O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS ( PRIMEIRA PARTE DE UMA TRILOGIA DE CINCO )- DOUGLAS ADAMS

   Pronto, viciei. Quero ler todo o resto. 
  Existem dois tipos de escritor. O estilista. O autor que escreve muito bem e cujo interesse está na forma, no modo como escrever. A escrita é a mensagem. Proust, Henry James e Flaubert são bons exemplos. E existe o imaginativo. O autor escreve para exercitar sua imensa criatividade. Ele tem ideias. O conteúdo sobrepõe a forma. Cito Italo Calvino, Evelyn Waugh e Wells como exemplos desse estilo. ( Claro que há quem brilhe nos dois estilo. Raros gênios como Borges, Sterne, Cervantes. Autores que escrevem bem e ao mesmo tempo têm enormes ideias ). 
  Em termos de criatividade, Douglas Adams foi um gênio. A forma é simples, ele escreve no bom estilo direto de Conan Doyle ou de Stevenson. Porém, o que o diferencia é a habilidade em criar uma lógica dentro do absurdo. Desse modo ler este livro causa o mesmo efeito de se ler algo sobre física quântica, ou seja, o absurdo levado ao matemático. O grande charme do livro não é seu humor, apesar de eu rir muito com ele, o charme é a criatividade. E é claro, nós amamos a mente criativa. Ela deixa nosso fardo mais leve.
  Veja a criação maravilhosa de um personagem como Marvin, o robot que sofre de depressão. Ou o modo como o planeta acaba, toda a cena num pub, onde por uma fração de segundo o barman, obtuso, percebe o que vai acontecer. Esse o charme maravilhoso de Adams, o humor brota no absurdo, mas jamais faz com que ele deixe de seguir uma lógica. A escrita deste excêntrico britânico é quase matemática. 
  Douglas Adams foi um esquisito. Viveu como vagabundo, foi hippie, foi operário e trabalhou na BBC. Este livro surge no fim dos anos 70 como série de rádio e vira febre no começo dos anos 80. Cada época tem a febre que merece. No tempo dos punks, pós-punks e new romantics este era o Harry Potter de então. Uma saga da desilusão. Morto aos 49 anos, no começo deste século, Douglas Adams honra a tradição de gente como Kevin Ayers, Wells, Waugh, o Monty Python e Noel Coward. O excêntrico. O humor do absoluto sem-razão. O nonsense. Fazer rir sem objetivo algum. O trocadilho. A mudança de rumo insuspeita. O prazer. 
  Li todo o livro em uma tarde. Ler é o maior dos meus prazeres ( talvez ), e ler alguma coisa tão surpreendente é um êxtase! 
  Como eu adoraria escrever assim!!!!!

UM APETITE PELA POESIA- FRANK KERMODE

   Numa aula uspiana a professora ataca aquilo que ela chama de ""cânone criado pela burguesia"". É a teoria criada nos anos 80 pelos americanos liberais. Ou seja, Cervantes, Dante ou Goethe não são clássicos por serem os melhores, antes por serem escritores de nações ricas. Eles são meros europeus, machos e brancos e o que eles escreveram só pode ser relevante para quem é branco, homem e europeu rico. Pode? Eu conheço essa teoria desde minhas leituras de Harold Bloom, que as combatia, em 1993. Destruir o cânone, diz neste livro Frank Kermode, é sempre obra de críticos que não gostam de ler, que têm preguiça e são insensíveis a arte da escrita. E noto que minha professora passa duas horas falando de sociologia, marxismo, psicologia e nada fala sobre um só autor. 
   Isso começou, segundo Kermode, quando as humanas passaram a perder relevância perante as biológicas e matemáticas. O impulso foi então o de transformar poesia e prosa em ciência e para isso se aproximou o estudo da literatura de ciências humanistas consideradas mais ""científicas"". Ou seja, sociologia, história, psicologia. Uma grande ilusão. Essas disciplinas nada possuem de científicas pelo simples fato de não poderem ser conferidas em medidas ou em eficiência perante a repetição. Perdeu-se o dom de analisar a literatura de dentro, com arte e filosofia, e jamais se conseguiu transformar o estudo de uma obra em ciência. Um fato é que um bando de pessoas que nada têm de cientistas, e menos ainda de literatos, se apropriou da crítica e da sala de aula na esperança de ter uma carreira respeitável, científica. Ovidio, Chaucer ou Racine passaram a ser analisados naquilo que possuem de mensurável, ou seja, no fato de serem homens, brancos e europeus. Aff...
   Wallace Stevens, Eliot e Empson merecem belos textos desse eminente professor e crítico americano. Um belo livro que me livrou do ranço de uma aula desastrosa.
   E perguntei para a professora: Ok. Que se jogue Shakespeare no lixo. E que se coloque no lugar uma multidão de autores indianos, árabes, africanos, ciganos e judeus. O que muda? Se perde o parâmetro, tudo se torna relativo, cada um na sua, cada um criando seu cânone. Eu gosto disso, mas esse mundo, que já é dominante a uns 30 anos, faz da literatura algo de mais futil e fácil, transforma o ato da leitura em simples diversão ou passatempo. 
  

Eric Clapton & Friends - Call Me The Breeze (Official Music Video)



leia e escreva já!

THE BREEZE, AN APPRECIATION OF J.J. CALE...ERIC CLAPTON AND FRIENDS.

   Na classificação de Ezra Pound, Eric Clapton seria um mestre e não um criador. Ao contrário de Jeff Beck e Jimmy Page, Eric nunca se preocupou em criar, seu negócio foi aprender, superar e divulgar seus ídolos. Aqui ele paga tributo a um dos maiores, o certeiro JJ Cale, um rei da guitarra econômica.
   Eric veio de toda aquela coisa blue. Ele, Peter Green, Mick Taylor, Jeff e Jimmy, Keith, Pete. Todos branquelos sonhando com o Mississipi e New Orleans. O Cream era a amplificação dessa vertente. Robbie Robertson desviou o rumo de Eric. Quando ele ouviu The Band sua vida mudou. A guitarra passou a ser mais refinada, sutil. Numa entrevista ele conta: Meu objetivo não é ser o mais rápido. É conseguir tocar uma só nota. A nota perfeita. A segunda mudança de Eric foi a descoberta da voz e da canção, isso via Stevie Wonder. Foi então que a presença de JJ Cale se tornou mais forte. Stevie Wonder trouxe voz e inspiração, JJ trouxe estilo, solos, climas. Essa sopa deu em Eric solo. 
   JJ Cale morreu em 2013. Pouco antes ele e Eric haviam gravado seu primeiro disco em dupla. Uma obra-prima de amizade, de troca, de rock`n`roll. Agora em 2014 Eric lança este cd só com músicas de Cale. São 16 faixas curtas com a participação de Tom Petty, Mark Knopfler, John Mayer e Willie Nelson. Nada disso, não é um desses impessoais discos de homenagens. A coisa aqui é intimista, discreta, como foi JJ Cale. O cd é obrigatório. 
  Raras vezes Clapton tocou tão bem. E impressiona o modo como todos cantam com a voz à JJ Cale. Até a voz de Tom Petty fica rouca como a do grande músico da Flórida. Guitarras dialogam com brilho, naquele estilo agudo, cigano que JJ popularizou. Disco feliz, disco que comprei hoje e que escutarei pelo verão afora. 
  Para quem não conhece, JJ Cale foi um cara influente que jamais estourou. De 1967 a 2013 foi uma longa e discreta carreira. Gravou bastante e esse seu estilo é discreto, simples, sinuoso, sofisticado e delicado. Sem jamais deixar de parecer viril. JJ Cale fazia música de homem, e sempre com ternura. Voz rouca e grave, seus discos exalam calor. O som de Cale é tropical, chuvoso. Ele combina com praia, estrada, carros grandes e camisas havaianas. E com uma noite de mojitos, de varanda com charuto, com lembranças. É sexy sem jamais ser exibido. Discreto sempre.
  Acho que ele teve uma boa vida. Encontrou um estilo único e o desenvolveu ao limite. Não procure nele a inquietação de Kevin Ayers por exemplo. JJ é o mestre que trabalha sobre seu molde. Perfeccionista. 
  Pena que nunca mais haverá um novo disco dele. 

The Last Time & Bitter Sweet Symphony



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MOFO ROQUEIRO

   O rock morreu quando deixou de ser futuro e virou saudade. Não existe rock onde gente com mais de 35 anos é cultuada. Entenda, Leonard Cohen ainda é relevante. Assim como Dylan ou Bowie. Mas isso que eles fazem não é mais rock. Pode ser arte, mas rock não é. Porque rock nunca foi música. Era revolta, era moda, era frescor e era juventude. E tinha de se inventar toda hora como futuro. Surpreender. 
 Em 1999 deixei de tentar ouvir bandas novas. The Verve simboliza uma das últimas tentativas. Mas na verdade era um morto revivido por um Dr Frankenstein. Dava até pra se divertir ( foi uma boa safra de covers recém compostos ). Ainda havia Blur e Oasis e mais uma porção de coisas que iam de Red Hot à Fatboy Slim. Na verdade nada de rock, era festa, uma festa que ainda me enganava. Logo o cheiro de bolor voltou, e eu tenho alergia a bolor. O fedor aumentou e passei a procurar novidades nas velharias que eu não conhecia. Se era pra ouvir bolor, melhor colher o melhor bolor. Love, The Band, Steely Dan, Kevin Ayers, Can, Gram Parsons, Nicolette Larson, Flying Burrito Brothers...Descobri tudo isso desde então. 
 The Verve era lindo. Lucky Man ainda me faz chorar. É bonita. Mas é antiguinha. De qualquer modo, os Gallagher ainda pareciam reais. Maloqueiros. Como real parecia Thom Yorke. Ou Flea. Eles sabiam das coisas. E sabiam acima de tudo que eram mortos-vivos. Vampiros. Cantavam canções que vieram tarde. Era rock? Só na forma. Era bonito? Claro que sim. Mas era mofo. Mofo e teias de aranha.
 Não desvalorizo sua obra. Digo apenas que sua obra é uma coisa triste. Repete como réquiem aquilo que se foi a muito tempo. Cantar os mortos é uma forma nobre de arte. Mas não é rock. Que canta a vida, mesmo que trágica. E não é potente, pois um zumbi não reproduz. Se voce notar, o que reproduz, o que fertiliza e inspira continua sendo o rock vivo de sempre, o rock feito quando vivo e confiante. Aquele que se foi no começo da década vazia. 
 Ouça o que postei e fique bem.
 Valeu.

BLAKE EDWARDS/ JULIE ANDREWS/ WYLER/ CUKOR/ CLIVE OWEN/ BINOCHE/ AUDREY/ WC FIELDS

   FRONTERA com Ed Harris e Eva Longoria
Fujam! Um lixo sobre imigrantes ilegais.
   POR FALAR DE AMOR de Fred Schepisi com Clive Owen e Juliette Binoche
O nome nada tem a ver com o filme. Ainda inédito aqui, fala de um professor de inglês com a corda no pescoço. Bebendo muito, corre o risco de perder o emprego. Uma nova professora de artes chega, amarga e com doença degenerativa. Os dois se odeiam e depois se amam. Parece uma tolice? Juro que não é! Tem bons diálogos, nunca desce a apelação, nada melado. Owen está excelente, faz um professor cínico, antipático e maníaco por palavras. Esse o centro do filme: a palavra ou a imagem, o que vale mais? Juliette, uma atriz por quem não morro de amores, está muito radiante.Nota 6.
   OS 39 DEGRAUS de Alfred Hitchcock com Robert Donat, Madeleine Carroll e Peggy Ashcroft
Talvez seja o melhor filme inglês de Hitch. O roteiro é totalmente inverossímil, mas who cares? Hitch era sempre assumidamente inverossímil. O que ele queria era poder criar grandes cenas e este filme tem várias. A cena inicial, no show de variedades, com seu sabor expressionista. Depois as cenas na casa do casal que dá abrigo ao fugitivo. Cenas no trem, na estrada, no hotel e por aí vai. O tema é caro a Hitch, um homem foge acusado falsamente de crime. Ação sem parar, humor, e muito, muito clima. A fotografia de Bernard Knowles é brilhante. Observe logo no começo a luz sendo acesa no quarto, o canto da tela iluminado e todo o resto escuro...Ótimo! Hitch faz aqui uma das mais perfeitas diversões. Nota DEZ!
   O MORRO DOS VENTOS UIVANTES de William Wyler com Laurence Olivier, Merle Oberon, David Niven, Flora Robson e Donald Crisp
Wyler foi o melhor diretor do cinema americano? Nada de surpreendente nessa pergunta! Ele tem 4 Oscars e dominou a arte de filmar comédias, westerns, dramas, peças filmadas e policiais. O livro de Bronte já foi filmado até por Bunuel e se aqui ele nunca atinge a magia do texto inglês, é de longe a melhor versão para a tela. E devo dizer, os primeiros 40 minutos são dignos do mais alto cinema. Heathcliff é adotado, se enamora da meia irmã, é banido e se vinga. O filme é tristíssimo. Olivier, jovem e belo, faz um Heathcliff vulnerável, sofrido. A cena na janela, em que ele acha ter visto o fantasma de Cathy, é soberba. Faça o teste do olho, veja como os olhos de Olivier mudam com o desenvolver da fala. Merle Oberon enfraquece o filme. Ela é bela e exótica, mas não tem a força selvagem de Cathy. A fotografia é soberba. Um belo filme do mesmo ano de ...E O Vento Levou. Nota DEZ.
   DAVID COPPERFIELD de George Cukor com Freddie Bartholomew, W.C.Fields, Lionel Barrymore, Edna May Oliver, Roland Young
Tão bom voltar a ver meus filmes dos anos 30!!!!! Aqui temos Cukor, um dos mais consagrados dos diretores clássicos e a adaptação, luminosa, do clássico de Dickens. Esqueça a pavorosa atriz que faz a mãe de David Copperfield e relaxe, o filme é uma deliciosa e encantadora viagem. David sofre pacas, mas logo encontra quem o ajude. WC Fields dá um show! Sua voz enrolada e pomposa e seu tipo falso nobre picareta casam perfeitamente com o filme. Mas quem rouba o show é Edna May Oliver, aterradora e encantadora como a tia de David. Uma grande produção de David Selznick. Nota 9.
   OS 3 MOSQUETEIROS de George Sidney com Gene Kelly, Lana Turner, June Allyson
Gene Kelly fazendo Dartagnan! Só em Hollywood! Esta versão, leve e colorida, alegre e boba, de Dumas, é um grande hit de seu tempo. E ainda diverte! Sidney foi um grande diretor de musicais, e apesar de ninguém cantar, o filme é levado no clima de um grande musical. Jogue fora seu senso de realidade e deixe-se apreciar tanta tolice bem feita. Vale muito a pena! Nota 7.
   DESTINO TOKYO de Delmer Daves com Cary Grant e John Garfield
O patriotismo deste filme envelheceu mal. Acompanhamos a missão de um submarino rumo ao Japão. Cary é o capitão, Garfield um marujo meio tonto e mulherengo. Filmes da segunda guerra costumam envelhecer mal. Não é excessão. Delmer foi um bom diretor de filmes noir e de westerns. Aqui ele se perde. Cary Grant está elegante como sempre, mas pouco tem a fazer. Nota 4.
   BREAKFAST AT TIFFANY`S ( BONEQUINHA DE LUXO ) de Blake Edwards com Audrey Hepburn, George Peppard, Patricia Neal e Martin Balsam
Nunca gostei muito deste filme. Acho-o superestimado. OK, Audrey esbanja chic, mas em qual filme ela não o faz? Então o reassisto pela segunda vez e nada espero dele, e talvez por causa disso o acho agora bacaninha. Incrível como toda coisa chic se mantém! Tudo em Audrey é chic, os óculos, as roupas, o gato, o modo desleixado de se portar, a loucurinha bobinha e até o jeitinho de falar. E acontece uma coisa engraçada, começo a achar que a personagem Holly é um travesti ! Pois é incrível como os travestís pegaram TUDO desta personagem!!!! O filme se torna então um tipo de farsa chic, um catálogo da Bazaar clássica, uma Vogue vintage, um luxo! Truman Capote escreveu e a trilha de Henry Mancini é tudo de bom! Um cocktail, um bibelô, uma mesinha de laca. Um mundo perdido que a gente insiste em amar. Nota 7.
   THE SOUND OF MUSIC ( A NOVIÇA REBELDE ) de Robert Wise com Julie Andrews, Christopher Plummer e Eleanor Parker
Após Mary Poppins eis que Julie surge como a noviça que vai cuidar de crianças na Suiça e as ensina a ser crianças. E o mundo se rende a ela. Este é o filme que tirou ...E O Vento Levou do alto das paradas. Um fenômeno! NUNCA eu vira o filme. Tinha preguiça e confesso, apesar de amar musicais achava que ele fosse bobo. Bobo? Ele é uma aula de otimismo, de beleza e de ritmo. As músicas, de Richard Rodgers são obras-primas, a direção, do mestre Wise, um cara que fez clássicos de boxe, sci-fi, comédia e drama, e Julie, uma figura esfuziante, enfeitiçante, com malícia inocente e uma liberdade fantasiosa irresistível. O mundo em 1965 se apaixonou por ela. Ainda percebemos porque. É um grande, grande filme! São 3 horas de completo prazer! Viva! Nota DEZ!

ECLIPSE- JOHN BANVILLE. EM 2014 A LITERATURA VAI BEM, OBRIGADO.

Um ator tem um branco no palco. Casado, pai de uma menina esquizo, ele vai passar um tempo na velha casa onde cresceu. Lá ele vê fantasmas, discute com a esposa que o visita e trava contatos, indesejados, com pai e filha do lugar. Esse o enredo deste livro do irlandês John Banville, ganhador do Booker Prize com O Mar e um dos melhores autores vivos. Ele tem um dom raro nos autores atuais, a escrita plástica. Como um Henry James mais quente e menos detalhista, ele sabe como descrever uma cor, um brilho, uma variação de clima. Esses os principais personagens, a praia, a praça, a casa, imensa, e as cores cambiantes do mundo. Repare quantas vezes ele fala de brilhos, de vento, de cor. O livro assim se torna colorido, vivo, uma fotografia animada, sentimos gostos, cheiros e mergulhamos dentro de Alex, o ator perdido. 
Alex é um pavão. Ele tem uma vaidade que chega a beira do repulsivo. O tempo todo, e ele sabe disso, ele se observa. Tudo é palco e todos são seus coadjuvantes. E mesmo assim Alex é um personagem cativante. O leitor gosta dele, se interessa pelo que ele pensa e sente. Sem jamais tentar ser simpático, e sem fazer nada de interessante, a não ser ver dois ou três fantasmas, Alex segura e ergue o livro com galhardia de herói e visões de poeta. É um romance profundamente poético, aberto a vida. sensível sem ser meloso ou pomposo. Banville tem vocabulário. Tem ritmo. Tem olho e ouvido. Sua escrita é um banquete de simplicidade sofisticada. 
Alguns trechos são de tristeza perigosa. Pantanosa. E de repente Alex pensa algo que ilumina o porão, seca o pântano e sorrimos. Deprimido? Sim, Alex está deprimido, mas essa melancolia não lhe tira a inteligência. Ele ainda vê a vida em cor e cheiro. A surpresa que o final lhe reserva, surpresa não surpreendente, antes indecente em sua crueldade, o derruba completamente, mas não o destrói. Alex vê coisas. Isso o salvará.
Há livros que intuimos serem para nós. Os lemos, sem ninguém nos indicar, no exato momento em que devemos lê-los. É o caso. Me pego muito identificado com Alex. Em seu passado de criança e em seu modo de ver o mundo. Conheço sua tristeza, seu medo, mas nunca vi um fantasma. Sei até o que é desabar num palco, sentir que se está nú na frente de estranhos. Uma mãe que é viciada em sofrimento e um pai que se esconde. Eu sei o que é tudo isso. E o livro cai em minhas mãos num momento desses, em que sentimos que algo vai acontecer. Nascer. Mudar. Irromper.
Bom poder dizer que se o cinema acabou, a pintura morreu e o rock virou uma farsa, a literatura está firme e forte, inteira, pronta para mais um século de espetáculo e de intimismo. Vale!

Carl Jung: Face to Face [FULL INTERVIEW]



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A LUTA BRASILEIRA À LUZ DE UM CLÁSSICO DE EMILY BRONTE.

   Um resumo: Heathcliff é trazido por um proprietário de terras para o Yorkshire. Menino escuro, sujo, cigano, ele é um mestiço. O homem diz tê-lo encontrado vagando por Liverpool, mas é mentira. Óbvio que é filho ilegítimo, bastardo. Assim, o herói desta obra-prima é maldito. Mas mesmo assim passa algum tempo feliz, crescendo ao lado de Cathy, sua meia irmã. E naturalmente os dois se apaixonam. Livres, selvagens, sujos, os dois são puro instinto e também muita fantasia. 
  Tudo muda quando morre o pai. Orfão novamente, Heathcliff é jogado ao papel de servo. Sua alegria vira ressentimento. Cathy permanece fiel, mas um dia os olhos dela se abrem para uma outra vida e ela se encanta pelo vizinho da propriedade. Esse vizinho, belo, rico, educado, hiper-civilizado, representa a nova Inglaterra, o país nascido a força na esteira da industrialização. Cathy se casa com o vizinho e Heathcliff imigra para a América, país jovem, onde se pode ser tudo menos delicado. Voltará rico e doido por vingança. O final será terrível...
  Como todo grande livro, este se presta a várias leituras. Quando o li aos 15 anos, tanto tempo atrás, o que sabia eu da vida? Ele foi como uma antecipação do futuro, do amor fou-maldito que eu queria viver e padecer. Mais que tudo, o livro então me pareceu gótico, tenebroso e muito assustador. Seduziu meu coração. Li novamente aos 30 anos, na angústia de um amor dolorido e perdido. Foi um consolo e li então uma história mística, uma ode ao amor como força maior que a morte. Percebi o romantismo real, o romantismo rústico, sádico, satânico do livro. Byron ri em suas páginas. 
  Então li pela terceira vez, aos 41 anos. Entediado, procurei nele a febre dos 15 anos e não a encontrei. Em vez disso, achei uma belíssima história, a saga de um rebelde. E aterrado, constatei que o personagem de Heathcliff ficara marcado em mim como chaga. Eu antecipava as falas, o livro parecia ser parte de mim. Ele é.
  Agora, aos 50, e espero poder ler este livro aos 70, aos 90...Percebo mais uma versão. Cathy e Heathcliff representam a velha nação, aquela morta pelo progresso. Quando ela se casa com o vizinho, símbolo dos novos tempos, época do inglês como o conhecemos, reservado, distante, educado, pragmático, Heathcliff fica só. A velha Inglaterra dos tempos de Chaucer, suja, impetuosa, violenta e falastrona se isola. Vai para a América. Cathy fica rica e bonita, mas sem alma, morta em vida. 
  Sim, isso é Byron, mas agora vejo que é Shelley também. O livro prega a igualdade, a volta do impulso, do instinto, da Merry England de Shakespeare e de Marlowe. Sem Heathcliff nada parece vivo. Quando ele volta a vida não volta com ele, Bronte sabia que nada retorna como foi, retorna como contrário. Heathcliff é agora a morte. Ele destrói, ele corrompe, ele suja e conspurca. Como um hooligan, um punk, um black-block, sua ira é apenas força cega, sem alvo. Em meio aos perfumados e pálidos novos ingleses, ele é uma lembrança daquilo que eles deixaram de ser. 
  Toda nação mata sua alma ao se enriquecer. A Alemanha assassinou sua alma mística e visionária. Ela voltou como nazismo. A França destruiu a nação dos alegres camponeses, os glutões bebedores à Rabelais. O Japão fez o mesmo com o mundo dos samurais e a Escandinávia engoliu seu universo viking. Os EUA fizeram isso numa guerra civil. Mataram nas baionetas o mundo de senhores de escravos e de aventureiros individualistas. O Brasil nunca. Se um dia fizermos aquilo que a Inglaterra fez em 50 anos ( entre 1750-1800 ), nosso Heathcliff será um tipo de baiano preguiçoso, macumbeiro, lutador de capoeira e muito sexuado. Esse será nosso ser reprimido. O tal brasileiro primitivo, arcaico, nossa alma, o carioca aberto, gozador, curtidor, o paulista caipira, contador de casos, fofoqueiro...Todos terão de ser trocados pelo novo brasileiro, um frequentador da avenida Paulista apressado, um viajante com hora marcado, um homem objetivo e de pés no chão. Pouco me importa se esse novo brasileiro rico será melhor ou pior. Ele será outro. Nosso país se faz na irreconciliável luta entre os dois, luta longe de ser aplacada. Luta que como provam os outros países, jamais é completamente resolvida.
  A mais bela cena é aquela em que Cathy percebe ser Heathcliff "" ela mesma"", o famoso: - Heathcliff sou eu! O mais antigo país moderno do mundo ainda é Heathcliff. Vemos isso na obra de vários artistas atuais e nos inexplicáveis surtos de ""barbárie"" que irrompem do nada. É a emergência da sombra, como sabiamente diria Jung. É a força que nos motiva.
  Como lerei este livro depois?

CINE FIAMMETTA E A MASTURBAÇÃO EM PINHEIROS

Lendo um livro de John Banville, Eclipse, um livro trágico, belo, de uma sensibilidade úmida, com um caráter pegajoso, me recordo do cine Fiammetta. ( No livro ele fala também de suas experiências, patéticas, em salas de cinema ). O Fiammetta ficava na rua Fradique Coutinho. Fradique...nome estranho que sempre me lembra um pássaro desajeitado. Mistura de Frade  com Dique. Fiammetta viria de Boccaccio? No Decameron tem um personagem com esse nome. Eu ia nas sessões da tarde, matando aula. Os filmes eram horrorosos. Causaria surpresa e muita estranheza se um garoto de 2014 tivesse a experiência estética de um cinema de bairro de 1980. Ele nos acharia idiotas. Ou masoquistas. 
Logo na entrada havia a bilheteria. O preço do bilhete era menor que uma passagem de ônibus. Sempre havia algum velho zanzando pela calçada e dois ou quatro adolescentes comprando balas. O tapete era fedido. Um cheiro de mofo, de suor misturado a pipocas. A sala, enorme e muito escura. Eu me sentava sempre no fundo. O coração disparado. Mais um filme com mulheres peladas. Quinze, vinte pessoas perdidas naquele cinema enorme. Silêncio absoluto, eu tentava sumir em minha tímida condição. Vinha a campainha e o documentário. Uma coisa deprimente, ruidosa, sobre o governo. Depois alguns trailers sem interesse. O Fiammetta tinha um projecionista que não sabia mexer nas lentes do projetor. O filme era sempre desfocado e muito escuro. Recordo de um filme italiano sobre freiras lésbicas. Todo picotado pela censura. escuro, incompreensível, mal se podia ver um peito, uma bunda. O filme, que já era uma tristeza, ficava como um pesadelo, uma mistura de escuridão, freiras, corpos pelados e o cheiro abafado da sala. E claro, pulgas. 
Eu realmente nunca entendi porque insistia em ir naquele inferno. Era sempre uma experiência desmoralizante. De volta à rua, anoitecendo, eu me sentia um pária. Parte daquele mundinho espinhento de masturbadores envergonhados. Sim meu amigo de 2014, a procura por imagens excitantes era um ato público. Não havia a limpa e anônima procura pela internet. Nós, jovens perdidos, andávamos pelas ruas, vagando por salas de cinemas sujos, disfarçando em frente a bancas de jornais, bancas que sempre tinham, vestido com paletó azul com furos de traça, um velho seboso como dono. Passávamos engolindo em seco em frente de um bordel. Masturbadores de rua, adolescentes vermelhos, suados, caspentos, éramos sujos, feios, asquerosos. Nas bancas comprávamos jornais para disfarçar a revista de mulher pelada que ia dobrada no meio do caderno de esportes. Nos cinemas entrávamos correndo para que ninguém nos visse comprando o ingresso e entrando na sala. E mesmo com todo meu saudosismo, não posso dizer que sinto algo de bom nessas lembranças. Era muito sofrido. Era um martírio. E sim, eu tremia de ansiedade ao abrir a revista, ao entrar no cinema. Calafrios, deliciosos, subiam pelo meu corpo. A visão das curvas e sombras femininas, a doce voz da mulher, a presença daquele mistério, um ser que era humano como eu mas que parecia em tudo meu oposto, me dava vertigens, pavor e uma sensação ao mesmo tempo de liberação, de poder começar a ser. 
Quem me dera ser um adolescente hoje. Poder assistir pornografia na segurança do lar, no meu quarto, só e limpo. sem risco e sem embaraço. Dividir esse videos com os amigos e comentar, reassistir no pátio da escola, no recreio. Quantas vezes eu desejasse. A distância de uma teclada. Longe dos velhos encolhidos, dos office-boys cansados, das pulgas e da imagem escura. Longe de 1980.

ELEIÇÕES E O CARÁTER DE UM PAÍS ( NÃO DE UMA NATUREZA )

Brasileiros são profundamente conservadores. Conservadores não por convicção, por medo. Dependesse de nós todo presidente seria reeleito vinte vezes. Às vezes queremos alguma mudança. Nossa tragédia é esperar que uma mudança possa acontecer sem que se mude nenhuma peça. Ao contrário do ditado, doamos os dedos e nunca o anel. Temos uma vocação para a monarquia. Pedro II é nossa saudade. Um tio benevolente. Essa coisa chamada democracia não nos interessa e alternância de poder nos apavora. 
É tudo tão feio neste país. É tudo tão lindo nesta natureza brasileira. Temos batalhado arduamente para destruir todo traço de beleza. Nós não damos grande valor a estética. Em tudo o que fazemos a beleza ocupa um espaço minúsculo. Não há no mundo país mais ao contrário de nós que o Japão. Somos o inverso radical de tudo o que os japoneses são.
Dilma terá mais 4 anos e depois mais 8 de Lula. E assim iremos nos conformar a nosso destino. Súditos. Tédio tropical vira indiferença. Dilma ou Marina, Aécio ou Luciana, que muda?
Vejo meus alunos. Eles não querem mudar. Têm 13 anos e moram em favelas. E mesmo assim nada querem de diferente. Sonhos? Sim, sonham em ter mais dinheiro. Mas nunca em mudar de vida. Para eles o mundo se resume a churrasco e baile funk. O dinheiro que desejam é para mais do mesmo. Mudar o que?
O rei deles é o rei do tráfico. O rei do futebol. A rainha da bunda grande. 
Talvez eles sejam sábios. Tenham descoberto, como os seguidores de Brahma, que a vida é uma ilusão e que nada muda a não ser mais ilusões.
Isso tudo se confirma com a vitória de Geraldo também. O estado está um lixo mas o medo é maior. Então, como sempre, vamos reeleger o bacana e esperar sentados que ele mude. Presos na lógica covarde do súdito e do rei.
Longe da Inglaterra.
Ontem no Estadão. Linda matéria dos Reali sobre a região da Cornualha. É o lugar do mundo que eu mais queria ir. Região isolada, oeste, verde e pedras, neblina e frio, mar e penhasco. Conan Doyle, Virginia Wolff, Tolkien, Agatha Christie, todos se inspiraram pelo lugar. Restos do castelo de Arthur. Cova de Merlin. 
Geografia é destino? Os restos de nossas senzalas, as casas grandes, os pelourinhos, as trilhas dos bandeirantes...mosquitos, barulho de macacos, mata cerrada, umidade. Cidades sujas, nervosas, mal desenhadas, feias, feias, feias, feias...
E a praia, linda, longa, sem fim. Praia a nos convidar, a dizer sedutora: Deixa pra lá...deixa estar...deixa ficar...
A Inglaterra é um convite a introspecção. Portugal chama preguiça. A Itália exala vaidade. Os EUA clamam o grito e o eco do poder. E o Brasil canta malemolente: deixa pra lá...deixa estar...deixa ficar...