CHAGALL- JACKIE WULLSCHLAGER

   Chagall tinha tudo para ter dado errado. Nasceu judeu pobre numa cidade de judeus pobres. Numa familia inculta em meio a familias incultas. Fim do século XIX, Rússia. Fome. Passou pela guerra de 1914/1918, pela revolução comunista, sendo perdedor nas duas. Passou fome em Paris e na Alemanha. Pintava quadros figurativos quando a moda era abstrata. Tímido, sonhador, era um místico na época mais materialista da história humana. Preguiçoso, tomou sempre decisões tardias e sempre dependeu da força de uma mulher, primeiro da mãe e depois da esposa e da filha. Foi o queridinho da mamãe. E um desastre na escola. Só pensava em pintar. E mesmo assim ele é um dos pintores mais amados do século XX, morreu rico aos quase cem anos de vida ( em 1985 ), lúcido e com boa saúde. Como pode? O livro responde à isso com uma clareza colorida digna dos quadros de Chagall.
  Ele bebeu sua infância e se embriagou dela para sempre. Apesar de pobre, ele amou cada segundo daqueles dias. E os levou vivos para suas telas. Chagall pintava como uma criança. Sem regras e sem escolas ou modas. E é por isso que nunca houve ou haverá um seguidor de Chagall. Muitos são discípulos de Miró ou de Cézanne, mas só Chagall podia tentar ser Chagall. Seus quadros são seus sonhos e sonhos não se transmitem. 
  Passivo, nesta longa biografia nada vemos de muito heróico nele. Sua primeira esposa Bella foi um tipo de heroína, e mais ainda sua filha Ida. Nas fotos, muitas, vemos o quanto elas foram bonitas. E o quanto Chagall tinha a imagem, não pensada, natural em seu meio judaico hassidico, de boêmio. Ele nunca o foi. Bebidas ou excessos passaram longe dele. Chagall amava muito. E pintava. Com cores. Só Matisse chega perto dele como colorista. Mas os dois são completamente distantes. Matisse é equilibrado, francês até o osso. Chagall é russo e judeu, solto e sonhador, sofrido e feliz, religioso e mágico. 
  Cheguei a viver em um mundo que tinha Chagall vivo. E lembro do dia em que ele morreu. O mundo dele havia desaparecido na segunda guerra. Dos 240.000 habitantes de sua cidade natal, só 118 restaram após a passagem das tropas. Apenas oito casas de pé. Ele conseguiu escapar do nazismo via Lisboa. Foi para NY, cidade cinza que ele odiou. Lá morreu Bella. De saudade da Europa. E quase morreu Chagall. De saudade de Bella. 
   O livro é lindo.

OSCAR 2015

   Sem emoção. Ou melhor, muita emoção só com A Noviça Rebelde. Sinal dos tempos. Um filme de 1965 trouxe o único sinal de vida à noite. Birdman mereceu? Sim. É um grande filme. Impossível um cara que goste seriamente de cinema ou de teatro não se encantar pelo filme. Iñarritu disse ser uma comédia. Eu ri muito durante a exibição. As pessoas não entendem mais o humor negro?
   Felicity Jones é linda. Estou in love por ela. Tipo da menina delicada de 1964. E Travolta com seu colar de metal. Qualé?????
   Pena de Wes e de Linklater. Fazer o que....
  Lady Gaga foi ótima. E Julie uma lady. Palmas para a mulher que foi Mary Poppins, A Noviça e de quebra ainda nos deu Victor/Victória e o delicioso Modern Millie. ( E Elisa Doolitle no teatro ). Chorei.
  E é só. Nada de Oscar honorário, nada de Irving Thalberg. Morreram todos? Ninguém mais para homenagear?
  Ano que vem tem mais.

BUDDY RICH IMPOSSIBLE DRUM SOLO *HQ*



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O JOGO DA IMITAÇÃO/ A TEORIA DE TUDO/ JAZZ/ MARCEL CARNÉ/ A STAR IS BORN/ BOYHOOD/ FANNY

O JOGO DA IMITAÇÃO de Morten Tyldun com Benedict Cumberbatch e Keira Knightley
Mesmo conhecendo a bio de Alan Turing fiquei chocado com o fim do filme. Imagino como se sente quem não a conhece. O filme é sensacional. Ele toca todos aqueles que se sentem esquisitos, todos os que foram perseguidos na escola, todos os diferentes. Ou seja, toca quase todos nós. Turing foi um gênio e o filme é digno dele. Suspense bem feito, drama e uma bela história. Adoraria ver este filme ser, como foi O Discurso do Rei alguns anos atrás. a grande surpresa inglesa do Oscar. Os dois se parecem muito. São filmes clássicos, muito ingleses, com um momento chave do século XX pescado do esquecimento. O melhor ator do ano é Benedict. E quem achar que caio em contradição, pois costumo criticar essa mania de confundir boas imitações com grandes desempenhos, que Benedict não imita Turing, ele cria uma personagem. Pois ao contrário de Capote ou de Ray, Turing tem um nada de videos para se imitar. Foi em vida uma pessoa obscura. 2015 é a melhor safra do Oscar desde o século XX, este é o filme que mais me emocionou, O Hotel Budapeste é o melhor filme. Qualquer dos dois que vencer será uma alegria para mim. Nota 9.
A TEORIA DE TUDO de James Marsh com Eddie Redmayne e Felicity Jones
Se Eddie vencer o Oscar será mais uma vitória do papel de doente. Impressiona como o Oscar ama gente interpretando doentes! O filme é legal, mas está muito atrás de O Jogo da Imitação, com o qual poderia se parecer. Tudo aqui é correto, como Hawking, que é um cara do bem. Mas o filme não causa impressão. Dois dias depois voce mal recorda uma cena. Felicity é na verdade a heroína. Excelente interpretação, ela foi uma santa em aguentar o casamento. O filme é dela. Nota 6.
WHIPLASH, EM BUSCA DA PERFEIÇÃO de Damien Chazelle com Miles Teller e JK Simmons
Um pensamento ruim me ocorreu durante o filme. O jazz desde os anos 50 virou isso...um fóssil estudado por chatos, nerds e infelizes. O que era uma expressão folclórica de vida, virou objeto de adoração semi-religiosa e de estudos devotados. But....o filme, simples, barato, é bom. E mostra algo de muito particular que só o jazz tem: nele não existe nada de bom ou de correto. Ou o cara é """do cacete"""ou é muito ruim. Para fazer parte da coisa voce tem de ser uma fera. Músicos bons, como no rock são quase todos, não sobrevivem no jazz. Porque aqui, mesmo aquele esquecido baixista da banda de Fletcher Henderson ou do trio de Benny Golson, era mais que excelente. No jazz, como na música erudita, não dá pra enganar. Porque aqui o simples barulho ou as notas simples inexistem. Para quem toca este filme é obrigatório. E mesmo para o resto, é um bom filme. Espero que ele mostre aos roqueiros o quanto bateristas discretos, jazzistas, como Charlie Watts ou Mitch Mitchell são bons. Ritmo, isso é tudo. Conseguir manter a batida, sem variação de velocidade ou de volume, matematicamente preciso, é isso. Posto acima um Buddy Rich, o mito. JK dá um show. Mas o garoto também é bom. Nota 7.
BOYHOOD de Richard Linklater com Ethan Hawke e Patricia Arquette
Somos uma geração, a minha, entre 40/50 anos, desastrada. Criamos filhos como amigos e eles queriam pais. O filme acompanha o crescimento de um menino. E Linklater, que entre seus filmes favoritos tem Truffaut e Bresson, evita todo momento de drama, exibe o banal e nesse banal o que há de mais bonito. O filme é leve, puro, otimista. O menino, que sorte, vira um cara legal. Mas eu queria que mostrassem mais a irmã! Ela parece mais interessante. Ethan faz Ethan Hawke, o cara gente boa. Patricia manda muito bem. Gorda, a sensual Alabama virou uma americana comum. Ponto pra ela! O melhor de Linklater ainda é Dazed and Confused, mas se ele vencer o prêmio de direção será bem legal. Ele é Wes, com seu amor por filmes franceses, são dos poucos caras a dar ar de liberdade ao amarrado e cabisbaixo cinema atual. Nota 8.
FANNY de Marcel Pagnol com Raimu, Pierre Fresnay e Orane Demazis
Por falar em cinema francês...Eis Pagnol, escritor, autor de teatro e diretor de cinema. O homem da Provence antes do lugar virar moda. A história aqui é de uma menina, grávida e solteira. O pai da criança a abandonou para virar marinheiro. Ela aceita a proposta de um homem mais velho, que assumirá o nenê. Mas o marinheiro volta...O filme é tosco, sem produção, primitivo. E encantador. É um tipo de filme tão arcaico que hoje fica parecendo muito fresco, novo, original. Assistir Fanny é como ver um documentário sobre um planeta que deixou de existir. O mundo de Cézanne e de Cassat. Um prazer. Nota 9.
CONTRABANDISTA A MUQUE de Christian-Jacque com Totó e Fernandel
Existe uma cidade na fronteira entre França e Itália em que ruas e casas marcam a divisão. O filme mostra desse modo o contraste entre os dois países. Totó é um contrabandista. Fernandel um policial. Um é bem italiano: malandro, preguiçoso, mentiroso. O outro é rigido, cumpridor das leis, burocrático e meio bobo. Divertido, o filme, de 1958, nos faz pensar que essas diferenças hoje seriam ilusórias. A Europa virou um grande caldeirão comum. Uma certa nostalgia surge, onde os italianos estão? Totó, um gênio como ator, nunca mais. Nota 7.
FAMÍLIA EXÓTICA de Marcel Carné com Françoise Rosay, Michel Simon, Jean-Louis Barrault, Louis Jouvet e Jean-Pierre Aumont.
No cinema clássico francês dois caminhos logo surgiram. O cinema simples de Renoir e o cinema elaborado de Carné. Prefiro Carné. Aqui temos uma rocambolesca comédia com os melhores atores de então. Como explicar a história? Tem um escritor que finge ser um pacato burguês, tem um doido assassino, tem um conquistador barato...e muito mais. Os diálogos, de Prévert, são brilhantes. É um filme Pop, feito para divertir, para entreter. Nota 7.
NASCE UMA ESTRELA de William Wellman com Janet Gaynor, Frederic March e Lionel Stander
Um grande clássico. A primeira versão da história da moça que quer ser estrela de Hollywood e se envolve com um ator decadente. Ela sobe, ele afunda. Tudo aqui funciona. O filme emociona, dá raiva, toca, fica. O mecanismo da imprensa surge crú. March está magnífico! Faz um alcoólatra com tintas de Barrymore sublime. Temos pena dele. E admiração. Gaynor jamais se torna doce demais. Ela ama March. Ama o cinema. E tem ainda Stander, um jornalista que é o mal em pessoa. Ele odeia March e goza em ver sua queda. Wellman faz o roteiro de Dorothy Parker voar. É um grande filme. Nota DEZ.

LET`S STICK TOGETHER- BRYAN FERRY. PORQUE O AMOR PODE SER UMA QUESTÃO GLAMUROSA.

   Então em 1976 nada em Londres era mais chique que gostar de Mr. Ferry. Ele vendia discos, vendia shows, fazia cinema e estava sempre na TV.  Nessa ego trip ele deu um chute no Roxy e começou a namorar a mais famosa modelo do mundo, Jerry Hall ( que está no clip abaixo ). Desde 1973 Bryan lançava discos solo. Mas nesse verão de sua ego trip ele solta este disco. Uma coleção de 11 músicas. Seis são covers, e elas vão de Beatles à Louis Armstrong. As outras cinco são releituras de faixas gravadas com o Roxy Music. Três do primeiro disco, uma do quarto e outra do segundo. Para o acompanhar ele chamou Chris Spedding, John Wetton, Mel Collins. A carreira solo de Ferry sempre foi marcada por uma excelência em som, em timbre, por um aveludamento sonoro, uma suavização daquilo que ainda pode ser chamado de rock, mas que na verdade sempre foi simplesmente canção. Elvis Presley é o ídolo branco de Bryan, o Elvis pós 1960, e Otis Redding o ídolo negro, o Otis de sempre. 
  Let`s Stick Together abre o disco e foi um single de sucesso na Inglaterra. ( Só na Europa Ferry vendia então. A coisa não mudou muito em 40 anos ). Sacolejante, irônica, é uma alegria. Casanova está irreconhecível. Apocaliptica com o Roxy, aqui ela é noturna, suavemente safada. Sexy ao extremo. Sea Breezes é um lamento. O espírito é o mesmo da banda antiga, mas aqui ele está mais seguro. Shame é cover de um blues dos bons. Ferry faz dela um Pop acaipirado, alegre, esfuziante. 
  Os deuses olímpicos se aquietam e Vênus sorri quando 2HB começa a tocar. É uma das mais belas coisas da história da música do ocidente. HB significa Humphrey Bogart, a canção homenageia Bogey, To HB portanto. Mas pode ser To Heartbroken. Ela decola, ela é linda, inesquecível. A melodia sobe da voz e do teclado e voa, rodopia, gira colorida, melancólica, sagrada e diáfana. Ferry atinge um dos seus pontos alfa. A versão original, de 1972, com o Roxy, é tão boa quanto, mas esta...
   The Price of Love é puro Pop feliz. Riff de guitarra vibrante, forte. Chance Meeting é uma das mais tristes canções do Roxy. Esta versão tem mais equilíbrio, menos dor, a beleza se mantém. Ela me recorda todos os meus amores. Os antecipou desde 1976. Os anuncia hoje. 
   It`s Only Love é dos Beatles. Ele faz dela uma canção de Brian Wilson. Leva-a à Califórnia. You Go To My Head é luxuosa. De certo modo ela dá a dica do que Bryan faria na meia idade. Sinuosa. ReMMake, ReModel foi a primeira faixa do primeiro disco do Roxy. Ela era barulhente e bastante desenfreada. Aqui ele cortou as arestas e a deixou redonda. Ainda desafiadora, só que dançante, aveludada, líquida. 
   Por fim Heart on My Sleeve. Simples como o amor. Singela. E nunca tola. O amor para Ferry é simples. é básico, singelo, porém nunca silly. 
   Neste momento de amor, voltar a este disco, trilha dela, da amada, é um ato de amor.

Bryan Ferry - Let's Stick Together



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Chris Isaak - Somebody's Crying Official Music Video



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O AMOR SE GUARDA DO TEMPO. CHRIS ISAAK- FOREVER BLUE

   ...Heminguay disse um dia que o ódio termina mas o amor é para sempre.
   Eu amo para sempre aquela menina e com ela eu amo este disco. Que foi e é sua trilha sonora. E Heminguay combina bem porque este disco e este amor tem cheiro de camisa de flanela e de eucalipto e ele é frio, é sopro de vapor e mãos que se esfregam. Touca de lã.
  Ela é frágil como se fosse feita de promessas dificeis de serem cumpridas. A voz de Chris é de cristal? Não, acho que melhor dizer orvalho. E ele canta o amor todo o tempo. Ele realmente crê no amor. E te digo amigo, neste mundo a gente tem de crer no amor e mais ainda, a gente tem de bradar e exercitar o amor. All the time.
  Como pode isso? É um milagre e o fato desse amor existir prova que milagres só acontecem para quem crê neles. Oh God! Eu crio no amor e creio nela. Porque ela é linda.
  Como é este disco com seus solos de guitarra curtos, delicados e viris, com sua luz de estrada de quem vai voltar. com sua tristeza esparramada, mas não desespero, porque desespero só vem para quem deixou de acreditar.
  Este disco me foi proibido por anos e anos. Doía demais escutar a trilha dela. E minha alma, saudosa, guardou esse disco como quem guarda cinzas. Agora ele toca porque chegou a hora de tocar de novo. Ela é agora como sempre foi. O amor guarda e protege do tempo da vida.
  Tão bom ouvir a voz de Chris novamente. E tocar o corpo conhecido que se encolhe.
  Ela é linda. E eu sou bom.

Chris Isaak - Goin' Nowhere (MTV Unplugged)



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BOYHOOD.

   Uma entrega do Oscar com mais de dois filmes admiráveis. Desde o século passado isso não acontecia. Em 2015 temos 3 filmes que me deixariam feliz com sua vitória. E Boyhood é um deles. Contra o cinema empetecado e tolo de Nolan, Fincher e gang infindável, o cinema simples de Linklater. Boyhood é um filme que gosta de gente, e isso hoje é uma benção.
   Acompanho o cinema de Richard Linklater desde 1995, DAZED AND CONFUSED é um filme que acompanha um bando de adolescentes em seu último dia de aula. Passado em 1976, o filme tem uma trilha sonora perfeita, melhor que a de Quase Famosos, e dentre seus atores inexperientes estão Mathew MacCornaghy, Ben Affleck e René Zellwegger. Adoro esse filme onde nada acontece. Ou melhor, onde nada de cinematográfico acontece. Mas onde a vida acontece. Boyhood é exatamente assim. Richard evita habilmente todas as cenas melodramáticas, tangencia o sensacional e nos entrega os momentos que fazem a vida, ou seja, uma coleção de ""quases"". Mostrar a mãe apanhando do marido seria fazer cinema sensacional, ou pior, seria dar valor a um momento isolado dentro de uma vida. Ao contrário do cinema de hoje, que procura sempre e de forma apelativa, a dor, o sangue, a doença, o extraordinário, Linklater procura o comum, o simples, o banal. E mostrando isso ele nos dá o presente inestimável de exibir diante de nós a nobreza da vida de qualquer um que ainda se veja como apenas mais um. Boyhood exala nobreza. Quantos filmes com essa marca voce tem visto?
   O pai, o adorável Ethan Hawke, é apenas um mentiroso. Sonha em ser um rock star, mas não muito. E acaba sendo um bom pai. Dentro do possível. A mãe escolhe maridos errados. Mas consegue educar os dois filhos. Apesar de ser uma distraída. Eu gostaria que o filme se concentrasse na filha. Ela parece ser muito esperta. Mas o menino é cativante. Finalmente um filme consegue exibir um silencioso e delicado adolescente sem cair no chavão. A geração é aparentemente quieta e deprimida porque o mundo lhes parece absurdamente errado. 
  Mais que um problema, nossa tragédia atual é a completa incapacidade que minha geração demonstra com a paternidade. Não importa se a geração de meu pai era hipócrita ou repressora, havia um papel para eles e eles o seguiam. Pai era provedor. Pai era protetor. E pai era autoritário. Mães eram ditadoras, preocupadas, davam comida e roupas quentes e queriam em troca amor e respeito. Claro que esse não era um mundo ideal, mas era um mundo possível. Hoje o mundo parece impossível. Os pais de hoje não são ruins, eles são raros. 
   Patricia Arquette foi uma mulher hiper sexy. E que nunca teve medo de perder essa condição. Faz a mãe. Comovente. Ethan Hawke é o amigo mais velho que todo moleque gostaria de ter. É quase um tio. Pai não. As melhores cenas são com ele e o filho. O menino é brilhante. A gente gosta dele. É um filho que todos gostariam de ter. E percebemos que filhos continuam a existir. E pedem o que sempre pediram. Ajuda. 
  Uma vez li a lista dos diretores favoritos de Richard Linklater. Havia Bresson. O maior elogio que posso fazer a Boyhood é esse. Ele é digno de um filho de Bresson. O cinema nunca mostra a vida como ela realmente é. Mas ele pode, em raros momentos, mostrar como a sentimos e percebemos. Boyhood chega lá.





O FIM DAS NAÇÕES ( E PORQUE CÉLULAS DE TERROR SÃO SEDUTORAS )

   Vejo um filme italiano, com o grande ator Totó, e um filme francês, com o mítico Raimu. E percebo, daqui do século XXI, que a França e a Itália não têm mais razão de ser. Usamos esses nomes como uma saudade, ou pior, como marca de produto. Existe hoje a comida italiana, assim como o vinho francês. Se vende para um turista a fantasia do romance na Itália ou de uma semana na Provence...Mas é tudo uma ficção. Porque assim como a Inglaterra é hoje apenas uma rainha e um sotaque, os dois países europeus são apenas uma memória na mente de pessoas razoavelmente cultas.
   Totó é todo um modo de falar e de gesticular que não mais existe. Seus valores, que são a amizade, a vagabundagem, a malandragem e o coração de manteiga não mais existem. Como se foi aquela nação de gritadores, de casas atulhadas, de montes de crianças e de tempo livre. O mesmo na França. Parecida com a Itália e ao mesmo tempo seu oposto, a França das longas conversas, das discussões, do jogo de bocha e das mentiras sem fim se foi. Hoje os dois são países higienizados, de arte sem sabor, sem sal e pimenta, e onde tudo parece uma Miami de coisas antigas recém pintadas. As originalidades de cada canto se foram. Viúvas de véu preto faleceram. Como faleceram os moleques de lábia afiada e os poetas de paletós imundos. Isso se vê em tudo. Cada vez é mais dificil ver um filme tipicamente italiano, ouvir uma canção bem francesa ou até mesmo perceber o caráter que fazia do calccio uma coisa diferente do futebol arte da França. É tudo o mesmo. ( E imigrantes logo absorviam o forte sabor do país. Não esqueçamos que o time francês de 82 tinha mais da metade composta de imigrantes ). 
   O mesmo se dá aqui e em todo o mundo. Dificil achar um brasileiro. Não que eu saiba o que isso seja, mas eu sei que ele, o brasileiro, não é como um peruano ou um chicano de L.A. Mas fica tudo cada vez mais parecido. Isso é bom ou ruim?
   Diziam, com suprema ingenuidade, que a globalização traria paz ao mundo. Que quando as diferenças específicas de cada país fossem esquecidas, todos se veriam como humanos, apenas humanos. Não é isso que vejo. O fim das especificidades trouxe o crescimento da individualidade. Se não existe mais o caráter original e único que me unia a meu concidadão, o sentimento de solidão aumenta e com ele o ""cada um por si"". O país de cada um passa a ser seu eu, somente o eu, e esse eu guerreia o tempo todo contra os estrangeiros, todos os outros. 
   Sem as festas populares folclóricas, sem os mitos da comunidade, sem o gestual e a história particular de um lugar, tudo o que resta é eu e minha história pessoal. ---Que horror!!!!!
   Não é por acaso que jovens desiludidos se unam a células terroristas. Elas prometem aquilo que as nações não mais oferecem: uma identidade, uma fé e irmãos com corações em comum. O homem precisa ter uma raiz. Itália sem alho e sem Totó, França sem creme de leite e sem Raimu não são um país. São apenas um lugar. 

BIG EYES/ JACQUES TOUNEUR/ MIKE LEIGH/ REESE/ MICHAEL REDGRAVE

LIVRE de Jean-Marc Valée com Reese Witherspoon e Laura Dern
Adoro Reese. Eu realmente a acho encantadora. E aqui ela tem seu tour de force. Faz uma garota que percorre toda a costa do Pacífico. Sózinha. Faz isso para tentar superar a dor. Heroína, a morte da mãe e o fim do casamento. O filme incomoda. Reese é mignon, sua bagagem é imensa. O roteiro é de Nick Hornby. E ele é um dos produtores. O filme é baseado num livro. História veridica. E faz belo uso de El Condor Pasa, canção de Simon and Garfunkel. Valée analisa a relação filha e mãe. É o centro do filme. Mas é um filme deprimente. Triste, muito triste. Existiram cowboys, beatnicks e hippies. Hoje os andarilhos são deprimidos. Aff....Nota 4.
MR. TURNER de Mike Leigh com Timothy Spall
Turner foi um dos mais impressionantes pintores do século XIX. De certo modo ele antecipou os impressionistas. Seu objetivo era pintar a luz e o movimento. Era um excêntrico. O filme de Leigh não romantiza nada. Spall faz um Turner muito desagradável. As pessoas aqui são feias, falam grunhindo. Isso é realismo? Ou essa busca do real não será outro tipo de afetação? A fotografia concorre ao Oscar 2015. O filme é bastante enfadonho. Ficamos duas horas vendo o balofo Turner grunhir, comer, e ser sovina. Nota 2.
GRANDES OLHOS ( BIG EYES ) de Tim Burton com Amy Adams e Christoph Waltz
Tim Burton é um feminista. Seus filme sempre defendem as mulheres. E não só elas. As crianças e os sinceros do mundo o encantam. Quando ele defendeu Ed Wood ele defendeu não um cineasta ruim, mas antes um homem que acreditava naquilo que fazia. Wood era sincero. O mesmo ocorre aqui. Keane é uma pintora medíocre, mas sincera. Como bem disse o José Geraldo Couto, Burton defende aqui o cinema bem feito, honesto, sincero, puro. Burton é um anti-David Fincher, um anti-Nolan. Tim Burton não tenta ser um artista, um gênio, ele nunca quis e não quer parecer, ele é. Keane é isso. Quando acerta Burton é um poeta. Quando erra, como em Batman, no Planeta dos Macacos, em Alice, ele parece apenas um diretor sem vida, sem inspiração, morto. Tim Burton não consegue filmar sem paixão, sem crer no que faz. Voce jamais o verá defender uma teoria, ser explícitamente político, tentar parecer mais que um cineasta. Ele filma. E tem o dom da imagem. Este filme é bonito. É moderno. E é de uma delicadeza quase sublime. Simples. Muito simples. E, como tudo em Burton, sincero. Como Wood, como Keane. Nota 8.
NA SOLIDÃO DA NOITE de Basil Dearden, Robert Hamer, Alberto Cavalcanti com Michael Redgrave
Foi lançado um box com seis filmes de horror. Eles variam do ruim ao excelente. Este é um filme inglês de 1948 muito bom. Um homem vai a uma reunião. Cada pessoa nessa reunião conta um caso de mistério e de horror que tenha vivido. Cada história tem um diretor diferente. A melhor é do diretor brasileiro Cavalcanti. Sim, brasileiro. Ele ainda é até hoje o cineasta brasileiro mais internacional da história. Fez filmes no Brasil e na França, Alemanha e Inglaterra. É a história de um ventriloco que é dominado por seu boneco. Nos outros contos se fala de fantasma, de pesadelos e de um espelho maldito. No geral há muito clima, excelente fotografia e um elenco brilhante ( com destaque ao genial Redgrave ), Nota 7.
A ALDEIA DOS AMALDIÇOADOS de Wolff Rilla com George Sanders
Um clássico! A história da cidadezinha que é tomada por uma nuvem. Quando ela se vai, todas as mulheres estão grávidas. Nove meses depois nascem crianças super inteligentes. São ETs. Como se livrar deles se eles podem ler pensamentos? É o único filme bom do diretor. Tem um estilo seco, trilha sonora tenebrosa e mexe com nossos nervos. Muito bom! Nota 7.
A NOITE DO DEMÔNIO de Jacques Tourneur com Dana Andrews e Peggy Cummings
Uma pequena obra-prima. Tourneur foi um diretor francês que fez carreira nos EUA. Dirigiu filmes noir, filmes de piratas, westerns e policiais. Todos bons, alguns geniais. Um americano vai à Inglaterra averiguar um homem que se diz bruxo. O filme narra o embate entre esse americano cético e o bruxo demoníaco. O filme é levado como um noir. Tem clima, estilo, suspense, escuridão. É uma diversão estupenda. Nota 9.

REVISTA DA CULTURA

   A REVISTA DA CULTURA traz encartada com ela uma revista de Portugal, a IPSILON. O contraste entre o mundo das duas é gritante. A brasileira tem aquilo que nossa cultura escrita nos permite: pequenos textos que mais parecem coisa de RP. De bom é ficar sabendo que KANDINSKY está sendo exposto no Rio e estará em SP mais tarde. Um dos cinco gigantes do modernismo, é obrigatório e inspirador. Fora isso, gente indicando cultura, tudo vulgar, agito nas cidades, banal, e ainda Alceu Valença, irrelevante desde 1980, Supla e seu irmão, irrelevantes desde quando nasceram ( seu único mérito é o mesmo de Carlos X ou de Pedro III, ter nascido onde nasceu ). Mais Leonilson, Colin Firth, ele é ótimo, o texto é Caras, Karina Buhr, lamentável. Jessica Lange traz fotos ao MIS. Ela foi uma atriz lindíssima e ganhou dois Oscars. Mas as fotos me parecem comuns. Uma matéria sobre a mania de colecionar coisas antigas. A volta do vinyl. Tudo óbvio. Moleques de 18 anos colecionam o que nunca viram, e portanto desmentem a saudade, porque tentam preencher seu vazio com objetos que duram, já que agora nada pode durar. OK. Jo Nesbo é autor policial. Parece bom. O perfil é amorfo. A revista é bem colorida. Aff.
  IPSILON tem fotos legais e textos Looooooooongoooooooos......  Lembra nosso joranlismo cultural dos anos 80. Um peso insuportável de pretensão, nenhum humor. Os temas são relevantes, urgentes e tudo é dissecado. Mas funciona ainda? Aqui no BR não mais. Ninguém mais lê textos tão longos, só os estudantes. Mas é preciso esse foco de resistência. Houellebecq lançou um livro que fala de uma França dominada pelo Islã. Polêmico. A França continua sendo um país covarde. Martin Amis e mais polêmica. Um romance sobre o holocausto. A Europa e seus assuntos mais pulsantes. Eles chegam amortecidos aqui. Nós ainda nos preocupamos com Cuba. Dario Fo entrevistado. Lança livro sobre os Bórgia. Vasco Gato é um poeta jovem português. Parece ruim. Miguel Gomes fez Tabu. Agora fez um filme de seis horas. Por um ano filmou Portugal. Criando ficção dia a dia, ao improviso. João Salaviza ganhou Cannes ano passado. Em curta. Lança seu primeiro longa. Sobre três adolescentes. Volker Schlondorff fala sobre Fassbinder. A volta de Pasolini, ele é moda na Europa de hoje. E música: Panda Bear, Mathew White, Pond, José Gonzalez, Laura Marling, Bob Dylan, Dan Deacon, Bon Iver, James Blake e Giorgio Moroder. Sleaford Mods, a melhor banda do mundo. O cara tem 44 anos!!!! Foi fã do The Jam, do Public Enemy, foi um fodido toda a vida. Seu discurso é: o capitalismo é um inferno. Cinco páginas. Boas. Dá vontade de ouvir. Ele diz que hoje se faz música bonita com guitarras, mas que sempre parecem saudosistas, o que é insuportável. Por fim João Bonifácio, portuga jovem que mistura Nick Cave com Tom Waits. Nome do estilo: Corno Maduro. 
  Entre o estilo foricultura da publicação brasileira e o estilo irado-chato da lusitana, ambas são insatisfatórias, uma por superficialidade e a outra por chatice radical. De menos, demais. 



 

JUDEUS RUSSOS, CATÓLICOS PAULISTAS, VITEBSKI E SP. CHAGALL LIDO AQUI.

   Talvez pelo fato de meus olhos serem muito mais refinados que meus ouvidos eu veja nas biografias dos pintores uma beleza maior que nas dos escritores. Começo a ler a biografia de Marc Chagall e imediatamente me apaixono pelo texto que leio. Fico bêbado com as palavras judaicas que descrevem o colorido da vida na cidade de Vitebske, em 1900. Reunidos dentro do império russo, na região que hoje é a Lituânia, a Ukrania, os judeus vivem sua vida que se pauta pelas datas da religião. Isso tudo é fascinante. A tribo que sobrevive a todas as tribos. A sujeira extrema dos pobres na ruas enlameadas, entre bichos e barracos de madeira, e o refinamento dos ricos, homens eruditos e mulheres que trabalham. O Chagall menino, bonito e mimado pela mãe dominadora, vive na baixa, bem baixa burguesia. A mãe é analfabeta, o pai trabalha como um animal de carga. As irmãs, muitas, são quase sombras. O menino Chagall ama a mãe e é correspondido em dobro. Um idilio. Tímido, ele fracassa na escola. Desenha bem. Estuda pintura. 
  Jovem, 18 anos, vai para São Petersburgo. Aguenta apenas um ano e meio lá. Sonha com comida. Dorme em um quarto imundo com seis outros. Divide cama com operário, pulgas e percevejos. Judeus não podem viver em Petersburgo. Ele é ilegal, sente medo. A cidade, construída sobre um pântano pelo czar Pedro, é uma joia de beleza colorida. Uma joia que enlouquece muitos. E por trás dessa beleza vive a favela. Vive o saudoso Chagall. 
  Ele volta a sua cidade e nela vê beleza. Chagall é dos primeiros artistas a perceber beleza na miséria. Sem folclorizar, ele dá a sujeira vida. Ele ama Gauguin, mas cria um modernismo único. Sem contato com Picasso e Matisse, Chagall cria um estilo que é só dele. Se Matisse é um fauve e Picasso cubista, Chagall é chagaliano. Ele vive revivendo cores e sombras de sua infancia. Na cidade feia onde nasceu ele guarda inspiração para toda a vida. É ainda 1909, e Marc Chagall, que lindo, viveria até 1985. Serão 98 anos de vida onde sua Vitebske jamais irá morrer. 
   Estou no trecho onde ele conhece Bella, a filha silenciosa de um rico joalheiro. Vejo as fotos de Bella. E recordo...
  Em junho de 1984 a TV Manchete, uma TV que queria ser chique, passou uma série chamada Conexão Internacional. Roberto D`'Avila viaja à St. Paul de Vence onde vive Chagall. Aos 97 anos ele dá uma entrevista que eu assisto. 1909-1984...Rússia - Brasil...No ano mais decisivo de minha vida eu vejo Chagall e fico emocionado. Após décadas ele parece um anjo.
  1966.
  Conheci também quintais imundos. Milhares de imigrantes europeus vinham para São Paulo e recriavam em suas casas o mundo onde haviam nascido. Nesses bairros de portugueses, espanhóis, italianos, turcos, libaneses, japoneses, judeus, poloneses, sempre havia quintais. Com galinhas, patos, coelhos, pombos, cabras, e às vezes até um porco. Videiras, laranjas, limões, tomates, alfaces, feijão. E rosas, rosas de toda cor. Ao lado dessa vida se tinha o sangue dos bichos sacrificados para serem assados. As tripas, os restos. As fezes que a gente pisava. Uma multidão de cheiros, de cores, de lixo, de coisas vivas, dos caramujos, ratos, sapos e pardais. Lama, porões e as velhinhas andando na rua com véu preto na cabeça. Esse universo de coisas fertilizam uma alma, criam espírito, enchem a cabeça de ideias. 
  Um garoto judeu nos cafundós da Rússia de 1900 pode então unir mãos a um garoto católico dos cafundós do terceiro mundo de 1966. E com mãos unidas vemos a morte de todo esse mundo. E usamos nossa memória e nossa vida para não esquecer. E nesse ato fertilizamos o agora. Alegramos a noite dura. E sorrimos dentro. 
  Entendo.

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA, TODOS OS SETE LIVROS- C.S.LEWIS. O PRAZER DA LEITURA.

   Lembro bem. Lembro do prazer que eu senti ao ler A ILHA DO TESOURO, de R.L. Stevenson pela primeira vez. Consigo ver o sol que iluminava as páginas e sentir o cheiro que o volume exalou quando livre do plástico que o aninhava. E esse prazer nascia da narrativa. Eu lia por causa de Jim, o personagem principal e não por causa de Stevenson. E eu estava lendo em Bristol e depois no mar e não em minha casa. A narrativa me levava a ler. Era a fé naquilo que é narrado. Eu não lia um autor escocês chamado Stevenson. Lia o que um garoto de Bristol me contava, Jim. 
   Esse é o prazer que reencontro em Lewis. Vamos tentar falar dessa obra imensa e magnífica. Li todos os sete livros. E digo, foi um tremendo prazer. 
   AS CRÔNICAS DE NÁRNIA começaram a ser publicadas em 1950, na Inglaterra. Nessa altura Lewis tinha 50 anos e era um homem conhecido. Professor em Cambridge, tinha programa de rádio e publicara diversos livros. Seu interesse central era o cristianismo. Nárnia seria portanto um livro cristão? Com certeza. Mas mais que isso ele é platônico. Para Lewis nosso mundo racional é apenas uma possibilidade. Mundos dentro de mundos, quanto menor, quanto mais dentro das coisas maiores elas ficam. Tudo o que vemos são pontas de icebergs. Perceber que isso tudo foi escrito na casa ao lado daquela onde Wittgenstein vivia e nas imediações dos físicos que criaram a teoria quântica faz todo o sentido do mundo.
   Logo se tornaram um sucesso e foram premiados. Como literatura infantil. E digo que uma das boas coisas de nosso tempo, 2015, é o fato de que a literatura infantil, assim como o cinema de animação, tem deixado seu gueto de lado. Existe boa e má literatura, não importa se para meninos, velhos, crentes ou ateus. Não importa se escrita por mulheres ou por indios. A literatura infantil tem duas coisas que a literatura ""mais séria"" tem temido tocar: a criatividade despudorada e a crença naquilo que se narra. Lewis acredita no que escreve.
   Será preciso falar da história? Do portal que une mundos? Um desses portais é um armário, outro é uma estação de trem ( Harry Potter bebeu muito aqui. Sem Lewis não haveria Harry. ) Mas pode ser um muro de jardim ou uma luz. Esse outro mundo é mais real que nosso mundo. Esse outro mundo é o mundo que suspeitamos existir. Lewis o descreve para nós. Nele há uma luta. Bem e mal guerreiam. É um mundo onde o bem é o bem, e o mal é o mal. Maniqueísta? Não bem isso, pois há gente má que se torna boa. Mas a luta acontece. 
   Nárnia tem muito de paraíso ecológico. Árvores têm alma e alguns animais falam ( não todos ).  As crianças de nosso mundo, que cruzam o portal, vão lutar pelo bem, passar por aventuras, crescer e voltar para cá. E há Aslam. 
   Aslam é um enorme leão. Ele criou Nárnia. E ele cuida do sentido das coisas. Mesmo que a vida pareça não fazer sentido, tudo se revela depois de um tempo. Visto à distância, cada um tem o que merece. Ou não. Pois Aslam só intervém em momentos decisivos. Sim, podemos dizer que Aslam é Jesus Cristo. Ele chega a morrer e retornar. E é admirável o modo como Lewis encaixa esses acontecimentos. Há uma lógica perfeita nessa fantasia. A crença na fantasia faz com que a tal realidade perca seu valor. Nosso mundo, lendo os livros, parece se tornar pouco importante. O mundo decisivo está aqui, mas não é o que vemos. Cada ato nosso repercute no universo mais real, no mundo de Aslam. É uma responsabilidade grande. E é isso que amadurece as crianças.
   O primeiro livro, na ordem em que Lewis desejou que fossem lidos, O SOBRINHO DO MAGO, narra a criação do mundo de Nárnia. Aslam cria todo esse mundo e Lewis descreve, com muita simplicidade, essas imagens. Há uma feiticeira do mal, as primeiras crianças da Terra, e a primeira explicação sobre a relação temporal entre os dois mundos. Mas, devo dizer, este talvez seja o mais fraco de todos os sete. É bom, mas jamais encanta.
   O segundo livro é o mais famoso, O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Este sim, completamente viciante em sua maravilha. Crianças, Lucia, Pedro, Susana e Edmundo, são transportados para Nárnia. Edmundo será seduzido pelo mal, Lucia será a mais poderosa em relação ao bem. Suspense e poesia se mesclam criando uma fantasia inebriante. Jamais sabemos se o bem poderá prevalecer. É uma saga que abre nossa mente para a criatividade. E é um belo livro.
   O terceiro se chama O CAVALO E SEU MENINO. É um dos meus favoritos. ( Tenho dois como favoritos ). Fala de fuga, travessia de um deserto, medo e sofrimento e tem um sabor de Mil e Uma Noites que me deixou completamente apaixonado. Acima de tudo, é este o mais aventuroso, o que esbanja mais ação e tem personagens muito bem descritos. O tipo do livro que voce sabe que um dia vai ler outra vez. E talvez com mais prazer ainda. O sol, a sede, a areia, voce vive dentro dessas paisagens e desses estados. Fantástico.
   PRÍNCIPE CASPIAN é uma delicia. Narrada por um anão, é cheia de mistério. Muitas lutas, muitas reviravoltas e talvez seja a menos simbólica dentre todas as histórias. Caspian é um grande personagem! Como voce já deve ter notado, cada livro acrescenta personagens. Cada livro se passa em uma época diferente.
   A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA é o quinto livro e é perfeito. Empatado com O CAVALO E SEU MENINO, é meu favorito. Num navio a remos e velas, partem os aventureiros em busca do fim do mundo. Este é o volume estilo ""história de pirata"". Personagens apaixonantes: RipChip é um rato que luta como um herói de Walter Scott. Ilhas de horror, de sedução, decepções, muitas surpresas. Lewis está aqui em pleno dominio. Um livro para guardar na alma. Sensacional.
   O sexto livro é de todos o mais triste e o mais trágico. A CADEIRA DE PRATA traz muita melancolia à saga e um sabor cristão bastante explícito. O sofrimento se acumula. É um bom livro, mas após tanta maravilha ele nos dá um travo azedo. Recomendo a quem for ler toda a saga que não faça o que eu fiz. Que leia os cinco primeiros e espere alguns meses para ler os dois últimos. O choque será menor.
   O último livro se chama A ÚLTIMA BATALHA e é o mais simples. Nárnia acaba, o mundo morre e Aslam surge para....Não conto o final. É um livro bonito, arremata toda a saga em tom de beleza, mas o auge de NÁRNIA está nos livros dois, três, quatro e cinco. 
   Termino este texto citando uma fala de A CADEIRA DE PRATA. Fala que explica toda a obra de Lewis.
   ...estou do lado de Aslam, mesmo que Aslam não exista. Quero viver como um narniano, mesmo que NÁRNIA não exista. Assim, agradecendo esta ceia, agradecendo a estes dois cavalheiros e a esta dama, estamos de saída para os mundos da escuridão.  Passaremos o resto de nossas vidas procurando o mundo de cima, o mundo de Aslam. 
   Se a vida real, a vida da Terra, é tão chata como voces dizem, prefiro este mundo de ilusão.
   Essa é toda a crença de Lewis. E diz ele que essa é toda a crença cristã. Apostar na fantasia crendo ser a fantasia a verdade final. 
   Há modo melhor de viver?
  

CLIVE S. LEWIS E A ESCRITA PARA CRIANÇAS

   Imaginário é algo que foi criado falsamente pela mente humana. Imaginativo é a tentativa da imaginação em responder algo verdadeiro, porém, obscurecido.
   A frase acima é de Lewis e se encontra como um comentário aos seus livros sobre Nárnia. Se nessa obra, por exemplo, os animais falam, há um motivo para isso. Não é um simples desejo de fantasia, que seria válido também, mas sim a busca por uma resposta. Segundo o próprio autor, os animais falam porque NADA nos autoriza a nos sentirmos donos de suas vida e de suas mentes. Eles falam como ato que lhes dá o direito de existir independentes da vontade humana. ( Já que o homem só dá direito àquele que pode falar). Lewis lutou contra as experiências feitas em animais, contra a tortura dos bichos e não é por acaso que um dos mais heróicos dos personagens seja um rato, exatamente o menos valorizado dos bichos. Digamos que Lewis fez conscientemente aquilo que a Disney fez sem querer: aumentou nossa estima aos animais através de sua humanização. Nessa luta, da qual faço parte, esse não é o caminho ideal, mas é o único que funciona. Porque a verdade é que o respeito aos bichos deveria vir do fato de eles serem radicalmente diferentes de nós e não por serem primos. O respeito deveria ser o da Noblesse obligée, a obrigação nobre de proteger os mais fracos.
   Mudemos de assunto.
   Em nosso mundo desconfiado, e por isso profundamente descrente, o autor dito sério sente-se proibido de narrar. É como se todo escritor adulto e talentoso tivesse a obrigação de desconfiar sempre. Desconfiar do entendimento do leitor, desconfiar da comunicação entre autor e leitor, ser blasé em relação sua profissão e mostrar a todos que ele, o criador, tem inseguranças e não sabe se aquilo que escreve pode ser considerado algo de real. A escrita adulta se torna assim sempre claudicante, tateante, escurecida pela dúvida. É como se o autor já partisse da certeza do fracasso. Ele pensa em não se entendido e não poder criar à priori. É a escrita da impotência.
  No mundo da literatura dita infantil ou juvenil, isso não existe. Por estar escrevendo em teoria à mentes mais jovens, o autor se solta e deixa de se preocupar com a realidade. No lugar dessa realidade social ou moral se coloca a verdade da fantasia. O autor se autoriza a criar, criar sem se preocupar em ser verdadeiro ou não, relevante ou não. Assim, a fé na narrativa pode assumir o controle. Pois se o autor comete o maior dos pecados, que seja, crer na força da narração, acreditar ainda no poder embriagador de um livro, isso se dá pelo fato de ele pensar estar escrevendo para gente que ainda está salva do cinismo. Gente pequena. Se o autor é um cinico, o que aqui não é o caso, ele escreve para não cinicos. E assim pode crer naquilo que conta, assumir essa fé e relaxar em seu oficio. Inexiste a necessidade de se ironizar.
  Os livros contam histórias. Boas histórias. Excelentes histórias. E nessas semanas me trouxeram a recordação do porque comecei a ler e do porque me apaixonei por esse ato privado. Por gostar de encontrar outro mundos que são meus mundos. Por adorar crer na verdade e um personagem, seguir sua saga e não ficar todo o tempo pensando no estilo e na originalidade de escrita do autor. Crer naquilo que se lê. Entrar dentro das páginas.
  Tudo isso acontece nesses livros. E assim tive muito prazer em ler. O prazer comum, simples e honesto. Escutei lendo. E li escutando.
   E guardo esse mundo dentro de mim. Passou a fazer parte. E, segundo Lewis, passou a fazer parte porque sempre esteve lá.