Mostrando postagens com marcador anos 70. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador anos 70. Mostrar todas as postagens

FUNK NA HOUSE E OS GRANDES SONS

   Não me lembro se foi Nelson Motta, mas alguém disse que o grande mal do RAP foi quebrar a tradição do negro americano de estudar e ser um grande músico. Estudar jazz e blues e usar seu swing natural. Se foi Nelson ele errou. Os USA continuam produzindo bons músicos às centenas, o que ocorre é que eles hoje têm pouco destaque. E a culpa não é do RAP, é da tecnologia. Os meios digitais criaram já duas gerações que não apreciam o som. Eles ouvem, mas não usufruem. ´Na internet a qualidade do som é sofrível e as gravações atuais não têm mais o refinamento e a equalização do auge da técnica de produção de discos, 1970-1980. Foi o período dos grandes produtores de discos e dos super engenheiros de som. Tom Dowd, Roy Thomas Baker, Alan Parsons, Chris Thomas, Ted Templeman, Gus Dudgeon, Jimmy Miller, Brian Eno, Tony Visconti, Martin Birch, Glyn Johns, a lista não acaba.
   Kool and The Gang é uma das grandes bandas de 1973. Baixo, guitarra, teclados, trompete, saxofone, todos formados na tradição do jazz. Do hard jazz. Lançado no auge do movimento negro, este LP catapultou a banda para a parada dos brancos e vendeu como doghnuts. Aqui no Brasil, este que cá escreve, ainda criança, se lembra de ouvir duas das faixas tocarem insistentemente na rádio Difusora. Uma delas inclusive entrou na novela das oito. Funky Stuff abre a coisa em nível estratosférico. É funk que ensina o que é funk. É aquilo que faz Flea sorrir. O baixo pula e vai na frente e os metais, doces metais, correm atrás. A música faz a alma subir aos céus. E o corpo goza entre requebros das cadeiras e murmúrios de alcova. É febre na pelvis baby. Mas tem mais e a próxima todo mundo saca: Jungle Boogie não é a melhor do LP, mas tava no Pulp Fiction então OK. Depois vem o auge do creme: Hollywood Swingin é um dos melhores funks do mundo preto. É desfile de sangue e fogo e balanço de bunda lelê. Se voce não gostar, esquece. Você é 100% alma branca. Vai ouvir valsa vienense. Valsa é legal. Mas não é Kool. E nem Gang.
  Heaven at Once é moleque falando com tio. Eles falam do mundo e a banda toca de fundo. É viagem em selva sem Tarzan. É meditação de bamba. Hora de This is You This is Me. Tira esse corpo pra pular e sacode as juntas dos ossos. A bateria se mostra: ela é do balacobaco. Os metais repercutem. É uma sacanagem na orelha. Life is What you Make It é mais funk na veia imaterial. Voce já percebeu: é um dos grandes discos do grande ano da black music. É Marvin, é Al e é Stevie. O'Jays e Brass Construction. Commodores e Sly.
  Fecha com Wild and Peaceful. Ora vejam só! MPB! Uma levada de MPB !!!! Instrumental à Hermeto e Airto. Laço de fita que amarra o presente. Esses caras tocavam com fé. E a faca amolada na boca.
  O LP se chama WILD AND PEACEFUL e a banda é KOOL AND THE GANG.
  Ouve já.
 

MEU NOME É COOGAN

   Assista este filme. Feito por Don Siegel em 1968, é, além de um ótimo filme policial, uma crônica sobre um tipo de sociedade que se estabeleceu no mundo desde então.
   Clint Eastwood é um sheriff que vive à vontade no Arizona. Mas ao cometer um erro, transar ´com uma mulher casada no horário de trabalho, é transferido para New York. Vestido como um cowboy chique dos anos de 1960, ele entra em choque e aprende tudo sobre a nova época, o tempo dos então hippies e que hoje seriam nossos jovens antenados de 2020.
  Primeira imensa surpresa: Já está tudo lá. O que vemos agora no enfrentamento Trump X Esquerda, está explícito no mundo da NY de 68. Drogas, sexo gay, feministas, tudo está nas ruas, tudo entra em conflito com o aturdido sheriff. Esperto, ele se aproveita do que aquele mundo pode lhe oferecer, tem uma noite de sexo com uma hippie, mas nunca deixa de ser o que ele é: um homem dos anos 50. O filme mostra que a lei já é relativa, os direitos são imperativos, e todo jovem se acha superior à qualquer ordem simplesmente por ser jovem. Mas vamos falar de cinema...
  O filme tem diálogos, muitos diálogos. E eles nunca são chatos. E jamais tentam ser brilhantes. Os personagens falam porque na vida nós falamos muito. É um filme de ação, mas a ação só aparece quando há um motivo construído para ela acontecer. Nada é gratuito. Don Siegel, grande diretor que só se tornou famoso em seus últimos dez anos de vida ( teve uma carreira de mais de 30 anos de filmes ), dirige sem afetação. Ele narra. Com imagens. E o filme não tem uma só cena que não seja parte da linha narrativa. Quanto à Eastwood...bem...ele acabara de voltar da Italia e começa aqui seu estrelato nos EUA. O resto do mundo já o conhecia. Nos EUA era ainda o canastrão da TV. Ele está perfeito. Impecável é a palavra.
  Aproveitei para rever no dia seguinte DIRTY HARRY. Mesmo diretor, mesmo ator, mesmo tema. Mas agora a cidade é San Francisco e o ano é 1971. Três anos mais tarde, a violência aumenta e o personagem, Harry Callahan é um cowboy que nasceu na cidade, é muito mais amargo. Dirty Harry inaugura tudo que se fez depois em filmes policiais. Em sua época nunca ninguém tinha pensado em botar na tela tudo o que lá se exibe: a figura do tira solitário, a ação como centro do roteiro e não mais o diálogo, um herói antipático, a completa ausência de cenas de alívio cômico, a pistola como peça de fetiche. Tudo criado neste soberbo filme, crônica brilhante sobre o conflito insolúvel entre a moral e a lei, a vingança e a bondade.
  Em ambos os filmes deve se dar valor à trilha sonora de Lalo Schiffrin. Não existem mais trilhas assim. Jazz e funk, sinfonia e Pop, horror e silêncios...gênio.

ATENÇÃO! ESTE TEXTO TEM PALAVRÕES E É BASTANTE BURRO

   Uma das coisas que mais fodeu minha adolescência foi eu ter metido na cabeça que minha mente era uma grande coisa. Já aos 14 anos me tornei um pretensioso fake. Então, para manter essa auto estima besta em dia, passei a ler e seguir críticos de cinema e de música. Era a década de 70, e se voce acha que intelectuais são, em 2020, doutrinadores, é porque voce não viveu em 1977. Para esses críticos de 77, fazer sucesso era sempre imperdoável e ser apolítico era prova de fascismo. É por isso que voce, jovem deste milênio, se surpreende ao saber que Pasolini ou Bertolucci eram tão endeusados. Assim como Costa-Gavras e Goddard, seus grandes méritos eram ser de esquerda, bem de esquerda, mega de esquerda, e jamais terem grande bilheteria ( Bertolucci começou a ser mal falado quando fez sucesso com o Tango em Paris ). Diretores que ousavam falar mal dessa turma politizada, gente como Huston, Hawks e McCarey, eram logo taxados de direitistas, alienados e vendidos.
  No rock era a mesma coisa. E então, lá estava eu, ingênuo e quase criança ainda, lendo os críticos, e me obrigando a gostar de tudo o que eles elogiavam. Eu me via como um cara especial, superior, então eu tinha a obrigação de amar Cassavetes e de abominar um simples filme divertido e bem feito. Como eu dizia, no rock a gente, se era inteligente, tinha de amar Leonard Cohen e Carole King, Joni Mitchell e Bob Dylan. Ok, eles até que são legais às vezes, mas eu tinha de ouvir só eles. E pior que tudo, eu era convencido a odiar com todas as forças todo rock que fosse apenas diversão. Ou adrenalina.
  Aerosmith, AC DC, Judas Priest, e acima de tudo, Black Sabbath, eram chamados de rock analfabeto. Era sub música, sub letras, sub público e sub tudo. O Led Zeppelin logo fugiu dessa turma, por isso Plant e Page sempre davam um jeito de falar que não faziam parte do hard rock ou do heavy metal. Infelizmente o Led nunca mais quis fazer um outro Led Zeppelin II para não correr o risco de ser comparado ao Deep Purple, a mais burra das bandas segundo a crítica in.
  Foi então que me fodi. Parei de ver rock como diversão e sim como educação.
  Graças aos tempos, hoje o rock está tão ao canto que todos podem escutar o que quiser sem sofrer grandes pressões. Hoje até o Queen é levado em conta. Em 1978 era uma banda da direita nojenta. Arre!
  Escrevo tudo isto só pra dizer que SABBATH BLOODY SABBATH, disco que me proibi de continuar ouvindo em 1977, ao descobrir que era ruim e burro segundo a crítica, é um disco perfeito. Sim, perfeito, com riffs inesquecíveis e criativo ao extremo. Sabra Cadabbra e Looking for Today são diferentes de tudo que se fazia então, criam um novo som. A banda de Tony Iommi estava sozinha nesse estilo. E eu amava esse disco até aprender que ele era ruim.
  Oh God!
  Não há uma só faixa pobre e voce o escuta numa levada só, sem quedas e sem decepções. Melhor que os mais respeitados em seu tempo Pink Floyd e Neil Young.
  Acredite, uma das piores coisas da vida é receber uma educação torta. Não receber educação nenhuma é menos nocivo. Hoje não há mais uma educação musical ativa. Em 1977 quem escrevia no JT ou na POP era a única opinião. Então era a verdade incontestável. Pobre Ozzy que não tinha uma só voz ao seu lado! Apenas o fãs...mas eles eram analfabetos, não contavam.
  Vou ouvir o disco de novo.

Adam's Apple - Aerosmith - By DLSS84



leia e escreva já!

VOCÊ É AQUILO QUE VOCÊ LÊ, OU PORQUÊ EM 1975 A MELHOR COISA DO ROCK NÃO ERA PATTI SMITH MAS FAZIA DE CONTA QUE ERA.

   Ana Maria Bahiana. José Emilio Rondeau. Pepe Escobar. E Zeca Jagger ( Ezequiel Neves ). Zeca era o melhor. E eu amava o cara. Mas, Jeca que eu era, algo em mim, inseguro pra caramba, queria ser alta classe-intelectual. Então os outros críticos me diziam: O rock tá um lixo e só Patti Smith conta. Patti e Bruce. Mas muito mais Patti. Nos anos seguintes eles diriam que o Clash era a maior banda da história do rock e que Stones, Led, Dylan estava mortos e esquecidos. Bem....eu acreditei neles. Eu queria ser chique. Então me obrigava a escutar o que eles achavam relevante: Talking Heads. Gang of Four. Elvis Costello. Clash Clash e Clash.
 Zeca elogiava esses caras. Mas ele dizia, só ele, que os Stones estavam vivos e bem. Lendo os críticos cabeça, eu achava que o Led vendia uns 2000 discos e olhe lá. E que as paradas eram dominadas pelo Joy Division e Bow Wow Wow. Minha cabeça tava feita. Muito bem formatada.
 Bem mais tarde eu me informei melhor e vi que entre 1975 e 1980 o que mais vendia na Inglaterra era Queen e Iron Maiden, Dire Straits e bandas de ska. Elton John e das mais novas, The Police. Tudo o que eles mais desprezavam. E diziam, forçando a barra, que estavam no gelo, esquecidas. Estranhei quando em 1981 fui no Morumbi e vi 100 mil pessoas delirando com Freddie Mercury. Mas, eles tinha a resposta pronta: só no Brasil atrasado o Queen enchia estádio. Deus, quanta mentira! No Rock in Rio falaram que só aqui Iron e AC DC existiam. É 2020 e eles ainda lotam arenas. Já Nina Hagen e B 52s...por onde andarão?
 Fui enganado. Muita gente foi. Nos tempos pré internet, um jornalista era a lei. E se ele queria nos fazer crer que Bob Dylan já era ( em 1978 ), a gente engolia como fato. Elton John tava esquecido pelos fãs e relevante era Boy George. Pois é...
 Escrevo isso após ouvir de novo Toys in The Attic e dizer aqui e agora, sem vergonha nenhuma, que em 1975 o Aerosmith tinha lançado um disco perfeito. Toys não tem uma só faixa menos que ótima e em 2020 continua a ser um sincero convite à alegria, ao sexo e a sacanagem geral. Como diria Zeca, é descaralhante. Os críticos metidos nem se deram ao trabalho de ouvir. Estavam desvendando Van der Graaf Generator e Warren Zevon. Enquanto isso Joe Perry detonava riffs perfeitos e Tyler esburacava mentes e cinturas. E vendiam toneladas. Em 1975 era Aerosmith nos USA e Queen nos UK. Mas fazia de conta que não.
 O tempo mostra a verdade. 45 anos depois você sabe de quem o mundo lembra.
 PS: a melhor banda de 1975 era o Roxy Music. Os tais críticos nunca falaram do Roxy. Zeca sim. Uma crítica dele no Jornal da Tarde mudou minha vida.

UM FILME RELEMBRANDO UM PASSADO QUE NUNCA HOUVE

   Pra muita gente nos EUA, o melhor filme de Richard Linklater é ainda o primeiro que ele dirigiu, este DAZED AND CONFUSED. Eu o vi pela primeira vez em 1998, na TV. Me causou espanto um filme tão despojado conseguir me seduzir. O tema é simples ao extremo, fala do último dia de aula de um grupo de alunos em 1976. Mas, ao contrário do que se espera, não é mais um filme piada, sobre jovens tarados ou nerds azarados. Ele procura ser "vida real". Não é engraçado, mas também não é drama.
  Revi este filme mais duas vezes já neste século. Sempre gostei. Muito. E ontem, mais uma vez, visitei aquele grupo de jovens. Estranho eu nunca ter notado o que notei ontem...
  O filme se passa no dia 28 de maio de 1976. A trilha sonora, excelente, tem Foghat, Alice Cooper, War, Dr. John, Kiss, Aerosmith ( era a nova banda do momento ) e um soberbo etc. As roupas são corretas: jeans muito justos com bocas muito largas, camisetas curtas, cabelos sem corte. Os carros estão lá: Fords e Chevys imensos. Mas...NÃO É UM FILME SOBRE 1976. É UM FILME SOBRE OS ANOS 90. Assim como o último filme de Tarantino se passa em 1968, mas fala sobre 2019, este filme de Linklater, visto hoje, nos dá saudade de 1995 e nos transporta ao dia 26 de maio de....1996.
  Quando ele começa eu logo penso: Não estou gostando mais deste filme...1976 não era assim...não havia tanta maconha...as pessoas não eram tão politicamente corretas....as gírias eram outras...e esses atores são velhos demais para esses papeis!!!
  Sinto um certo desconforto. Tudo parece fake. Isso dura cerca de 15 minutos, mas então a poesia seca do filme reaparece, e eu volto a gostar do que vejo. O filme é tão banal, tão simples, tão sincero, que não há como não se deixar pegar. Mas um novo ponto de vista se instaura: Por mais que Linklater queira falar sobre 1976, ele está nos anos 90. Não há como situar-se lá outra vez. E se vemos filmes realmente feitos em 76 vemos que nada se parece com Dazed and Confused. Há aqui a consciência de se estar em 90. Olha-se para 76 com um carinho que em 1976 não havia. Peter Frampton era brega. Era odiado. Hoje ele é cool.
  O filme é bom. É ótimo. É o American Graffitti da sua época. Os caras bebem cerveja. Beijam. Andam de carro. E fumam maconha. Ben Affleck, Mila Jovovich, Parker Posey aparecem no filme. Mas quem o rouba é Mathew McConaughey. Voce ouve ele falar "All Right", é basicamente sua única fala, e sente que uma estrela nasce ali. Ele faz o papel do cara que largou a escola pra trabalhar. Mega cool, é um texano que jamais fica nervoso e nunca tem pressa. Vence no bilhar e ganha as meninas. Mas parece não estar nem aí pra nada.
  Os anos 90 foram uma tentativa, feita por uma geração nascida entre 1962-1972, de reviver a década de 70. Tanto o rock de Seattle, como as bandas inglesas tipo Supergrass ou Blur, procuravam recuperar aquilo que eles imaginavam ter sido a década do hedonismo. Filmes de caras como Soderberg ou Tarantino bebiam na fonte do cinema B de 1971. Revisto ou escutado hoje, nada dos anos 90 lembra os anos 70. Nem mesmo o Aerosmith de 1998 se parece com o Aerosmith de 1978.
  Dazed and Confused é uma das mais bonitas tentativas de dar vida a um tempo que só existiu na imaginação saudosista. Os anos 70 são Tony Manero entrando numa disco. E se esse personagem de John Travolta for visto como cômico ou heroico...bem...é sinal de que a coisa se perdeu.

O ÚLTIMO GOLPE - UM FILME DE MICHAEL CIMINO COM CLINT EASTWOOD E JEFF BRIDGES.

   Em 1978 Michael Cimino se tornou o diretor mais importante dos EUA. Graças ao sucesso total de The Deer Hunter. Em 1980 ele era um falido. Obra de Heavens Gate, o filme que é ainda o maior fracasso financeiro da história do cinema. Esse filme faliu a United Artists, a produtora fundada por Chaplin nos anos 20. Thunderbolt and Lightfoot, aqui chamado "O Ultimo Golpe", foi o primeiro filme de Cimino, feito em 1974. Clint produziu e estrelou. É um grande filme.
  O cinema dos anos 70 tem como diferencial o fato de não focar a história. O foco do filme típico da época é na personalidade dos personagens. Filmes como The Godfather, Cabaret ou mesmo Tubarão, são observações sobre pessoas, o que as motiva e o que as amedronta. A ação é toda construída para mostrar mais uma fatia da alma do personagem. Hoje a ação é construída para produzir emoção. A personalidade do personagem é somente aquilo que nós imaginamos que ele seja. Isso pouco importa, o filme é o movimento do corpo e a fala do diálogo. Tudo é explícito e se não for é porque não existe.
  Este filme tem muita ação física. É um daqueles maravilhosos filmes de estrada da época. Jeff, soberbo, é um caipira ingênuo e sem rumo. Clint um ladrão veterano. Os dois se conhecem numa carona e se conhecem enquanto executam golpes. Depois há o retorno do passado de Clint, e o que era uma comèdia vira drama.
  Carros batem, tiros zumbem, estradas passam, garotas peladas, brigas de socos. Mas não é isso que importa. O roteiro, de Cimino, nos dá os detalhes da amizade entre Jeff e Clint. Consegue nos colocar dentro de cada carro que eles roubam, mas mais ainda dentro do coração de cada um deles.
  Mas há mais. Geoffrey Lewis deixa imensa impressão num personagem secundário, tolo, que morre de forma patética. George Kennedy nos assusta com seu vilão sádico, ruim, cruel. E até mesmo o louco dos coelhos, personagem que aparece por 3 ou 4 minutos, causa forte impressão. Nada parece gratuito, tudo tem um porque.
  Aconselho muito a que voce veja este filme. O melhor do cinema de hoje, o pouco que insiste em existir, bebe nesta fonte.

MINHA VELHA VELHA ESCOLA

   É um final de tarde de primavera. O sol generoso parece fazer sorrir o chão e as fachadas dos edifícios anos 50 das ruas. Passo pelos portões e estou de volta após 40 anos distante.
  Não há emoção nos primeiros passos, mas após alguns segundos olho para o lado esquerdo e vejo uma alameda. Os pequenos prédios de tijolos marrons, as árvores com suas sombras calmas, as escadas que levam às portas de madeira escura, as janelas altas...meu coração se alarma. Sim, eu estou de volta ao lugar onde fui completamente infeliz. E o que sinto é apenas alegria.
  Lágrimas brotam nos meus olhos. Eu poderia me ajoelhar e chorar. Eu sorrio então. Minha alma sente-se em casa. Como posso sentir coisas boas se estou aqui?
  Lá está a construção onde eu estudava. Seu aspecto limpo e funcional. Uma fachada que sorri, aberta, clara, permitindo luz. Aqui a praça cercada, bancos, e depois os caminhos onde eu me escondia. E então a biblioteca. Alta, o aspecto de igreja sem Deus. Elegante e vitoriana. Escura, sombria, úmida, linda. Eu a beijaria se estivesse só. Nela tenho lugar. Ninho. Completamente em casa.
  Se lá fui tão infeliz, e sei que fui, e agora me sinto em casa, então a conclusão me vem: É porque a tristeza que eu sentia então, hoje me parece acolhedora. Naquela escola nasceu a pessoa que sou, e esse parto foi dolorido, sofrido, solitário, quase um trauma. Muito tempo se passou e agora, hoje, a alegria vem não só da vitória de ter sobrevivido e retornado, mas principalmente por conseguir reconhecer nos tijolos marrons e nas árvores escuras, um berço. Sim, aquele local maldito é minha pátria mãe.
  Tenho de sair de lá. Me conduzem para fora. Olho os muros que não mudaram. Os porões onde existiam os laboratórios. Me lembro da minha incapacidade para aprender. E do quanto era duro fazer um amigo. A timidez que me sufocava, o medo das meninas bonitas, a sensação de que eu sobrava. Mas houve um outro lado. O nascimento do que eu sou. A luta para ser. A vontade de sobreviver.
  Pego o metrô e volto para casa.
  Em todos esses anos sonhei muito com essa escola. Eu sonhava sempre estar nela e não conseguir voltar para casa. Estar fora dela, na rua, mas sem conseguir sair de onde me encontrava. Pois hoje entrei e saí. Estive e retornei. E sinto que mergulhei em mel.

UM DISCO SOBRE SEXO, E SÓ SOBRE SEXO= RAW POWER-IGGY POP.

   Conheci alguns Iggys na minha vida. Garotos com pirocas gigantes. Não que as tenha visto, mas suas vidas eram, desde os 14 anos, totalmente dirigidas pela cabeça peniana. Um Leonardo que comia velhos gays em troca de uns trocados e comida. Ele tinha 16. Francisco Eduardo, rico e bonito, que transava com qualquer coisa que tivesse um buraco úmido e quente. André, o que comia toda pessoa que o tocasse. E outros mais. Todos eram pequenos Iggys. O desejo físico puro. Um ódio terrível por esse desejo. Pois eles sabiam, intuitivamente, que o gozo pleno jamais viria.
  Detroit nos anos 60 era uma cidade doida. Capital da black music e ao mesmo tempo berço do MC5, dos Stooges e de Alice Cooper. O metal das fábricas de carros deu metal às guitarras estúpidas. Iggy sempre foi estúpido. Mas sua estupidez virou estilo: Iggy nunca foi intuitivo. Seu ódio era consciente. Ele sabe que o gozo é ilusório.
  Raw Power foi às lojas no ano de 1973. E 1973 foi um ano cú. Ele começa com Dark Side of The Moon e acaba com Goodbye Yellow Brick Road. No meio tem Houses of The Holy. E Sabbath Bloody Sabbath. Tem dois discos do Roxy: For Your Pleasure em janeiro e Stranded em novembro. E ainda solos de Eno e Ferry. Tem o Alladin Sane e Pin Ups. E nos EUA, passando bem despercebido, tem Raw Power. E Berlin, do Lou Reed. Alice Cooper, que lançou o brilhante Billion Dollar Babies, era o king. Iggy era semi morto. Bowie o salvou da morte.
  Bowie mixou o disco todo errado. Um canal com bateria, guitarra e tudo mais. Som de radinho de pilha. O outro canal com voz e guitarra solo. O canal "ruim" é punk. O canal bom é hard rock. Os dois juntos são Iggy Pop. Bowie fez de propósito? Ninguém vai saber.
  A voz de Iggy é a mais explícita voz do sexo já gravada. Sexo sem amor, digamos assim. O ato físico. Um vale tudo entre dois ou três corpos. Essa voz tem tons de sadomasoquismo. Mas também de masturbação, de orgasmo e de estupro. Não é sedutora. Adolescentes tarados não são sedutores. É uma voz que deseja agora. E onde o outro não importa nada. Nos anos 70, onde tudo era feito "numa boa", essa voz falava quase sozinha. No fim dessa década ela anunciaria os anos 80, a década do "voce que se foda, eu quero é mais".
  Raw Power NÃO PODE E NÃO DEVE ser analisado como música. Não procure harmonia, melodia ou criação. Ele é um ato. Um testemunho. Deve ser sentido e pensado como afirmação de uma verdade. Antecipa o punk por ser um posicionamento político. Não música. ( O Roxy já era também isso, mas a política do Roxy era esnobar o mundo real e viver na redoma do romance ).
  Iggy faria pelo resto da vida novos testemunhos sobre o sexo. Às vezes com uma pitada de romance e de alma. Mas sempre com a velha fome da carne imperfeita. O cara é foda. O disco é foda. E nós somos todos uns fodidos.

BORN TO RUN - BRUCE SPRINGSTEEN. GOTAS NA JANELA.

   Há um momento em que voce olha pela janela e vê gotas grudadas no vidro. Então a luz da lua ilumina essas gotas e um pássaro voa. E voce acha que alguma coisa foi perdida nesse momento. Como se uma taça tivesse caído e se quebrado. Os cacos podem ser colados, mas nunca mais o momento da queda será esquecido. Isso é Bruce Springsteen.
  Em 1975 os EUA estavam no escuro. Um presidente havia renunciado, a guerra estava perdida e não havia emprego. A costa leste via cidades sendo abandonadas ( Atlantic City ) e outras falidas ( Detroit, Philadelphia e New York ). Mas o americano é no fundo um religioso. E instintivamente sabe que é preciso morrer para poder viver. Rocky seria o filme do ano. Mas também havia Um Dia de Cão, Nashville, Taxi Driver e Jaws. Desespero, melancolia, loucura e medo. Críticos de rock diziam que 1975 era o pior ano da história. Falavam isso porque as bandas mais populares eram o Aerosmith e os Bay City Rollers. Ora seus bobos! 1975 foi o ano de Horses da Patti Smith, do Captain Fantastic do Elton John, do Siren Roxy Music e Young Americans do Bowie. 1975 foi ano de Born to Run. E é inescapável um dia escrever sobre esse disco.
  Em 1968 The Band salvava almas pela amizade. Um clube de amigos tocando no porão para convidar amigos a sair da névoa púrpura. Em 1975 Bruce cantava na rua. Gritava para tirar gente da depressão. Em 2018 ouço o disco pela segunda vez em minha vida. ( ouço Bruce desde 1984, muito, mas não este ). Em vinil, o lado A é um tipo de preparação para o que ocorre no lado B. Todo esse primeiro lado é uma fotografia da América. Bruce apresenta suas histórias como um tipo de Walt Whitman modernista. Sem ironia, Bruce crê em tudo que vê e em tudo que fala. Não há jogo nele. Quando digo modernista é pela época em que vive, seu estilo é romântico, se joga de alma. Thunder Roads é a confissão de alguém que espera a hora certa. Este é o terceiro disco dele. E acontece a hora: o lado B, um dos mais milagrosos do rock.
  O som de Bruce é uma mistura do sax das bandas negras dos anos 50, a batida de Phil Spector e o piano, tocado por Roy Bittain, um piano que é jazz, é erudito e é Broadway, tudo junto. O disco é um disco de piano, não de guitarras. O disco é um momento de plena e absoluta transcendência. Dessas faixas, quatro, saiu toda a carreira do U2 por exemplo. Mas também do Pearl Jam, Billy Joel, John Mellencamp, e mais toneladas de bandas, cantores e cantoras do mundo. A faixa Born To Run sozinha é um fonte de inspiração. Ela tem 4 fases e 4 andamentos distintos. Vai da balada estradeira até o dedilhado do piano que traz lembranças de noites brilhantes. Mas esta faixa tem o mesmo caráter de todo o disco: Bruce está morrendo e ao mesmo tempo começa a viver. Nisso ele é único, pois mesmo um disco sagrado, como por exemplo Astral Weeks, não apresenta o processo de renascimento inteiro, Van Morrison olha de fora, apresenta uma observação genial, enquanto Bruce é o que observa e ao mesmo tempo aquele que faz a via crucis.
  Sim, Bruce está imbuído da tradição protestante da América. Como diz Scruton, se você tirar a igreja da nação, a América desaba. Os shows de Bruce, shows sem fim, de entrega, são cerimônias religiosas, de fé, crença e de renovação. Há um momento em She's the One em que a mágica acontece plenamente. Uma espécie de suspiro, de suspense suave, como um passo insuspeito, em que todo o disco conflui para uma espécie de orgasmo sonoro espiritual. É um milagre. E quando a conclusão chega, na última faixa, longa, estamos dentro de Bruce. Como um flash sem tempo, Jungleland reverbera na nossa mente e alma.
  Born to Run é uma catedral musical. Bruce cria um estilo, hiper imitado depois, equivalente ao que Bach fez no barroco. Frase sobre frase num tipo de "fuga" bachiana. Acordes de piano em harmonias originais. Vocais rasgados como violoncelos graves. Refrões e riffs em função de uma ideia. 1975 foi um ano crucial. Os críticos nada entenderam. Como sempre o fazem.

A HORA DE CRESCER SEMPRE CHEGA...FOR EVERYMAN, UM DISCO DE JACKSON BROWNE.

   A hora de crescer sempre chega, sonhos terminam quando temos de acordar e a união pode se mostrar uma prisão. Jackson Browne começa sua carreira em 1967 como compositor de NY, urbano. Dá uma canção para Nico que a grava. Depois o reencontramos em 1971, californiano, dentro da vaga de compositores e cantores do estado do sol e das estradas sem fim. O tema de todos esses caras é o ficar adulto. Jackson talvez seja o melhor deles. ( Joni Mitchell, Randy Newman, James Taylor, Carly Simon, Paul Simon, Eagles, Carole King, Poco...todos beberam em The Band e Van Morrison ).
   Este é seu segundo disco, de 1973, e tem, como todo disco da turma, grandes músicos e grande produção. Aqui o destaque é a guitarra de David Lindley, um dos gigantes do instrumento, dono de um toque cigano, rock e blue. A voz de Jackson é cool, sua emoção está sempre sob controle, mas nunca reprimida. O timbre é jovem, voz de homem saudável, voz de californiano. Mas seus temas são todos dolorosos. Ele fala de solidão. De perder coisas. De acordar. E de ver a morte. Pense no som que um casal de ex doidos viciados escutariam para tentar se curar. Pense que eles estão acampados em Yellowstone. Pense que os dois escutam um disco de manhã, enquanto tomam café. É este o disco.
  Jackson é uma figura central na história do Pop dos anos 70 e 80. Ativista, relaxou sua produção, gravou pouco e se apresenta menos ainda. Continua sendo um homem bonito. Continua sendo o "americano alfa". Este disco é lindo.

FILMES POLICIAIS E MAIS OUTRAS COISAS

   THE LONG GOOD FRIDAY ( CAÇADA NA NOITE ) de John Mackenzie com Bob Hoskins e Helen Mirren.
Faz tempo que em toda lista de melhores filmes ingleses da história leio este título. Feito em 1980, é um filme amado pelos ingleses mas pouco conhecido fora do país. Lançado aqui em dvd, eis que o assisto. Começa mal, com uma trilha sonora pop horrível. Cenas incompreensíveis e todo o clima yuppie de então. Mas, quando Bob Hoskins entra em cena o filme cresce, cresce, cresce e vira uma coisa inesquecível. Ele é um mafioso londrino. Que começa a ver seu império ruir. Iludido, ele pensa que pode se salvar. Mas seu inimigo, o IRA, é muito mais letal que ele. Hoskins tem uma das maiores atuações da década e foi este filme que o lançou. Ele é brutal, cruel e meio burro, mas a gente o ama. O filme, cheio de humor amargo, é uma diversão louca. Muito, muito bom. Como curiosidade, Pierce Brosnan, jovem, um dos mais bonitos atores já filmados, tem duas cenas mudo: seduz um gay numa sauna, e aponta uma arma para Hoskins. Quem imaginaria que ele seria Bond? O mundo é surpreendente mesmo...
   GET CARTER de Mike Hodges com Michael Caine
A GB de 1971: falida. Caine, frio como aço, vai à Newcastle para se vingar. O filme, sujo e lento, estranhamente vazio, é outro policial muito amado na ilha. Michael Caine tem um dos seus melhores momentos. É um ator anti-teatro, anti-Olivier, por isso marcou tanto e é até hoje o mais querido pelos ingleses. Ele trouxe a rua, o cockney para as telas. Este filme, duro, de macho, é uma lição de economia. O final é maravilhoso.
   O SEQUESTRO DO METRÔ de Joseph Sargent com Walther Mathau, Robert Shaw, Hector Elizondo, Jerry Stiller.
Ainda lembro que em 1977 este filme passou em branco por aqui. 4 semanas em cartaz, ignorado por críticos. Hoje é super cool e super cult. O motivo: faz parte da grande leva de filmes sobre a Nova Iorque dos anos 70. Como Um dia de cão ou Taxi Driver, a estrela é a cidade, seu povo, suas ruas, o clima. A cidade estava em seu ponto mais baixo, falida, suja, confusa, sem governo, e uma explosão de pessoas esquisitas habitava suas ruas. Filmes como este perceberam isso e foram às ruas. Aqui se fala de um bando de 4 malucos que sequestram um vagão de metrô. O filme, ágil, engraçado, esperto, gira entre ruas, delegacias, o metrô e casas imundas. Os atores estão perfeitos e a trilha sonora mostra o porque dessa época ser considerada a melhor em termos de trilhas para filmes ( 1965-1978 ). Qualquer pessoa que ver este filme hoje vai amar. E vai querer saber o porque de não serem mais feitos filmes assim.
   THE SEVEN UPS de Philip D'Antoni com Roy Scheider
É sempre ótimo ver Scheider em cena. Poucos ou nenhum ator faz angustiados tão bem. Este é mais um filme sobre New York, um pouco confuso demais, mas ainda assim ok. Roy é um policial. Ele tem um traidor em seu grupo. O filme gira entre ruas sujas e pessoas imundas.
  SOFRENDO DA BOLA de Norman Taurog com Jerry Lewis e Dean Martin
É o filme da dupla sobre golfe. Tem coisas bem ousadas, como mostrar os dois como eles mesmos, mas não é dos melhores da dupla. O humor de Lewis, muito infantil demais, envelheceu mal.

1973, UM ANO FODA PARA A MPB ( AINDA NÃO LI ESTE LIVRO, VERSÃO BRAZUCA DO 1965 )

   1973 foi um ano foda. Escolheram esse ano pra fazer um livro. Os gringos optaram por 1965. Sim, para o pop estrangeiro eu teria escolhido 1972, mas ok, 65 foi foda também. Pra MPB tem de ser 73, não tem opção. Foi o ano dos Secos e Molhados e isso justifica tudo. Mas foi também o ano do Steve McLean, que era brasileiro, do samba dito "joia", do Benito di Paula, do Martinho e dos Originais do Samba. Da Clara Nunes. Foi o ano da Rita Lee e do Raul Seixas. Maracatu Atômico e Antonio Carlos e Jocafe. Foi ano do brega legal de Odair José. "Irmão, vamos seguir com fé, tudo que ensinou, o homem de Nazaré..." essa é do Antonio Marcos. " De onde ela veio pra onde ela vai...oooo não tem ninguém...", foi um ano muito romântico!
  Fora do Brasil foi ano do Dark Side of The Moon, do Houses of The Holy, do Billion Dollar Babies, do Berlin, do For Your Pleasure, do Alladin Sane, do Sabbath Bloody Sabbath, do Goodbye Yellow Brick Road, isso só em rock branco. A banda revelação do ano foi o Queen. 1973 foi mais foda ainda porque eu liguei o rádio pela primeira vez.
  Estava sozinho em casa numa manhã de sábado e pela primeira vez girei o botão, ele fez clic, e ouvi rádio por vontade própria pela primeira vez. Mais ainda, girei o dial até a Difusora! E escutei " Leve...muito leve leve leve pluma....muito leve leve pluuuumaaaa...." Agora eu era dono do meu gosto musical.
  Diz um psicólogo que aquilo que a gente ama aos 11 anos a gente ama pra sempre. Então 1973 é pra sempre.

O HOMEM QUE VENDEU O MUNDO - DAVID BOWIE POR PETER DOGGET

   Não é uma biografia de Bowie. O autor analisa todas as canções que o rei dos anos 70 compôs, em ordem de composição, e no processo nos conta a saga do londrino genial naquilo que ele viveu de melhor, a década de 70, segundo o autor, a mais triste das décadas.
   Peter Dogget escreve muito bem. Sua descrição das canções, para quem as conhece, são perfeitas. Ele aponta TODAS as influências, entrega os plágios, descreve o som de um modo saboroso. Temos vontade de correr e reouvir tudo. E descobrir aquilo que nunca escutamos ( muito pouco em meu caso ). Segundo o autor, Bowie amava Judy Garland, era seu maior ídolo, e perto dela vinham Sinatra, Sammy Davis Jr e Marlene Dietrich. Bowie era doido por cinema, por artes visuais, e o rock era apenas o meio onde ele cresceu, o modo natural de se fazer grande. Mas não sua paixão central. Daí sua importância primordial: Bowie é o cara que traz para o rock aquilo que não era do rock. Ele o vê como ator, como performer. É um artista que interpreta o papel de rock star. Ou de menestrel folk. Ou de inovador pop.
  Ele poderia ter sido um folk star até 1970. Sua maior influência era a dupla Simon e Garfunkel. E Neil Young. Ao conhecer Tony Visconti, produtor de gênio, Ken Scott, engenheiro de som mágico, e Mick Ronson, seu guitarrista de blues e arranjador de extremo gosto, Bowie abraçou o rock. E o modificou para sempre.
  Ele era um grande leitor. E em 1970 lia aquilo que aqui no Brasil Paulo Coelho lia. Ocultismo. Cabala. Crowley. Hermes Menegisto. Nietzsche. Impressiona a energia de Bowie. Ele estava sempre em movimento, gravando, compondo, fazendo shows, escrevendo roteiros, indo a exposições, lendo, e se drogando muito. Entre 74 e 76 ele foi o rei do pó.
  O autor desgosta de várias canções de Bowie. Isso dá certa isenção ao livro. Ele acha Transformer de Lou Reed banal, e Raw Power mal é citado. Ziggy, o LP, é visto como importante e criativo, porém, musicalmente pouco instigante. As letras são o foco da genialidade de Bowie. Diamond Dogs é para ele uma obra-prima de invenção sonora. Uma massa de sons, ruídos, harmonias e símbolos ocultistas digno de um feiticeiro. Peter considera Dogs e Station To Station os mais altos pontos da vida de Bowie. ( Low e Hunky Dory vindo em seguida ). O autor destrói Lodger, considerado frouxo, e dá um retrato sublime de Young Americans, o auge da voz de David.
  No final ele fala por alto do Bowie dos anos 80, 90 e 2000. O livro foi escrito um ano antes de sua morte. Outside e Heathen são considerados tão bons quanto Low ou Dogs, mas são irrelevantes. O mundo do século XXI não ouvia mais Bowie. Apenas os fãs. Os clones fizeram dele um tipo de matriz. Um molde. Mas não um cantor relevante. Bowie era um artista para descobertas e não para nostalgia. Quando fez 33 anos, em 1980, deixou de ser um descobridor e se tornou um diluidor. Juntou dinheiro como nunca. Mas o artista já dera seu recado.
  Peter destaca Bowie em 1992, na homenagem à Mercury, rezando o Pai Nosso no palco, ao fim de Underpressure. Para Peter aquele era o verdadeiro Bowie. No mais inadequado dos lugares, no mais inesperado dos momentos, ele larga sua ironia e reza DE VERDADE. Ironia dentro da ironia, a ironia de não ser irônico. A luta de Bowie, luta para ser alguém, não pela fama, mas ser alguém que se possa chamar de PESSOA, acaba no retiro. Seu corpo fraqueja. Ele para de procurar. Encerra.
  Leia o livro e veja a descrição que ele faz do começo de Station To Station. É exatamente o que senti na época ao ser pego de surpresa pelo som esquisito do disco. Não parecia rock. Não era pop. Não era negro. Não era nada. Mas era alguma outra coisa.
  Nunca haverá outro Bowie porque o mundo do rock não precisa de artistas. E quando eles surgem, e Damon, Peter ou Harvey tentam o ser, tudo que podem fazer é estender Low ou Dogs ou Scary em novas frentes. Bowie ao parir a arte no rock, a arte depressiva e expressiva, matou o futuro dessa arte, que precisaria ser sempre nova, mas que por sua causa sempre pareceria derivada. Bowie trouxe ao rádio o que Eno, Lou, Can, Faust, Neu e John Cale faziam para poucos. No processo ele amplificou sua cópia. Vestiu o rock de arte. E vendeu o invendável como estilo e charme.
  Foda.

DIAS BÁRBAROS - WILLIAM FINNEGAN

  Acabo de ler este livro que venceu o Pulitzer de melhor autobiografia em 2016. Em termos de estilo de escrita é delicioso. O autor, jornalista conhecido, escreve no estilo "americano". O modo direto e nunca afetado de Mailer, Bellow e Heminguay. Coloquial mas nunca pobre. Denso, cheio de metáforas, limpo.
  Finnegan é conhecido no meio. Escreve inclusive na New Yorker. Tem livros sobre guerras na Africa, situação humanitária na América Central, vida no Oriente. Sim, ele é um típico liberal de esquerda, daquele tipo que os anos 60 formaram. Um pensamento que só existe nos EUA, pois são liberais que odeiam o capitalismo e ao mesmo tempo amam a liberdade. Uma contradição com que eles convivem com ansiedade e desacertos. Por isso produzem tanto.
  Finnegan nasce numa família de classe média na costa leste. Mas por razões de trabalho, o pai faz parte do meio da TV e do cinema, eles se mudam para a California. Essa a parte mais brilhante do belo livro. A infância e a adolescência de William em um mundo mutante. Brigas na escola, gangs de recreio, insegurança física, a descoberta do poder do surf. A grande sacada de Finnegan, e que ele irá confirmar ao fim do livro:  a grande mudança do surf é que até os anos 80 ele era um esporte dos isolados, dos solitários, dos calados. E desde então, com a popularização, ele se torna esporte de grupo, de bandos, de galera. O surfista deixa de ser um individualista radical, e passa a ser apenas um consumidor de fim de semana. Mas me adianto...
  O pai de William começa a trabalhar na produção de uma série havaiana, e a família se muda outra vez. Na ilha ele se faz surfista. Começo dos anos 60. Mudança da prancha grande e pesada para as leves e pontudas. Sai de cena a surf music e entra a psicodelia. Qualidade do livro, Finnegan é modesto. O livro não é sobre uma busca pessoal. Não é sobre filosofia new age. Ele surfa. Ele consegue trabalhos modestos. E viaja.
  Bali, Java, Samoa, Australia. Tudo antes da popularização. Doenças, misérias, roubadas. E ondas em praias ainda não popularizadas pelas revistas. Ele passa anos nessas viagens. Longe da família, com a qual ele se dá bem, ao lado de um amigo: pode ser Dominic, pode ser Bryan...cruzam o deserto australiano ( William descobre que não há país onde o trabalhador seja mais bem pago que em OZ ), vão à Africa do Sul.
   Finnegan vira professor. É o fim do apartheid, tempo quente, tempo de crise. Ainda sobe a Africa com uma namorada. E volta aos EUA. Adulto.
   Mas não é o fim. Já quarentão, descobre seu pico favorito: a Ilha da Madeira, Portugal. Aldeias, plantações, camponeses pobres. Ele fica anos por lá, uma década. Acha a melhor onda. Mas as coisas mudam: a comunidade europeia e Portugal faz estradas, tuneis, hotéis, tudo se enche de turistas e a onda morre numa rodovia beira mar mal feita. Aos 50 anos ele desiste. O corpo dói. Escreve full time. Tem filha. Ela surfa.
   Um surfista, essa raça tão mal entendida, quer apenas uma coisa da vida: surfar. Só saberá o porque disso aquele que provou da droga. O livro explica mesmo para não-surfistas. Na união de homem e mar vive a parte mais pura de nossas aventuras. De Odisseu à Camões, dos pescadores aos surfistas. De Conrad à Finnegan.