FINZI-CONTINI/ TATI/ SALLY FIELD/ JORDAN/ WOODSTOCK/ EASTWOOD

NORMA RAE de Martin Ritt com Sally Fields
Sally ganhou seu primeiro Oscar com este filme sobre sindicalismo americano. Ela faz uma caipira, meia saidinha, que vai se conscientizando politicamente, ao conhecer um radical sindicalista "de esquerda". Além da muito carismática atuação de Sally, há um belo roteiro de Ratchett, que não romantiza nada ( não há romance entre os dois ) e nem cria nada de violento ou policial na história. O que vemos é uma tecelagem desumana, e a rotina deplorável de seus empregados. Ritt sempre gostou de fazer filmes com mensagem e este é de seus melhores. Não há panfletagem crua, o que há é bom cinema. Nota 7.
O PEQUENO GRANDE HOMEM de Arthur Penn com Dustin Hoffamn e Faye Dunaway
Dustin, no auge da fama, fez esta sátira ao western. Ele é um velho de 120 anos de idade, que em 1970, recorda sua vida a um jornalista. Este é um "Dança com Lobos" da era hippie. O herói é criado com os índios e se perde entre duas culturas : a branca é vista como hiper violenta e materialista; mas os índios também são bastante tolos. Há uma cena em que o velho chefe se deita para morrer que é hilária ! O filme começa meio sem sal, mas após 30 minutos ele se torna uma divertida comédia ( com algumas cenas cruéis ). Dustin era grande amigo de Penn, recusou convite de Bergman para fazer este filme.... Nota 6.
CAFÉ DA MANHÃ EM PLUTÃO de Neil Jordan com Cillian Murphy, Stephen Rea e Bryan Ferry !!!!!!!!!!
Desconcertante ! Acompanhamos a vida de um adotado menino, menino que se torna menina, que de Patrick se faz Kitten. Tudo para ele/ela é fantasia : ele tenta fazer do mundo uma festa. O acompanhamos na escola, já assumido e depois em sua adolescência/ juventude. Ele se envolve com cantor glitter ( feito por Gavin Friday. O filme vale por sua redescoberta. Procure no youtube clips de sua banda dos 80 : Virgin Prunes. São do cacete ! Glitter/ Punk genial. ) Continuando : vem uma tentativa de assassinato por um velho tarado ( Ferry, breve cena e muito bem ) e envolvimento com a guerra na Irlanda. Com tamanho assunto, o filme é bom ? Não. Irrita a voz do ruim Cillian. Não nos interessamos pelo personagem, não nos convence, e como o filme é com e sobre ele... A trilha sonora é um primor ! Nota 3.
ACONTECEU EM WOODSTOCK de Ang Lee
Fuja !!!!! Fuja correndo ! Um imenso fiasco ! Um anti-Woodstock, um caretésimo filme sobre um jovem tentando sair do armário. Quem se importa ? Com um dos momentos chave do século XX acontecendo ao lado, quem se interessa pela história daquele mala ? O filme chega a ser ofensivo de tão errado. Nota 1.
BLOOD WORK de Clint Eastwood com Clint Eastwood e Jeff Daniels
A história do ex-policial que volta a ativa para tentar descobrir quem matou sua doadora de coração transplantado. Clint sempre fez dois tipos de filme : ambiciosos filmes para novos fãs, e entretenimentos descompromissados para velhos fãs. Sou velho fã, adoro seus filmes mais pop, mais simples. Que belo policial é este !!!! Meio triste, lento, bastante envolvente, delicioso. Clint Eastwood é nosso Hawks e nosso Ford. Viva !!!! Nota 8
TRAFIC de Jacques Tati
Último filme de um muito grande diretor. Tati era cinema puro. Não há closes em seus filmes. Todas as cenas são vistas de longe, ângulo aberto ( em todos seus filmes ). Mal vemos os rostos dos atores, pois o que interessa a Tati são os corpos, as paisagens e principalmente as coisas em movimento. Seus filmes são fenômenos do olhar, suas tomadas lembram fotos de Doisneau ou Bresson. Vemos que cada movimento de cada figurante é milimetricamente ensaiado. Não há um só passo de um só figurante que seja casual. Todo movimento é parte de um mecanismo, e sempre existem vários movimentos coordenados acontecendo. Este filme, inferior ao perfeito "As férias de Mr. Hulot ", é fascinante em suas imagens e tem duas cenas de humor irresistível : a do guarda-chuva e a genial dos limpadores de para-brisa. O filme é crítico em relação ao amor dos homens por seus carros, mas nada tem de amargo. Tati adora as coisas. O que mais me agrada nele é sua falta de respeito pelas palavras. Seus filmes são dialogados, mas o que é dito não tem nenhuma importância. Gestos e atos, eis a vida para ele. Na parte final do filme, passada na Holanda, repare num dos mais belos cenários que já ví. Preservar um lugar como aquele é imperativo ! Já disse Roger Ebbert, assistir Tati não é como ver um "filme"; é como visitar um lugar muito querido. Trafic é lugar de férias agradáveis. Nota 8.
O JARDIM DOS FINZI-CONTINI de Vittorio de Sica com Lino Capolichio, Dominique Sanda, Fabio Testi e Helmut Berger
A profanação do que é nobre... Foi com a primeira guerra mundial que toda a nobreza viveu seu golpe final. E com a segunda ruiu toda a ilusão que o homem ainda podia ter sobre bondade ou dignidade. Este filme mostra acima de tudo a profanação da beleza. A destruição da nobre linhagem dos judeus de Ferrara. ( Uma das idéias mais tolas sobre a guerra é a de que os italianos eram um tipo de fascista-cômico. Há quem pense que judeus italianos não foram executados. Tanto foram que toda uma comunidade de judeus foi exterminada. ) O filme, auto-biográfico, centra-se na família Finzi-Contini, uma família tão rica que se dá ao luxo de jamais sair de casa. Eles nunca se misturam. Seu palácio e seus jardins recebem amigos e dentre eles Giorgio, que se enamorará por Micol, amiga de infância. Ela o repele, mas além dessa dolorida história de amor frustrado, há a história de um cerco que se fecha sobre todos, e mais cenas proustianas sobre tempo e memória e a tolice de judeus otimistas, pensando serem italianos e portanto salvos. Mas a beleza ( o filme é esteticamente primoroso ) do filme está nessa terrível sensação de "extinção" que nos assalta. Vemos o final de algo que nossa geração jamais conheceu : nobreza. Pois o fascismo ( de direita ou esquerda, tanto faz ) traz ao mundo algo novo : a cultura do feio, do estridente, do mínimo denominador comum, do vulgar, do grito e da delação. Nosso mundo afinal... E beleza fria, radiantemente fria nasce em cena após cena, seja pelo belo roteiro baseado em Giorgio Bassani, seja na foto de Ennio Guarnieri ou na bela trilha de Manuel de Sica. Vittorio foi um gentleman. Seus filmes têm o toque leve, porém contundente, de um verdadeiro poeta. Este filme, monumento discreto e simples às coisas belas, é um poema a tudo que termina, coisas que são abandonadas, à profanação. O jardim é pisado por não-convidados, o estrago é para sempre....
Eu tinha 14 anos quando assisti a este filme numa Sessão de Gala de um sábado muito frio. Foi um de meus primeiros contatos com aquilo que o cinema poderia ser. Lembro que chorei. Tanto tempo depois, hoje, tantos filmes mais tarde, o reencontro. Mal recordava sua história, mas percebo, como madalenas proustianas, que certas imagens não foram esquecidas : o sol entre as árvores do jardim, o rosto de Micol e principalmente uma frase, a única, da qual nunca me esquecí : "Eu nunca mais verei este jardim..." Síntese de tragédia sem remédio e símbolo de toda beleza, beleza que é sempre um fim e nunca um começo.
Naquele tempo, Finzi-Contini, assim como HOUVE UMA VEZ UM VERÃO, O MENSAGEIRO, A NOITE AMERICANA e OITO E MEIO, foram os filmes que me fizeram perceber que havia alguma coisa maior na vida, mais brilhante, sem tempo e sem mácula. Um jardim.
Ele continua vivo.

O PRIMEIRO GOLE DE CERVEJA - PHILIPPE DELERM

No começo desta década a editora Rocco lançou uma coleção de livros chamada : "Prazeres e Sabores". Cada livro falava sobre alguma coisa relacionada ao bom-viver. Tínhamos livros então sobre azeitonas, cigarros, um livro sobre a geração perdida ( anos 20 ) e o primeiro e ótimo livro de Peter Mayle ( de quem acabei lendo tudo ). Este "Primeiro Gole..." é um minúsculo livreto escrito por Delerm e que fala de cotidianos prazeres. Aqueles momentos de bem estar, de satisfação, que todos temos e que fazem da vida um colorido e inebriante prazer.
Cada mini capítulo conta um prazer e Philippe passa a discorrer sobre esse momento de brilho e de conforto. Uma faca no bolso é seu primeiro prazer. Mas não uma faca qualquer ! Aquela faquinha que voce usa para cortar salame, queijo, para lascar madeira, cortar uma rosa. Faca de cabo de osso, cabo de madeira enegrecida. Faca, na verdade agora inútil, e que por ser inútil, é um prazer sem igual. Jogada no bolso amplo de uma calça de veludo verde escuro, repousando para emergência que jamais virá. Segura e dando segurança....
Sentiram do que trata o livro ? Deliciosamente fala de delícias. A lista prossegue...
Embrulho de doces; Descascar ervilhas frescas; Um cálice de Porto; Cheiro de maçã; Croissant na calçada de manhã cedo; Bicicleta; Inalação para gripe na infância; Comer no jardim; Colher amoras; O primeiro gole de cerveja; Dirigir de noite na auto-estrada; Viajar em trem velho; Banana split; Convidado surpresa; Sanduíche de sobras no domingo à noite; Pulôver no outono; Jardim ao meio-dia no verão; Alpargatas; Bolas de vidro com neve dentro; Romance de Agatha Christie; Caleidoscópio; Lingerie feminina; Cabine telefônica; Jogar bocha.
En todos esses temas, desenvolvidos em duas páginas, ele faz deliciosas associações, lembranças, prazeres que trazem mais prazeres. O livro exibe aquela França da mesa e da cama, do paladar farto, dos cheiros e da gulodice, da alfazema e do vinho. Solar.
Minha lista, sua lista... seria uma delícia a redigir !
Cheiro de terra após a chuva; Cozinhas grandes com mesas bagunçadas e velho cão à porta; Bolachas velhas em saco pardo de papel; Feiras de rua cheias de donas de casa gordas; Calcinhas brancas; Corpos nús debaixo de lençóis brancos imaculadamente limpos; Padarias ao amanhecer; Mãe fazendo bolinhos de chuva; Vick-Vaporub; Guarda-chuva e cachecol em dia frio e úmido; Som de cigarras no verão; Descer a Serra de noite; O mangue; Torta de nozes; Relógios velhos; Cheiro de livro novo; O primeiro gole de cerveja; Assistir um Hitchcock; Pássaros à janela; Camisas havaianas; Conversar à beira-mar; Chuva correndo na calha; Caneta tinteiro; Flanar em ruas velhas; Luz de vela; Ronco de cachorro; Receber uma carta...
Existem prazeres bem maiores que esses. Encontrar um novo amor, ir à Paris, cruzar o mar. Mas são esses prazeres simples, quase diários, que nos consolam, nos iluminam, nos dão prazer em viver. Cultive-os. Descubra-os. Torne-os seus. O livro de Delerm é mais um desses minúsculos e muito vivos prazeres.

O UNICÓRNIO - IRIS MURDOCH

Iris Murdoch foi tema de um belo e tristíssimo filme. Com Kate Winslet como a jovem Iris e Judi Dench como a Iris com alzheimer. Embora não tão conhecida no Brasil, ela foi central nas letras em inglês do quarto final do século XX. Filósofa acima de tudo. E escritora de ficção.
Aqui ela nos conta uma história que é muito fantástica, misteriosa, simbólica, sobrenatural até. Mas onde nada de fantástico acontece. Fala de uma moça que vai trabalhar num castelo inglês. Lá, em meio a pântano, vive uma mulher que jamais sai de seus domínios. Com ela vivem empregados e parentes, conhecidos e agregados. Ela percebe algo de estranho em tudo e logo vê que a mulher, dona do lugar, não pode ou não ousa querer sair do lugar. Está confinada.
O livro é terrível. Tem autêntico clima de pesadelo. Todos são passivos. Menos Gerald, o guardião da prisioneira. Passamos pelos capítulos com apreensão e bastante incomodados. Há algo de muito odioso naquilo que nos é mostrado. E então, ao lembrar que Murdoch foi filósofa, começamos a montar uma charada ( montada ao mesmo tempo pelos personagens que a vivem ). A mulher é o Unicórnio e ele simboliza Deus. Ela é o ser que nunca poderá mudar e que é amado, mas jamais entendido. Gerald é o próprio anjo do mal, aquele que é temido, que domina a todos e que faz o que quer. Vemos os personagens, apaixonados pela prisioneira, passivamente impotentes, incapazes de salvá-la. Pois o livro nos joga esse pensamento : Deus não pode existir sem nosso amor e nosso amor precisa ser ativo. Nós é que devemos o salvar e não o contrário.
Esse tema nas mãos de autor mais dotado seria obra-prima inesquecível. Mas Murdoch tem idéias de gênio, mas estilo pobre. O livro é escrito como simples romance impessoal. Personagens que não nos tocam, ou pior, não respiram verdade. Não há prazer em sua leitura. Admiramos Murdoch, mas não a amamos.
Amo alguém como Henry James por isso : de um nada de enredo ele tira 500 páginas de complexo prazer. Iris Murdoch com um tema rico e profundo nos dá enfado e decepção.
Estilo é tudo. Não importa o que voce escreve. O que importa é como voce escreve. Iris escreve banal. O Unicórnio é pura frustração.

ULYSSES/ BRANDO/ LUMET/HENRY FONDA/RESNAIS

ULYSSES de Joseph Strickland com Milo O'Shea e Barabara Jefford
Um filme difícil. Se você não conhece o livro de Joyce nem tente assistir este filme. Strickland levou vinte anos procurando quem o financiasse. O filme, muito bem interpretado, é quase incompreensível. Mas tem alguns momentos que recordam a força demoníaca de Joyce. O monólogo de Molly, ao final, é maravilhoso. Prosa poética erótica extraordinária. Não posso dar nota a este filme. É único.
O ÚLTIMO TANGO EM PARIS de Bernardo Bertolucci com Marlon Brando, Maria Schneider e Jean-Pierre Leaud.
O filme é um poema sobre a coragem. A coragem de Bernardo por fazer um filme tão burguês numa época em que todo cinema italiano era político e furiosamente de esquerda. Coragem de Brando por fazer de Paul sí-mesmo, dando a nós, generosamente, sua alma e suas fraquesas. Coragem de Maria, por se desnudar sem glamour e por jogar no lixo, sem afetação, seu possível estrelato. Coragem do público, por transformar em sucesso um filme tão triste. Ele analisa a loucura do amor e sua destruição. Ele mostra o vazio existencial e a irremediável solidão. E ainda antecipa a falência da política e do próprio amor verdadeiro. Que mais voce pode querer ? E ainda nos dá um milagre : Marlon Brando. Nota DEZ !
INFERNO NA TORRE de John Guillermin com Paul Newman, Steve McQueen, William Holden, Faye Dunaway, Fred Astaire e Jennifer Jones
Que elenco!!!! E que filme ruim!!!! Mas é divertido. Vemos chamas, vemos gente correndo, música de espetáculo, atores que amamos. É o tipo de super-produção da época : a grana era gasta em caras famosas e não nos efeitos. Nota 5.
OS PICARETAS de Frank Oz com Steve Martin, Eddie Murphy, Heather Graham
Adoro este filme. Vivêssemos em tempos de comédia teria sido um grande sucesso. É a história do diretor ruim e fracassado ( Martin, excelente !) que usa ator doido e paranóico ( Eddie, maravilhoso ! ) em filme de ficção à Ed Wood. Engraçado e nunca apelativo, o roteiro, de Martin é criativo e afetivo. Oz é um diretor subestimado, ele não tem um só filme ruim. Nota 7.
A ÉPOCA DA INOCÊNCIA de Martin Scorsese com Daniel Day-Lewis, Michelle Pfeiffer, Winona Ryder
O livro de Edith Wharton é um dos que mais me deu prazer ao ser lido em dois dias em 2005. É obra-prima de estilo e de elegância. O filme não. É frio, distante, vazio. Scorsese não acredita no que mostra e se perde. Parece desistir. Nota 5.
RETORNO A HOWARDS END de James Ivory com Emma Thompson, Anthony Hopkins e Helena-Bonham Carter
Este sim. Ivory nasceu para fazer este filme. A primeira parte é uma obra-prima. Tudo funciona a perfeição. Você se vê completamente envolvido pelo lugar e pelas personagens. Depois ele perde um pouco de força, mas no geral é um muito grande exemplo do mais alto requinte em visual e escrita. Os atores estão soberbos ! Nota 8.
12 HOMENS E UMA SENTENÇA de Sidney Lumet com Henry Fonda e Lee J. Cobb.
Um juiz chama os jurados a sua sala. Eles irão decidir o destino do réu. O filme, todo passado numa sala, mostra os 12 discutindo a sentença. Nós nada sabemos do réu. E terminamos o filme sem saber se ele é inocente ou não. O que se discute não é isso. Se discute a certeza - como condenar alguém sem ter absoluta certeza de sua culpa ? E como ter certeza de alguma coisa ? O roteiro de Reginald Rose, habilmente nos mostra isso, nada é o que é, tudo pode ser discutido.
Este é o primeiro filme de Lumet e é considerado sua obra-prima. Não sei se é seu melhor, mas é coisa de imenso talento. 90 minutos numa sala com 12 homens desagradáveis. E queremos mais !!! A habilidade de Lumet ( e do câmera, Boris Kaufman, o cara que fez L'Atalante ) é espantosa. Vemos rostos suando, bocas falando, roupas molhadas, mãos. E ouvimos as vozes : e que vozes... há o tímido, o racista, o narciso, o vendedor, o infantil, o velho. E há Fonda, ator único, ator que é a imagem da correção, da inteligência calma, do espírito nobre. O filme empolga, diverte, faz pensar e conquista nossa total adesão.
Sempre votado um dos 100 mais da América, merece sua imorredoura fama. É obrigatório !!!! Nota DEZ !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
AS NEVES DO KILIMANJARO de Henry King com Gregory Peck, Susan Hayward e Ava Gardner
Um caçador está morrendo na África. Ele relembra seu grande amor. Passamos pela Espanha, por Paris e pela Riviera. Caçadas, touradas, bebedeiras e guerras. Vários trechos de Heminguay são habilmente misturados. O filme é quadrado mas é boa diversão. Nota 6.
AMORES PARISIENSES de Alain Resnais com Sabine Azema e Agnes Jaoui
Até os anos 80 todo diretor era aposentado aos 60. Minelli, Capra, Wilder, Wyler, Stevens, Ford... todos foram chamados de velhos e ultrapassados aos 60. De repente tudo mudou, e Eastwood, Altman, Manoel de Oliveira, Lumet e Woody Allen ( dentre muitos outros ) conseguem filmar até o fim. E bem ! Resnais tem 85 anos. E se mostra aqui de uma jovialidade e leveza maravilhosas ! Ele, que começou nos anos 50 com filmes muito sérios e graves, faz aqui um divetido filme sobre pessoas que nada fazem de especial. Apenas vivem. Mas gostamos de vê-las, de escutar seus diálogos. O filme, feito quase ao mesmo tempo que o "Todos dizem eu te Amo" de Woody, também usa trechos de canções pop para explicar sentimentos. É um efeito que encanta : funciona muito bem. Os atores exalam simpatia ( Sabine mais que isso ) e é obra de inspiração. Resnais está tendo um belo fim de vida !
E pensar que Bergman desistiu aos 60.......

AMOR E AMIZADE

Primeiro fato : não existe amor sem paixão. Todo amor é apaixonado. Se não for, não é amor, é amizade com sexo - muito mais comum do que se pensa.
A amizade também é ciumenta. Mas tudo que ela quer é atenção. O amor quer ser único, o maior do mundo - todo amante pensa ser seu o mais nobre dos amores. Cobra do outro a nobreza que ele pensa ter. O amigo quer apenas companhia, ser escutado afetuosamente.
O amor tem a chave de nossa divinização ou de nossa destruição. Todo amor é necessariamente destrutivo : e dessa destruição pode nascer um novo ser -ou ter como fruto cinzas. Ele é sempre dionisíaco. A amizade nada destrói. Ao contrário, ela quer manter tudo exatamente como é. Na amizade há o desejo de se ter ilha de não-tempo. Quando amigos se encontram, o tempo é sempre o do primeiro encontro. Todo amor é portanto revolucionário. Toda amizade é conservadora.
Mas o amor nos envelhece. ( Chineses pregavam a abstinência sexual como forma de vencer o tempo. Eu creio nisso. Todo grande amante é envelhecido. Eunucos nunca envelhecem. ) O amor nos consome, nos leva a lugares novos, nos faz abandonar coisas conhecidas. Há uma conta pelo amor. Não pense que amor se paga com amor, não seja ingênuo. Se paga com vida.
A amizade pode terminar. Mas deixa para sempre uma saudade de paz e de irmandade. Quando voce torna-se amigo é sempre para sempre. O amor pode e normalmente termina. O que fica é outra coisa, não amor saudoso ( saudade apenas quando um deles morre ) fica raiva, rancor, remorso ou esquecimento. Amor não. Na amizade, mesmo na distância e na briga, sempre há a lembrança da própria amizade. No amor há lembrança de erros e de injustiças.
Amigos são alma. Figuras etéreas se encontram. Mas sempre há o convite ao sexo ( quando sexos opostos ). Amigos podem transar. E pensar que aquilo sempre foi amor, que era uma paixão disfarçada. Nunca foi. O amor nasce carne e termina carne. Nasce exigente, gritando, exuberantemente egoísta. Sabemos quando ele vem. O amor não pode ser amigo. Pois ele quer e exige. Amigos pedem.
Você joga coisas fora quando ama. O passado é esquecido. Às vezes pedimos por amor como quem pede por amnésia. Amizade não pede esquecimento, ao contrário, ser amigo é reviver o passado, sempre e sempre. É recordar os jogos da meninice e gostar de contar e contar histórias de vida. O amor não. Ele é todo esperança de futuro. Seu dardo é voltado à frente : esqueça sua família, seus ex-amores, seus amigos, sua casa. Pense no que virá : filhos, nova casa, viagens, futuro.
Todo futuro leva ao fim. Na amizade esquecemos apenas uma coisa - o fim. Portanto ela é sem final. Amigos andam em circulo. Amantes correm em linha reta.
Reatar uma amizade sempre se parece com supressão de tempo. É como se eles tivessem se visto ontem. Reatar um amor é tentar transformar carne em espírito. Pode renascer. Mas renasce como espectro do que foi um dia. Sobreviverá na lembrança confusa e no sexo que procura o rastro de cheiros perdidos. O corpo muda dia a dia, o amor muda com ele.
A amizade é consolo de dor e compartilhamento de alegria. O amor é aumento de dor e aumento de alegria. A amizade não é fértil. O amor é solo e semente, chuva e sol, ele é sempre vivo e sempre vida. Amigos são imagens, amantes são cheiro, gosto e tato.
Jamais tente unir amizade e amor. Você perderá o amigo e não terá o amor. Ou destruirá o amor e não ganhará um amigo. Porque a amizade se faz na luz. Ela precisa ser clara e solar. O amor se faz na sombra. Necessita de zonas escuras, segredos e luar. Iluminar o amor faz dele coisa seca. Apagar o brilho risonho da amizade faz do amigo bicho preso.
Vamos ao amor como quem encontra tudo. Vamos a amizade como quem acha consolo para não ter tudo. O amor magoa quando se revela não ser tudo. A amizade esfria ( mas se sincera não morre ) quando se revela restritiva. Amigos precisam ser livres. Amantes não. Jogamos fora metade de nós mesmos para poder unir a metade que restou à outra metade. Amigos são duas laranjas inteiras não cortadas.
O auto-sacrifício do amor é que faz dele algo de nobre. Renunciamos a vários prazeres ( que subitamente parecem fúteis ) pelo novo amor. Por ele tudo podemos fazer. Dar a vida. E dela tudo queremos : ela inteira. Amigos nada sacrificam pela amizade. Eu sou isto/ voce é isso. Caminhemos juntos. Nada há de heróico em seu nascimento.
Mas há com o correr do tempo....
O heroísmo da amizade se revela com o tempo, de forma sutil e constante. Reencontros, crises atravessadas, ajudas não pedidas, momentos de alegria genuína. O heroísmo do amor é seu oposto : diminue com o tempo. Toda aquela coragem e originalidade vai se resfriando e o sacrifício começa a ser cobrado e não mais dado com prazer. Uma poesia de explosão. A amizade é crônica diária.
Eu tenho pela amizade, amizade.
Tenho pelo amor, amor.
A amizade não me dá medo e me é natural. Consola e nada pede. Posso ter mil amigos e ser sincero e fiel a todos.
O amor me dá medo e me é trabalhoso. Nada consola e pede tudo. Posso ter um amor e ser fiel apenas a ele. Mas ele sacia meu corpo e me faz mais vivo. Me envelhece mas me dá a sensação de estar existindo. Desperta meus sentidos e amortece minha memória. É irresistível, como droga, como vicio, como a morte.
Meus amigos. Vocês nada me dão de trabalhoso. Pedem apenas o que posso dar. E me deixam ser fiel a outras amizades. Me dão a ilusão de eterna juventude e com voces posso ser infantil para sempre. Anesteziam meu desejo, minha dor e minha doideira. E não me viciam, não me matam. Amigos.......
Mas eu preciso de amor...

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS- BERTOLUCCI E BRANDO

Amar dá medo porque no fundo nós sabemos que sobre ele não há controle possível. Eu falo de AMOR, aquele dos menestréis. Encontrar esse amor depende de sorte, pura sorte, e isso nos deixa putos, porque não existe onde e como o achar. Para alguns ele pode jamais chegar e pior, para outros, correndo atrás dele em noites de bebida, ele se torna ação inconsequente. Nada pode ser feito. Ele surge quando quer, cria seu próprio lugar, sua língua e então se vai, desaparece. Somos objetos dele, bonecos em sua vontade, flexados e enlouquecidos, nada felizes a seu lado, porém, vivos. Submissos a sua ação e estranhamente libertos do mundo.
Porque amar incomoda quem não ama. Os amantes se bastam, excluem o mundo, não necessitam de nada que não seja seu amor. Vivem nesse planeta próprio, livres em sua emoção amorosa, sem passado e sem nenhum futuro. Vencem distancia e tempo, são mágicos.
No filme o amor morre quando transformado em banalidade ( todo amor de verdade é excêntrico ). Brando sai do mundo deles e segue o script do conquistador calejado. Torna-se caricatura. O misterioso- perigoso que ele foi se faz vulgar cortesão. Apenas um quarentão atrás de sexo adolescente. Ela, desiludida, o mata. Ele, quando mais dele necessitava, trai o amor.
A esposa se matou antes. O casamento mata o amor. Nada é menos amoroso que a rotina de se ter alguém ao seu lado para sempre. Tédios, culpas, conversas amenas, amantes ocasionais. O casamento faz do amor outra coisa. Se voce tiver sorte, ele se faz amizade e cumplicidade. Se tiver menos sorte, comodismo. Amor só vive no incerto, no sem nome, no ainda por descobrir, no medo. Sem medo não existe amor. Ele é o abismo.
Ele é um homem dilacerado. Topa em acaso com sua chance de vida. Penetra e é penetrado pelo sentimento que os toma. Deflora e é deflorado. Não são cumplices em nada. São amantes, são sedentos, são eros.
Marlon Brando se desnuda. Nunca um ator amou assim. Tudo o que é dito de Paul é Brando. Ele é Paul. Sua vida é a dele. Compartilha sua alma conosco. O que fala da mãe de Paul fala de sua mãe. A história que conta do pai é a história do pai de Marlon e ao encontrar o amnte da esposa fala de sua barriga e de seu cabelo. Chora choro real. Nos ama. É quase um milagre de interpretação despojada, generosa, suicida, transcendental. Brando morre nesse filme. Sua carreira termina. Nesse 1972 ele nos deu Corleone e Paul, nada mais havia a tentar. Apenas o amor ao Tahiti...
Jeanne se apaixona por ele. De verdade. E Maria Schneider, a menina atriz que esnobou o estrelato, é perfeita imagem de tentação jovem-saudável-imperfeita. O sorriso é um luar e os olhos um sonho. Seu namorado, jovem bom e saudável, feito pelo eterno Antoine Doinel de Truffaut ( Leaud ) é pura convenção. Amor para as câmeras, amor de TV, de exibição, de conformidade. Dos anos 2000... Amor que não tem o que derrotar não é amor. A coragem é a prova e sem um confronto não se faz amor. É preciso um dragão. E Paul com Jeanne é puro confronto : vontade contra liberdade, juventude contra maturidade, fé contra descrença, otimismo contra negação. O amor se faz do acidente em que se chocam dois caminhos opostos.
Sabemos que todo amor verdadeiro morre. Ela o mata. Tanto faz, o tempo os mataria. E ela diz não o conhecer, ao final. Conhecemos amigos. Ninguém conhece quem ama. Se conhecesse não amaria, gostaria. É diferente.
O filme vai corajoso. Tromba com o acaso e flerta com o vazio e o perigo. É sincero ato de amor. Bertolucci percebia que havia agora o amor convenção : jovens bonitos comprando casas a prestação e tendo um filho sadio. E o amor verdadeiro : uma navalha achada num banheiro com sangue. Flerte com a destruição e a aniquilação.
Sem perigo não existe amor. Pecado, tabú, inesperado.
Quem amou sabe : amar é amar o perigo. Acaso que bate na cara e nos leva pelo nariz.
E o resto, triste ilusão ( amar nunca é ilusório, é ver a verdade ) é frase tola :"...e viveram felizes para sempre."
PS: Quando os dois começam a se perder do amor vemos um salva-vidas afundar no Sena. Nele está escrito : L'ATALANTE... Homenagem de Bernardo ao mais belo dos filmes.

WOODY/DUSTIN/BRESSON/EDDIE/VIDOR/2012

O HOMEM QUE NÃO ESTAVA LÁ de Joel Coen com Billy Bob Thorton, Frances McDormand
Para o filme noir funcionar é preciso carisma. Você tem de torcer por alguém, se identificar, se ver no bandido ou no policial. Bogart, Alan Ladd e Mitchum tiravam isso de letra. Quando eles surgem na tela voce está no papo. Billy Bob é legal. Mas não é carismático. O filme perde o interesse. Não torcemos por ele, não odiamos Frances. Bola fora dos Coen. Nota 2.
O CAMERAMAN de Edward Sedgwick com Buster Keaton
Aqui Buster é um péssimo cameraman que tenta alcançar algum sucesso para conquistar a secretária do chefe. Eis a diferença entre os gênios : Chaplin nos faria chorar e sairia como mártir derrotado e poético; os irmãos Marx destruiriam o escritório e esnobariam a secretária; WC Fields odiaria a secretária, mudaria o enredo no meio do filme e teríamos outra coisa no final- um filme de ressaca; Laurel e Hardy fariam tudo errado até o final : que seria uma explosão; e Harold LLoyd salvaria a secretária de algum incêndio e se tornaria um herói. Buster Keaton trabalha com afinco, acaba aprendendo o oficio, jamais desiste, e consegue se superar no final. É o mais persistente e portanto, o mais heróico dos comediantes de gênio. O filme é uma obra-prima de invenção, de truques de camera, de enredo simples e jamais cansativo. Buster é o cara ! Nota DEZ.
LANCELOT DU LAC de Robert Bresson
Eis o cinema de Bresson : a idade média como ela deveria ter sido ( mas não´foi ). No iníco o sangue jorra de corpos mutilados... será o Monty Python ? Mas então vemos que se trata de um filme sobre o amor de Lancelot por Guinevere ( e nos lembramos que Merlin era francês ). Bresson não funciona aqui. É uma idade média sem mistério, sem bruma, sem magia. O filme é colorido, bonito, seco. O melhor retrato medieval ainda está em Bergman. Nota 5.
ZELIG de Woody Allen com Woody e Mia Farrow
Como uma mulher tão bonita como Maureen O'Sullivan pode ter sido mãe de Mia Farrow ? Este filme, falando do filme, é um pseudo documentário sobre um tal de Zelig, um homem-camaleão. Quando com chineses ele se tornava um chinês, quando entre negros, um negro. O filme é criativo, engraçado e bastante curto ( 78 minutos ). Mas dá uma certa frustração. Gostaria de ver Zelig falar : o filme é todo narrado e exibido como jornal de cinema, fotos e som. De qualquer modo, cenas como a dos nazistas, Zelig negro e as sessões de hipnotismo são hilárias. 7.
KRAMER VS, KRAMER de Robert Benton com Dustin Hoffman e Meryl Streep
Em entrevista recente Hoffman diz que guarda dois arrependimentos na carreira : a de não ter aceitado filmar com Fellini e Bergman. Ele pensou na época que teria tempo para fazer filmes com os dois. Não teve. " Diretores como eles não existem mais". Fellini o convidou para ser o Casanova. Dustin recusou e Donald Sutherland ficou com o papel. Bergman o chamou para a Hora do Amor em 1970 ( Bergman achava Hoffman um ator tão bom quanto Max Von Sydow ). Dustin preferiu fazer O Pequeno Grande Homem. Em 1977 Bergman tentou de novo. Era para fazer O Ovo da Serpente. Foi esnobado novamente. Bom...... se não existem mais Federicos e Ingmars, existem Bentons de montão. Este é um filme quadrado. Nada é invenção, tudo é convenção. O pai é abandonado pela esposa. É um publicitário bem sucedido. Ao ter de criar o filho vê a carreira ir pro espaço. E a megera ainda volta querendo o garoto ! Meryl é a megera. Ganhou seu primeiro Oscar aqui. Mas o filme é de Hoffman. Ele o salva do ridículo. Graaaande ator, seu Kramer é absolutamente verdadeiro. Uma aula de como ser gente-comum, gente banal, vulgarmente como nós todos somos. Ele dá um show. Kramer é um dos filmes mais detestados por fãs de cinema radiciais pelo fato de no Oscar de 1979 ter derrotado Apocalypse Now e All that Jazz ( além de O Vencedor, Muito Além do Jardim e Blade Runner ). Que culpa tem Kramer ? Ele tem cara de prêmio. O filme é comum, Dustin Hoffman nunca é. Nota 7.
48 HORAS-PARTES 1 E 2 de Walter Hill com Nick Nolte e Eddie Murphy
Deliciosos filmes de ação. O primeiro, de 1982, ainda tem jeito de filme dos anos 70. Tenta-se mostrar a psicologia dos personagens. É mais triste, vazio e árido. O segundo, de 1990, já é ação pura. Mais tiros, pulos, sangue e inverossimilhanças. Os dois são dominados por Murphy, ele é bom pra caramba ( e no segundo cria a persona do burro de Shrek , confira ). Dois bons exemplos da bela safra ( 72/92 ) de filmes de ação. Nota 7.
O MAGNÍFICO de Philipe de Brocca com Jean-Paul Belmondo, Jacqueline Bisset e Vittorio Caprioli
Veja a história : um agente secreto, Bob Sanclair, salva o mundo livre de bandidos da Albânia. Sangue jorra, mulheres são beijadas, golpes de karate. Um corte. Na verdade é um escritor- gripado, sujo, relaxado- quem escreve sobre Bob Sanclair. O filme é engenhoso : ele se balança entre a vida real do autor e a fantasia do que escreve. Desse modo, a vizinha linda e distante ( uma Bisset maravilhosa. Impossível beleza maior ! ) se torna a garota de Sanclair e o editor dos livros é o vilão. Trata-se de uma comédia deliciosa, um sátira à Bond e a filmes sanguinolentos. Belmondo esbanja carisma, ele é adorável, comediante de brilho genuíno. Quem não gosta de cinema francês terá aqui uma humilhante surpresa. Cenas como a dos personagens do livro parando de falar porque uma tecla da máquina de escrever emperrou são criativamente fantásticas. Mas também acontecem cenas reescritas, mudanças de tom, hesitações e exageros à granel. Comparar este filme com aquele lixo de Will Ferrel demonstra onde estamos hoje : oceano de pretensão vazia. Nota 8.
O PÃO NOSSO de King Vidor
Há quem considere Vidor o maior diretor que os EUA já tiveram. Não foi. Mas nobre e corajoso não houve igual. Este filme, totalmente socialista, foi feito com o dinheiro da sua casa hipotecada ( Vidor já era famoso. Mas ninguém queria financiar um filme sobre socialistas fazendeiros ) então ele vendeu tudo o que tinha e fez o filme. Seria como se Daniel Filho vendesse suas coisas para fazer um filme sobre os sem terra. Feito no auge da depressão, ele é didático e ultrapassado em seu otimismo marxista. Mas caramba, o ser-humano precisa crer em algo ! King Vidor acreditou sempre. O filme é raro e é uma peça de dignificação da profissão de cineasta. Nota 7.
STREET SCENE de King Vidor com Sylvia Sidney
Obra-prima do cacete !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Adaptando sua própria peça, Elmer Rice, importante autor de teatro americano, o cara que trouxe a vida das ruas para o palco; nos dá um texto que é milagroso. Os diálogos faíscam e ricocheteiam. King Vidor, em momento de supremo brilho, mostra a vida da rua. Todo o filme se passa na calçada. Fofoqueiras, prostitutas, imigrantes ( um italiano, um judeu comunista - o filme fala abertamente de anti-semitismo e de marxismo- e irlandeses tolos ). O centro é uma família em que a mãe chifra o marido abertamente e a filha é cortejada pelo patrão. O marido irá matar a esposa e vemos que não haverá futuro algum para a filha ( feita por Sylvia Sidney, excelente e belíssima ). O clima é todo urgente, febril e sórdido. Vemos o intelectual judeu em sua passividade assustada ( o filme é de 1931 e antecipa o espírito de opressão contra os judeus que nascia na Alemanha ), as vizinhas vigiando tudo o que todos fazem, os comentários hipócritas. King Vidor, gigante personalidade, nos dá um filme perfeito. Tomadas de Nova York, janelas com seus moradores, crianças nas ruas, carros engarrafados, polícia na rua... um filme vivo e mais de vinte anos adiante de seu tempo. E tem Sylvia Sidney... que linda ! Obrigatório. Nota DEZ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
NO CALOR DA NOITE de Norman Jewison com Sidney Poitier e Rod Steiger
Em 1967 todo cinéfilo queria ver a vitória de Bonnie e Clyde nos Oscar. Afinal, Bonnie foi o Pulp Fiction de seu tempo. Mas assim como Tarantino perdeu para o Forrest Gump, Clyde perdeu para este filme. Que assim como Gump, é um ótimo filme. Fala sobre racismo. Mas o tom nunca é pesado. Porque há um genuíno prazer aqui : Steiger e Poitier brincam com seus papéis. Se voce quer ver dois atores brilharem e terem prazer em trabalhar veja este filme. Poitier como Mr, Tibbs faz o negro policial perdido no sul hiper-racista. Steiger, genial, é o delegado gorducho, caipira, arrogante e hilário. O filme é o trabalho dos dois, todo o resto é secundário. Nos divertimos intensamente, rimos e ficamos nervosos, mas o prazer está sempre aqui. Para ajudar há uma trilha sonora sublime, de Quincy Jones. Mereceu tantos prêmios ? É melhor que Bonnie e Clyde ? Que importa ? É genuíno cinema pop, do mais alto profissionalismo. Rod Steiger foi melhor ator e Jewison perdeu o de melhor direção para Mike Nichols. Nota 8.
2012 de Uma equipe de espertos Produtores
Em 1977, numa entrevista, George Lucas dizia que é muito fácil produzir emoção na platéia de cinema : pegue um ratinho e torça seu pescoço- está criada a emoção. Difícil é criar personagens, caráter, enredo. Lucas estava certo. O que faz Star Wars ficar são seus tipos. 2012 é um rato tendo seu pescoço torcido. Filma-se o fim de todos os ratos. Emociona ? Claro ! É tão emocionante quanto ver um motoboy ser atropelado e tem tanta arte quanto filmar uma video-cacetada. Porém, lógico, tem uma habilidade técnica espantosa. Habilidade que só o dinheiro traz. No mais, não consigo deixar de perceber que tudo aquilo é desenho animado. Não me venha falar em siglas bacanas; trata-se de animação. Não me convence : as cidades parecem cidades de cartoon. Do rato torcido eu teria pena e indignação, aqui, me deu vontade de rir. Nota 3.
A ÚLTIMA TEMPESTADE de Peter Greenaway com John Gielgud e Michel Blanc
Já se levou Peter a sério. Entre 82/92 ele foi considerado o cara. Um artista refinado, o futuro do cinema, o mais intelectual. Hoje, ele é o que é : um chato pretensioso. Seus filmes são barrocos : um carnaval de cenários coloridos, gente passando, letreiros, música minimalista, vestidos imensos, muita nudez, textos longuíssimos. É um anti-Von Trier com o mesmo espírito de Von Trier : enganação de quem nada tem a dizer de verdadeiro. Este filme, cheio de imagens "lindas", cenas postas sobre cenas, tela dividida, bailarinos de fundo, Gielgud recitando Shakespeare, é uma besteira. Tem tudo de ruim dos anos 80. Rico, afetado, luxuoso, bonito, erudito, chic e muuuuito vazio. Nota 2.

A CIDADE DAS REDES - OTTO FRIEDERICH

Os anos 30 em Hollywood. Mas sob um viés crítico. Para Otto, muito melhor é falar de Brecht e Thomas Mann em Hollywood que sobre Cary Grant ou Erroll Flynn. E ficamos sabendo que Brecht apresentou roteiros para os gigantescos estúdios da época. E foi devidamente recusado. Assim como Heinrich Mann, o paupérrimo irmão mais velho de Thomas.
Com o advento do som ( 1928 ) os chefões correram atrás de quem soubesse escrever bons diálogos. Os anos 1930/ 1939 são época de roteiristas. Faulkner, Huxley, Dos Passos, Steinbeck, Dorothy Parker, Ring Lardner, Ben Hecht, Herman Mankiewicz, Charles Lederer, Joseph Mankiewicz, e os futuros diretores John Huston, Billy Wilder e Preston Sturges. Os grandes estúdios ( MGM, Paramount, Warner, Columbia, Universal e RKO ) mantém rebanhos de roteiristas. Salários altos, escritórios com secretárias, a obrigação de bater ponto todo dia e de entregar dois roteiros por semestre. Ben Hecht foi talvez o melhor deles. Mas seguido de perto por Dudley Nichols, Samsom Raphaelson, Moss Hart, Morrie Ryskind, Robert Riskin... são centenas !
Nos anos 40, após o sucesso de E O VENTO LEVOU, vem a era do produtor. É tempo de Selznick, Zanuck, Goldwyn, Wallis, Cohn... época de filmes fabricados com estratégia militar. E gastos de fantasia. Como se esbanjava no período 39/ 48 !!!!! A derrocada a partir de 1949 era inevitável. Nos anos 50 teremos a época do ator. Filmes feitos ao gosto e ao modo do "Star". Nos 60/ 70 vem a era do diretor e desde então a época da empresa de marketing.
Vale aqui uma ressalva : em livro lançado recentemente ( que comentarei futuramente ) é dito que esta época em que estamos é tempo de produtores . Diretores são meros empregadinhos, hoje. E atores nada mais que bibelôs de mesinha de centro. É verdade. ( Com muito poucas excessões, é claro. ) E quando os produtores dominam o cinema atual, significa que esse produtor não é um homem de cinema. Normalmente é um grupo de midia e de marketing que vê o cinema como um negócio, um produto. O produtor dos anos 40 é outro tipo de ser. Ele é um arrogante individualista, um animal de lucro e de cifrões, mas, e aí há a fundamental diferença, ele é um ser do cinema. Respira filmes, foi feito nos filmes, só entende de fazer filmes e apesar de sua dureza para com atores e diretores, ele realmente ama o veículo. O livro conta histórias hilárias sobre a falta de tato desses produtores e de como os roteiristas tinham de brigar para serem entendidos. ( Mas a mais deliciosa história é sobre Faulkner. Chegando na Paramount ele, em entrevista com o chefão, diz querer ser roteirista " dos desenhos de Mickey Mouse ". Faulkner jamais fora ao cinema, a não ser para ver desenhos e noticiários. Ele pede também para escrever " Noticiários ". William Faulkner ficaria encostado até ser resgatado pelo grande Howard Hawks que se tornaria seu amigo de toda vida.
O maior diretor de comédias da época ( e ídolo dos irmãos Coen ) Preston Sturges, tem também uma maravilhosa história. Nasceu em milionária família de excêntricos. O pai era inventor, a mãe logo se separou e partiu para a Europa levando Preston junto. Ela se casou com sheik árabe e depois com nobre italiano. Foi amiga de Isadora Duncan e criou uma nova marca de perfumes. Preston se torna inventor e aventureiro. Volta aos EUA e por acaso escreve roteiro de sucesso. Mas sua ambição sempre foi a de ser "inventor". Seus roteiros ? A história de uma virgem que engravida na guerra e não sabe dentre os 80 soldados qual o pai da criança. Todos seus roteiros são assim : fora dos padrões, impossíveis, ousados e absolutamente corajosos. O sucesso foi imediato. Mas Preston irá morrer falido. Toda sua fortuna torrada em suas "invenções". Um personagem maravilhoso foi Preston.
O livro ainda fala de porres homéricos ( Faulkner, Erroll Flynn e John Barrymore eram imbatíveis ), maconheiros ( Robert Mitchum ) e amores destrutivos . Nesse quesito nada se compara a história de Jennifer Jones e Selznick. Ele, simplesmente foi o maior produtor que o cinema já teve. Ela, tímida jovem atriz, casada com ator ( Robert Walker ). Pois bem... Selznick e Jennifer se enamoram. Ela, que sempre foi boa atriz e bela mulher exótica, ganha Oscar logo em sua estréia, e termina o casamento. O marido abandonado bebe até morrer. Selznick irá à falência nos anos 60, mas Jennifer será fiel até o fim. Ele morre ela enlouquece e é internada. Tem alta e se torna, já mulher madura, uma respeitada psicóloga. Pelo que sei ela ainda é viva.
O Macarthismo ocupa boa parte do livro e ficamos sabendo da covardia de vários nomes e do fascismo de gente como Sam Wood, Leo McCarey e Ronald Reagan. Palmas para John Huston, Bogart, Frank Sinatra, Kate Hepburn, Spencer Tracy... gente que nunca se omitiu. Mas são páginas tristes...
Assim como é triste a perseguição a Ingrid Bergman, considerada mulher imoral por ter abandonado marido e filhos e ido encontrar seu amor adúltero, Rossellini, na Itália. Mas o tempo vinga tudo : Ingrid ganharia mais dois Oscars e seria eleita em 2007 a maior estrela feminina da história do cinema. Aliás foi Ingrid a primeira atriz a assumir seu próprio destino. É fascinante a descrição de sua primeira entrevista com o poderoso Selznick. Ela não aceita usar maquiagem, não muda seu nome de batismo e nem sequer raspa as sobrancelhas. Ela é quem cria Ingrid Bergman e não Selznick.
Como prova da eternidade mitica desse tempo, dentre os 10 maiores atores, 8 são egressos desse período, e das atrizes, 7.
Apesar de ser a era de roteiristas e depois de produtores, o período 30/49 é sim o auge de estrelas que insistem em não se apagar. Homens e mulheres originais, perfeitos, brilhantes e moldes de gerações e gerações daquilo que se chama "glamour". O livro de Friederich tenta evitar esse brilho. Não consegue. Ainda bem...

S & M - EU AMO ESSES CARAS !

Em 1973 eu tinha 9 anos. Faria 10 em maio. Era domingo e a TV estava no Fantástico. Em meio as matérias, chatíssimas, eram inseridos flashs de "alguma coisa" musical. Eram três seres muito coloridos e muito ridículos. Dois homens pintados e uma mulher ( seria mulher aquilo ? Meu pai tinha certeza que era uma mulher. " Não vês como é uma mulher ? E essa voz ? Já minha mãe falava : Mas não tem seios ! E aquilo não são pelos no peito ? Mas mulher ! Isso não pode ser um homem !!!!! ). Eu achei que fosse um marciano. Meu irmão, 7 anos, apenas ria, e já aprendia a música.
Continuaram os flashs por todo o programa, sem nada os anunciando, sem letreiro, nada. Só no final do programa, Sergio Chapelin falou : " A nova sensação : SECOS E MOLHADOS. "
Pegue os MAMONAS e adicione Blitz mais RPM. Essa mistura chegará perto do que foi o sucesso dos SM. Mas com uma diferença fundamental : adicione à essa fama uma dose de Cazuza e Jorge Ben. Porque eles foram POP, mas foram libertários, foram rock, mas foram tropicalmente rítmicos, foram uma febre deliciosa que durou apenas um ano. Um ano...
O fenômeno foi absoluto. Num tempo sem internet ou clip, eles pegaram todo mundo. O fã de Bowie, o fâ de Roberto Carlos; o maluco que adorava Raul Seixas e o romântico-brega de Benito di Paula. O Brasil amava os caras. Minha mãe, aos 31, eu e meu brother. Meu pai não. Ney Matogrosso era demais para seu mundo.
O fato da ditadura não ter reprimido os SM atesta a esquisitice que este país sempre foi. Porque Ney era tão transgressor quanto Bowie e as letras eram explícitas em sua ansia libertária. Para João Ricardo, português líder da banda e rock'n'roll fanático, a dor existia, mas a festa não tardaria a chegar. No palco eles eram incomparáveis ! Aquele ser andrógino, ridículo e genial, rebolando, púbis quase de fora, caras e bocas, voz de afinação impossível, dando o prazer do " tudo pode" à um povo sedento de liberdade, de quebrar tabus de folia. João em sua pose de glitter lusitano, se achando o maior sex-symbol do mundo, o Marc Bolan da Lapa. E Gerson Conrad, o Charlie Watts do grupo, com sua cara de " que que tou fazendo aqui ? ". Nada foi ou é parecido. Penso que um SM hoje seria impossível. Não há humor para isso.
O disco, recorde de vendas, é ainda coisa única. Profundamente latino-americano, totalmente rock'n'roll. Desde a linha de baixo do originalíssimo Sangue Latino, música que me deu e dá sempre vontade de cantar junto, com sua sinuosa melodia de mata virgem, com seu não-refrão, e essa voz que é enigma de sangue e de sexo. Passando por O Vira, sonho de toda banda "engraçadinha " , com arranjo festeiro de Zé Rodrix. Mas nasce na faixa 3 obra-prima das obras-primas : Amor. Linha de baixo imbatível ( Willy Berdaguer é o cara ). Amor é POP perfeito. Sinuoso, grudento, original, leve e sublime. Poucas canções são tão perfeitas. Tudo nela balança e é certeza de acerto. E esse baixo.... tem coisa melhor ? Vem então a Primavera nos Dentes, momento de reflexão linda e de profunda melancolia. Para brotar então Assim Assado, coisa séria : percussão de índios com solo glitter. A voz de Ney torna-se hilária : estamos nos tempos de Monty Python. Puramente e permanentemente genial.
Mas continua. Mulher Barriguda é Stones. O "Yéahhhh" de João trai tudo : it's only rock'n'roll but i like it ! A Rosa de Hiroxima me fez chorar aos 10 anos... é bonita bonita. Vem uma sequencia de pequenas jóias de um minuto cada. Elas vão do dolorido ao " bem louco". Abrem caminho para a poesia de Fala, beleza etérea e eterna travestida em canção de arranjo de gênio. Fala fecha esta absoluta obra-prima com melodia de sonho e letra de encanto mudo. O disco é completamente do cacete !!!!
Eles terminariam ruidosamente após um ano e mais um disco ( apenas bom ). Deixariam orfãos todos que viram esse disco voador pousar na Terra, no Brasil, e que viram descer dele 3 alienígenas. Sem sexo, sem estilo conhecido, plenos de poesia e boas intenções. O disco zarpou e os levou pra sempre.
Ney se tornou aquilo que sempre desejou ser : dono de seu próprio nariz. Um grande cantor que faz o que quer fazer. Gerson sumiu. João Ricardo teve estranha história. Lançou logo carreira solo ( lembro de um brinde da revista POP, da Abril. Um adesivo-poster de João. O estrelo-glam, terno rosa de cetim, óculos de strass, sapatões brancos, deitado languidamente em sofá de tecido rosa-choque. Um luuuuuxo ! ) mas sua carreira, muito rock, muito glitter, não engrenou. Seu ego, imenso, destruiu seu ideal.
Ficou este disco. A lembrança de uma tarde em Santos ouvindo o LP pela primeira vez. E a bomba nuclear que foi vê-los numa era tão machista, de bigodes, ternos cinzas e bons costumes. Que coragem Ney !!!!! Que audácia João !!!!!!!! Que bonito Gerson !!!!!!!!!
Os SM foram carnaval de sonho em país de trevas. Meu coração sempre será grato ao que me deram. VIVA !!!!!!!!

SEM NADA E A SENHORA DA VILA SÔNIA

Domingo faltou a luz na minha casa. Só na minha casa. Um problema de fiação velha. Eram 17 horas e fui comprar velas e fósforos. Ainda existem fósforos. Minha mãe entrou em desespero : como ficar sem luz ? Vou ficar deprê, dizia ela. Estranho. Uma mulher que não usa computador e nem sequer liga um som ficar tão nervosa por não ter eletricidade em casa.
Acendo uma vela na sala e abro a janela. Me deito no sofá e assisto a mangueira tomar chuva. O vento sacode as folhas e a água escorre pela calha. Um raio. Juro que pensei : Meu Deus ! A chuva é tão linda que irei morrer de saudades dela quando eu morrer... Que joguem minhas cinzas à chuva !
Minha mãe se deita no outro sofá e fazemos aquilo que lhe dava tanto medo : nada. E desse nada vem a conversa à toa e dessa conversa sinto, finalmente, minha mãe próxima de mim. Falamos sobre a casa, sobre os cães, sobre a morte de meu pai, sobre almas e sobre o bairro. Ela me conta de suas irmãs na França, seu pai, sua mãe... Há uma paz imensa nessa conversa, compreensão. Tempo que passa lentamente.
Conversamos por toda a noite e fazemos chá na cozinha escura. Os cães entram na sala e dormem roncando. Silêncio. Apenas a chuva e nossas vozes que viajam. O ronco de Charlie, de Leka, de Lili e de Baby.
Penso : a eletricidade entrou em nossas veias e nos fez elétricos. Mas hoje é água de chuva que flui em mim.
No dia seguinte, flanando pela Vila, fotografo uma casa que me pareceu risonha. A dona da casa vem conversar comigo. Fica contente por eu gostar de sua casa. Uma casa que é plantas e vasos de barro. Ela mora alí desde 1951. A rua era de terra, não havia água encanada, nada de eletricidade e só mais quatro casas em toda a rua. Mas ela não tinha medo ? Tinha medo sim, quando caíam raios do céu. Como conseguiam água ? O marido abrira um poço nos fundos. Manualmente ele tirava água com um balde de madeira. E sem luz ? Como era de noite ? Eles tomavam café às 18 horas e jantavam às 20. Lampiões. Ficavam na rua, conversando com quem aparecesse no caminho. O marido acendia um cigarro, ela cantarolava. Iam dormir com o som dos sapos e acordavam com sabiás. Mas o que a senhora fazia todo o dia ? Cozinhava, lavava, costurava, plantava. Com as mãos, à luz do sol, em seu próprio tempo.
Me despedí da velhinha sorridente. Ela falou para que eu aparecesse quando quisesse. Se lembrou de que eu morava lá perto, eu era para ela o moço dos cachorros. Fui acenando e desejando sentir como seria aquela rua de barro e de cheiro de café.
Sentí então : Ela nunca irá morrer.

NICHOLSON/JAMES DEAN/SCORSESE/ELLEN

CADA UM VIVE COMO QUER de Bob Rafelson com Jack Nicholson, Karen Black e Susan Anspach
Este filme causou profunda impressão em sua época. Mostrava com clareza a crise de toda uma geração. Cenas como a da lanchonete são usadas até hoje como exemplo de atuação ( Jack, aqui em atuação fantástica. ) O filme está longe de ser uma obra-prima. Algumas cenas são ruins. Mas ele tem algo de muito profundo, muito sincero e principalmente : ele inventou o tal "filminho independente tristinho ". Acompanhamos a crise de nosso herói com interesse e assistimos Jack Nicholson criar o perfeito herói existencial. Seu personagem está no limite. É uma figura de Antonioni em filme cem por cento americano. O final, uma longa tomada silenciosa, dolorosa e árida, é sim uma obra-prima. Jack nunca mais foi tão sincero. Ele é o desamparo, e faz isso sem uma careta, um grito, uma esquisitice. É de verdade. Este filme, irregular, fica em sua memória. Nota 8.
A BONECA DO DEMÔNIO de Tod Browning com Lionel Barrymore e Maureen O'Sullivan
Uma decepção. Os primeiros minutos são aquele delicioso terror dos anos 30, mas depois a melosa trama MGM toma conta de tudo. Browning, o gênio dos góticos da Universal, afunda no romantismo Metro. Não é a toa que ele abandonaria o cinema logo em seguida. Nota 3.
A PELE de Steven Shainberg com Nicole Kidman e Robert Downey Jr.
Uma pretensiosa bobagem. O filme tenta mostrar o porque de Diane Arbus fotografar gente esquisita. Inventa, lógico, um motivo romântico, e afunda numa chatice moderninha. Nicole está fria e distante e Downey alheio. O filme é lixo pseudo-sério. Nota Zero.
DOLLS de Takeshi Kitano
O visual é bonito. Frio com cores quentes, bem japonês. Mas em sua tristeza pop-teen, Kitano nada tem a dizer. Filmes deprê só se justificam quando têm grandes atuações ou quando são cheios de significados´poéticos. Aqui os atores não podem atuar ( são pastiches ) e o significado se esgota em dez minutos. É imperdoávelmente chato, vazio, sem vida. Como um belo boneco jogado ao canto, ele não respira, não se move, nada diz. Exemplo supremo da confusão que há entre arte e tédio, profundidade e tristeza. Ser triste não é ser profundo, e ser entediado e entediante não significa "filme de arte". Nota 4 pelo visual bonito.
A VIDA DE LOUIS PASTEUR de William Dieterle com Paul Muni
Muni foi grande ator. Aqui se mostra a luta de Pasteur para ter suas idéias aceitas. Filme biográfico da Warner : curto, objetivo, simples. Se assiste com prazer. Se esquece logo. Nota 6.
VIDAS AMARGAS de Elia Kazan com James Dean, Julie Harris e Raymond Massey
Tem alguma coisa muito irritante aqui. É James Dean. Que ator foi esse ? Ele popularizou essa coisa de que o ator deve ser "artista" e portanto deve criar sua atuação única. Então TUDO o que Dean faz é criativo : se ele pega um copo ele o pega pela borda, criativamente. Quando corre, corre de lado, braços para a esquerda e pernas para a direita. Todas as falas têm gemidos, tosse, pausas e murmúrios incompreensíveis. Ele anda tropeçando, senta-se criativamente e até o olhar é "original" : torto, semi-cerrado, louco. Foi um gênio ou um retardado ? Com James Dean termina a era dos atores "naturais" : Cary Grant, Bogart, James Stewart. Nasce a era do ator "criativo", era que dura até hoje ( Vemos tudo de Sean Penn, Nicholas Cage e principalmente de Johnny Depp em Dean. ) O filme, baseado em Steinbeck, fala do amor de pai e filho. O pai não o aceita e tudo o que ele faz é errado. A fotografia é belíssima, mas, que coisa ! James Dean estraga o filme !!!!!!!! Nota 6.
MOSQUETEIROS DA INDIA de James W. Horne com Laurel e Hardy
Uma das alegrias da vida é saber que O Gordo e o Magro existiram. Seu humor ingênuo é delicioso. Como acontece com Keaton, amamos seus filmes porque amamos a eles mesmos. Laurel foi um gênio e Hardy o complementa com perfeição. A vontade é de vê-los para sempre. Enquanto houver humor "do bem" ( os irmãos Marx são o humor "do mal" ) eles viverão. Not 7.
ALICE NÃO MORA MAIS AQUI de Martin Scorsese com Ellen Burstyn, Kris Kristofferson, Harvey Keitel e Jodie Foster
Ellen exigiu que o desconhecido Scorsese a dirigisse aqui. Ele fez um filme maravilhoso e ela ganhou o Oscar de atriz ( vencendo Gena Rowlands e Liv Ullmann ! ). Sua Alice é apaixonante e o filme tem a mais engraçada e deliciosa relação mãe/filho que já assistí. È um filme vivo, ágil, eletrizante e engraçadissimo ! Apesar de a vida de Alice ser uma desgraça... Veja o começo do filme : a criança Alice canta e num corte de 27 anos mais tarde, vemos a câmera correr e invadir a vida atual de Alice ( ao som do Mott the Hoople. O filme é do tempo do glitter. Lembra muito, no visual, Quase Famosos de Crowe ). Temos aqui três atos : o primeiro é drama puro. Alice perde o marido e cai na estrada. No segundo, ela conhece Keitel e o filme mostra o que é : comédia amarga. No ato três ela acaba em lanchonete e encontra o amor. O filme, que já era perfeito, ainda fica melhor. O elenco todo brilha ( o filho é um tipo de jovem Woody Allen que ouviu muito T.Rex... hilário ! ), Jodie é uma menina-macho que adora roubar, Keitel é um doido infantil e Kris um cowboy maduro. Mas Ellen teve aqui uma chance de ouro. Nos apaixonamos por sua Alice otimista e tão judiada. Quanto a Martin... ele vinha de dirigir Mean Streets e aqui, sempre com a câmera na mão, em movimento, usando cores claras e quentes e deixando os atores improvisarem muito, faz uma de suas maiores e melhores obras-primas e seu mais divertido filme. Única tristeza desta delícia : ela acaba. Alice deveria durar para sempre, ser box de 50 discos. Obrigatório para quem ama cinema, vida e mulheres. Nota trocentos zilhões.
A GLÓRIA DE MEU PAI de Yves Robert
Marcel Pagnol foi teatrólogo, poeta, romancista e cineasta. Foi acima de tudo um embaixador do que a França tem/teve de melhor. Este filme, baseado em suas memórias de infância, foi sucesso imenso nos anos 90 na Europa. Que filme ! Lí o livro e posso dizer que o filme é melhor. E é corajoso, pois é um filme sobre a alegria, a felicidade e o prazer de viver. Ou seja, o que vemos é desprovido de drama, de suspense e de vilões. Uma família feliz viaja em férias para a Provence. Caçam, comem, bebem, vivem. E é só isso. O filme nunca surpreende, acompanhamos a história com prazer calmo, discreto e feliz. Quando termina pensamos : é só isso ? Mas então, ao acordar no dia seguinte, nos pegamos com saudades de seu mundo. Pois o mundo do filme é nosso melhor universo. O lugar onde se fez nossa arte, nossa boa-vida, nosso amor. Tudo que nele é mostrado é atemporal, é encantador e nada tem de extraordinário. Nota 7.
O CASTELO DE MINHA MÃE de Yves Robert
Continuação do filme acima. Mostra mais uma vez as mesmas coisas. O achei melhor que o primeiro. Os franceses são desconcertantes. Fazem os filmes mais chatos do mundo. Verborrágicos e metidos. Mas também fazem, como ninguém mais, filmes sobre o prazer de viver. Tudo aqui é prazer : a luz, os pássaros, a comida, o vinho. Observe o gigantesco pão. Observe a cena em que as janelas são abertas. As caminhadas. É um filme feito de luz, de gente de bom coração. Mostra uma sociedade que não poderia ter acabado. Tem, em seu final, o único travo amargo de todo o filme : Marcel adulto, cineasta famoso, recorda a morte de sua mãe. Uma frase é dita : " e é isso a vida: momentos alegres cercados por imensas tristezas..." O filme é momento de alegria. Nota 8.

TRABALHO É COISA SÉRIA...OCTAVIO PAZ

" A medida que a esfera do trabalho se alarga, a do riso diminui.
Tornar-se homem é aprender a trabalhar, a se mostrar sério.
Mas se o trabalho humaniza a natureza, desumaniza o homem. "

Octavio Paz escreveu isso. Lí um livro sobre a India desse autor mexicano ( Nobel de 1995 ). Li outro sobre os nativos americanos. E tentei ler sua poesia, que é muuuuuito modernista.
Esta frase que cito foi tirada de uma palestra...
O que posso dizer ? Posso falar de um certo mal estar que às vezes me dá. Com alunos de onze anos. Seres que não conheço mais. Seres que um dia fui, mas que agora não. Vejo-os rindo, gritando, pulando, brigando. Fazendo tudo aquilo que faz de uma pessoa saúde pura. Correm e falam tudo o que pensam. E eu, preparando-os para o trabalho, preparando-os para a cela do futuro, tenho de esquecer tudo o que fui um dia. Tenho de sufocar esse diabinho em mim e fazê-los parar de correr e ficar quietos, parar de pular e pensar no porque do pulo, interromper os gritos e deixar que sufoquem em mutismo, calar as conversas e concentrá-los em equações. Tenho de fazê-los trocar o riso constante pela seriedade. Sou o adulto que cessa risos.
O mundo é só trabalho. E somos tão bem treinados a crer nisso que um dia me peguei dizendo : O sentido da vida é o trabalho.... Mon Dieu !!!!! A que ponto posso chegar quando o assunto de conversação morre !
O sentido da vida, com certeza, não é o trabalho. Mas o trabalho cresceu, cresce e estamos condicionados nesta granja em que vivemos, a pensar o trabalho como única opção nobre de vida. Você não se define como peão, doutor ou professor. O que te define é sua vida fora do trabalho. Se é que ela ainda existe.
Num limpo e organizado escritório não se rí. Numa loja se compete. Numa fábrica há barulho. Numa mina existe medo. Rir no trabalho. Unir riso à labuta. Um sapateiro ri, um barbeiro ri, um padeiro ri, um médico pode tentar ser bem-humorado. Mas quem ri com seu computador oito horas por dia ? Quem ri extraindo dentes ? Dá pra rir no banco, na concessionária Mercedez, no tribunal ? O trabalho nunca foi tão sério. Basta atentar : profissões menos modernas riem mais. Pedreiros brincam.
Então ser homem é ser sério. Teu pai ficou orgulhoso de sua primeira foto séria. A foto que você tirou para a carteira de trabalho. Você finalmente era adulto-sério. Compenetrado em negócios importantes. Compenetrado em ser sério numa vida muito séria. Dentes travados.
Mas o homem rí. O que nos define é o brinquedo, o riso, a ironia, a piada, a surpresa. Somos o único bicho que sabe rir do destino. O único que quebra a linha natural pela comédia do improviso. A arte nasceu da alegria, do riso, da atitude de que nada é sério neste mundo adulto. Todo artista é vagabundo. Ele pode trabalhar num banco todo o dia toda a vida. Mas ele sabe, um banco não é vivo.
Frase final : o trabalho humaniza a natureza. Rio canalizado, campo cultivado, montanha cortada. O trabalho ordena a natureza, torna tudo rosto de homem. Fazemos a natureza mais séria. Um rio margeado por estrada e concreto é sério. Um rio com lodo, barro e marrecos é riso.
O trabalho desumaniza o homem. Preciso comentar ? O homem precisa conversar, rir, almoçar em paz, ir ao banheiro, flertar, bocejar, espirrar, suar à vontade, chorar quando triste. O trabalho proibe tudo isso. Trabalhar é ser eficiente, competente, ansioso, mal-humorado, sério, confiante e confiável. Nada humano. O homem é indisciplinado, criativo, falante, adora brincar, inseguro e mentiroso.
Como crianças de onze anos.