na Terra. Nada, desde Napoleão, muda tudo. Mas tudo mudou alguma coisa. Definitivamente. Antes de Woodstock as multidões só se reuniam para guerrear. E mulheres de família não se sentavam no chão para fumar erva. E não dormiam abertamente com namorados. Eles fizeram vários gols. Mas a expectativa era tão grande que esse 8 x 0 pareceu um 0x0.
Quanto a música....
O festival aconteceu na hora errada. Na entressafra. Fosse um ano antes e teríamos Cream, Traffic, Byrds, Buffalo Springfield, Love, Jeff Beck Group, Yardbirds e Soft Machine. Fosse um ano mais tarde poderíamos ter visto o Led Zeppelin roubar o show e mais Black Sabbath, Pink Floyd, Faces, Elton John, ELP ou até T Rex. Em 1969 um monte de bandas estava terminada e havia uma multidão de novos grupos ainda pouco conhecidos. Woodstock não poderia ter Stooges ou MC5 e não quiseram chamar os novos countrys, pois naquele tempo hippies viam o country como a música da direita. Johnny Cash teria arrasado e os Flying Burritos Brothers seriam soberbos.
Dessa forma o festival dá espaço a gente em crise, em momento ruim. Hendrix, sem vontade, Joan Baez, chatíssima e já ultrapassada, Jefferson Airplane em fim de feira, John Sebastian sem saber onde está. Há também as apostas que não vingaram, gente como Joe Cocker ( e nada de Van Morrison ) e Ten Years After ( que veio quando o Jeff Beck Group acabou. Era para termos Beck, Rod Stewart e Ron Wood em Woodstock ! ). Do filme original, de bom, apenas Sly Stone ( que estraçalha e mostra todo o futuro negro da música ) e The Who. Assita no disco 4 eles tocarem Sparks. Do Caralho !!!!!! Keith Moon e Pete Townshend completamente tomados tocando em volume altíssimo e fúria suicida. Eles sobram em meio a nulidades como Crosby, Stills and Nash e os insuportávis Mountain.
Hippies gostavam de sons "muito loucos". Hoje eles adorariam ( e adoram ) Radiohead e Bjork. Acho que é por isso que não os suporto. Gosto mais do som direto, crú, no osso. No disco 4 tem uma banda que fazia muito sucesso em 69 e que ficou fora do filme oficial ( aquele que todo mundo conhece ) porque não era muito louca ou radicalmente política. Os hippies desconfiavam deles. E eles eram apenas dois irmãos caipiras, um baterista "rufus lenhador" e um baixista plebeu. Mas vendiam mais que os Beatles ( em 69 ) O CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL fez o melhor show de Woodstock. Quando entram os acordes de BORN ON BAYOU ouve-se, finalmente, em meio a frouxidão de Grateful Dead e Melanie, rock de verdade. John Fogerty solta o vozeirão, a guitarra rebola e a bateria traz o som do voodoo do pântano. Se isso não te enfeitçar voce merece meia hora de rock-cabeça. Descabelantemente bom!!!!!
O filme vale então pelo documentário em sí. Aquele monte de freaks achando que o mundo era deles. Não pela música, que salvo Who, Sly e Creedence, é sofrível.
Ir a um grande show hoje, seja Metallica, Beyoncé ou Oasis, é ir a apenas isso, um show. As pessoas vão para olhar o palco, azarar e se dopar. Exatamente como em Woodstock. Com uma diferença fundamental : Tudo o que se fazia, droga, romance ou música, tinha por objetivo o encontro de uma nova vida, de um novo mundo, de alternativas.
Tenho ceteza que voce não viu nada disso no Morumbi.

AS AVENTURAS DE AUGIE MARSH - SAUL BELLOW

Estou no meio deste livro. Mas ele é tão bom que preciso falar alguma coisa sobre.
Ele começa na infância de Augie, e Bellow é tão esperto que ele nos confunde. Durante essa infância ele faz com que nos sintamos como se vivêssemos outra vez nessa confusa fase da vida. O que temos são fragmentos mal compreendidos de vida. Rostos em flash, frases não explicadas e principalmente, uma maravilhosa e constante descoberta. São cem páginas de descobertas. Pessoas e mais pessoas que surgem sem motivo, acontecimentos pouco explicados.
Então vem a puberdade e a vida começa a se explicar. Agora as coisas têm um porque, as palavras significam algo, os personagens se explicitam. Augie se torna real. É estupedificante. Saul Bellow esbanja talento, sobra, é um gigante. As paixões de Augie, a relação com a família, o absurdo humor de tudo aquilo. O universo deste livro me encanta e desejo que jamais termine.
A habilidade em criar tipos beira o Shakespeareanismo ou o Dickensianismo. Centenas. Todos únicos, fascinantes e hilários. Desde o poderoso chefão tetraplégico até a milionária que quer adotar. Mas Augie é o melhor. Trata-se de herói completo. Augie não renuncia a nada, não abre mão de ser o que deseja ser, se estropilha todo, mas segue sendo livre, e o mais importante, Augie se interessa pela vida, por toda a vida. Ele se torna um dos meus mais caros heróis.
Como em todos os livros de Bellow, seu talento é tamanho que toda página tem alguma frase lapidar, alguma descrição perfeita e um toque de profunda filosofia. E tudo com satanico humorismo. Veja esta : na vida só importa o que vem fácil. O que requer esforço não é para voce. Lutar por uma mulher ou por um emprego nunca vale a pena. Isso não era pra voce. Quem ensina isso a Augie é um mexicano ladrão de livros e gênio em matemática. Outra : Augie sabia que nunca iria escrever para Avignon ou vencer uma guerra, mas, lendo esses livros, ele sentia fazer parte disso tudo. Um mundo maior. Era como a morte. Sabíamos que ela estava sempre alí, num canto do quarto, mas amávamos mesmo assim.
Nunca lí descrição melhor sobre o amor a leitura. Eu sei que jamais irei viver um amor como o de Heathcliff e Catherine ( MORRO DOS VENTOS UIVANTES ) mas creio neles e ao ler sua história FIZ PARTE DISSO. Pois agora estou no hilário mundo de AUGIE MARSH. Mundo de ladrões, mulheres vagabundas e falidos safados. Não quero outra vida. É um livro/universo precioso. Quando o terminar escreverei mais.

JD SALINGER e CHARLES M. SCHULZ

Salinger nunca foi chato. Não ficou posando de lider de geração. Ao contrário de Norman Mailer, Capote e Gore Vidal, nunca desejou ser estrela de nada. Sem aparições na TV, sem entrevistas na Playboy. Também não ficou lançando pilhas de livros. Assim não cometeu o erro de Updike ou de Roth, montes de livros banais ofuscando suas obras-primas.
Ele realmente percebeu e sentiu a verdade. A de que VIVEMOS UM APOGEU ANTES DA EDUCAÇÃO. Adolescentes são o ser-humano em seu auge. Depois nos enquadramos. E quem não se enquadra se torna SALINGER - hermitão.
Esse modo de pensar ( que é verdadeiro ) trouxe algo de muito bom a civilização ; a contra-cultura. Momento em que, como adolescentes, questionamos tudo e perdemos todo o respeito pelo velho. Mas após esse momento CAMPO CENTEINIANO, mergulhamos no pior da adolescência : vaidade fútil e infantilismo. Não derrubamos agora o velho para criar o novo, apenas, hoje, idolatramos a novidade.
Salinger surge em momento muito especial. Brando, Clift e depois Dean tornavam pop a angústia jovem, e o cool-jazz embalava o desejo de viver. Salinger surge na hora certa.
Seu livro é coisa hiper rara. Best-seller com conteúdo. Fazem zilhões de anos que nada de tão bom e de tão novo vende tanto. O livro jogou fora as novelas sobre jovens-adultos e criou a novela adolescente. E esse jovem personagem era doido, tímido, neurótico, engraçado, apaixonado e sonso. Sem ele não existiria o Coelho de Updike, o Portnoy de Roth e essas toneladas de livros menores que vão de Nick Hornby até Lollita Pille.
O cinema dos 60 é também filho de Salinger. A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM seria inviável sem O CENTEIO.
Lembro de Robertson de The Band dizendo que é impossível compor se sua vida é cheia de tietes, entrevistas e festas. Compor só é viável em solidão ou na estrada com amigos. Salinger se isolou, tenho certeza, para criar o grande livro americano. Falhou. Em 40 anos de tentativas, o livro não nasceu.
Bloom costuma dizer que todo autor americano segue uma de 3 linhas : Melville, Henry James ou Mark Twain. Embora superficialmente Salinger pareça picaresco como Twain, seu molde é Henry James. Como Fitzgerald, o seu interesse é pelo estilo, pela língua, pela voz e não pelo enredo. Seu texto é acima de tudo bem escrito. É prosa corrigida, trabalhada, refinada até a perfeição.
O tal grande livro americano continua a ser MOBY DICK. Os escritores americanos continuam a tentar fazer seu livro canônico. Seu DOM QUIXOTE, A DIVINA COMÉDIA, CANTERBURY, FAUSTO ou GUERRA E PAZ. A América não tem ULYSSES ou EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO. Nem mesmo um A MONTANHA MÁGICA. A América, muitos dizem, é país de muitos grandes escritores, mas não de grandes livros. Heminguay é o exemplo mais trágico. Grande autor sem um grande livro. E mesmo autores que foram mais longe, como Faulkner ou Bellow, dão a sensação de que seu talento nunca foi completamente explorado. O grande livro que eles tanto ensaiaram não veio a luz. O GRANDE GATSBY é provávelmente o grande livro americano do século XX ( e Salinger concordaria com isso ).
Eu descobri Salinger na idade certa : 17 anos. Foi leitura do Objetivo. Gostei e lembro de o ler em uma tarde. Nunca mais o reli. No correr dos anos vieram autores mais antigos ou mais recentes. Mas Salinger conseguiu em mim o efeito que penso ser aquele que ele sempre desejou : seu nome ficou à parte, fora da corrente, sempre lembrado mas estranhamente alheio. Salinger conseguiu continuar adolescente. Ficou fora do mundo de Saramago, Le Clezio ou Dario Fo.
Ele venceu.
MAS.....
Que maravilha!!!!!! Ao mesmo tempo que a América nos dava Salinger e Brando, ela nos dava algo de bem mais....... sei lá....
CHARLES M. SCHULZ.
Sem Charlie Brown não haveria Woody Allen. Nada, nada é melhor que PEANUTS. Quem amou um dia Linus, Snoopy, Schroeder ou Lucy, vai amá-los para sempre. E Schulz manteve também sua integridade. Só ele fazia PEANUTS. Quando ele morreu ( e que terrível foi esse dia ) a série terminou.
Voce sabe : Charlie Brown tremendo sobre a base é a melhor imagem sobre o homem moderno já feita. Poço de medo e um sorriso que teima em tentar vir. Assim como SNOOPY, como já foi dito, é a mais saudável imagem do homem contemporâneo : apostar na criatividade sempre. Snoopy cria seu mundo todo o tempo e aceita o que a vida lhe dá, mas sempre brigando pelo prato mais cheio. Snoopy não conhece tédio ou desepero, ele relaxa e brinca. Nada é sério para ele, sómente seu prato.
Schulz e Salinger terem vindo juntos não foi acaso. Eles chutam a cultura européia fora. Cultura que nos deu a guerra e o campo de extermínio. E criam a arte americana. O texto que é jazz, e o quadrinho tornado arte, alta e sofisticada arte. Cultuam o menino, a menina, a inocência maculada, a neurose do quase nascido. Charlie Brown luta por nascer.
O grande livro americano jamais irá nascer. O interesse da América é pelo grande homem, não pela grande obra acabada. Jamais haverá um HAMLET. Mas haverá um EUGENE O'NEIL. A arte americana não poderá ter seu MOLIÉRE, mas a França não pode ser terra de SNOOPY.
Acho que é isso.

500 DIAS COM ELA/ MINHA VIDA DE CACHORRO/ SETE HOMENS E UM DESTINO/ SOPRO NO CORAÇÃO

PARIS TEXAS de Wim Wenders com Harry Dean Staton, Nastassja Kinski
Um filme que dói. O amor morre e a estrada se abre. Ser herói é sempre ser só. Isso é verdade ou um consolo? O filme homenageia Ford e todo o cinema da América. Mas é alemão. Tão alemão como é Mann ( os dois Mann, Thomas e Heinrich ). O amor sempre termina e fica este homem andando sem rumo e esta mulher exibida numa tela. Mas ficou um rastro, uma criança. Wenders fez filmes imensos. É o cara. Nota DEZ. Um dos filmes que definiram aquilo que sou. Eu sou Travis.
SETE HOMENS E UM DESTINO de John Sturges com Yul Brynner, Steve McQueen, James Coburn e Charles Bronson
Este filme dá raiva. Queriam transformar Horst Buchholz ( quem? ) em star. Então o filme tem esse péssimo Horst demais e tem McQueen de menos... Baseado em 7 Samurais de mestre Kurosawa, é um western pop com uma das trilhas mais famosas da história ( Elmer Bernstein ). Boa diversão. Não é o oeste de Ford ou de Anthony Mann, mas é muito ok. Nota 7.
500 DIAS COM ELA de Marc Webb com Joseph Gordon Levitt e Zooey Deschanel
O filme segue aquilo que Nick Hornby diz : a vida pode se tornar uma tristeza com essa ração de música pop triste. Neste filme, o cara é fã de Smiths. Conhece sua amada ouvindo o som de Morrissey e Marr no elevador. A partir daí rola o romance dos dois em flashback. O filme é uma chatice. Os dois são exatamente o tipo de gente que menos gosto, dois fofinhos. Viciado em deprê, o cara passa o filme inteiro tentando nos fazer sentir pena. Sentí tédio. Quem gosta disto ? É um tipo de filme de Eric Rhomer para iletrados. Por medo de ousar se usa um narrador para explicar o filme, assim como se datam os flashbacks para não confundir. Sinal dos tempos : um filme para estudantes espertos que é pudico e envergonhadérrimo. Sua única boa cena é ao som de Bookends de Simon e Garfunkel. Ao som de Bookends até jogo de canastra se torna poesia. Mas é, apesar de tudo, um filminho bem intencionado. O Annie Hall de 2009. Mas é chaaaaatoooooooo!!!!!!! Nota 3.
ANNA KARENINA de Julien Duvivier com Vivien Leigh e Ralph Richardson
Livros banais podem dar bons filmes. Livros bons podem ser suplantados pelo cinema ( Wonderboys é um filme melhor que o livro de Chabon ). Hammet, Chandler, Du Maurier, Pasternak, Elmore James, são todos autores médios ( sim, acho Pasternak médio ) que foram melhorados nas telas. Grandes peças podem dar filmes geniais ( cito UM BONDE CHAMADO DESEJO e QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOLFF, duas peças de antologia e dois filmes históricos. ) Mas obras-primas da literatura nunca dão grandes filmes. A exceção, única, é OLIVER TWIST de David Lean, que é melhor que o livro ! Lord Jim de Conrad virou um filme chato, Dom Quixote é ridiculo e Moby Dick se tornou aventura normal. Sem falar em O Morro dos Ventos Uivantes, filmado até por Bunuel e sempre dando filmes ruins. Anna karenina nunca deu certo nas telas. Vira um tipo de romance aguado, vazio, sem aquilo que Tolstoi lhe deu de melhor : Força Divina. Vivien seria uma excelente Anna, mas o Vronski deste filme é um brioche de vento. Se voce nunca leu o livro pode até se divertir com seu visual bonito. Mas de Tolstoi não tem uma vírgula. Nota 5.
MINHA VIDA DE CACHORRO de Lasse Halstrom
Em 1985 a Suécia nos revelava este diretor sensível. O filme se tornou famoso, concorreu até a Oscars de direção e roteiro. Depois Lasse viveria nos EUA e dirigiria filmes como Chocolate e Gilbert Grape. Este filme, sobre um garoto desajeitado e sua família, será para quem o assistir hoje, uma maravilhosa surpresa. Peço para que todos voces o procurem e assistam. Precisa ser assistido porque é um filme que faz bem. A poesia e a alegria vivem neste filme ( e a dor também ). Se voces querem saber o que espero de um filme vejam este. É engraçado e faz chorar. O menino está comovente e a vida com seu tio é a vida que todos nós precisaríamos viver. Dá vontade de rever assim que termina e dá vontade de ir à rua e gritar : Viva a Suécia ! È uma obra-prima dos filmes sobre a infância ( e NADA tem de infantil ). Lindo. Nota DEZ.
MONTE CARLO de Ernst Lubistch com Jeanette MacDonald e Jack Buchanan
O mundo de Lubistch. Distante de nós. De todos os grandes é ele que está mais distante. Seu tipo de filme jamais poderá ser refeito, é filho de um mundo ainda iludido. É Vienna antes de Hitler, é mundo de romance tipo bolo de noiva, de canções maliciosas, de piscadas de olhos, de ligas de seda, de cafés e de cerveja. Não há violencia, não há deselegancia, nada de pressa. O tema é o romance, e não há qualquer pretensão a verdade ou a arte. O objetivo é divertir com classe. Delicioso, mas sinto que sua lingua se apaga ano a ano.... nota 7.
O TENENTE SEDUTOR de Ernst Lubistch com Maurice Chevalier, Claudette Colbert e Miriam Hopkins
Mundo de soldadinhos de chumbo. Romance sempre feliz, risos, dinheiro, reis de carochinha, flores e música de cervejaria. Uma bolha de sabão, leve, linda e que estourou. Nota 6.
A LEI DOS CRÁPULAS de Jules Dassin com Gina Lollobrigida, Yves Montand, Marcello Mastroianni, Pierre Brasseur
Numa vila italiana todos são maus. Não apenas maus, muito maus. Roubam, traem, mentem, enganam. Jules Dassin foi um dos grandes. Na América fez no mínimo 3 obras-primas. Eram filmes policiais e de denuncia social. Foi perseguido pelo Macarthismo e sua carreira continuou na Europa. Filmou na França, Inglaterra, Itália e Grécia. Continuou irriquieto, ousado e genial. É dos meus favoritos. Este é seu filme mais fraco. Os personagens são todos tão maus que o filme nos repugna. Gina é linda, mas incapaz de segurar o filme. Montand está cafa e excelente. A vila é maravilhosa, mas o filme é esquisitíssimo. Nota 6.
SOPRO NO CORAÇÃO de Louis Malle com Lea Massari e Daniel Gelin
Um dos mais originais filmes já feitos. Viva Malle ! Penso que se o mundo tivesse sido feito por Malle seria um lugar muito feliz. Todos seus filmes, tão variados, pregam a anti-culpa. Não existe culpa em seus filmes. Aqui acompanhamos um adolescente fã de Charlie Parker. Seus irmãos, sua primeira transa, o padre, o pai médico, uma doença no coração. Esses temas em outras mãos fariam do filme drama. O garoto não se dá com o pai, os irmãos vivem o perturbando, a mãe tem um amante, ele está doente. Mas, com Malle, tudo é brilho, tudo é leveza e todos são felizes ( sem serem jamais tolos ). É um cinema feito de coragem, de cultura e é sempre pop. Louis Malle não era bem aceito pela nouvelle vague porque apesar de seus temas serem modernos, seus filmes são feitos para serem entendidos. Não há nada de hermético, de enigmático, de intelectual. Mas é alta arte. E aqui ele tem a coragem de tocar no tema mais espinhoso que existe : o incesto. Filho e mãe. Não vou dizer o que ocorre, mas digo que nada parece chocante ou violento. Malle enfrenta o desafio de filmar algo muito pesado com leveza, e estranhamente ele consegue. O filme perturba por isso, nada é como esperamos. O final é sublime. Assisti este filme em 1982, no cine Iguatemi. Ele fora censurado em 1972 ( junto a LARANJA MECANICA e O ÚLTIMO TANGO ) e liberado em 1980, na abertura do presidente João Figueiredo. Adorei-o e fiquei estranhamente eufórico com sua alegria, sua energia e por perceber a absolvição de todo pecado que Malle nos dava. Quase trinta anos depois o revejo e percebo que ele permanece novo, ousado, vivo, e perturbador. É um filme para sempre. Louis Malle foi o único diretor francês de sua geração a dar certo em Hollywood. Viveu por lá de 1979 até 1993, fazendo bons filmes e alguns sucessos de bilheteria. Casou-se com a disputada Candice Bergen e terminou sua brilhante carreira na França, com filmes ainda ousados e lindos. Num país que nos deu Clair, Clouzot, Clement, Cocteau, Godard, Chabrol, Resnais, Renoir e Carné, ele é talvez o mais dotado, com absoluto talento para o drama, a comédia e o suspense. Louis Malle foi perfeito e SOPRO NO CORAÇÃO é único, não se parece com nada e é absolutamente feliz. Nota DEZ !!!!!!!!!!!!!

A FELICIDADE SÓ EXISTE QUANDO É ETERNA

A infancia termina no dia em que percebemos que ela tem um fim. A vida que é só acordar para brincar e odiar a escola parece sem fim. Nós sempre iremos ter recreios com bolachas e sempre teremos de dormir cedo. No dia em que notamos que nosso pai não é tão perfeito e que nossa casa é menor do que parecia, nosso tempo começa a correr e a infância se vai.
A felicidade só é possível na eternidade. O amor tem de ser eterno. No dia em que voce imaginar que ele pode acabar ( o amor ) ela já se encerrou ( a felicidade ). A matemática é inimiga da alegria : contar é guardar e guardar é temer perder. Quando somamos minutos e diminuimos tempo matamos a felicidade. A cerveja gelada do verão deve sempre parecer eterna, ou não será feliz.
Se realmente os cães não têm noção do tempo, se para eles tudo é um eterno agora, então eles vivem na felicidade plena. A alegre existência onde não se ganha nem se perde nada. Antimatemática.
O mundo da ditadura da ciência, da juventude obrigatória, dos horários controlados, é o mundo da felicidade impossível. Saber do final dos processos naturais, tentar emperrar a roda da vida, ansiar pelo novo mais novo, correr para ter mais tempo livre para correr... não há chance para a idéia de eternidade num mundo como esse. Saber que o amor existe no tempo e espaço é matar o amor.
A felicidade está na Lua. Enquanto crermos ser ela para sempre. Na maré que vem toda noite e no sabiá que sempre canta na minha mangueira. Pois esse sabiá é o de sempre.
Por isso há felicidade em Shakespeare, em Mozart ou Rembrandt. O que deixaram transcende o momento em que foi feito. Alí é possível o além de tudo. A felicidade pode residir neles.
Neste mundo cada vez existem mais coisas que nos fazem alegres. O mundo medieval, onde todo dia havia um enterro na família, era muito mais triste. Mas este mundo alegre é um mundo infeliz porque é feito de uma realidade que nos recorda sempre o fim de tudo. A tristeza medieval tinha a possibilidade de se tornar felicidade por, estranhamente, ser luto eterno. A família era eterna, o casamento era para sempre, a dor era imorredoura, e a esperança também. Deus existia.
Deixe chover e pare de amaldiçoar a chuva. Ela é para sempre como o sol é eterno. Por isso me fazem feliz. Não venha a ciência dizer que o sol vai deixar de brilhar um dia, ou que a chuva secará. O sol precisa ser eterno e a chuva voltar a cair. Ou a felicidade será apenas alegria. Quando a gente lembrava que as férias iam terminar elas perdiam a graça.

ANNA KARENINA - TOLSTOI

A primeira sentença já faz com que saibamos estar diante de algo muito especial. Após as primeiras vinte páginas estamos viciados e logo sentimos a presença de um tipo de gênio ou duende em cada palavra escrita. Tolstoi é vasto como Shakespeare. Seu dom é o de abarcar tudo. Ao contrário de Dostoievski, ele não se limita apenas aos loucos ou desajustados. Diferente de Tchekov, ele é potente, forte, corajoso, heróico.
Anna é o personagem central mas não é o maior. Vronski é tão grande como ela. O que o livro nos dá é inestimável. A idéia central é : o amor romântico é valorizado demais. Erramos ao aceitar o pensamento de que tudo se desculpa pelo amor. Pode-se matar, e se pode morrer. Se for por amor foi por bela causa. Pois a esse amor, no fundo egoista, Tolstoi opõe o amor de Lievin e Kitty. E em Lievin, Tolstoi cria o mais nobre personagem de toda literatura ( incluindo Quixote e Hamlet ). Lievin ama Kitty com fidelidade e devoção, Kitty aprende a admirar Lievin e dessa admiração brota o amor. Mas o amor deles é um amor que engloba tudo, eles estão interessados na vida, não vêem toda a vida nos olhos do outro. Kitty vive ocupada com seu trabalho na fazenda e Lievin tem ideais. Lievin sonha com a igualdade entre camponeses e vive em crise de espírito e de carne. O livro contrasta todo o tempo o mundo futil de Anna com o mundo vital de Lievin. Lievin entende Anna e poderia a amar. Mas Anna está cega pelo que imagina ser Vronski e Vronski ama Anna. Eles se bastam... mas a vida não é assim.
As páginas da crise espiritual de Lievin e sua cura pela observação da natureza, são a coisa mais maravilhosa que li em toda a vida. Ao ler aquilo voce sente todo o sufoco e aturdimento de Lievin, mas, milagrosamente, a ressureição dele é a sua. Quando ele sente finalmente a paz e enxerga o sentido de tudo, voce, maravilhado, sente exatamente o mesmo. A sensação é de sol brilhando, de anjos descendo, de mar descoberto. Vemos a vida pela primeira vez. Mas há bem mais.
As fofocas e as suntuosas festas, a vaidade vazia, a crueldade do marido traído ( e que nunca se torna um vilão ) o final de Anna. Estamos longe do romance melado, estamos longe do realismo. Tolstoi escreve num estilo só dele, é como se nos pegasse pela mão e fosse nos mostrando o mundo. "Veja leitor, eis uma mulher bela ! Percebe onde reside sua fraquesa ? Veja leitor, isto é a nobreza e isto é a vilania ! " Tolstoi nos faz mais adultos, mais vivos, ele nos dá o mundo.
Anna Karenina nos surpreende todo o tempo. Quando pensamos ter captado quem ela é, algo acontece e duvidamos de sua verdade. O autor cria personagens críveis, podemos vê-los, podemos ouvir suas vozes, mas nunca conseguimos capturá-los.
Leon Tolstoi foi parte da nobreza russa, foi soldado, foi literato. Enfrentou forte crise espiritual e largou tudo. Foi viver numa comunidade agrícola ( em suas terras ) onde fundou uma religião e um tipo de proto-socialismo. Todos os seus anos de velhice são anos de pregação utópica. Tolstoi morreu amargurado pela realidade egoista dos homens, recebendo romarias de escritores que o viam como um deus. Anna Karenina nos dá tudo isso.
O que faz de um livro um bom livro é sua capacidade de nos abstrair da realidade.
O que faz de um livro um grande livro é quando o autor cria uma nova realidade e nós mergulhamos nela.
O que faz de um livro coisa de gênio é o dom de transformar o leitor e o mundo durante sua leitura e após sua leitura. Após Anna Karenina, deixamos de ser os mesmos e o mundo deixa de ser como era. Tolstoi cria um mundo de tinta e papel. E mais incrível, modifica um universo de pedra, água e fogo, usando apenas tinta e papel. Talvez Deus exista.