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O SENHOR DOS ANÉIS COMPREENDIDO

   Para os gnósticos a Terra é um campo de batalha. O Mal, presente em toda a matéria, é combatido o tempo todo pelo bem, presente no espírito. Egoísmo, crueldade, desejo de poder, ambição, esses os componentes do mal. Coragem, honra, auto-sacrifício, espírito de grupo, esses são os dons com que se combate esse mal. A Guerra acontece, desde sempre e sem tréguas, na Alma de cada Homem.
   Chesterton, com seus amigos C.S.Lewis e Tolkien, fez parte no começo do século XX do movimento de resgate do cristianismo primitivo, corrente essa que tem muito do gnosticismo herege. Quando assisti pela primeira vez a saga do Anel eu nada sabia. Para mim se tratava apenas de mais um pastiche que misturava Star Wars com Excalibur de John Boorman. Eu não sabia que Excalibur e Star Wars é que derivavam de Tolkien. E que Tolkien fazia tamanho sucesso por intuitivamente ir ao cerne de uma necessidade humana: Transcendência.
   Você pode sentir Transcendência em graus variáveis. A maioria passa pela vida sem repetir mais de uma vez. E a primeira é sempre na infância pré-linguagem. Você pode procurar, inconscientemente, essa sensação em filmes, na visão do cosmos, em música ou numa droga. Em viagens de aventura, no Amor, ou até mesmo no sexo ( talvez a forma mais procurada hoje e uma das mais falíveis ). Saiba que por mais material que essa busca seja, o fundo é sempre o mesmo: Liberação do fluxo da vida, livre fluir das imagens e dos sentimentos do espírito, uso de toda a potencialidade que todos sentimos ter. Sim, a religião sempre se propôs a dar essa transcendência. As Igrejas, são a droga sintética dessa busca. Não há receita, não há regra. Cada um que ache seu caminho. O fim é o mesmo: o Bem.
   A Saga do Anel fala disso. Frodo carrega ( como Cristo ), o Mal do Mundo nas costas. Recebe uma missão não desejada, sofre tentações, dúvidas, quase desiste. Mas ele é Bom. E seus discípulos o ajudam.
   Peter Jackson conseguiu fazer um filme cheio de conteúdo e ao mesmo tempo cheio de ação. É uma saga digna de David Lean. Filosófica e com um senso de beleza maravilhoso. E o principal, a obra atingiu em cheio uma necessidade do público, e quando isso ocorre temos o fenômeno, o filme que consegue atingir crianças, adultos, analfabetos e cultos, homens e mulheres. Para quem busca profundidade em filmes filipinos, dinmarqueses ou mexicanos, eis aqui o cinema pop em alto grau cultural. Há muito mais o que pensar e discutir aqui que em toda a obra daquele geniozinho óbvio e plagiador.
   O mal em nós junta hordas escuras e procura fazer de sombra tudo o que nos é mais caro. Cabe a cada um unir forças e os combater. Creia, a luz existe e ela é aquilo que chamamos de inspiração, fé, criatividade, transcendência.

O SENHOR DOS ANÉIS SOB A VISÃO DE UM MEDROSO

  Medo. Esse é um sentimento que conheço bem demais. Medo de morrer, medo de mudar. Amores controláveis, drogas sem perigo, criatividade sob restrição. Medo de perder o controle, medo de pirar, medo de deixar de ser o que se é. Medo de não voltar pra onde estou seguro. Isso posto...
  Lutaram por mim. Foi pela familia, pelo clã, pela fé e pela nação. Coisa conservadora essa, não é? Mas foi assim. Guerras que viraram o rumo da história e que me fizeram ser quem sou, conhecer o que sei. Guerras que preservaram um mundo e aniquilaram um outro. E eu sou a consequência disso tudo. Se os persas tivessem vencido os atenienses...se os mouros tivessem destruído o cristianismo....se Roma perdesse de Cartago...se Hitler tivesse vencido....se a América tivesse sido colonizada pelos vikings...eu não existiria. E nem voce. E quase tudo aquilo que amamos.
   Portanto respeite aqueles que morreram por voce. Isso posto...
   Tenho aniquilado meu medo. E percebo afinal que meu inconsciente quer o meu bem. Mesmo que de um modo que seja um segredo. Um sussurro. Mais que isso, percebo que essa é a grande jornada, para dentro e para fora, ao mesmo tempo e refletindo um no outro. Sabendo que o encontro é sempre assustador. Sabendo que após o medo nasce a verdade e depois a luz. O bem. Lutar pelo bem, pois ele precisa de nossa luta. O mal vive por si-mesmo.
   A idade-média é a época do dominio do insconsciente sobre a razão. Mistura que bem conheço, mistura de medo, glória, luta, miséria e maravilhas. Dentro de nós tudo ainda é medieval. Creio que ainda será por muito tempo.
   Então a razão nega esse tempo. Ignora. Teme. E sempre volta a ele.
   E eu sempre amei tudo o que sou e tenho medo. Meus medos são minhas guias para o que amo de verdade. Posto tudo isso....
   O filme de Peter Jackson e de Tolkien é sobre isso tudo.
   maravilhoso.

HONRA TEU PAI

   Honra dos aristocratas. Daquele que se considera, sempre, melhor que todos os outros. Por ser melhor ele se cobra um tipo de Honra. Por ser superior ele se dava maiores obrigações. Sua honra se media pelo peso das obrigações auto-impostas. Um homem tão superior não pode se permitir ser diminuído. Esse o primeiro fardo, não aceitar uma ofensa, um desaforo. Seu Nome deve ter a Honra intocada. Não se pode dar um só motivo para uma futura desonra.
   Esse aristocrata não deve deixar uma mulher ser desonrada, pois toda a honra feminina em suas terras está sob sua guarda. Assim também com uma criança faminta ou uma viúva nas ruas. Será uma desonra ter mulheres e crianças ao relento, mas não os homens.
   Observe então. como essa Honra é auto-imposta, ela se baseia toda na auto-estima, a Palavra dada adquire um valor tremendo. Palavra dada vale mais que a vida, pois um aristocrata que quebra sua palavra não suporta viver sem sua Honra. Na verdade a Honra vale mais que a vida, pois como Valor ela se faz eterna, é transferida de Pai para filho, se torna o maior bem de uma familia. Morrer Honrado se faz a grande ambição de uma vida, ambição que na verdade não é ambição, é obrigação auto-imposta.
   Honra sem testemunhas, Honra que existe de mim para mim-mesmo.
   A Honra da burguesia passa a ser a honra dos documentos. Ela vale diante da comunidade, deixa de ser íntima. Se torna imposta e muito mais que isso, é um Dever de todos, ricos e pobres. Não é mais a honra da palavra, é a honra dos tribunais. Honra deixa de ser Preservar seu Nome e passa a ser Pagar suas dívidas.
   Veja a diferença: No Aristocrata tudo deve respirar e demonstrar sua Honra. Gestos, roupas, hábitos, tudo, desde sua infância, exibe ao mundo, mas acima de tudo a si-mesmo, sua intocada Honra. Por isso que cuspir na bandeira, dar um tapa no rosto ou blasfemar contra a fmilia se torna a pior das ofensas, sua Honra em seus mais nobres símbolos é naquele momento difamada. Óbvio notar que nada há de democrático aqui. O nobre detém a honra, o plebeu é um vilão. E o pior vilão é o comerciante, desonrado por profissão, pois quem vende se desonra ao esquecer sua dignidade e bajular o comprador. ( Observe como isso sobrevive nos artistas pretensiosos ).
   O honrado burguês parte da ideia comerciária de que ninguém é honrado. A honra deve ser garantida pelo documento escrito e pela lei. Honra que não é mais uma regra de vida, mas apenas uma obrigação para que a sociedade gire, para que negócios se façam.
   O aristocrata vive em Honra e tem momentos grandiosos em que sua Honra se exibe ao mundo. Seu idela seria a de um mundo em que sua Honra fosse sempre posta a prova. O burguês sonha com um mundo onde todos tivessem a mesma honra que a dele, onde sua honra nunca fosse questionada.
   Estamos hoje vivendo um dos raros momentos em que a Honra não mais existe. A aristocrata se foi há muito e a burguesa está em crise e em prova. Daí o barbarismo.
   Este texto escrito por mim foi inspirado por outro de Renato Janine Ribeiro.
   Vale!

MONARQUIA, PAPA E TV.....bééééééééééééééééé.....

   Estamos tendo a chance de fazer um flash-back à época medieval. O Papa Francisco está entre nós. Ele, assim como sua religião, só fazem sentido se vistas sob o ponto de vista pré-Lutero, pré-Calvino. O catolicismo é religião de Uma única verdade, Uma única Terra e um ùnico Líder. O Papa. Tudo que a igreja romana diz fora desse dogma é verniz. Assim como o Islã, também medieval, o catolicismo prega a conversão e a fé única.
   Adoro Dante e Giotto. Talvez ser medieval seja um elogio. Mas em nosso tempinho transitório onde tudo pode ser verdade e nada é mentira, onde todos querem e ninguém se submete, Nada é mais "antigo" que um Papa.
   Ou um herdeiro ao trono inglês. A familia real britânica é bastante "vira-lata". Se a compararmos com a espanhola eles caem a posição de sub-vira-lata. Houve um momento em que a familia real caiu no buraco. Não havia herdeiro. Para que uma familia católica não voltasse ao poder foi importada uma familia alemã, o ramo de primos em segundo grau, os Hannover. Essa a familia real inglesa, alemães. Desde George, pai de Vitória. Ele nem inglês falava. No meu século, o XX, houve até um herdeiro nazista, Eduardo, o irmão do rei gago feito por Colin Firth no Discurso do Rei. Olhar para Andrew é ver um cara de Hamburgo.
   Caramba! Aprendi tudo isso com Paulo Francis e consegui escrever no estilo curto dele. Waaallll....
   Voce já foi ver Da Vinci e Rafael em SP? Não? Então vá! Outra chance só na Itália.
   Andei dando uma geral em séries de TV. Aquelas que "todo mundo" gosta. Todo mundo...hum...alguém fala mal delas? Acho que não pega bem né? Voce pode ser chamado de snob ou de brega, sei lá. Mas que é estranho é. Parece que ninguém se deu ao trabalho de as olhar com padrão elevado. São comparadas a filmes ruins ou a séries antigas que ninguém recorda. Ora, vamos lá! A fotografia continua a ser um lixo. O que mudou é que hoje 90% dos filmes também tem uma fotografia pobre, cheia de closes e cores frias. O que acontece é que esse povo, analfabeto estéticamente, vai comparar essas séries com o que? Outra coisa que se fala: Roteiros do caraca...hum....bons diálogos, é um fato. Mas é só isso. O único mérito é o de durar menos que um filme de cinema. São dez minutos de bons diálogos e o resto se repete na semana que vem.  Também se fala que "grandes atores" migram para a TV. Kevin Bacon? Charlie Sheen? Sigourney Weaver? Hugh Laurie? São todos atores sem mercado em cinema. Vou acreditar nisso quando Brad Pitt, Johnny Depp ou Robert Downey fizerem uma série de TV. Antes dos 60 anos claro.
   Abram os olhos e parem de crer na propaganda. TV continua a ser veículo de anúncios. O anunciante manda. E mesmo a "Meca da Arte", HBO, depende da vontade de suas centenas de donos de ações e dos anunciantes top. Quanto a FOX, Warner e Sony, elas fazem séries como vendem brinquedos, celulares ou tablets, criam um hype e mandam brasa. Tudo que vi nesses meses foram sets mal iluminados, atores falando baixinho, temas que variam entre doenças e serial killers e sempre um personagem neurotiquinho pra fazer tudo cheirar a coisa original. 
   Então tá Jeeves.
   Tem gente que não lê pra poder ver Saramandaia. Tem gente que não assiste sua caixa de Fritz Lang pra poder ver a novela das nove. Tem gente que deixou de ler pra ver as séries da Universal. Tudo a mesma coisa. Só muda a lingua e a iluminação do cenário. Lixo.
   Mas eles foram espertos. Em 1900 a burguesada queria posar de culta e chique. Como dormiam nas óperas de Wagner se criou Puccini para eles. Era ópera e lhes dava a ilusão de serem cultos e chiques. Espertamente a TV faz o mesmo. Vende lixo como se fosse "coisa fina". Puccini. Nem mesmo Rossini, é puro Puccini. Povo e críticos, esses cada vez mais tentando ser simpáticos, correm como ovelhas.
   Béeeeeeeeee.....

A IDADE MÉDIA POR CARPEAUX ( DA HISTÓRIA DA LITERATURA MUNDIAL- OTTO MARIA CARPEAUX )

   Muitos consideram esta a melhor obra já escrita sobre a história da literatura. Em qualquer lingua. Lançada e relançada várias vezes, ela acaba de ser editada mais uma vez, agora em edição popular. Dividiram a obra em dez volumes, cada um deles falando de uma época. Escolho a idade média para começar. E escolho por vários motivos: é o tempo que menos conheço, em 2012 algumas das obras que mais me impactaram são desse período, idade média combina com Natal. O livro, delicioso, foi devorado como rabanada.
   Carpeaux era um gênio. Sabia tudo sobre a cultura humanista. É dele o melhor livro sobre música, e aqui, ao falar sobre poetas e prosadores, ele dá aulas de história, filosofia, arquitetura, religião, politica, música e até sobre armamentos. Dentro dessa erudição, ele jamais se faz dificil, é leitura simples, prazerosa, informal. Ao final da leitura acontece o mesmo que me ocorreu ao fim da História da Música Ocidental: uma enorme vontade de conhecer mais. Sua missão é plenamente alcançada.
   Não existe a idade média, esse é o primeiro mito que Otto derruba. Jamais houve uma época de paz e conformismo. A história do período é história de movimento. Conflitos entre camponeses e donos da terra, entre burgueses e nobres, entre bispos e monges, entre novas seitas e o papa. E em meio a esse turbilhão, uma produção literária que nunca cessou. Epopéias, liricas, prosas, história, lendas, aventuras, teatro, vidas de santos, pregações, panfletos, obras eróticas. Carpeaux analisa a produção de cada gênero, contextualiza no momento politico. Ele leu obras raras, manuscritos, e não teme falar de quais são obras mortas, ilegíveis, e quais são vivas, eternas.
   Não vou ficar aqui citando autores e repetindo frases de Otto. O livro é curto. E é barato. E qualquer leitor sério ficará encantado. O que direi é que ele lança nova luz sobre a época. Falando dos provençais ele não aceita apenas o culto a Virgem como explicação do nascimento do amor. A coisa, claro, passa também pelo culto, mas engloba bem mais. Carpeaux vai atrás das raízes célticas da literatura francesa ( que domina o período ), demonstra a presença bárbara nas letras alemãs, e fala do maior nome do período, Dante Alighieri, autor da Comédia, obra atemporal que se lê hoje como se fosse escrito agora. Dante era filho do único país que não conheceu um período bárbaro, a Itália, a sempre culta e refinada Itália.  E tem muito mais, a decadência da época a partir de 1400 e a vulgarização da guerra ( com a pólvora qualquer um pode lutar, não é preciso saber, ser nobre ), o nascimento da figura do intelectual, os monges pobres que criam a figura do viajante-poeta, a extrema internacionalização da cultura, estudantes em constante movimento entre Bologna, Paris, Cambridge, Toledo. O nascimento dos estilos: as literaturas e as linguas inglesa, espanhola, alemã.... E até dos best-sellers se fala, os livros que se tornaram febre.
   Carpeaux nasceu na Áustria e poderia ter sido famoso em qualquer país, escolheu o Rio. Sorte nossa. Mal posso esperar pelo próximo volume!

A VIRGEM

   Se existe algo na iconografia católica pelo que tenho o maior respeito, é sua simbologia ligada a história da civilização. Voce não precisa ser crente para perceber o valor de um símbolo. Basta ser um iniciado. Existem centenas de ateus que reconhecem  a riqueza do que falo. Vamos aos fatos.
   O catolicismo nasce como corrente patriarcal. Em sua origem, Pai, Filho e Espirito Santo regem toda a fé. Não há´nada de feminino na igreja. Com o correr dos séculos, correntes pagãs começaram a se fazer mais fortes. Sábios esclarecidos logo perceberam que havia algo ali. Por mais que os homens fossem "domesticados" pelo catolicismo, persistia neles um desejo natural, uma ligação com mitos arcaicos, com paganismos que louvavam a mãe-Terra. E foi um movimento popular, e em principio herege, que trouxe o mito da Virgem Maria para o centro do catolicismo. A igreja oficial, em profunda crise, foi obrigada a aceitar esse novo fato ( e até hoje tem dificuladade em aceitar o possível casamento de Jesus ).
   O que isso simboliza? Porque Virgem?
   Ela é a Deusa, a mulher sem homem, capaz da vida, sem mistura. Não há moralismo aqui. Ela simboliza a Terra antes do homem, o mistério da Natureza, que virgem, sem nossa mão de homem, produz vida, produz luz, produz tudo o que há. O culto a virgem é, de forma arcaica, o culto a natureza, a chuva, ao que é sem precisar de nossa ação. O que é Puro. O que está fora do tempo e da corrente do Homem.
   Dái meu profundo respeito. Minha compreensão. E meu entendimento sobre o que Ela significa e de onde ela vem.
   Tem coisas em nosso mundinho fofo que não servem para brincadeiras. Essa é uma delas.

O ROMANCE DE TRISTÃO E ISOLDA- JOSEPH BÉDIER

   Denis de Rougemont, em seu livro sobre o nascimento da paixão, revolução mental ocorrida por volta de 1.100/1.200, cita por várias páginas Tristão e Isolda como o símbolo máximo do que seja a paixão como o Ocidente a entende. Pois bem, finalmente leio sua lenda, em versão do final do século XIX, mas que conserva todo seu medievalismo. O que posso falar? É das coisas mais fortes que já li.
  Tristão desde sempre cresce como um ser marcado. Ele não tem uma familia e é adotado por um rei. Primeiro fato: Nossas recorrentes fantasias de termos sido adotados, de termos um pai "de verdade" em algum lugar. Pois bem, Tristão é triste ( vem daí seu nome ), e vai à Irlanda para trazer ao rei sua noiva, a bela Isolda. Mas os dois, em mero acidente do destino, bebem de uma poção que faz deles apaixonados. Ou seja, eles não são donos de sua paixão, ela é uma armadilha que independe de vontade. Nada pode ser mais modernista que essa ideia. Daí para a frente o que os dois vivem é um eterno sofrimento, "mesmo quando estão juntos". A ideia que Isolda repete sempre, e que é o mote de toda a arte sobre a paixão desde então, é: "Impossível viver sem ele, impossível viver com ele".
  Não pense que temos aqui um simples livro sobre amor proibido ou infidelidade. Não! O rei compreende o amor dos dois, ele ama a Tristão, compartilha de sua dor. O que nos deixa surpresos é que a felicidade dos dois seria simples de alcançar, fácil, sem nada de tortuosa. Mas eles não percebem isso. Ou melhor, não desejam a felicidade. Eles optam sempre pela dor.
  É impressionante como os dois fazem de tudo para serem infelizes. Estão sempre partindo, se separando, tentando vencer a paixão, terminar a relação...e todo o tempo voltam derrotados, se reencontram e são felizes por apenas um ou dois dias, para logo retornar o medo, a dor, o compromisso com o rei e com a sociedade. Tristão irá até mesmo se casar com outra, em vão, e Isolda tentará ser a boa esposa do rei, é derrotada. O destino brinca com os dois e desde o começo eles sabem que somente a morte poderá os unir definitivamente.
  O livro nos coloca no mundo medieval. É um mundo de violência. Se mata muito, cabeças decepadas são exibidas como troféu e dadas como presente. Mas o amor dos dois, apesar de conter sexo, é estranhamente casto. Há algo de etéreo nesse amor, nessa paixão, eles se abraçam e não mais se soltam, dormem nos braços um do outro, vivem em realidade de devaneio, não percebem nada do que fazem um com o outro. Sofrem, e jamais querem terminar com esse sofrimento. Suas separações nunca são separações, são ingredientes que temperam a relação violenta dos dois.
  Acontecem momentos em que a paixão parece morrer. O modo como Tristão sente Isolda quando ela "termina", para quem já passou por isso, é perfeito. Tristão vê e sente Isolda matando o sentimento, nesse momento o livro alcança alturas absurdas. Como é absurdo, e tão verdadeiro, o modo como ele enlouquece e a forma como Isolda não o reconhece. Ele se faz outro, o amor se vai, e ela o vê como um estranho. Mas a paixão volta mais tarde e os subjuga pela última vez.
  Quem já se apaixonou sabe: a paixão é uma forma de morrer. Morte em vida, morremos para tudo o que existe, menos para a própria paixão. Flertamos com a loucura, com a destruição e estamos sempre suspirando de dor e de tristeza. Porém, estranhamente, vivemos. Cada segundo é um segundo sem igual. Cada dia é um "torneio", uma "justa", um acerto de contas. As noites parecem explodir, os dias nunca se repetem, tudo dói e tudo vive.
  Tristão e Isolda viverão enquanto a paixão existir. Enlaçados e com uma espada entre seus corpos, transformados em espinhos, floridos nas manhãs, suspirando.

AQUILO QUE ME MANTÉM DE PÉ. AQUILO QUE CREIO. REI ARTUR E SEUS CAVALEIROS- TOMAS MALORY, O NASCIMENTO DO HERÓI QUE CONHECEMOS

   Após mergulhar nessas teorias e crenças, mundo do diabo, mundo de anjos maus, homens-canibais, humanismo reduzido a pura questão celular, repenso e reavalio aquilo que creio e percebo em meio a tudo isso o que fica, firme, para mim.
   Se a matéria é feita por Mefisto, nossa alma não é. E sei que todo o mal nasce sempre quando as aparências tomam posse das certezas. Tudo o que nasce nas profundezas da alma é verdade. Tudo. Todo o resto é material perecível, mutável e sem valor.
   Se os homens são canibais e apenas a religião consegue reprimir esse impulso em nós, bem, que essa repressão se torne cada vez mais forte e que se transforme em magnífico delirio. Chamarei esse delirio de canção. Faz muito tempo que sei que a repressão às vezes é necessária. Mais que isso, nos define.
   Se todo humanismo irá um dia ser esquecido, e tudo irá se reduzir a um conjunto de células ( há uma lógica nisso pois a história é redução. De filhos de deuses nos tornamos filhos da evolução, de centro da criação somos hoje dejetos e acidente ), se o homem do futuro é simples ser-vivo em funcionamento, cabe a nosso tempo dar vida potente ao que resta do humanismo. Reafirmar os valores do homem. Homem fora da natureza e da biologia. Homem que cria e é cultura.
   Relendo Artur.
   A estupenda revolução que ocorreu nos séculos IX e X. O nascimento do homem como herói. Mas não mais o herói grego. Odisseu era vitima dos deuses. O novo herói é dono de seu caminho. Ele vai atrás das aventuras, elas não são ciladas. Seu objetivo não é o dinheiro, não é a posse de uma dama, não é o troféu. Seu objetivo é ser o mais perfeito cavaleiro. E o que é essa perfeição?
   Perfeição que dominará nossos sonhos por mil anos e que entrará em declinio só agora. Perfeição que vem do valor de nascença. O homem é o lugar onde ele nasce. Defenderá seu nome. Elegerá uma dama e fará dela a rainha de suas ações. Atenção: não existe o fim em casamento. Esse amor, que será cantado e chorado é puro ideal. O cavaleiro sabe que ele não deverá jamais se realizar. E nisso eles foram bem mais sábios que nós. Sabiam que sua realização, sua queda ao mundo real, seria seu fim. O amor é ideal.
   Um cavaleiro deveria ser sempre sincero e só combater quem fosse de sua altura. Defender os fracos e todas as mulheres, ser poeta e músico, saber caçar e viver sempre em movimento. Embrenhar-se em florestas, procurar oponentes, lutar. Manter a palavra, ser fiel, nunca se render.
   Desse modelo vieram todos os nossos heróis. Dos cowboys aos detetives, dos Batmans e Wolverines aos heróis do espaço e poetas estradeiros. Todos os nossos modelos, modelos que começam a morrer mais ou menos de 1970 pra cá, foram criados e nascidos nesse ciclo Bretão, mitos da Bretanha francesa.
   Lógico que poucos foram heróis na vida real. Não é esse seu valor. O que importa é a força que criou esse mito. Um mito heróico que é em tudo opósto ao nosso mito de hoje, que talvez seja o "homem bem sucedido". Poucos são bem sucedidos, mas é esse o modelo que ficará de nosso tempo. Os povos do futuro nos verão idealmente como "homem bem sucedido".
   Essas imagens, Lancelot apaixonado pela esposa do Rei e sofrendo calado; Tristão vivendo isolado e anônimo, enlouquecendo de amor e perdendo a memória; Merlin e sua magia, enterrado vivo numa rocha; Percival e sua inocência, puro de coração e de corpo, errando pelo mundo atrás do Santo Graal, são todas imagens que segundo Jung habitam o inconsciente ocidental, nos dão criação, medos, desejos, doenças e motivação de viver. Todos eles renascem em nossos sonhos, nos filmes que vemos, nas músicas que cantamos, nos livros que lemos. Morgana e seu ódio invejoso, Isolda e seu amor que foge, A Dama do Lago protegendo e inspirando Artur, Guinevere e o triângulo amoroso com Artur e Lancelot. Os gigantes, os combates, os torneios. O confronto dos campeões, as mortes honradas, o perdão.
   O melhor de nosso mundo está todo lá. Tudo o que vale a pena nasce nesse momento. E é nisso que acredito, é isso que me dá toda a força e a minha vida é reafirmação daquele mundo.
   Todo o resto não me interessa.

PARA ONDE FOI TUDO AQUILO?

   Foi no centro da Idade Média. A maior revolução psicológica dos últimos 2000 anos. A mente humana, preparada para essa quebra desde séculos anteriores, tem a última visão de um mundo, e se fecha depois disso. Mas nada do que foi um dia se perde. O mundo que se desvaneceu ( desvaneceu de fato ? ), permanece dando suspiros e pistas, mas viramos nossas costas. Porque? Como?
   A melhor maneira de não ser religioso é sendo um católico. Como a melhor maneira de não ser revolucionário é se filiando a qualquer organização marxista. O melhor modo de não ser poeta é sendo O Poeta. E um modo infalível de não se compreender nada da mente humana é fazendo parte de qualquer associação de "estudo da psique". O agrupamento destrói o auto-conhecimento. O denominador comum desfaz toda chance de originalidade. E originalidade é o único caminho de renovação.
   No meio da era medieval começa a nascer algo parecido com o mundo de agora. Cidades crescem, estradas se fazem, associações comerciais, a religião organizada se torna poder. O espirito se recolhe. Os xamãs se tornam passado ( voltarão e eu direi como ), a lingua da alma, do inconsciente, passa a ser um idioma para poucos. Alguns resistem. Seitas hereges, filósofos herméticos, poetas trovadores. Todos serão devidamente perseguidos. Eis o universo que reprimimos, que ridicularizamos, que sufocamos.
   Na época de Homero toda arte era poesia e todo homem sabia cantar em modo poético. A história, o teatro, a religião e até os discursos eram poemas. O homem nasce como poema. Constatação: sempre que sonhamos poetamos. A lingua de nossa mente profunda é sempre poética. Um homem que queira ler a mente tem necessáriamente de ser um poeta. Um poeta com temor da alma é uma contradição.
   No meio da idade média pegamos toda essa fonte de sabedoria e a reprimimos, transformando-a em paixão. Toda a magia passa a ser depositada em um único altar, o amor de um homem por uma mulher. A diversidade de canais, a exuberãncia lida em toda a vida, torna-se aprisionada em um único foco: A amada. É nela que passamos a crer, é nela que confiamos e é só nela que nos permitimos ser "poetas". Triste realidade. A mágica da vida que existia em cada um de nós, se fez dependente do encontro casual com a musa. Amor artificial, criado como compensação de uma perda irrecuperável, fadado a decepção.
   Porque perdemos o dom de ler a vida. Sabíamos ver todo sinal. Confiávamos em tudo aquilo que vinha do invisível. Não procurávamos explicações, entendíamos. Hoje precisamos de alfabetos codificados por terceiros. E só lemos e entendemos aquilo que nos foi ensinado.
   Mas há algo em nós que não lê e ao mesmo tempo sabe.
   Disse que falaria do xamã.
   O xamã era o ser que recebia dos homens as mensagens e as devolvia como soluções. Interessante observar que nossos "sábios" são todos voltados ao passado. É sábio quem sabe o que foi escrito e feito no passado. E todo nosso avanço nasce desse passado. O extremo dessa ideologia do passado-como-futuro, atinge seu apogeu no século XIX, com Darwin, que explica a vida como evolução determinada pelo passado; Freud, que tenta explicar a mente como organismo determinado pela infãncia; e Marx, que adivinha o futuro com um estudo do passado histórico. Em comum todos têm esse desejo de crer, crer que o passado condiciona completamente o futuro. Mas essa distorção vem de muito antes. É na época medieval que nasce o "homem sábio" como aquele que domina o passado. O xamã nada sabe do passado, numa sociedade xamanica, o futuro nasce do agora, nada tem a ver com o passado, que deve ser morto e esquecido. Quando um xamã recebe do "cliente" uma indagação, ele intui um futuro, sem qualquer compromisso com o que aconteceu antes. Uma sociedade assim não precisa de escrita. O passado deve ser ignorado. Francis Crick diz hoje ( é um neurologista ), que sonhamos para esquecer. O futuro confirma a necessidade xamanica.
   Um dia eu sonhei que uma mulher que eu amava terminava comigo. Sonhei com o diálogo, o local onde ele se dava e as posições em que estávamos. Acordei e contei esse sonho à minha mãe. Na mesma manhã esse diálogo ocorreu com as mesmas palavras, no mesmo local, nas mesmas posições. Minha mente racionalista berra para que eu creia que de certo modo eu dirigi a situação, que sem querer eu provoquei a repetição do sonho. Seria confortável e seguro crer nisso. Seria claro e me sentiria no controle da vida. Mas não teria sido um presságio? A irrupção daquilo que antes era comum nos homens e que hoje é tão raro? Admitir isso faria de minha vida escuridão, força incontrolável, daria a tudo um imenso caráter de mistério. Ou não.
  Tenho estudado o mais absorvente dos assuntos. Vida, morte, espirito, instinto, inefabilidade, crenças. O gnosticismo, um modo de pensamento que permeia todo o mundo moderno. No mundo da hiper-informação, dos super-heróis, da new-age, da cabala, do rock eletrõnico, das drogas, tudo é gnosticismo mal entendido, vulgarizado ao extremo, disneyizado. Mas não se engane. Em cada leitor de Paulo Coelho ou de vampiros teen, em cada jovem que se balança em pseudo-extase, em cada homem que procura luz em astrólogo, psicólogo ou templo, existe a lembrança de uma herança viva, pulsante, pressentida, dentro de nós.
   Harold Bloom diz que essa massa de gnosticismo pop faz com que o verdadeiro gnosticismo se perca para sempre. Prefiro pensar que não. Em meio a massa podem nascer interesses e verdades reais. Essa profusão de eus pode dar em algum tipo de consciência nova e profunda. Conseguimos sair daquele cientificismo baboso do século XIX e de grande parte do XX. Talvez esse encontro mortal com o oriente nos queira dizer algo. Talvez essa caminhada à solidão, que é marca do século XXI, se revele no fim um caminho necessário. Quem sabe?

PS: Muito tenho falado do cientificismo. E um amigo disse que sou um tipo de Thoreau, anti-progresso. Cientificismo não é ciência. Adoro a ciência. Adoro esta tela de PC, adoro o DVD, sou fascinado pela neurologia, adoro todos os remédios que curam ou deixam a vida menos dura. Ciência é aquilo que é sólido, que independe de se crer ou não. Ciência não admite discussão. Ninguém discute o movimento da Terra ou a força da gravidade. Um coração doente não admite discussão. A artéria está bloqueada. O cientificismo depende de fé. Voce acredita naquele chute ou não. Isso eu acho deplorável e bastante ridiculo. Não por eu condenar uma fé ( a vida é um ato de se crer ou não ), mas por eu gargalhar com a pose racional de certas proposições inverificáveis. Cientificistas geralmente condenam as fés que vão contra as que eles defendem. São xiitas. Para eles a verdade é una, a deles e só a deles, que depende 100% de se crer ou não.
Prefiro a mais fantasiosa das teorias. Desde que se saiba "teoria".
Deu pra entender?

OS VISITANTES DA NOITE, FILME DE MARCEL CARNÉ. O AMOR É O QUE?

O Diabo se ressente. Ele odeia vozes de gente e o som dos sinos. Adora o silêncio, o estar só e o fogo.
Um casal chega a um castelo. Estamos em 1400. Esse casal se apresenta como dupla de cantores. E fazem parar o tempo. São dois enviados do Diabo.
Seduzem o dono do castelo. Seduzem a noiva de um barão. Seduzem o barão. Brincam com essa sedução. Tudo vai em seus conformes, mas o amor é um enigma. E é então que o filme cresce.
O diabo usa o amor para o mal. Mas o amor pode vencer o mal. Como entender isso? O amor é um bem ou um mal?
Foi pouco antes do tempo em que o filme se passa que o amor revolucionou a mente dos homens. O amor como o conhecemos, o amor das canções e da renúncia, é criado pelos menestréis e pelos franciscanos. Mas que amor é esse que fez de nós seres obcecados por ele? Ele nos é natural ou foi por nós criado?
Um dos enviados do Diabo se apaixona de verdade. Rompe seu pacto. E o próprio Demo em pessoa vem ao castelo intervir. O Diabo torturará seu enviado, atormentará a jovem donzela. Ele se irrita com esse amor, zomba dele, joga com ele.
Conseguirá vencer. Ou não? Em amor nunca se sabe o que é vitória ou o que seja uma derrota.
Marcel Carné fez aquele que é considerado o maior filme francês do século ( O Boulevard do Crime). Este foi feito três anos antes e tem como em Boulevard, roteiro de Jacques Prévert. O que? Voce não conhece Prévert? Bom...Prévert foi poeta, pintor, músico. Da turma de Picasso, é considerado um dos grandes da França. Ele sabe do que fala. As canções de amor são lindas. E medievais.
Voce pode definir uma posição perante a vida de acordo com suas escolhas em cinema. Scorsese ou Altman. Bergman ou Fellini. Kurosawa ou Ozu. Ford ou Hawks. De Sica ou Rosselini. Truffaut ou Godard. E Carné ou Jean Renoir. Prefiro Marcel Carné. Ele é sempre simbólico. Renoir era realista.
Bergman adorava Carné e bebeu muito neste filme. O Olho do Diabo é sua versão desta obra.
O filme é hiperbólico, teatral, artificial, e tem uma assinatura de esteta. É belo. Adulto.
O que seria esse tal de filme adulto de que tanto falo?
Simples. Ele só será entendido por quem amou de verdade. Por quem já foi um "diabo". Por quem tem algum passado. O filme infantil dispensa qualquer prévia experiência. E qualquer cultura também. O filme adulto pede que voce se erga e vá à ele. O infantil se dá barato.
Pleno de milhares de conexões ( não seria nosso mundo, de solitários silenciosos, um mundo do diabo? ), Os Visitantes da Noite é um grande filme.
E é um alivio voltar a meus velhos clássicos.

A HISTÓRIA DO MAGO MERLIN- FRIEDRICH e DOROTHEA SCHLEGEL, o poder dos contrários

Se Deus fez com que Maria desse à luz a Jesus, então o diabo fertiliza uma virgem e faz com que Merlin nasça. Merlin nasce então para vingar o diabo, mas a força de sua mãe faz com que ele traia seu pai e se volte ao bem. Um ser que conhece o mal e o bem, que sabe ver o futuro e o presente, eis o poder de Merlin.
Criança prodigio, ele logo passa a dar provas de seus dons. Ele sabe tudo e nada lhe escapa. Abandona a mãe e parte, será arquiteto de reinos e de vitórias. Ao fim de sua saga, Merlin cai de amores por Ninyanne, torna-se seu escravo e é trancafiado para sempre em círculo. Ele sabia que ela era seu fim, mesmo assim não pode resistir, entrega-se.
Escrito no século XII, aqui temos uma versão do século XIX em seus começos, obra de casal central do romantismo alemão. Os romanticos viam nessa lenda a recuperação de vitalidade espiritual perdida, um simbolismo sem fim, imagens de sonho. Mas o que essa história significaria para um homem do século XII ?
Até o encontro com a mulher, jamais Merlin se analisa. Ele faz o que deve ser feito, age. É homem que une os contrários: homem e animal, bem e mal, etéreo e sólido. Não pense que nossos antepassados eram tão ingênuos. Sabiam que ninguém voava ou vivia para sempre. Mas ainda não haviam perdido a certeza de que existem coisas que são sem parecer, manifestações que acontecem sem testemunhas, tempo sem relógio. Principalmente, o lugar do homem ainda era central, a dilaceração ainda não acontecera. A vida era o que era, e o homem vivia como deveria viver. O universo era de Deus, e Deus era seu pai. Nesse sistema, o homem reage a vida como se tudo fosse parte de um todo, a compartimentação não existia. Merlin é então uma manifestação desse todo, homem que sabe ler e antecipar esse universo.
Lição mais importante, ele compreende que a paixão é sua perdição, mas jamais ataca ou difama a mulher. Ela cumpre seu papel e cabe a ele cumprir o seu. E é essa paixão que faz com que Merlin se indague, se questione e pela primeira vez olhe para dentro de si. Mas ele crê na vida e sabe que na vida tudo é o que deve ser.
Pequeno livro de eterno saber.

LUIZ FELIPE PONDÉ E EU, MEDIEVAIS OU BARROCOS? ROMÂNTICOS?

Que Pondé é um meu irmão espiritual todos que me lêem sabem. E neste texto de 4 de julho ele só confirma isso. Do cacete!
É hilária a forma como ele chama os "meninos" ( meninos são seres anódinos, felizinhos e fofos, que adoram tudo o que é moderninho e ousadinho ), de "inteligentinhos". Inteligentinhos, devo dizer, é melhor que meninos. Mas, como não sou plagiador, continuarei a chamar esses fãs de festivais de cinema e de festinhas louquinhas de meninos. Afinal, assim como os inteligentinhos, os meninos pensam estar livres da Idade Média. Passam pela vida dormindo em caminhas de seda azul.
Não sei se sou medieval ( para quem não leu, o tema de Pondé é Bernanos, o pecado e a era medieval. Pondé, como eu e Jung, sabe que a idade média é para sempre. Que quanto mais voce a nega e renega, mais ela fica louca e forte em seu sub sub sub ).
E que frases de Pondé!!!!!
A salvação dos meninos é como a salvação da Bela Adormecida.
O pecado é nossa substância.
Dois minutos na companhia de um inteligentinho é morrer de tédio.
A liberdade é um tormento.
O pecado é uma paixão pela aniquilação do ser.
ESSES BONS MOÇOS NADA ENTENDEM DA VIDA, E POR ISSO TIRAM DE NÓS NOSSA ÚNICA DIGNIDADE: A LUTA INTERIOR CONTRA NÓS MESMOS.
Sou um medieval graças a Deus. Não acredito no homem e muito menos em mim mesmo.
Eu sei que sou feito do mal, e voce, inteligentinho, se acha do bem, eis sua miséria. Voce é uma folha de alface, eu sou um réptil.
Todas essas frases estão no texto de Pondé. Mas ele fica ainda mais terrível ao dizer que são os pecados que fazem com que nos conhecemos. Penso eu mais que isso: são eles que nos fazem homens.
A avareza, com seu culto ao dinheiro e ao corpo perfeito ( que Bernanos chama de câncer da alma ); a luxúria e seu culto ao gozo, luxúria que nos faz mudos; ambição que traz a cegueira e a inveja que ao desejar tudo dos outros destrói tudo o que temos. Pecados que são de todos e que os inteligentinhos, belas adormecidas, pensam não ter. Eles pensam que pecado é invenção cristã, culpa inculcada para dominar os outros... tolos meninos, quem já leu textos pré-cristãos sabe que toda civilização tem pecado e castigo.
O que me surpreende é saber que existe gente que nega o pecado. Absurdo sofista, relativismo vazio, síndrome de avestruz! Então não existe pecado? Somos todos seres puramente biológicos sem conceito de moral que vivem numa boa? Ao contrário do que o muito perdido Nietzsche percebia ( queria perceber ), a força não está na amoralidade, a força heróica está na consciência da falha, do pecado e da falta. Ser um bicho nada tem de heróico. E Nietzsche queria apenas isso: absolvição para seus pecados negando o pecado e o castigo. Coisa de menino inteligentinho.
Mas Pondé a horas tantas diz ser niilista. Descrê em tudo, inclusive nele mesmo. Seria então ainda um medieval? Ou esse conflito não faria dele um barroco, época de dúvida e da união de opostos inconciliáveis? O medieval tem certeza em seu pecado, mas crê na igreja e em seu rei. Não seria então Pondé um barroco, com suas dúvidas e medos? Romântico, talvez seja essa a resposta. Um ser solitário e revoltado, uma pedra no caminho dos meninos.
O que me importa é o bem e o mal, a dor e a dádiva, a alma e a carne.
Amor sem preço? Prazer sem dor? Vitória sem dilaceramento? Isso existe?
Sirvo a reis e procuro pelo deus que não conheço ( e duvido ). Creio em palavras medievais como missão, paixão, maldição, azar, benção e abnegação. Se elas, assim como o pecado, são invenções culturais, pouco muda, somos seres de cultura.
Pecadores entre névoas de maldição, almas sombrias divididas entre medo e desejo, heróis lidando com egos ditatoriais, e um Deus, quer exista quer não, regendo as idéias que nos atormentam.
PS: no RODA VIVA de ontem ( dia 4 de julho ) um escritor angolano, jovem, amigo de Mia Couto, cujo nome me fugiu. Em dado momento ele fala do mistério da escrita, da inspiração como posse, mistério..... um entrevistador sorriu e balançou a cabeça. Eis a imagem do inteligentinho ( estéril e beladormecida ), e o artista xamânico/medieval, seu oposto.
Eis tudo.

CELTAS X ROMANOS, UM NÓ GÓRDIO, ARMAND HOOG

Na introdução a edição de PERCEVAL que tenho, há um texto muito bom de Armand Hoog que me fez pensar muito. Vamos ao que ele diz ....
Que poetas e historiadores romanos, falemos a verdade, não emocionam ninguém. Seja epopéia, seja mitologia, tudo o que Roma nos deixou é feito de blá blá blá sem fim. Uma verborragia bela e vazia, fria e indiferente ao que sentimos.
Os contos, poemas e lendas que nos emocionam nascem na idade média em meio aos ditos bárbaros. São eles que nos deixam o que entendemos por "arte que emociona". Mas essa criação ( que tem no ciclo arturiano, nas canções de Rolando, em Tristão e Isolda e Perceval, seu nascimento ) não é pura. Assim como o dia 25 de dezembro é uma união de cristianismo adaptado a comemorações celtas, a arte poética que vem até nós dos tempos medievais, é uma mistura muito natural de mitos bárbaros tingidos com cores cristãs.
E isso se dá de forma natural e lógica. Roma odiava toda religião bárbara. E para os romanos, cristianismo era tão bárbaro ( e incompreensível ) quanto cerimônias vikings. Roma adapta o cristianismo a sua politica quando vê nele a nova força que poderá unir seu império, mas jamais entendeu o que ele fosse. Criaram a politica católica, mas nunca entenderam o que seja religião.
Há uma pobreza espiritual constrangedora no mundo romano. Seus deuses nada possuem de grandioso, nada exigem de transformador. O mundo de Roma é todo voltado para o exterior, para a vida a serviço do estado, da politica e da guerra. Nesse tipo de sociedade, onde tudo o que tem valor passa pelos olhos do outro, a vida interior é muito pobre, a alma confunde-se com a carne e portanto a arte aí produzida é fria, distante, nada visceral. Técnica apurada, e um blá blá blá sem fim.
Enquanto isso os bárbaros produzem uma arte muito mais tosca, sem grande técnica e sem muita elaboração. Mas tudo é pura emoção, abundam acontecimentos, a ação nunca cessa e o mistério, a noite, a fantasia estão sempre presentes. É arte vital.
Até os dias de hoje nós vivemos dentro desse conflito. A ordem romana contra a ebulição celta. Certos períodos de nossa história pendem para nosso lado racional, ambicioso, amante de jogos verbais, o lado romano. Outro momentos vêm o renascimento da luz celta, da arte do sonho, da individuação, do delirio, do frenesi.
Tudo no mundo romano é imperial. Estradas, cidades, exércitos e leis. Roma pensa sempre em expansão, em comunicação, em integrar. O pensamento bárbaro pensa em fortalecer o clã. E cada clã é isolado, fundado por laços de sangue. Roma institui o discurso, o senado, o jogo de poder. O chefe celta é sempre o patriarca, o depositário da história do clã.
Roma luta com legionários. E os legionários são disciplinados. São peça de um todo e nesse imenso organismo ele é anônimo. O exército celta é anarquista. Cada um tenta ser maior que o todo. Todo guerreiro tem seu uniforme particular, sua bandeira, sua honra. ( E escrevendo isto não há como não pensar em porque a Inglaterra venceu França e Espanha em guerras decisivas. A Inglaterra sempre foi a herdeira de Roma, assim como os EUA são hoje. Enquanto os fidalgos espanhóis pensavam em se exibir na batalha e os sires franceses não admitiam obedecer um lider, os soldados ingleses lutavam como operários da guerra, legionários bem treinados e anônimos ).
No vazio espiritual de Roma ( acredite, Roma criou o ateísmo ) se institui o circo. O vazio espiritual é preenchido pela hiper-valorização do corpo. Emoções para os olhos, para os ouvidos. Sexo ocasional, orgias de comida e bebida, carnaval. A violência torna-se espetáculo.
Mas o que dá sentido a vida da civilização romana ? O crescimento sem fim. O que define Roma e lhe dá sentido é a crença em que "tudo leva a Roma", a certeza de que eles são o único povo civilizado, de que são os criadores do futuro. Roma, como uma doença, só existe enquanto cresce. Um povo bárbaro não pensa em termos de crescimento. A guerra é para eles prova de valentia, rixa entre familias. Sua existência é justificada pela própria vida. Eles não se preocupam com futuro ou com certo e errado, tudo o que desejam é ser o que já se é.
Quando irrompe a alta idade média temos o encontro entre a politica romana e o inconsciente bárbaro. A igreja se forma como politica romana, mas cheia de apelos e símbolos celtas. Todas as heresias dentro da igreja são sintoma dessa dualidade. O catolicismo tenta cumprir dois papéis : organizar o mundo real e aplacar a sede religiosa. Nunca consegue.
A sina do mundo ocidental passa a ser essa. Como conciliar em nós essa racionalidade romana e essa febre bárbara que pede mais vida e mais magia ?
Cavaleiros medievais, poetas romanticos, simbolistas, beatnicks e hippies, anarquistas, busca por religiões orientais, tudo é sinal da alma celta que insiste em crer, em criar e em rir. Tudo é essa raiva da conformação romana, da vida em cidade organizada, da vida em função do bem do estado.
Para terminar um adendo :
Se sofremos esse conflito na carne, imagine um africano, recém saído de mundo totalmente bárbaro, às vezes canibal, tribal. Como é sua adaptação a mundo romanizado que nem mesmo nós, antigos celtas, antigos árabes, aceitamos em paz ?

O ROMANCE DO GRAAL - CHRÉTIEN DE TROYES ( O HOMEM DONO DA FELICIDADE )

Chrétien de Troyes escreveu este livro em 1180. França, região de Champagne. Trata-se de centro daquilo que podemos chamar de "REINO DE NOSSO INCONSCIENTE". Rico de símbolos, rico de ação, criatividade exuberante onde tudo pode acontecer e acontece, ler esse livro é experiência de estranhamento : lendo-o nos sentimos em sonho e ao mesmo tempo, aliás como acontece no sonho, tudo nos é magicamente conhecido, é como reencontrar uma verdade perdida. Tudo é surpresa, e tudo é familiar. E lemos como quem sonha e do sonho não deseja acordar.
Uma verdade perdida. É exatamente esse o legado da verdadeira idade média ( aquela que vai de 800 a 1250 ). Para muitos , única época histórica ( ou seja, após a criação da escrita, de 5000 a/c para diante ) em que o homem foi "verdadeiramente sí-mesmo" e portanto, feliz. Não me importa discutir se isso é verdade ou não. Jamais o saberemos. Tudo será imaginação otimista ou dúvida pessimista. O que é fato é que uma sociedade que cria relatos como este só pode ser chamada de saudável. Na época de Chrétien a neurose está ausente e não é dificil entender o porque.
Pouco se teme a morte. Quando hoje, descrentes e sem objetivos maiores, pensamos nas baixas médias de vida daquele tempo, imaginamos ser aquele povo medroso, fanático, triste e fatalista. Não. Para eles, morrer é terrível só se for morte em desgraça, morrer como covarde ou sem a absolvição da igreja. Para eles, suprema, e para nós irrecuperável felicidade, morrer é apenas mudar de condição, transformar-se. Eles temem o inferno, não o morrer.
Outro fato pouco neurótico: as emoções livres. Amigos se beijam ao se encontrar ( na boca ) várias vezes, e ao se abraçar rolam no chão rindo e cantando. Conversam de mãos dadas. Quando feliz, o homem desse tempo rí alto, gesticula, dança e pula. Toda emoção é LIVREMENTE EXPRESSA PELO CORPO QUE VIVE. E na tristeza eles choram, arrancam os cabelos, socam paredes, e desfalecem. Não existe o pensamento de se controlar uma emoção. O homem nobre é aquele que as vive, e quanto maiores elas forem, maior é seu coração.
E o coração é o centro da vida.
O amor é um compromisso conscientemente dado a um símbolo. A mulher é perfeita. É um anjo que dá ao homem o direito de se alçar ao céu. Então podemos pensar que se trata de amor casto. Mas me surpreendo ao ler a quantidade de vezes em que os amantes se cobrem de beijos, de caricias e quantas donzelas se dirigem ao leito do herói para lá dormir. O compromisso é o de se defender a dama, honrá-la de qualquer ofensa, cuidar de seu bem, ser seu CAVALEIRO E ELA SER SUA DAMA. E cabe a dama honrar esse campeão, sendo sua inspiração, o motivo de sua partida ( sim, ele parte por ela ), o objetivo de seu fim.
Mas antes vem a estrada. E toda aventura é uma estrada em que em cada bosque há um perigo ou uma sorte. O livro esgota todo o arsenal de aventuras que até hoje usamos. De damas traiçoeiras a poços sem fundo, de castelos prisão até encantamentos, de rivais mentirosos à reencontros com mães. E a estrada inaugura o tempo. É nesse período que se institue o tempo do ocidente. E esse tempo é uma estrada, um caminho. Adiante para sempre.
Jung bebeu tudo nesta fonte. Ele dizia que o caminho do homem, hoje e sempre, é o caminho da individuação. Tornarmo-nos nós mesmos. Nesta saga, Perceval começa como tolo jovem egoísta e após seu amadurecimento ele tem a "lembrança" de seu nome : SOU PERCEVAL ! Note : ele não ganha um nome, ele o recorda. Nos tornamos individuos não pela graça de outro, mas por nosso mérito. Recordamos aquilo que sempre fomos.
É AQUILO QUE UM DIA SUCEDERÁ AO PLANETA : LEMBRAREMOS O QUE NUNCA DEIXAMOS DE SER.
A aventura mais conhecida de Perceval ( e a que mais intrigava Jung ) era aquela em que ele adentra o reino do Rei Pescador. Rei ferido, aleijado, que não pode mais caçar. Carregado a beira de rio, ele usa anzol e pesca. O que significa cada peixe que ele pega ? Nesse reino há uma lança que sangra e o GRAAL, taça maravilhosa que dá vida e cria o homem. Perceval vê as duas passarem diante de seus olhos, mas se cala e não faz a pergunta que salvaria o Rei Pescador. Ele não pergunta o porque do sangue e para onde vai o graal.
Para vários artistas, psicólogos, poetas, essa imagem é o centro do simbolismo ocidental. A lança, a taça e o rei que pesca.
Perceval depois é hipnotizado por 3 gotas de sangue sobre a neve branca....
Eu poderia então escrever laudas e laudas sobre a riqueza de tudo isso. Mas a fé no símbolo se manifesta pela não explicação de sua força. Que cada um tire dele o que conseguir.
Cito ainda a divisa que norteia o que seria desejável num homem :
BELO, CORAJOSO, MODESTO, SEM AMBIÇÃO E LEAL. E o livro demonstra o quanto se valoriza a beleza física de homem e mulher. A do homem estando ligada a agilidade e rapidez e a beleza feminina a jóias e animais ( olhos de rubis, pele de pérola, corpo de gazela ). Estamos a séculos da valorização da ambição, esperteza e volubilidade. Para eles, ser ambicioso é ser mau, ser esperto é desonrar e ser volúvel é mentir. Não se mata um inimigo inutilmente ( e muitos se tornam amigos ), captura-se esse rival. E não se nega a palavra dada ( e tudo é palavra ). O que se diz ainda tem peso.
Chrétien de Troyes faz aqui a gênese da nobreza. O momento em que o mundo se abre como caminho que leva a aventura, e aventura que nada mais é, que o reconhecimento do símbolo. O recordar-se daquilo que sempre se soube. Perceval, tolo galês que se torna o mais adorado dos cavaleiros ( por ser corajoso, belo e puro ) demonstra a todos nós a via do homem, a saga da Europa e tudo o que perdemos desde então.
A influência deste livro é inescapável.

O AMOR E O OCIDENTE- DENIS DE ROUGEMONT

Porque acreditamos que só a dor ensina? E pensamos que tudo o que vale a pena vem com sofrimento? Porque toda paixão é insolúvel e infeliz? E principalmente, porque amamos essa dor de amor e lembramos com saudade aquela que nos fez mal maior? O que significa viver de verdade? Porque casar e ser feliz não rende filme, livro ou música e sofrer de amor rende admiração e 99% dos romances? De onde vem essa dor?
O homem ser masoquista não responde nada. O instinto de morte também nada diz. Quero saber porque esse instinto ( anti-natural ) existe. Denis de Rougemont, em 1938 lança este livro e em 1957 o revisa. É hoje tese irrefutada. Obrigatório.
Ele começa demonstrando a maior revolução psíquica da história: o século XII, o momento em que o casamento entra em crise e nasce o amor cortês. Primeiro os sintomas:
Antes a paixão era vista como doença, o casamento como a paz, a infidelidade era permitida e o homem se interessava sobretudo por política e guerra. O principal: a sabedoria viria pela vida. Viver era aprender.
A partir do século XII se instaura a crença de que se apaixonar é viver de verdade. O apaixonado é um herói. O casamento se torna a morte da paixão. O homem passa a se interessar por amor e poder e o saber nasce da dor, do sofrimento. Viver de verdade é sofrer e renascer.
Para explicar o porque dessa transformação ( que nada tem de cristã e sim de pagã ), Rougemont nos conta a saga de Tristão e Isolda, nascimento de todo romance e o movimento dos cátaros, irmandade herética que foi aniquilada pela igreja católica.
A saga de Tristão conta a história de cavaleiro que é enviado por rei a terra distante. Lá ele deverá escoltar princesa prometida a seu rei. Caindo vítima de feitiço, os dois se apaixonam, mas não realizam esse amor. Criam motivos para não se amarem e Tristão acaba por se casar com outra mulher, também chamada Isolda. A verdadeira Isolda casa-se com o rei e percebemos que o que os move é o amor ao amor e acima de tudo, UM IMENSO DESEJO DE MORTE. Apaixonados flertam com a morte. Eles enfrentam reis/maridos/noivos/tabús/perigos físicos; apaixonados bebem, tentam se matar, não comem, se desligam da vida, evitam amigos, evitam a família, se jogam. Apaixonados jamais se saciam e se um dia se saciam, MATAM esse sentimento. Tristão, no mágico século XII nos mostra tudo isso. Toda a tradição do romance está lá exposta. Mas, porque foi e é assim?
No tempo de Tristão a igreja cristã ainda lutava por se estabelecer. O casamento, base da sociedade, estava em crise. E seitas heréticas orientais apareciam. O europeu ainda estava próximo do paganismo. E principalmente: as pessoas ainda sabiam o porque de seus símbolos e de suas palavras. Ainda se sabia o porque da paixão e o porque de palavras como agonia, luz, noite, almas gêmeas, sede de corpo, sacrifício e doação.
Os CÁTAROS surgem no sul da França e falam provençal. Logo se espalham pelo norte da Itália e pela Ibéria. Fazem música e poesia. E têm uma visão dualista da vida. A igreja cristã irá os perseguir com furor e nada de seus passos restará. Mas, que ironia, inconscientemente carregamos sua herança. A poesia e a paixão, tal como a conhecemos nasce com eles. Suas imagens sobrevivem em nós, mas de modo cada vez mais pobre, cada vez mais vulgar, pois perdemos a chave de seu significado.
Eles acreditavam que o mundo foi criado por duas entidades. Deus criou o mundo do espírito. Lúcifer o mundo da matéria. Como homens, sentimos um grande desconforto em nosso corpo material e ansiamos de saudades pelo espírito, que vive no céu. A mulher é a guardiã das almas, ela através da maternidade faz nascer o corpo de Lúcifer/material, mas é ela também que pode levar o homem ao reino espiritual.
O amor é Deus, pois é espírito. O mundo é o mal, pois é Lúcifer. Sua igreja passa a se chamar A IGREJA DO AMOR.
Zombam do casamento cristão, pois o casamento abençoa a fornicação, e pregam a castidade, como única forma de amar espiritualmente. Mas fazem sexo carnal, SEM AMOR. Caminham pelas estradas cantando. Instituem a anima: saudade da perfeição.
Fato notável : é nesse tempo, onde a mulher deixa de ser banal e passa a ser mágica, que se modifica o jogo de xadrez. Surge a rainha, peça acima do rei. E nasce também uma crença bem conhecida: o mundo tem milhões de putas e apenas duas puras: a mãe e a amada.
Rougemont nos fala de uma crença da India. Para fazer a paixão nascer, voce deve dormir junto sem fazer sexo, depois beijar sem se tocar, e por fim transar, sem ejacular. Para a paixão se manter viva, sempre alguma coisa deve faltar. Há muito disso no amor cortês.
Com os cátaros, a poesia deixa de ser épica e se torna drama interior.
Para eles o pecado maior, base do casamento, É FAZER SEXO SEM AMOR com a benção da igreja!!! Violação de espírito e de alma. Sexo sem amor é descer ao nível mais material da vida. O bem maior é SEXO COM AMOR, encontro do eu com o outro eu, momento de ver que "eu sou voce". Mas esse momento só pode se dar na exaltação máxima do desejo, após todo um ritual galante, que visa aumentar a paixão, mantê-la. Sexo com amor é momento ápice de vida e entrada no reino noturno da morte, o encontro final com Deus.
Pois bem, essa é toda a criação mística do amor cortês. Cada sentimento e cada gesto tendo um significado profundo. Mas, com o tempo, toda essa mística se perdeu, porém tanto a linguagem como o hábito ficaram. Então sentimos " a agonia", "a dor", "o morrer em vida", "o prazer que dói", sem saber o porque de falarmos isso. Pior, nada tiramos dessa dor. Não mais sabemos para que serve a paixão, nada sabemos do sentido místico da união de espíritos que se unem para morrer.
Rougemont, que cita Freud várias vezes, diz que misticismo não é sublimação de impulso sexual, que arte não é sublimação, ao contrário, o sexo é que é um consolo, uma sublimação de um impulso místico. A vida da alma, ela exista ou não, é muito mais crucial e importante que o simples impulso sexual.
O século XIX, do qual somos ainda filhos obedientes, criou a "sabedoria" de que ser inteligente é REDUZIR O SUPERIOR AO INFERIOR. O significado ao significante, o espírito à matéria, o que é significativo ao que é insignificante. È um movimento que traduz o pensamento burguês: o que não compreendo não pode ter valor. É o ódio burguês ao poeta e ao aristocrata, dois parasitas que nada produzem.
Pois bem, se todo impulso sexual é um impulso rumo a alma, todo erotomaníaco é um MÍSTICO QUE NÃO SABE DE SUA CONDIÇÃO. Sua obssessão sexual, sempre insatisfeita, é uma ansiedade por transcendencia, por vida espiritual, por paixão; paixão que ele não sabe fazer viver, por matá-la todo dia em seu gozo imediato.
Do século XII até nossos dias, a história da paixão é a história do amor cortês cada dia mais profanado. TENTATIVAS CADA VEZ MAIS DESESPERADAS DE EROS SUBSTITUIR A TRANSCENDENCIA MÍSTICA POR UMA INTENSIDADE COMOVIDA.
Frase de La Rochefoulcauld : "Quantos homens se apaixonariam se jamais tivessem ouvido falar do amor?"
Mandamentos da Igreja do Amor:
Descrença na trindade
Alegria resplandescente.
Negação do casamento
Negação da guerra
Anticlericalismo
Vegetarianismo
Igualitarismo
Amor a mulher

Chegamos então a época carnal do homem: o século XVIII, época de luz, de racionalismo, de matéria. O amor se torna encontro de peles, contrato de bens, o flerte é um elaborado jogo de mentiras cujo único objetivo é a posse do corpo.
Mas é preciso SER para poder TER. Tristão tem uma mulher por ser um amante completo. Ele pode ter Isolda. No século XVIII Don Juan é amado por todas as mulheres, mas na verdade não pode ter nenhuma. Ele perdeu o dom do amor e passa a vida na busca, inconsciente, desse poder. Don Juan deixa de ser.
Juan procura a volúpia, Tristão realiza a suprema proeza: permanece casto. Pela não profanação, o amor de Tristão se eterniza e permanece jovem. Don Juan o profana e o mata.
Tristão é livre. Foge das regras, do pecado da carne ( não profana) e da obrigação do casamento. Não é religioso, pois não segue os rituais.
Don Juan está preso a seu instinto. Mais: ele precisa da sociedade para poder aviltá-la. Juan está preso a matéria.
ATENÇÃO! A castidade de Tristão não é a castidade dos padres. Tristão é casto por decisão de nobreza. Ele se dá esse compromisso. A castidade cristã é por imposição moral. Vem de fora.

Após o cínico século iluminista vem o romantismo.
O romantismo, já sem a chave mística do século XII, é sentimental, jamais espiritual. Usam todas as palavras, mas em sentido errado. Perdem a ingenuidade. Sentem que há algo por detrás da paixão, não sabem o que. Morrem ( literalmente ) pela amada, não pela alma.
Stendhal surge como o primeiro homem realmente moderno. Sente o vazio e o desejo de amar. Mas sua razão lhe diz que tudo é corpo, tudo é um DESEJO DO FÍSICO. Ele vive na angústia de ter de JUSTIFICAR RACIONALMENTE AQUILO QUE NÃO É RACIONAL.
Dá-se a invasão de romances, filmes, melodias de amor. Mas é um amor profanado, pobre, sem significado, vazio de mito, fadado a angústia do vazio.
Esse doce romantismo trai mais um desejo burguês: O DESEJO DE SE TER SEM SE PAGAR. Passamos a querer amor, mas sem abrir mão de nada, sem risco algum, sem morte.

Rougemont passa então a fazer algo que me deixou espantado: faz o paralelo entre a guerra e a paixão. E demonstra que o modo de se fazer a guerra sempre reflete a sociedade que a faz e a paixão que a inspira.
No século XII a guerra era ritual. Cavaleiros marcavam local e data para resolver a batalha. Não se lutava por um país. Lutava-se por um líder. Cada guerreiro tinha seu traje e seu brasão. Seu valor estava em sua alma: habilidade, fé e nobreza.
No século XIV a guerra se torna um negócio. Guerras são resolvidas por embaixadores. Soldados são comprados e às vezes a guerra se resolve so se comprar o exército inimigo. Há um horror pela morte: tenta-se matar o mínimo possível. Essa forma de guerrear termina com o canhão. Arma que é considerada covarde e imoral. Arma que torna o combate inútil.
No racional século XVIII se civiliza a guerra. Táticas, cidades abertas que não podem ser atacadas, movimentos matemáticos de tropas, campos de batalha escolhidos por seu bom ar, regras de captura. Até então o objetivo de toda guerra é a captura do chefe inimigo.
A partir da Primeira Guerra o objetivo deixa de ser capturar o chefe rival ou adquirir território. O objetivo é DESTRUIR COMPLETAMENTE O INIMIGO. Toda regra é jogada ao lixo. O soldado torna-se máquina de matar e resto de batalha. Não se deseja vencer para ter, deseja-se destruir.
Toda a evolução do modo de se ver e fazer a guerra acompanha toda a relação do homem com sua paixão. Desde a guerra como ideal nobre e de fidelidade, passando pela guerra como exercício de elegancia racional, até a GUERRA EXERCIDA SEM QUALQUER SIMBOLISMO. Apenas a captura e destruição do oposto.

Já na parte final do livro, Rougemont faz uma jogada de mestre ao defender o casamento!!!!
Como? Mas ele não demonstrou a verdade simbólica da paixão? Sim. Ele passa 3/4 do livro nos seduzindo com a beleza da paixão e da cortesia. Mas ele é inteligente demais para não perceber que essa paixão, CHEIA DE SIGNIFICADO, é irrecuperável. Jamais poderemos voltar à paixão como encontro com a morte gloriosa. Essa paixão hoje é apenas um impulso desprovido de sentido. Perdeu-se seu código, e isso está morto e esquecido. Para sempre.
Rougemont passa a dizer então o que realmente significa o casamento.

O cristianismo surge como única religião que se propõe a viver o real.
Esse é o milagre do cristão. O mundo real não é a ilusão de que fala o budismo e nem o mal de que falam os cátaros e os orientais. Não é mundo de fadas como dizem os celtas. E mais que isso, o mundo real é criação de Deus.
Pois então é a religião cristã, e só ela ( e é fácil verificar isso ) que pressupõe o crescimento da ciência e da tecnologia. Se Deus criou a matéria, cabe a nós nos interessarmos por ela, amá-la e aperfeiçoá-la. Ao contrário do Grego, que estudava o real com interesse frio, o cristão ama o real como parte de Deus. Seu semelhante torna-se parte também desse Deus, e é então no cristianismo que surge um conceito que SUBSTITUE A PAIXÃO: A COMPAIXÃO. Ao contrário da paixão que só enxerga o ser amado, a compaixão vê o todo, e ao contrário da paixão que pensa estar a felicidade apenas na morte com o amor, na compaixão a felicidade pode estar aqui e a salvação pode ser agora.
O casamento é então um estar junto em compaixão. Um caminhar no mundo real, um tentar se adaptar ao mundo verdadeiro. Servir e se apacientar.
Se para o cortês se apaixonar é morrer dia a dia ( em felicidade trágica ), para o cristão, amar é viver. Se o compromisso da paixão é com a amada e mais ninguém, o compromisso do casamento é com este mundo.
O casamento é uma escolha.
A paixão é um feitiço.
Não há melhor definição da diferença entre o paganismo e o cristianismo.

Rougemont ainda discorre sobre Wagner e o ponto máximo da paixão em música, do amor de Romeu e Julieta e dos poetas alemães.
Livro indispensável para quem pensa em amor e paixão, para quem já amou com Eros e com Ágape, para quem, como eu, já morreu de paixão pagã e já amou de ágape cristã ( mesmo não o sabendo ).
Um clássico.

O LEÃO NO INVERNO - ANTHONY HARVEY

Existem várias maneiras de se assistir este brilhante filme inglês. A política, a estética e a psicológica. Usufruir das três é ter um sorriso no rosto durante as duas horas e meia do filme.
A política.
O filme conta o dia de natal de 1183 em que Henrique, rei inglês, dono de metade da França, tentou decidir com quem ficaria seu reino. Ele apóia John, filho idiota e repugnante, mas sua mulher, Elinor, apóia Ricardo, uma máquina guerreira. Há ainda Geoffrey, filho ignorado e talvez o mais inteligente e Philipe, rei da França em visita ao castelo. Peter O'Toole faz Henry, Kate Hepburn é a rainha e Richard é Anthony Hopkins. Timothy Dalton faz Philipe. O rei mantém uma amante, exibida diante de todos, e trancafia a esposa num castelo durante dez anos. Eis o geral. Parece Shakespeare, mas felizmente, nunca tenta ser. O que vemos é uma feroz briga de cães. Agressões sobre agressões, mas que brilhantemente, sempre se encerram com uma frase de humor. O filme é drama medieval, mas com a ironia do século XX.
É o momento chave em que a monarquia se afirma na Inglaterra, o momento em que Henry dá as diretrizes do modo britânico de domínio e de guerra ( ele chega a dizer que ele é o inventor da guerra ). E vemos, deliciados, o quanto já fomos grandes.
De Shakespeare o filme consegue o efeito de nos fazer testemunhas do imenso universo que há no homem. Henry não quer, ele ansia. A rainha não trama, ela é diabólica. Tudo é inteiro, não existem meias emoções, o espírito humano está completamente livre. O roteiro de James Goldman, baseado em peça sua, tem diálogos que nos deixam sem fôlego. Jamais sabemos quem fala a verdade, quem está sendo leal, se as lágrimas são sinceras. Todos jogam, todo o tempo.
Estéticamente o filme é imbatível.
Começando com a trilha sonora de John Barry, uma das melhores e mais famosas do cinema. Barry foi um gênio, suas centenas de trilhas o provam. Aqui ele se supera. È música medieval e bárbara. Sublime. Mas há mais. Vemos a real arquitetura da época. O rei parece um mendigo, o castelo é frio e fétido, as tropas são pequenas e desorganizadas. Estamos longe da bela Itália e o rei francês é modelo de cortesia e educação, Henry perto dele é um bárbaro.
A fotografia é de Douglas Slocombe. A cena da rainha cruzando o lago justifica sua carreira.
Quanto aos atores... Kate ganhou seu terceiro Oscar aqui. Merecido ? Ora. Ela mereceria todos os Oscars da história. Sua superioridade sobre qualquer atriz de qualquer tempo é total. A rainha que ela faz é a mais triste das criaturas. Kate consegue passar a dor de uma mulher que envelheceu e perdeu seu amor. Ao mesmo tempo ela é má, mentirosa, jogadora, e começamos a duvidar de seu sentimento. Há uma cena em que ela se olha no espelho que é, talvez, o melhor momento de uma atriz já filmado. Só Falconetti em Joana D'Arc lhe chega perto.
Peter O'Toole perdeu mais um Oscar aqui. Para Cliff Robertson ( Pode ? ). O papel é o mesmo que ele havia feito em Beckett. Só que naquele filme era Henry jovem, aqui é o Henry aos 50. O que dizer dele ? Nos apaixonamos por seu rei. Olhamos fascinados seu descaramento, sua violência, seu gênio e no final, sua suprema decepção. Peter torna-se um sol. Uma aula para todo ator. Carisma puro, bem treinado, como só atores treinados em Shakespeare possuem.
Para voce sentir o clima do filme conto uma cena : o rei quer ir à Roma, anular seu casamento. A rainha o ameaça com a morte. Os dois discutem, se ofendem, são humilhados e ele parte. Kate, genialmente, diz ao final : - Qual a família que não tem seus altos e baixos ?
Por que não se fazem mais filmes assim ? Por que nossos filmes históricos não passam hoje de um enfadonho desfile de modas e a única questão é : quem ficará com a pobre mocinha ?
Creio que o principal é o completo desconhecimento de história e de estética. Mas talvez seja ainda pior. A incapacidade de se entender diálogos complexos e brilhantes. Uma pena.... Daniel Day Lewis, Meryl Streep, Susan Sarandon, Kevin Kline morrerão sem papéis como estes.
Em 1968 ele concorreu a montes de Oscars. Ganhou 3. Merecia mais.
Psicologia.
O filme trata do embate entre o princípio da pura masculinidade e da pura feminilidade. Trata da briga por atenção nas famílias. Trata do incivilizado tornado civilizado. Da dor de se precisar ser livre. E tem a exposição de almas desnudas, suas injustiças, seu egoísmo, seu medo.
Termino contando mais uma cena : Henry diz que após o natal a rainha voltará a seu cativeiro. Kate derrama uma lágrima discreta e diz que não há dor maior que a de se conhecer o mundo, a liberdade e perder todo esse mundo.
O filme é sobre isso. O cinema hoje vive esse dilema. Nós somos essa rainha.
Que Deus nos proteja e que Henry seja clemente.
O Leão no Inverno somos todos nós. Este é o inverno de nossa coragem.