THE WHO LIVE AT LEEDS...O ABSOLUTO DESASTRE!

   Eu sei que voce ama este disco. Sei que é um clássico. E concordo que o WHO é uma das 5 melhores bandas da história...Mas poxa vida! Keith Moon estraga todas as músicas deste disco! Ele acelera e desacelera, nunca mantém a batida. Ele castiga os pratos sem parar um segundo. Faz barulho. Seu compromisso é com o show, não com a batida.
  Tenho um amigo de 70 anos que viveu 20 em Londres. Viu 3 shows maravilhosos do WHO. E nos 3 Keith Moon fez trapalhadas. Ele conta que o público estava sempre tão louco quanto Moon e que por isso adoravam. Mas que hoje ele não seria tolerado.
  Keith Moon teve a sorte de contar com o melhor baixista ao seu lado. Entwistle melhora as músicas ao vivo. Segura o beat. E há Roger, um dos raros cantores do rock que nunca desafina ao vivo. NUNCA. E Pete, que ao contrário de Keith, percebe seus erros, que são muitos, e imediatamente, e de forma genial, os concerta transformando-os em ritmo.
  A imperfeição do WHO é tão charmosa quanto a dos Stones. Mas os erros dos Stones nunca são rítmicos. Charlie é um relógio. O tempo está sempre acertado. Quem erra é Mick e Richards, e seus erros não irritam nunca, porque a batida permanece. Eles podem errar à vontade. Charlie aprendeu isso no jazz: baixo e batera não podem se perder. Nunca. São o alicerce da obra.
  Moon erra. Todo o tempo. E nas raras vezes em que se acerta, logo é tomado pela fúria, e volta ao erro.
  Um grande baterista em potencia. Que perdeu a disciplina. Mitch Mitchell era melhor. Ginger Baker também. ( Para falar apenas dos "estrelos" de seu tempo ).

VITIMAS

   Um livro de Dalrymple em que ele explica o sentimentalismo do mundo de hoje. O fato de que pensamos com os sentimentos, o que não é pensar. Julgamos tudo por aquilo que sentimos. O ato de pensar com a razão, com a lógica, se perdeu. Analisamos com o coração. E só com o coração.
  Nesse mundo sentimental, tudo é inocência. Temos pena. Muita pena. Rousseau e os românticos trouxeram a ideia de que todo homem é por natureza inocente, bom e pacífico, e que a sociedade o corrompe. Daí a ideia geral de que a vítima é o nobre do mundo da bondade.
  Hoje todos são vítimas e ninguém tem culpa nenhuma sobre coisa alguma. A condição de vítima se tornou mérito.
  Dalrymple cita Sylvia Plath. Uma poeta ok, mas que se tornou mito por ser mulher, suicida, vítima do patriarcado, da repressão à mulher.
  Não li o livro todo ainda. Mas Dalrymple fala do óbvio que poucos percebem. De que a arte hoje se ocupa quase todo o tempo de vítimas falando sobre vítimas. E que mesmo a arte do passado é vista hoje sob a ótica do vitimismo. Desse modo, Mozart, que nada tinha de vítima, vira hoje um mártir do sofrimento. John Keats, um poeta feliz, é visto como um pobre sofredor que morreu cedo.
  Penso em gente como Jim Morrison, Cobain, Ian Curtis, James Dean, Marilyn, o que eles seriam se tivessem sobrevivido. Muito, muito de sua fama vem da sua condição de "vítima". Do que: da tal sociedade.
  Os montes de escritores cujo maior mérito é serem apenas filhos de um país pobre ou parecerem infelizes. Autores vítimas, assuntos sobre vítimas, leitores que se pensam vítimas. Todos inocentes.
  O cristianismo ( atenção: Dalrymple não é religioso ), fala em culpa, exatamente o oposto. Nascemos todos culpados e devemos fazer obras que nos livrem da culpa. O pensamento vitimista é seu oposto: nascemos puros e devemos nos preservar do mal que vem sempre de fora. Esse modo de pensar conduz, inevitavelmente, à indiferença. Olhamos o mal como algo distante de nós, algo que é "da sociedade", e o máximo que podemos fazer é ficar longe, não nos sujar.
  Nesse "não se sujar" surge a raiz da coisa: somos todos babys limpinhos, vivemos em um mundo que conhece um conforto jamais sonhado. E com todo filho mimado, culpamos sempre "a vida" por tudo de errado que fazemos, vemos, ou deixamos de fazer. Somos inocentes. E se infelizes, somos vítimas.
 A responsabilidade inexiste.
 E cultuaremos cada vez mais quem nos lembrar daquilo que somos: frágeis, infelizes, vítimas.

O LIVRO DAS VIRTUDES - WILLIAM J. BENNETT

   Ganhei este livro, usado, como foi combinado, de uma amiga querida. No Natal a gente combinou de se dar um livro lido, usado, querido. Ela, que o leu em 1995, me dá um volume que fala da virtude, essa palavra tão esquecida. Mais que isso, palavra odiada. Pois adolescentes odeiam obrigações, e nosso mundo teen odeia a palavra que lembra vagamente algum tipo de comando, de ordem.
  Cada parte do livro é uma virtude, e para exemplificar essa virtude, o autor reúne contos, lendas, falas que expõem o que a virtude significa. Desse modo, ler o livro é mais que aprender sobre a lealdade, a bondade ou a fé; é tomar doses pequenas de alguns dos mais belos textos já escritos.
  O que mais me impressiona, por não os conhecer, são os discursos de alguns líderes americanos. Thomas Jefferson escreve de forma maravilhosa, e sua visão da democracia e do que a América deveria ser, é insuperável. Martin Luther King e o famoso "eu tenho um sonho" ainda emociona. E Lincoln falando sobre a guerra civil inspira respeito e coragem. É um tipo de liderança, calcada na certeza da missão e na crença do certo e do justo, que não temos mais. Pois somos feitos no mar caótico da dúvida e não há como ter certeza de nada e em nada.
  O livro tem ainda, ao final, belos textos chineses sobre o Tao, e parábolas bíblicas sobre o dever e a submissão.
  Eis um livro bom para se ter no quarto. Deve ser lido aos poucos, sem ordem, aberto ao acaso, como amigo ou como chá e café.

O HOMEM DO OUTRO MUNDO

   Ele morou na Barra Funda. Numa pensão. Pegava bonde para ir ao cinema. Na sessão das 6, em salas da São João, Ipiranga, via os filmes de John Wayne, Gary Cooper, Rock Hudson e Gregory Peck. Trabalhava num bar. Cultivava um bigode e jamais saía de casa sem um paletó.
  Antes disso ele morara em Santo Amaro. No tempo em que o bairro era feito por quarteirões de casas classe média e outras áreas de fábricas. Acordava às 4 e de carroça entregava pão e leite nas casas. Fazia quase sempre neblina e o cavalo trotava preguiçoso no calçamento de pedra. Ele tinha uma carta de condutor de animais. O leite, em garrafa de vidro, ficava na frente da casa, com os filões de pão embrulhados em papel claro.
  Depois se mudara para cá, já casado, onde moraria com a irmã. Era uma casa entre morros de capim e mamona, a vista ia longe, quilômetros de distância. A oeste o Pico do Jaraguá e a sul as estradas para o Paraná e interior. O trabalho era distante, no Brooklyn.
  Esse mundo morreu a muito tempo. Morreu nos anos 70, com as dinamites, as empresas de demolição, as avenidas largas e o metrô. Meu pai não reconheceria a cidade se estivesse vivo e pudesse andar por aí. Tenho certeza que odiaria aquilo que Pinheiros virou, mas talvez gostasse do Brooklyn e da Barra Funda de agora. Mais que a cidade, homens como meu pai não existem mais. Ou estão em vias de sumir. Homens com papel definido a cumprir, homens provedores, homens pai. Conheço dois ou três amigos que ainda seguem bravamente esse roteiro. Mas eles são questionados e se questionam todo o tempo. Pois nosso tempo tem a ilusão de que se pode viver sem um roteiro. Ignora que não ter um roteiro é um tipo de roteiro ( que já ficou velho aliás ).
  Ao sair do cinema meu pai tinha a certeza de ser um cara legal. O Gary Cooper da avenida Ipiranga. E como ele, um monte de Garys Coopers voltavam para suas pensões com essa certeza. É um outro modo de ver o mundo. E por isso, era outro o mundo.
 

trombone com vara: O TIGRE DA TASMÂNIA

trombone com vara: O TIGRE DA TASMÂNIA:    Quando tempos atrás andei lendo relatos sobre descobridores, os homens que desbravaram mares e continentes lá pelos séculos XVI ou XVII,...

leia e escreva já!

LORCA - IAN GIBSON. UMA DAS MELHORES BIOGRAFIAS UM DIA ESCRITAS.

   Li em 2006 e reli agora, onze anos depois.
   Ian Gibson, irlandês, se mudou para a Espanha e depois de anos em pesquisas, lançou o livro em 1989. E desde então é considerado um clássico em termos de biografias. O livro merece toda a fama que tem. Gibson escreve bem pra caramba. Ele não fala apenas de Lorca, ele fala, e fala com autoridade, da Andaluzia, da história espanhola, da cultura árabe, de flamenco, do duende. Fala do modernismo, de poesia, do catolicismo espanhol, de homossexualismo. E de uma multidão de amigos de Lorca, de Buñuel e Dali até o bibliotecário que cuidava dos livros da escola.
  E com tanta informação, o livro consegue ser leve, fácil de ler, nada pedante, um prazer. Nunca há no texto o ranço do estudo, o que lemos é como um romance, um muito bom romance. Pouquíssimos homens tiveram a sorte de ter um biógrafo tão bem dotado.
  O Lorca que surge do livro é um homem alegre, brilhante, carismático e incrivelmente curioso. Ele desejava conhecer tudo. Lugares, pessoas, músicas, peças, livros. Lorca começa como músico, filho de família rica, e sua poesia, sempre musical, cantante, revela essa raiz. O melhor do livro está no começo, nas histórias da família e do Lorca jovem. Mas ele é todo interessante.
  De todos os escritores que um dia chamei de "meu favorito", Lorca é o que mais sofreu em meu conceito. Comecei a ler poesia já com mais de 25 anos de idade, e comecei por Lorca e Whitman. Amava os dois, e via em ambos um convite para a vida. Os dois foram geminianos como eu, cantadores da estrada, do rio, do caminho e dos homens em ação. Ambos faziam amizades fáceis, mas permaneciam sós, talvez por sua sexualidade mal resolvida. Lorca, mais que Walt, sentia a repressão do meio sobre sua homossexualidade. Nele se fixou um tipo de mancha trágica em meio a tanta vida. Walt parece ter lidado melhor com isso. Difícil saber de fato, mas o americano dá uma imagem de um homem mais solto. Com menos culpa.
  Lorca, sempre um nome forte, foi tão imitado, tão visto como herói, que tem sofrido nas últimas décadas. Há um excesso de pequenos Lorcas pretensiosos no mundo. Sua poesia não tem mais me comovido. Desde que mergulhei em Yeats, Eliot e Stevens, Rilke, Keats e Dante, ele perdeu muito de seu poder.
  Mas como todo grande, ele pode voltar a ter seu antigo encanto.
  O tempo dirá.

A CHEGADA - A QUALQUER PREÇO - DOUTOR ESTRANHO - CAPT FANTÁSTICO

CAPITÃO FANTÁSTICO de Matt Ross com Viggo Mortensen.
Lixo. Quando se tenta o humor ele é sem graça e quando se faz drama ele parece fake. Fala de um pai que cria seus muito filhos dentro de um tipo de ditadura da liberdade. Não sei se Matt Ross percebeu isso. O que sei é que o filme fica em cima do muro. Faz críticas ao mundo e ao mesmo tempo pega leve com um pai escrotíssimo ( sim, Viggo é um pai de merda ). O fato de existir um filme assim mostra o quanto o cinema está sem noção.
DOUTOR ESTRANHO de Scott Derrickson com Benedict Cumberbatch, Rachel McAdams, Tilda Swinton e Mads Mikkelsen.
É um dos Marvels que mais esperei, e foi uma meia decepção. Os primeiros trinta minutos são bem legais, com o super egocêntrico doutor Strange. Mas quando ele vai pro Nepal, tudo desanda. Filosofices de botequim, cenas de ação sem beleza ou emoção e um herói que nunca parece heroico. Para minha surpresa, Cumberbatch combina com o papel.
A QUALQUER CUSTO de David McKenzie com Jeff Bridges, Chris Pine e Ben Foster.
O elenco é sublime. Chris e Ben são dois irmãos. Eles roubam bancos pequenos de cidades miseráveis. André Barcinski tem razão, é um filme dos anos 70 feito em 2017. O clima é o de A Última Sessão de Cinema, os personagens são os de A Última Missão e o filme evoca ainda coisas de Mark Rydell, Lumet e Boorman. O foco é todo nos personagens. Mostra-se quem eles são, como fazem as coisas, seu papo furado, seu jeito de ser. Jeff Bridges quase rouba o filme como um velho xerife racista. O fato de não o roubar mostra como Chris e Ben estão bem. Tudo funciona aqui. Um pequeno grande filme. Seria um sonho ele ser eleito o melhor filme.
A CHEGADA de Denis Villeneuve com Amy Adams e Jeremy Renner.
O diretor não está a altura do tema. Objetos imensos chegam a Terra. São 12 em 12 lugares diferentes. Equipes militares e de cientistas vão travar contato com os ETs. O designer dos seres é ótimo e o clima do filme adequado. Mas todas as escolhas são erradas. Se opta sempre por explicar o supérfluo e em não se abordar o mais interessante. Penso que é um caso de se subestimar a inteligência do publico. Um erro sempre fatal. Assim, não se mostra o processo em que se desvenda a linguagem dos ETs. A linguista simplesmente começa a se comunicar rudimentarmente, do nada, de uma hora pra outra. Mas, entenda, o tema é tão bom, que mesmo assim o interesse se sustenta. Tinha de ser uma obra-prima. Perdeu-se a chance. ( Lembrei de Contatos Imediatos...o modo como eu e meu irmão saímos do cinema em estado de graça e de euforia otimista em 1978... )
CURVA DO DESTINO de Edgar G. Ulmer com Tom Neal e Ann Savage.
Um filme classe C, pobre e comum, que hoje é cult e considerado por muitos uma obra-prima. É original. É estranho. É inverossimel. E é muito bom. Fala de um pianista da noite que faz todas as escolhas erradas. Pega carona e daí em diante tudo dá errado. Savage faz a mulher mais assustadora da história do cinema. O filme é um pesadelo noir.
FORÇA DO MAL de Abraham Polonski com John Garfield e Marie Windsor.
Um advogado corrupto participa da corrupção do jogo ilegal. O filme é bom. Amargo a não poder mais, Garfield faz um cara mal, mas nunca superficial, é complexo, tem matizes de bondade. Um filme bom de se ver e que tem em sua equipe um punhado de perseguidos pelo MacCarthismo.
O MUNDO ODEIA-ME de Ida Lupino
Uma diretora mulher nos anos 40, uma raridade. E que filme estranho! Feio, desagradável. Fala de dois amigos que dão carona a um cara. Ele os sequestra. E o resto são estradas, medo, restaurantes, hotéis e postos de gasolina. Árido. Assistir não é um prazer, mas ele fica na memória.

CAPITÃO FANTÁSTICO E OS HIPPIES DOS ANOS 90.

   Os hippies dos anos 60 eram drogados. E acreditavam na união. Tudo para eles era em grupo. Pensavam estar mudando o mundo. E mudaram. Talvez para pior.
  Os filhos desses hippies foram os materialistas dos anos 80. Eu fui um deles. Negaram os pais sendo realistas. Os anti românticos. Ciência, grana e pó.
  Nos anos 90 os irmãos mais novos dos caras dos anos 80 reabilitaram os hippies. Mas eram hippies pouco românticos. Estranhamente eram individualistas. No lugar de comunidades hippies, queriam seguir sozinhos pela estrada. As drogas não existiam como possibilidade de crescimento, mas sim como prazer. Os hippies queriam um mundo novo. Os caras dos anos 90 queriam um mundo melhor. Preservar e não destruir. Reciclar.
  Hippies originais plantavam e eram pacifistas. Os novos hippies caçavam e tinham uma postura de briga. As batas indianas substituídas por roupas camufladas.
  Este filme, bastante ruim, fala desses hippies. Um pai, que pensa ser liberal, e que na verdade é um ditador, cria seus filhos no mato. O filme fica em cima do muro. Não tem a coragem de o ridicularizar. Tenta agradar. Se torna ridículo.
  São hippies que trocaram flores por facas, Walt Whitman por Noam Chomsky, anarquismo por maoísmo. Eles passam o tempo lendo, lendo e lendo. Depois caçam e tocam violão. E roubam. Claro. Estão a um passo do terrorismo. E o filme, fofo, evita mostrar isso. É doente.
  Lixo.
  Me decepciona ver que há gente boba o bastante para levar tamanha porcaria a sério.

EPIFANIA

   Veio sem avisar. Sem ser pedida ou desejada. Apenas surgiu.
 Era sexta-feira e eram 3 e quinze da tarde. Eu estava na escola.
 Após semanas de calor seco, o tempo mudava. O ar estava úmido e mais fresco e o sol parecia mais gentil.
 Os alunos jogavam bola entre árvores mal cuidadas e eu me sentei num banco de cimento. E então aconteceu...
 Uma satisfação absoluta desceu sobre mim. A luz da tarde se tornou a mesma dos melhores momentos da minha vida, e então eu senti dentro da minha carne a paz que a tempos eu não conhecia. Um suave calor dentro da minha barriga e o ar entrando em mim como se fosse tão leve como quando as coisas começam a respirar.
 Os alunos jogavam gritando, corriam, pulavam e eu os olhei em detalhe. Era o mesmo jogo. Eram os mesmos garotos. Era a mesma vida.
 Pensei, sem qualquer tipo de emoção, na eternidade da vida, no jogo que se repete. Na eternidade que está aparente em tudo o que nos cerca mas que esquecemos de ver. O momento é de pura delícia, de clareza de sol.
 Um besouro surge e voa zumbindo. Faz evoluções em torno das árvores. Se demora, se vai.
 Minha epifania.
 O jogo termina.
 Outro dia tem mais.
 As sombras parecem doces. É o mesmo mundo de sempre. E depois chove. E tudo vai bem.

HISTÓRIAS DOS MARES DO SUL - W. SOMERSET MAUGHAM

   De 1930 até 1970, se voce falava o nome Maugham, 99% de pessoas leitoras sabiam quem era. Muitos filmes eram feitos baseados em seus livros, e a maioria tinha boa bilheteria. E ele escrevia muito, era um profissional da escrita. Romances, contos e peças, ele dominava todos os meios. Mas, por volta de 1970, ele começou a ser esquecido ( havia morrido durante os anos 60 ). Outro tipo de autor passou a ser mais vendido, autores que pegavam mais pesado em sexo e em violência.
 Maugham não é um estilista. Seu foco é o assunto. Ele escreve sobre personagens e sobre histórias, o que importa é o que é dito e não como é dito. Seu maior sucesso foi Servidão Humana, livro que detesto. O Fio da Navalha é um prazer, e em como todos os seus livros, contrabandeia filosofia oriental. Maugham, antes dos hippies, e de uma forma muito mais pop que Huxley, propagava ideias de fuga da civilização, vida alternativa, espiritualidade. Foi rei no tempo de Graham Greene, Agatha Christie, Pearl Buck, Waugh e Woodehouse. Todos autores brilhantes.
 Aqui são contos que têm em comum a ambientação nos mares do Pacífico Sul. Pessoas desgarradas, pessoas que encontram a felicidade, pessoas que sofrem com calor e doença, insetos e loucura. Ele descreve local, radiografa personagens e então parte a ação. São todos ótimos, mas um, chamado Macintosh beira o genial.
 Acho que Maugham está escondido em algum canto das livrarias. Procure. Esta minha edição é de 1957, tempo dos livros de capa dura sem desenho, sem nada. O título vinha apenas na lombada. Pois procure, certo que voce vai gostar.

A PEDRA DO JAPÃO. ( UM MODO DE TENTAR EXPLICAR O QUE NUNCA PODERÁ SER EXPLICADO.

   A manhã surge e nós a encaramos como uma imagem. Ou melhor, não a encaramos, apenas a aceitamos. Por não haver um passado, não a comparamos com outra manhã. E assim, não temos como concluir aquilo que ela será antes de ser. É manhã. Ei-la.
  ( E talvez ao reencarnar percamos toda a memória de outra vida exatamente para que possamos ver a manhã como a primeira manhã. Isso faria todo sentido. Pois para que voltar e ver a manhã de número milhão... ).
  Isso é a criança. A manhã é aceita como manhã. E é tão aceita que a gente a pega e brinca com ela. A manhã se torna mais uma parte de nós mesmos. E inventamos funções para ela. Ao brincar começamos a destrinchar as coisas e ao destrinchar a gente as destrói.
  Mas eu falo de antes. Antes de brincar. Falo de quando a manhã era uma coisa aceita em passividade. Falo de quando a gente é quase cachorro.
  ( Escrevo isto no jardim. E uma mulher passa com um nenê lindo no colo. E esse nenê não me nota. Nem mesmo nota meu cachorro. Nem as plantas ou flores. Ele ri e aponta a arara de madeira pendurada na parede. Vermelha e azul.  )
  Todo artista pensa e trabalha para poder despensar e destrabalhar. Ele tenta olhar a arara e se maravilhar só mais uma vez. Ou, ele tenta fazer alguma coisa que nos faça ver a manhã e a aceitar como ela é e não como foi ou como deveria ter sido. A gente embaralha. Mas embaralhar é estragar tudo. Pois o embaralhamento só pode ser feito por quem conhece o baralho.
  A linguagem humana nasceu para contar o número de sacas de trigo. E para prometer pagar o que se deve.
  A linguagem humana é apenas isso.
  Quando usamos a linguagem humana para falar de Deus, ou do amor, ou mesmo da criança, transformamos Deus em trigo, o amor em quilos e a criança em débito. A linguagem foi criada para contar, pesar, cobrar e prometer.
  Nem Deus, nem o amor, nem a infância e nem mesmo a guerra, nada têm com isso. Ao falar delas as vulgarizamos.
  Em 1971 meus olhos se abrem  e vejo a janela com sua cortina branca. Ela voa e a luz do sol passa e entra e bate no chão. Um galo canta longe. Minha mãe canta ao longe. Sinto no peito uma explosão. Essa explosão, e o galo e a cortina e a mãe e o sol são todos manhã. E eles são tudo naquela hora.
  Essa hora, nove da manhã em abril de 1971, não é, ali, hora. É sol e galo, mãe e explosão no peito. A hora não faz parte de nada que vive ali. O tempo está ausente. E por isso o sol, a mãe, o galo, a cortina são sempre. Além do lá.
  A intuição é o pulsar dessa vida infantil. Melhor dizendo: primordial.
  Intuir é o breve momento em que nosso corpo inteiro balbucia sem voz, em imagem: Eis o que é. Ou então: Nunca.
  Intuir é ver sem considerar a experiência. E sem temer ou desejar uma consequência. Não pesa. Não mede e não cobra. Então é sem linguagem.
  Traga-me uma pedra do Japão.
  Não sei para que ou por que.
  Mas traga.