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A MINHA PREGUIÇA

   Entre 2 e 7 anos de idade. Eu me exibia. Cantava na sala para meus primos e tias e era aplaudido. Vaidoso, eu dormia muito e comia demais. Minha vida de príncipe era um sonho. Eu despertei meu ser no olhar. Eu via rostos femininos que me olhavam e sorriam para mim. E eu cantava para elas. Ao mesmo tempo eu via. Olhava o mundo com amor porque o mundo me amava. Desenvolvi o olhar então. Mais que a linguagem da fala, aprendi a ler com os olhos. Com eles eu podia gozar o amor por tudo o que eu via. E recebia de volta a luz entre a cortina, o azul da capa de um livro, o branco das nuvens que corriam.
  Mas veio a perda do público. Fui destronado e de príncipe me tornei pajem. Meu irmão veio como um furacão instituindo a república do ruído. Ele chorava, ele nunca dormia, ele ficava doente. Impedia meus pais de dormir. Pior, roubou de mim os olhares que eram só meus. Nasceu em mim a imagem do "herdeiro deserdado", do "nobre decadente". Meu público se foi. Eu não cantava mais. Me vi gaguejando por meses. Perdi a música e perdi a fala. Mas ainda olhava. Amava o mundo com olhos agora melancólicos. Mas ainda amava.
  Então não mais me pus a prova. Pois ao fim, eu sinto sem saber, virá a perda. Escrever um livro infindável é jamais o perder. Nunca sair de uma escola é continuar nela. Esticar a canção para não perder o público. Não encerrar o recital para não correr o risco de ver rostos virados.
  Isto não explica minha depressão. Muito menos minha SP. Mas dá uma luz sobre esse manto de vaidade destronada. Sou essa mistura esquisita de egocentrismo envergonhado e orgulho aviltado. Me sinto roubado. Sempre roubado. E roubo de mim mesmo o que me é de direito.
  Saboto-me.
  É assim.

O HOMEM DO OUTRO MUNDO

   Ele morou na Barra Funda. Numa pensão. Pegava bonde para ir ao cinema. Na sessão das 6, em salas da São João, Ipiranga, via os filmes de John Wayne, Gary Cooper, Rock Hudson e Gregory Peck. Trabalhava num bar. Cultivava um bigode e jamais saía de casa sem um paletó.
  Antes disso ele morara em Santo Amaro. No tempo em que o bairro era feito por quarteirões de casas classe média e outras áreas de fábricas. Acordava às 4 e de carroça entregava pão e leite nas casas. Fazia quase sempre neblina e o cavalo trotava preguiçoso no calçamento de pedra. Ele tinha uma carta de condutor de animais. O leite, em garrafa de vidro, ficava na frente da casa, com os filões de pão embrulhados em papel claro.
  Depois se mudara para cá, já casado, onde moraria com a irmã. Era uma casa entre morros de capim e mamona, a vista ia longe, quilômetros de distância. A oeste o Pico do Jaraguá e a sul as estradas para o Paraná e interior. O trabalho era distante, no Brooklyn.
  Esse mundo morreu a muito tempo. Morreu nos anos 70, com as dinamites, as empresas de demolição, as avenidas largas e o metrô. Meu pai não reconheceria a cidade se estivesse vivo e pudesse andar por aí. Tenho certeza que odiaria aquilo que Pinheiros virou, mas talvez gostasse do Brooklyn e da Barra Funda de agora. Mais que a cidade, homens como meu pai não existem mais. Ou estão em vias de sumir. Homens com papel definido a cumprir, homens provedores, homens pai. Conheço dois ou três amigos que ainda seguem bravamente esse roteiro. Mas eles são questionados e se questionam todo o tempo. Pois nosso tempo tem a ilusão de que se pode viver sem um roteiro. Ignora que não ter um roteiro é um tipo de roteiro ( que já ficou velho aliás ).
  Ao sair do cinema meu pai tinha a certeza de ser um cara legal. O Gary Cooper da avenida Ipiranga. E como ele, um monte de Garys Coopers voltavam para suas pensões com essa certeza. É um outro modo de ver o mundo. E por isso, era outro o mundo.
 

EPIFANIA

   Veio sem avisar. Sem ser pedida ou desejada. Apenas surgiu.
 Era sexta-feira e eram 3 e quinze da tarde. Eu estava na escola.
 Após semanas de calor seco, o tempo mudava. O ar estava úmido e mais fresco e o sol parecia mais gentil.
 Os alunos jogavam bola entre árvores mal cuidadas e eu me sentei num banco de cimento. E então aconteceu...
 Uma satisfação absoluta desceu sobre mim. A luz da tarde se tornou a mesma dos melhores momentos da minha vida, e então eu senti dentro da minha carne a paz que a tempos eu não conhecia. Um suave calor dentro da minha barriga e o ar entrando em mim como se fosse tão leve como quando as coisas começam a respirar.
 Os alunos jogavam gritando, corriam, pulavam e eu os olhei em detalhe. Era o mesmo jogo. Eram os mesmos garotos. Era a mesma vida.
 Pensei, sem qualquer tipo de emoção, na eternidade da vida, no jogo que se repete. Na eternidade que está aparente em tudo o que nos cerca mas que esquecemos de ver. O momento é de pura delícia, de clareza de sol.
 Um besouro surge e voa zumbindo. Faz evoluções em torno das árvores. Se demora, se vai.
 Minha epifania.
 O jogo termina.
 Outro dia tem mais.
 As sombras parecem doces. É o mesmo mundo de sempre. E depois chove. E tudo vai bem.

OS LIVROS E EU.

   Lembro então que meu amor pelos livros não começou com Renard ou com o livro do Zorro.
   Nos anos 60 era comum vendedores de livros irem de casa em casa. Tocavam a campainha e se aceitos, entravam na sala e expunham imensos cartazes coloridos com os livros que vendiam. Sua mãe, se interessada, encomendava a coleção, que seria entregue dali a 15 dias. Eram enciclopédias, coleções sobre medicina, artes, história e obras completas de alguns autores. Capas duras, ilustrados.
   Meus pais só liam jornal e revista, mas sabiam que seus filhos deveriam ler. E então compravam. Algumas coleções se revelaram inúteis, lembro de uma enciclopédia do sexo que era nojenta, e outra sobre psicologia que era assustadora. Mas foi o LER E SABER que me fez sentir paixão por livros.
   Tenho até hoje e é meu maior tesouro. São 12 livros, que li e reli aos 9 anos de idade. Textos extremamente simplificados, dirigidos a crianças e teens, páginas super coloridas, assuntos sobre história, ciências, curiosidades. Foi então que senti o prazer de segurar um livro, o cheiro, virar a página e ser surpreendido, colocar na estante. Logo vieram Os Bichos, Conhecer, e a glória suprema, a Barsa. Foi lendo a Barsa, uma versão simplificada da Britânica, que aprendi sobre literatura, pintura, história e um imenso etc. Vi que um livro era uma aventura, uma viagem, um sonho.
  Nunca mais perdi essa curiosidade. Ver o que se vive dentro de um volume. É amor. E amor dura.
 

COMO SER UM HOMEM HOJE?

   Em Rastros de Ódio, o mitico filme de John Ford, Ethan, o personagem de John Wayne, parte em busca de uma menina que foi raptada pelos indios. Com ele vai um jovem mestiço e no filme vemos a transformação desse jovem em homem. O momento de sua transformação seria aquele em que ele se rebela contra Wayne. O filme, feito em 1956, coincide com esse que foi o ano do rock, o ano de Elvis. De repente, com a ajuda dos beats, se vendeu para a primeira geração americana criada em frente à TV, a ideia de que virar adulto era se rebelar contra os adultos. Estranho não? Ser adulto era brigar com um adulto, na maioria das vezes, o pai. As gerações seguintes aceitaram com alegria essa verdade. Essa nova verdade. Para ser um adulto voce tinha de enfrentar o mais velho e além disso criar um modo novo de ser. Voce tinha de nascer outra vez. 
   Nesse processo muitos afundaram, outros se perderam e ficaram brigando para sempre e a maioria simplesmente desistiu. Se para ser adulto eu tenho de ser brigão, rebelde, e ainda criar um novo EU, bem, eu prefiro ficar onde estou. Começou aí a infantilização. O jovem, que tinha de ser herói, entrega os pontos. As mães adoraram isso. Abriram os braços para aquele novo filho, um filho que queria ser novo para sempre. E o filho, perdido entre o dever da rebeldia e a incapacidade de se recriar, ficava num meio termo irritado. Vergonha e prazer. Vergonha de ter desistido, prazer pelo conforto. 
  Essa a minha hipótese. E mais uma vez sou obrigado a jogar a culpa sobre os teens do rock. Os hippies e etc. Vamos voltar ao filme. O jovem, papel de Jeffrey Hunter, amadurece ao se afirmar perante Wayne. Mas, e Ethan? O que ocorre com John Wayne? Ele parte porque odeia os indios. Quer na verdade se vingar. Encontrar a menina é secundário, ele quer o sangue. Mas ao encontrar a menina, agora crescida após anos de busca, Ethan faz o mais belo movimento da história do cinema ( segundo Godard e segundo este que vos fala ), ele a perdoa, a aconchega e a leva de volta para casa. Devolvida a menina à comunidade, o jovem que o acompanhou prestes a se casar, Ethan-Wayne parte. E temos o mais belo final de filme da história, Wayne na porta, indo, mas na verdade sem querer mais partir. John Wayne, e tinha de ser ele, mostra para quem quiser ver, o que significa ser adulto. Ethan começa imaturo e é ele aquele que realmente se transforma. Gosto de pensar que a partir dali ele encontrou uma mulher e foi viver numa cabana de madeira, onde criou dois filhos. 
  Escrevi mais de uma vez aqui que esse filme salvou minha vida. E que sempre que o revejo sinto meu pai próximo de mim. Fosse refeito hoje eu tenho a certeza que todo o foco seria no jovem e o personagem de Wayne seria secundário. 
  Agora falo sobre o cinema de 2015. Gostei da última entrega do Oscar. Mas uma coisa sempre me incomoda. A cada ano que passa os atores parecem mais e mais crianças. Pensava que era pelo fato de que a cada ano fico mais velho. Mas não. Eles são cada vez mais frágeis, delicados, vulneráveis, ou seja, infantis. Sua forma fisica e suas vozes combinam com os filmes que lhes são oferecidos. Filmes para crianças que brincam, sem saber, de ser adultos. Gosto muito, às vezes adoro, dos filmes de Tim Burton por exemplo. Como agora gosto dos filmes de Wes Anderson. São filmes bonitos, às vezes tristes, às vezes cômicos. E sempre profundamente infantis. O visual é o mesmo dos livros para crianças e eles têm uma imensa incapacidade de exibir relações entre homens e mulheres que não se pareça com um cartoon. Ou um conto de fadas. Isso não os desqualifica. São ótimos. E no caso dos dois, são honestos. Nenhum dos dois fica fazendo pose de adulto. São assumidamente infantis. E essa pode ser, eu não sei, uma característica adulta: assumir suas criancices. 
  O trágico é quando um filme infantil é visto como obra de um adulto. Não vou citar Lars Von Trier, um adolescente de 14 anos, embirrado, que brinca de chocar os pais.  O que devo dizer é que a maioria dos filmes de arte de agora são filmes de arte feitos por colegiais. Eles falam daquilo que teens conhecem, tristeza, solidão e raiva, e se perdem completamente quando falam do que teens não sabem, mas imaginam saber, amor, familia, trabalho, morte. Tudo é borrado com as cores de um adolescente egocêntrico que se imagina inteligente, culto e cheio de verdades a serem ditas. Nada é mais infantil que isso. Desse modo temos montes de filmes que brincam em ser Kubrick, Hitchcock ou Bergman. Mal sabem eles que nada foi menos infantil que Kubrick, Hitchcock e Bergman. Se soubessem de seus limites eles imitariam Bunuel, Fellini ou Welles, que foram gênios, mas que sempre mantiveram um pé na infantilidade. No caso dos três, consciente. 
   Preciso falar agora que quando Picasso diz que passou a vida lutando para voltar a ser criança, isso não significa que ele lutou para voltar a colecionar brinquedos ou a brincar de Batman. Como adulto, ele queria poder adentrar o mundo simbólico e sem palavras da criança. Era um adulto vendo o mundo infantil. Não pensem que Lewis Carroll ou James Barrie eram infantis. Walt Disney entendia as crianças. E por isso não poderia ser uma delas.
  Crianças odeiam ser crianças. Teens detestam não ser adultos. Só adultos infantilizados amam essa fase da vida. Ser criança é ter medo. Medo de ser abandonado. Medo de se perder na rua. Ser criança é estar sempre de olho em si-mesmo. Ligado na sua fome, sua sede, sua dor, seu desejo. Não existe o voce. Tudo é eu. O mundo mágico e lindo existe. Mas a criança não pensa nele, ela está dentro dele. É o adulto que percebe sua beleza quando já saiu dele. Ele é real. Tão real que na infância mal se percebe. Adolescentes são como crianças em quase tudo. Menos no contato com o voce. O voce existe e esse ser dá ao adolescente raiva, por ter invadido seu mundo, e desejo, por se parecer com uma porta. O adulto de 2015 muitas vezes fica na ansiedade dessa porta. Com a mão na maçaneta. Sem a abrir. E pode crer, eu sei do que falo.
   Ele usa bermudas. Fala montes de palavrões. Adora brincar. Nada parece muito sério. E é cheio de teorias adultas, verdades filosóficas. Vive mudando de metas. Viaja, experimenta, procura descobrir quem vai ser quando crescer. E tem 45 anos. 
   Mora com uma mulher. Mas não têm filhos. Quem sabe um dia. Moram juntos como quem brinca de casinha. Sem nenhum compromisso do mundo dos adultos. Sem filho, sem papel e sem casa comprada. Tudo provisório. Tudo de brincadeira. A palavra :: para sempre:: os apavora. 
   Não falarei do fim das cerimônias tribais. Dos atos que faziam do menino um adulto. Prefiro falar de duas que viraram brinquedo. 
   Meu irmão serviu o exército. E servir poderia ser um ato de virar adulto. Ele mudou, endureceu. Mas não ficou adulto. Por dois motivos. Primeiro porque servir é um ato sem significado algum. Ninguém mais fala que servir é virar homem. E o principal, voce sai de lá como entrou. O mundo não reconhece em voce um adulto, Na verdade te chama de azarado.
  O outro ato eu o cumpri. Entre católicos, aos 14 anos, voce é crismado. Crisma é o momento em que o menino, que foi batizado quando bebê, confirma a opção dos pais pelo Papa. É quando ele deve pensar na sua fé e a aceitar. Ou não. Eu a fiz como um zumbi. Não fazia a menor ideia do que era aquilo. E nem meus pais sabiam muito bem. 
  O limite do exército seria a guerra. E eu acho que nem a guerra hoje deixa de ter seu aspecto de brinquedo. E o passo após a crisma é o casamento na igreja. Cerimônia que hoje pode ser revertida em divórcio. O casamento é agora uma festinha de conto de fadas.
  A saúde da mente se exerce no equilibrio, impossível, entre o mundo sólido e o mundo interno. Toda dualidade deve ser aceita. Não podemos ser adultos absolutos, isso seria outra doença, mas ser adulto significa ser responsável por decisões, ser capaz de defender e abrigar pessoas, ser parte de uma comunidade que se aceita e não que se impõe. E ao mesmo tempo ter contato com esse mundo criativo e simbólico da infância. Mas sabendo que é o mundo DA infância, vivo e presente, mas nunca o único mundo possível e desejável.
   Nada  mais infantil que um filme de Tarantino, de quem eu também gosto. 
   Você consegue recordar um só casal adulto nos seus filmes? Há apenas um, Bruce Willis e Maria de Medeiros em Pulp Fiction. Ele cuida dela. Ela não é perfeita. Eles estão na cama apenas conversando. Um lapso na obra de Quentin, toda ela feita de mulheres gostosas e perigosas e de homens que falam como garotos na lanchonete da esquina. 
   Em um mundo de Homem de Ferro, onde Batman e James Bond são levados a sério e onde cada vez mais as bandas de rock se parecem com menininhos brincando no quarto,  ser adulto se tornou a maior e a única das rebeliões.

PEDRO COELHO- BEATRIX POTTER, FELIZ DE QUEM O CONHECER!

   Há um mistério em Beatrix Potter. Peter Rabbit acaba de sair pela Companhia das Letrinhas, Pedro Coelho na tradução. Adorei terem traduzido o livro e adorei a edição. Capa dura, formato grande e, claro, com as lindas ilustrações que Potter fez em 1905.
   Sou fascinado pela literatura infantil e aqui temos um de seus maiores clássicos. Neste dia de janeiro, 2015, mais de um século após sua primeira edição, ponho-me a ler. Com calma, lentamente, com delicadeza. O texto, de uma simplicidade absoluta, logo me captura. Em duas linhas já posso me ver no mundo de Pedro. Sua familia Coelho, a raposa, o texugo e o humano, vizinho que planta tudo aquilo que um coelho adora. Leio e sinto o frescor das hortaliças, o sol no rosto e vejo os coelhinhos saltitarem. Potter sabia fazer.
  Beatrix Potter nasceu no campo e foi uma mulher feliz. Corajosa, casou-se tarde, com seu editor. Seus livros foram logo um grande sucesso, mas ela nunca deixou o campo. Ia à Londres somente quando muito necessário. Há um belo filme em que René Zellweger faz, com graça, o belo papel de Beatrix Potter. Recomendo que o assistam. 
  Quando comecei a estudar literatura infantil percebi que certos livros clássicos estavam ausentes de nossas livrarias. Mary Poppins, O Vento nos Salgueiros e Peter Rabbit eram os grandes furos. Desde então todos foram editados aqui, e todos com cuidado. Feliz a criança que os ler! Feliz o adulto que os conhecer!
  Eu amo Beatrix Potter!

UMA FOTO, O AMOR ( O QUE É ) E O TEMPO ( QUE NUNCA PASSA E NUNCA VAI )

   Então foi verdade...
  A foto está aí. Eu, com cinco anos, entre meus primos. Ao fundo tem o hospital, que ainda existe, e mais nada. A esquerda de quem olha a foto se percebe a avenida Paulista. Que fica dez quilômetros além. O alto do Conjunto Nacional e o relógio. No fim da tarde eu olhava as horas por ele.
  É verdade. Existia mesmo esse espaço livre de ruas de barro e terrenos sem dono. Era um mato civilizado. Mato ralo, cortado, limpo. Poucas árvores e muita mamona. Uma imensidão cruzada por córregos com peixes e bilhões de sapos. Cobras sempre possíveis e ratões gigantes. Cigarras. Gafanhotos. Borboletas e abelhas. 
  O céu era grande. E esse ambiente é minha ideia de Paraíso. Não era perfeito. Eu tinha noites terríveis de asma solitária. Vivia a frustração de ter um pai severo, frio. E minha mãe nunca foi carinhosa. E ouvia frases vagas, frases que falavam de um casal que não se dava e de dinheiro que diminuía. 
  Mas o espaço livre compensava tudo. E meus primos que eu adorava. Cantava nas ruas, dormia na relva, ficava horas namorando o céu. E tinha uma sensação de que a aventura era eminente. Eu a sentia em cada moita de capim alto e em toda esquina vazia.
  O sonho podia crescer. Eu ia junto.
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  O amor tenta unir nosso corpo, sedento de carne, com nossa alma, sedenta de sonho. E nunca tente encontrar razão no amor. Não há. E se houver não é amor, é conveniência, amizade ou desistência.
  Porque Eros nos faz loucos. 
  Ela nada tinha a ver comigo. E mesmo assim fui dirigido a ela. Dirigido, pois no amor não somos donos de nós. Somos um outro que é mais eu que todo eu antes fora. E vou à ela como quem deve ir. Quero e não sei. Ou sei e não quero.
  Confio.
  E ela se revela o que eu não pensei que fosse. Ela se encaixa em mim. Mas Eros, deus que leva os partidos a se fazerem um inteiro, sabia desde sempre. Eros sabia aquilo que minha razão não suspeitava. Que ela era a metade perdida. Completude.
  E perdemos o senso. Andamos pelas ruas de madrugada. Ruas escuras, vazias, perigosas. E dormimos na rua sem saber o que possa ser. Porque esperamos pela hora sagrada. Ficamos perdidos na rua para ver o nascimento das estrelas e o apogeu da Lua. E assitimos abraçados a obra que não se repete. ( Só aqueles que não amam pensam que todo amanhecer é igual ). 
 No caminho um sapo cruzou a rua. Na volta um gato branco passou tranquilo. Ela confunde árvores com igrejas. 
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  Eu andava tonto pelas mesmas ruas. Ontem, muito ontem. Mas esse ontem é agora hoje. E amanhã. Escrevi em tempos idos aquilo que seria o caminho. Adentrar o amor é penetrar o caminho. Tive espaço para conhecer e tempo para ver. 
  E como eu sempre soube, era verdade. Sempre a verdade.

O QUE É A BELEZA

   Pessoas infelizes perdem o senso de beleza. A tristeza pode ser bonita, mas a infelicidade não consegue reconhecer esse fato. Algum psicólogo deveria estudar isso. A capacidade de perceber o que é belo pode salvar uma vida. Mais que isso, salvar um povo.
  Pintores são os divulgadores daquilo que seu tempo pode ver. Se Giotto pintava a pureza de anjos em paredes de igrejas pobres, isso se devia a capacidade de seu tempo em perceber anjos em cada manhã. E se Monet via movimento e cor como tudo que existe no mundo, era porque seu tempo tomava a consciência de que tudo era velocidade e fugacidade. Os artistas percebem antes. O Zé da esquina só notou isso 50 anos mais tarde. Cézanne lutou contra isso. Sua obra é uma tentativa de parar o que se move. 
  Pollock viu que tudo é uma energia nervosa e que na verdade a vida é desfeita. Um ato aleatório que espiritualmente faz sentido, mas esse sentido nos escapa. O Zé só começa a perceber isso agora, sessenta anos depois. Warhol viu nos supermercados nossa nova igreja e nosso museu. Acertou na mosca. Mesmo que hoje a arte pareça esquecida, sua mediocridade é ainda testemunho relevante da futura hiper-mediocridade dos Zés. 
  Porque o artista percebe antes. Bowie brincou em 1972 de artista Pop e em 2014 todos são Bowie ( produzidos, calculados, frios, profissionais, atores ). Assim como Welles percebeu antes que o cinema era arte do ego do diretor e Shakespeare sentiu que a escrita podia ser um campo de guerra entre o eu e o anti-eu.
  A beleza se faz em todos eles. Sem o maravilhamento, mesmo que brega, mesmo que rápido, não se faz nada que permaneça. O que mais nos deixa aturdidos é quando percebemos a beleza da tragédia. 
  O senso do belo, sei disso com absoluta certeza, nasce na infância. E não por se crescer em lugar bonito, ou ter a sorte de ser feliz e amado. Mas quando temos tempo para ver. Na infância, quando deixados em paz, entregues a nós mesmos, vemos um mundo inteiro numa tarde de marasmo, intuimos a poesia numa manhã de calor, criamos uma lenda entre pedras e panos velhos. Cheiros, cores, ruídos, tudo é novo e tudo se fixa em mente vazia e virgem. Se não somos perturbados por horários, barulho e pressão, criamos a certeza da beleza. Ela se afirma e existe para o resto da vida.
  Em Sochi, nesta Olimpíada de Inverno, vive beleza para quem a conhece. Uma suiça que desce em seu snowboard e erra tudo. O rosto com um olhar que é mais triste que morrer. Os olhos não conseguem ver, ela vira a face para o chão, a boca se contrái, os cabelos parecem dizer: Eu errei. Eis a beleza se dando para ser notada por quem a conhece.
  Foi John Keats quem falou que uma coisa bela é uma alegria que dura para sempre. Mais que isso. Uma coisa bela nos faz viver para sempre.

EVERY PICTURE TELLS A "CAXINGUI"STORY ( DARLING )

   Uma prima me conta que tem em casa 4 fotos minhas. De quando eu tinha 3 e 4 anos de idade. O mais importante, essas fotos são as únicas existentes onde estou no meio da "minha paisagem", meu bairro, o Caxingui mitológico e idílico de mais de quarenta anos atrás. Surpresa! Pego as fotos e tenho um tipo de pancada-trans-abismal na cabeça: Deus! Era tudo verdade!
   Lá está o imenso campo sem fim, sem uma árvore, um campo plano, verde e alto, um tipo de platô de onde se podia ver a avenida Paulista lá longe e a névoa vinha envolver tudo em cores esmaecidas. A foto mostra a linha da Paulista ao longe e uma paisagem sem fim. Então é verdade, esse é o ambiente que me formou. Espaço, espaço sem fim. Solto, livre, um céu que nunca acaba, nuvens, aviões que parecem passar tão baixo, mato, cobras, vento. E na foto, pequeno eu ( sim, este é um texto masturbatório ), uso, aos 3 anos, uma maravilhosa camiseta de listras horizontais!!!!
  A gente é isso.

AOS 7 E AOS 40- JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

   O menino narra, em primeira pessoa, sua história. O homem tem narrada sua vida. O fato do menino dizer tudo como um "eu", e o homem como um "ele" já dá a pista. A vida do menino é agora. É o fazer sem questionar. Estar e ver tudo sem a distância da análise. O homem vive longe das coisas. E para nós, adultos, o agora é sempre um depois.
   Cada capítulo tem por centro uma voz. Fala o menino. Fala o homem. ( Que é o menino aos 40 anos ). O menino faz amigos, vai à escola, tem contato com a morte. Alguns capítulos beiram a magia. O do vizinho com suas gaiolas de passarinhos é de antologia. Aos 40 o homem se separa da mulher. Sem brigas, apenas um desgaste. A dor da solidão e da distância do filho. O final é um retorno que não se faz. As coisas não voltam. Morreram. Ou não?
   O autor é grande. No Brasil ninguém escreve hoje assim. Ele sabe olhar. Nada de neuroses. O homem sofre, o menino tem medo, a mãe chora, o pai é humilhado, mas tudo é "normal". Não é a tal literatura da falta de sentido. Não existe exagero, hiper-drama e também não há a pequenez de gente morta-viva. São pessoas como eu, como voce, gente comum, simples, da média. E na visão de João, elas são dignas, fracas, grandes, bonitas, banais, únicas.
   Tem de ler.

AQUELA ÁGUA TODA- JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

   Lembrei de Katherine Mansfield lendo este pequeno-grande livro. São contos sobre coisas pequenas. Pequenas coisas que são as grandes horas da vida. Os momentos que ficam.
    Marcelo Coelho chamou minha atenção sobre este autor. Com 50 anos de idade, ele é um mestre. Logo na primeira narrativa ( todos são contos curtos, 3 ou 4 páginas pequenas ), um menino vai á praia. Senti toda a alegre ansiedade do garoto. A espera do sábado, a descida da Serra, a ida ao mar, as ondas. João descreve tudo como eu o senti. Fui um menino que ansiava pela ida a praia. E pegava onda de peito também. A felicidade do menino era a mesma-minha. Mas mesmo que voce não tenha essa memória, o conto vai te fazer entendê-la e mais que isso, senti-la. Os outros contos não são coisas que vivi, mas são tão bons quanto. Especialmente um, onde um menino vê a mãe em desespero após receber uma carta, e aturdido, não sabe o que fazer para ajudar a mãe a voltar a sorrir. Esse conto, inesquecível. é a obra-prima do livro. Aliás, raros autores atuais têm tanta habilidade para descrever a relação mãe e filho. Isso porque João não escreve apenas bonito, escreve delicado, escreve leve e mesmo nos momentos tristes, sua escrita é feliz. Apesar das dores, da morte, os personagens vivem, são gratos e poder existir e estar aqui. Isso porque eles sentem, olham e contam. João crê na linguagem, nisso ele é um clássico.
   Lançado em 2011 pela Cosac e Naify, vale muito a pena. E ainda tem ilustrações lindas.

O FILME MAIS IMPORTANTE DA MINHA VIDA

  Se Martin Scorsese diz que o filme que mudou sua vida foi THE RED SHOES de Powell, visto aos 9 anos; e se Woody Allen diz que o seu foi O SÉTIMO SELO visto aos 12; qual foi o meu?
  RASTROS DE ÓDIO de Ford salvou a minha vida, mas a questão não é essa. ALL THAT JAZZ me revigorou, A RODA DA FORTUNA destruiu meu preconceito...Mas qual filme entrou em minha alma e lá se instalou? Qual que modificou meu gosto, minha direção e expandiu assim minha existência?
   É certo e claro que quanto mais jovem, mais voce pode se impressionar. Se voce tiver a sorte de ser exposto a algo de realmente poderoso. Toda uma geração despertou com STAR WARS. E eu?
   Meu filme foi visto na TV, com péssima imagem e em clima de magia. A lembrança é tão antiga que eu pensei por muito tempo ter sido um sonho. Achei que o filme que vi não existia, que fosse algo que eu sonhara. Recordava de lagos, fadas dançando, um homem apaixonado que era enfeitiçado e virava bicho, lembrava desse homem chorando ao ver seu reflexo no lago. Lembrava de névoas, de um bosque e de um menino mau. E sabia ter visto essas imagens com o rosto quase encostado na TV, sózinho. Porque em casa acontecia uma festa, era Natal e os adultos comiam e falavam. Mas eu, enfeitiçado, me hipnotizava com aquelas imagens.
   Por décadas elas foram um enigma para minha alma. Era um filme? Um sonho? Eu tentava reviver aquela sensação. Fazâ-la presente em mim. Não deixar com que ela se fosse.
   Então em 2008 eu compro um DVD e lá está o filme! SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO, do alemão Max Rheinhart, feito na Warner em 1933. Três horas de imagens deslumbrantes. As fadas, o lago, o menino mau...todos lá estão! O menino era Mickey Rooney! O homem que virava bicho era James Cagney! E a fada musa que para sempre me seduziu era uma lindíssima Anita Louise!.... Esse não é o melhor filme que já vi. Mas ele é o mais importante. Fez com que eu visse desde muito cedo aquilo que o cinema poderia ser. E me deu uma fascinação, para sempre, pela imagem. Mostrou ao muito jovem- eu que o sublime existia e que a imaginação é mais verdadeira que a solidez.
   Aos 15 anos eu vi O MENSAGEIRO e descobri minha sina. Mas essa é uma outra história...

PORQUE A MEMÓRIA?

   Um dos grandes mistérios da vida: Porque certas coisas se fixam em nossa memória, para sempre, e outras desaparecem? Não falo das "grandes coisas", tipo um pé na bunda ou uma cirurgia. Falo de pedaços de imagens, momentos que parecem tão banais, mas que sobrevivem, exatos, próximos, enigmáticos, por todos os seus dias. Porque?
   Olho uma imagem na tv. E ainda estou numa idade em que aquilo que vejo na tv é tão real como o que observo pela janela. Um homem numa floresta, cercado de fadas, olha sua imagem refletida num lago e percebe que não é mais um homem, é agora um animal. Fascinado pelas imagens em preto e branco, guardo esse momento por toda a minha vida, com a força de algo recente. Tenho dúvidas se isso foi um sonho ou um filme na tv. Até que em 2008 compro o dvd de SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO, a versão da Warner de 1932, e descubro que essa era a imagem, que o homem era James Cagney e que aquilo era um filme na tv que passou de noite, num especial de Natal. E o fato de um filme clássico, de 1932,  ter passado na tv como especial, demonstra o quanto essa minha lembrança é antiga. Foi em 1966? 67? Eu tinha então três ou seriam quatro anos?
   Muito mais importante: Porque essa cena me impressionou tanto e não alguma cena de meus programas favoritos de então ( segundo meus pais ), que eram Bat Masterson e Circo do Arrelia? As fadas e a floresta, o lago e a transformação, a tristeza profunda e melancólica que James Cagney demonstrou ao se ver como bicho, porque isso me pegou tanto?
   No quintal de casa uma menina passa rodo no chão. Faz sol e venta muito e ela trabalha descalça. Usa um vestido leve e uma tachinha que não sei porque estava por lá, entra na sola de seu pé. Sem sentir dor, ela sorri e tira a tachinha do pé.
   Eu desço a rua dos Três Irmãos e olho as luzes, fracas, dos postes que se acendem lentamente.
   Uma manhã em que encosto meu rosto contra o vidro da janela de um táxi na avenida Angélica.
   Cheiro de chocolate no Itaim, andando na rua da Kopenhaguen.
   O sol entrando pela janela da sala de manhã.
   ...Todos esses são momentos comuns, preservados pela minha memória. Flashs sem enredo, sem antes e sem depois. São como planetas que orbitam ao meu redor, eternos e impassíveis, idestrutiveis. Porque esses planetas e não tantos outros?
   Talvez a chave esteja exatamente no fato de serem momentos sem enredo. Esses momentos não são prosa, não podem ser narrados, eles são poesia. O que os preserva e os faz vivos é uma qualidade de luz que eles possuem. São imagens, quadros que exibem a eternidade de um momento. Descobertas de mistérios. Nesses momentos eu vislumbrei o mistério da melancolia, da mulher, da noite, do cheiro. E todos eles, e tantos mais, são banhados por uma luz diferente, uma sombra, ou um brilho intenso. Segundos que duram para sempre e que me avisaram aquilo que eu era e não sabia ser.
   Tantos outros...Num Jeep em meio a chuva...Um graveto no mato que fura minha pele...O ruido da chuva nas calhas de lata que fazem eco...A roupa voando no varal ao sol....
   Fellini usava muito essas imagens em seus filmes. Imagens da infância em Rimini, imagens de sonho-verdade, flashs da memória, descobertas... E eu sei disso: Nossa mente ansia por poesia, por momentos de revelação. Amamos para isso, para viver esse momento, ter revelações, ter segundos de criação de planetas. É pra isso que amamos, lemos e viajamos. O resto nada vale.

O AFRICANO- LE CLÉZIO

   Tolstoi dizia que a maior surpresa que um homem pode ter é a chegada da velhice. Não sei, para mim ela tem chegado lentamente. Talvez pelo fato de amar coisas antigas ela me seja mais confortável, mas mesmo assim dolorida. Surpresa para mim, a maior da minha vida, foi uma foto 3/4 que tirei a três anos. Tirei numa dessas máquinas automáticas e fiquei chocado ao ver o resultado: aquele não era eu! Aquele rosto, aquele olhar, a boca, aquele era meu pai !!!
  Le Clézio começa este livro assim: " Todo ser humano é resultado de um pai e de uma mãe. Pode-se não amá-los, não os reconhecer, pode se duvidar deles. Mas eles aí estão, seus rostos, suas mãos, suas atitudes... " No livro, escrito em 2004, o autor vê fotos e pensa a história de seu pai.
  Francês nascido nas Ilhas Maurício, faz-se médico e vai clinicar na África. Nigéria, Camarões, o pai anda. O continente que se apresenta, como diz Le Clézio, não é aquele de Huston ou de Heminguay, é a terra de Karen Blixen, lugar cheio de gente, não de feras, continente humano, crianças, doenças, feiticeiros, fome, e de risos, conversas, danças, paisagens, da liberdade sem fim. O pai se apaixona, corre rios, sobe montanhas, único europeu entre africanos. Os nativos o aceitam, é o homem que ajuda. Apesar das amputações que ele opera, das mortes, da falta de tudo, faz-se um idilio, que é completo com a mãe de Le Clézio. O casal vive em cabanas na chuva, em raios que desabam. O autor é concebido na África. No fim da gestação a mãe vai à França ter o filho, o pai irá depois.
  A mão da história intervém: é 1940 e a França é invadida. O pai não pode ir. Tenta chegar a Europa pelo Saara, fracasso. O filho só será conhecido em 1948, oito anos mais tarde. Durante esses anos a África muda. A lenta agricultura, a indolência do tempo se parte. As companhias da Europa caem sobre a terra, as tribos conhecem a ganância, guerras, lutas. O pai se torna amargo, angustiado, aquela terra não é mais sua.
   Conhece o filho, enfim. São estranhos. O pai é rigido, disciplinador, severo, fechado.
   É 2004 então. E Le Clézio agora compreende o pai. Pode sentir o que ele sentiu. O horror da miséria, a África sendo destruída, a volta a França, nação que não é a de seu pai. Ele percebe que no rigor havia o desencanto, que na disciplina ele o educava. O pai morre em 1982. No bolso ele levava uma Vida de Jesus. Le Clézio pensa.
   O mundo cospe na África. Brinca com ela. Ele conta a história tenebrosa de Biafra, o maior inferno que a Terra viu. Recorda seus amigos africanos, as brincadeiras na terra, os cupinzais, as formigas, o pó. Chega a uma conclusão idêntica a de Chesterton: A criança nunca vive em mundo de fantasia, ela vive no absoluto real. Um cupim era um cupim. O ver, sentir, o presente é o cupim e nada mais que o cupim.
  Le Clézio leva a África dentro de si. Vive a meninice sempre. Todas as operações feitas pelo pai, todas as crianças que ele viu morrer, tudo está vivo nele. Mais, ele é aquilo que seus pais viveram antes dele, ele é a chegada do pai ao continente, ele é as Ilhas Mauricio, ele é o pai e a mãe.
  Curto, simples, pequeno, triste.

VOCE COLECIONA O QUE?

   Um dos temas do livro que li, de Henry James, é a mania vitoriana de colecionar coisas. Em fins do século xix se colecionava tudo e algumas dessas coleções se fizeram moda por um século. Coleções de selos, borboletas. caximbos, isqueiros, chapéus, écharpes, bengalas, gravuras japonesas, canetas, anéis, flores, posters. Essas as mais classe média, os ricaços colecionavam pinturas, esculturas, porcelana e livros raros.
   Ainda se colecionam coisas? Não era útil, de certa forma, o desenvolvimento do cuidado, do espirito de caça, da organização que uma coleção pedia e exigia?
   Penso em crianças. Até a pouco colecionava-se de tudo. Bolinhas de gude, maços de cigarro, tampinhas de garrafa, times de jogo de botão, figurinhas, soldadinhos de chumbo, miniaturas de carros raros, gibis. Não me importa a minima as razões freudianas ( Freud sempre cria razões onde elas são inescrutáveis. Acima de tudo ele era um neurótico criativo ), o que é óbvio e certo é que ao colecionar voce cria um vínculo com o mundo sólido. Voce aprende a manter, a guardar e a preservar.
  Mas é claro que nem tudo que voce tem em grande quantidade forma uma coleção. Ter milhares de dvds ou de vinis e os escutar não significa que voce é um colecionador. A base da filosofia do colecionismo é a inutilidade aparente da coleção. Um monte de discos de vinil se torna uma coleção quando:
   A- Existe a caça. Voce parte a campo para capturar o item que lhe falta. Não precisa ser um disco que voce queira ouvir, é um disco que voce deve ter para tornar sua coleção completa.
   B- A não completude. Uma coleção é sempre incompleta. Um item pede outro item que remete a um outro item.
   C- O desejo de ter não significa uma vontade de usufruir. Coleções são amostras, ficam em vitrines, são pouco usáveis.
   Já fui colecionador. De discos, de gibis, de carrinhos, e de filmes. Não sou mais. Eu comprava discos para completar coleção, hoje tudo que tenho é para ouvir e não para ter. Todos os meus filmes são assistíveis. No inicio eu ia atrás de tudo que fosse "um item que completa o acervo". Hoje só possuo o que adoro. Quem der uma olhada em minha estante vai estranhar que dentre tantos dvds não exista um só Buñuel ou um mísero Pasolini. Como disse, não é uma coleção.
   As crianças hoje fazem coleções? Não vejo isso acontecer. Bolinhas de gude, botões, figurinhas....cuidadas, preservadas, amadas...não vejo isso.
   Talvez o colecionismo fosse uma reação de um povo industrializado contra a descartabilidade. Guardar era salvar algo do fim, do lixo, do tempo. Penso que hoje tá tudo dominado, a descartabilidade venceu enfim. Se uma criança sente que seu pai, sua mãe e até ele mesmo são intercambiáveis, ele vai criar um vínculo atemporal com o que? O protesto salvacionista que nos fazia guardar uma tampinha de guaraná não faz mais sentido.
    Uma pena. Devíamos colecionar coleções.

VARAIS E PORÕES ( SER CRIANÇA )

Há um tempo na vida em que não existe rumo. Nenhuma regra para seguir e voce pode deixar as coisas seguirem sem razão ou sentido. O modelo não foi criado e o mapa é feito enquanto se viaja. Cada manhã apresenta uma possibilidade, acordar é como beber com sede. Na verdade tudo é impensado e portanto, milagroso. A vida é uma amiga, o que não faz parte dessa amizade não é natural.
Havia então um doce namoro entre eu e meus sonhos. Eu ainda não aprendera que era errado sonhar. Nenhuma teoria me dizia que aquilo podia ser auto-erotismo ou preguiça. Sem culpa, eu amava minha companhia e pensava que viver seria amar cada vez mais. Dava prazeres para mim mesmo. Revistas coloridas, brinquedos que eu inventava e cantos secretos da casa onde me escondia. Todo momento era devaneio, todo detalhe uma descoberta. O espaço dentro de mim era maior que o universo ( mas eu não sabia ).
Tinha certeza de que moravam homens dentro da televisão, ficava olhando a tv por trás para tentar surpreende-los. Assim como acreditava que havia um quarto secreto em casa onde viviam os antigos donos. Quando chovia de madrugada e a água escorria pelas calhas de lata eu ficava acordado para ouvir aquele barulho. Já intuia que podia ser a última chance. O sinal do tempo já nascia.
Mas eu insistia. Cada passo dado no capinzal era o risco de se topar com o desconhecido. E acima das nuvens eu sabia que havia Deus. Meu pai nunca morreria, minha mãe nunca ficaria velha e ser grande era ser igualzinho a meu pai. E todo aquele mato, aqueles cantos de pássaros e os córregos claros seriam sempre como eram então: meus. ( Mas na verdade não eram meus, eram mais que isso, eu sentia que eu pertencia a eles e por eles eu sobreviveria ).
Todo homem vive seu momento de Adão, a queda. A minha ainda estava distante. ( Me dá raiva saber que por mais ateu que eu tenha sido, e lutado orgulhoso para o ser, voce sempre age e sofre como um cristão. )
Debaixo de meus cobertores eu via um mundo e fora do quarto um infinito. A lua entrava em cheio no chão onde eu brincava e de madrugada os cães e os galos cantavam. A manhã era criada pelo rádio de meu pai e o cheiro do café coado. Ele era grande e cheirava a loção de barba.
Se eu tivesse a coragem todo esse mundo voltaria a viver aqui, em mim. Esses quartos e quintais e cheiros moram ignorados no porão que eu não deixei. E sei, cada vez mais, que é impossível ser feliz sem eles comigo vivos. O único sentido é cantar sua existência.
Todas as meninas que amei foram tentativas de recuperar esse espaço. Falhas tentativas. Ninguém pode ir lá comigo, elas já estavam lá, eu é que não sabia.
A roupa que minha mãe lavara estava voando no varal. O sol e o vento, as videiras e o canto que ela cantava. A tartaruga comendo melancia e meu irmão bebendo o mel das flores vermelhas. O começo de se saber é ver que eu sou esse varal, esse sol e esse vento, e saber que tudo está onde sempre esteve e sempre irá estar.
Todo o resto é silêncio.

o japão, o brasil e um outro mundo

Estudei em escola pública até os 13 anos de idade. Meu bairro, o Caxingui, era formado de casas com longos quintais no fundo. Galinhas, coelhos, limoeiros e couves. Toda casa tinha um porão e todo porão tinha um reino de fantasia.
Em minha escola não havia um só negro. Onde eles estavam eu não sei.
O Brasil parecia distante, ficcional, inexistente. Foi sómente aos 12 anos que falei com um brasileiro. Um mulato, Juscelino, filho da empregada de casa. Aliás, devo a Juscelino a descoberta dos quadrinhos da Ebal.
Em minha infancia, todos os meus amigos eram japoneses. Mauricio, Wilson, Donato e Celso. Todos falavam e escreviam japones. Eram filhos de japoneses e suas casas eram atulhadas de bonequinhas, samurais, pinturas do monte Fuji.
Jogava beisebol na rua com eles. Todos tinham bonés azul-marinho e usavam meias tres-quartos branca bem esticada. Riam muito. Os pais adoravam pescar. E pareciam muito unidos.
Assistíamos Nacional Kid. Ultraman. Samurai Kid. Speed Racer e Super Dínamo. Eu era Hawata nas brincadeiras. Eu pensava que todo o Brasil fosse japonês.
Aos poucos foram surgindo alguns italianos para bagunçar tudo. Eu me sentia mal com sua estridencia, sua falta de tato, sua indiscrição. Mas logo meu lado latino acordou, comecei a me soltar, a falar alto, a relaxar.
O Japão se tornou o império de minha infancia.
O Brasil, hoje, não tem mais japoneses. Tem coreanos e chineses. E eles são bem diferentes. Por isso, sempre me emociono ao ver um ancião nipônico andando na rua. Ele é sempre um viúvo. Leva um guarda-chuva e um jornal da colonia. Cheira a sakê. E tem o porte nobre de um ex-imperador.
O Brasil, hoje, é um país estranho para a criança que fui. E o olho com olhar estrangeiro. Me parece muito sensual demais, muito colorido demais, violento demais, latino americano demais.
Sei que parece uma pequena loucura minha. Mas quanta gente de minha geração é assim sem ter a consciencia do porque ?
Na idade adulta conheci os filmes de Kurosawa, Mizoguchi, Ozu, Oshima, Imamura, Ishikawa... foi como voltar a meu país. Foi como reencontrar meu quarto. E Mauricio, Celso, Wilson, Mario...
Portanto, não me fale da distancia do pensamento japones para o brasileiro. Sempre morei entre os dois.
E de forma lógica, aos 12 anos me apaixonei por Sueli e depois por Marc ia... escrevia hai-kais para elas, sem saber que eram hai-kais. E plantava bambús.
Ainda tento encontrar a beleza dos bambús pingando orvalho em manhãs geladas de maio.
Onde encontrar?