SINATRA, INCONSCIENTE, LINGUA E MEUS BISAVÔS

   Felicidade é dirigir segunda-feira com Sinatra no som. Aristocrata da voz, dicção perfeita, suas frases se modulam como ritmo e como harmonia. A voz se sacode. E meu carro desliza entre carros que ouvem noticias ( que são sempre as mesmas ) e cds ( que são sempre os mesmos ). Sinatra na segunda é ser mais.
   Cientistas vasculharam todo o cérebro e alardeiam: Não encontramos o inconsciente. Tudo é mecanismo consciente. O cérebro reage a fatos "conscientemente", aquilo que não faz parte da intenção não existe. Weeellll...cientistas não entenderam que o inconsciente é uma questão de fé. Ele nunca será encontrado fisicamente, assim como jamais se achará o lugar da "alma". Humanidades, seja poesia, psicologia ou filosofia, lidam com possibilidades, com aquilo que pode ser, ou não. Não são ciências porque, como diz Henri Bergson, lidam com o movimento, com o ser e deixar de ser, com aquilo que era e não é mais. A ciência só lida com um momento congelado no tempo, com partículas, frações. Jamais acharão a alma porque ela é um movimento incessante, uma dinâmica. O trágico é quando uma humanidade deseja se fazer ciência. Ela se trai, admite sua pequenês e deixa de ver o processo. Passa a congelar seu saber, deixa de mudar, de evoluir. Nunca se faz ciência de fato, se faz coisa morta.
   Conversando com um amigo falamos da ancestralidade. Um dos modos de se reequilibrar ( se é que isso existe ), é reconciliar sua ancestralidade dentro de si. Ir em busca das raízes-vivas, forças que pulsam dentro de voce. As vozes que falam de onde voce veio. Um dos grandes erros da modernidade é essa crença na rebelião contra a origem. Quem disse que ser adulto é negar sua origem? Porque? Ora, o desinteresse por ancestralidade tem a mesma raiz do desinteresse por estética ou pela poesia. Burgueses odiavam tudo o que era aristocrático. Burgueses desconhecem sua linhagem, sua ancestralidade. Assim como eles abominam a poesia por não a compreender e ridicularizam a estética por desconfiar do próprio gosto, eles criaram o desprezo pelos antepassados por terem vergonha de suas raízes. Mas assim como sentimos o amor  poéticamente e ansiamos pelo que é belo estéticamente, vivemos a verdade daquilo que é nossa origem. Negar tudo isso, esconder sua raiz é negar sua profundidade.
   Voce aprende linguística no primeiro ano para depois saber que a sintaxe nega mais da metade daquilo que os linguistas postulam. Isso é humanidades.
   Sim, as fissuras em meu cérebro aumentam com minhas leituras. Ok. É um fato. Mas o que desejo saber é: Que processo transforma pensamento em palavra? E que via faz de uma palavra uma ranhura? Quero saber da coisa acontecendo e não das conclusões sobre o processo encerrado ( que serão desmentidas em dez anos ). 
   Minha professora quase diz que a linguagem nasce como cheiro. Sonho de todo poeta: Fazer de seu texto um perfume.
   Valeu.

A OUTRIDADE EM OCTAVIO PAZ, UM LIVRO DO CARAMBA!

   Todos os dias voce olha para a mesma rua e percebe a mesma coisa. Chega ao trabalho e faz as mesmas ações e tem pensamentos como os de sempre. Volta para casa com as mesmas sensações. E dorme tendo então os sonhos que desde sempre são seus. Mas um dia a rua lhe parece diferente. Aquela rua tão conhecida parece estranha. Assim como o carro e o trabalho. Voce percebe nas pessoas coisas antes não percebidas. Volta para casa e no espelho não reconhece mais seu rosto. Os sonhos serão outros. Voce está só diante do mundo. Absolutamente só. Eis o momento do salto mortal, da descoberta do outro, do conhecimento do vazio, do cair e ir adiante. É essa a outridade, mais que isso, é essa a condição verdadeira da vida. Nós não somos alguma coisa, não somos nem mesmo uma coisa, somos uma construção sempre sendo construída, somos o que seremos e não chegaremos a ser, somos um outro e nessa outridade somos tudo.
   Horror. A primeira sensação é o medo. Voce perde o ponto de apoio. As certezas se vão. O que era azul pode ser preto. O que era confiável torna-se enigma. Sem outra escolha voce dá o salto: Faz-se um outro e percebe que o homem é isso. Vem a felicidade inenarrável. Não somos uma cadeira, objeto que sempre será aquilo que é. Não somos um cavalo, ser que é sempre o mesmo. Somos um homem, um ser que nunca é, ele sempre será. Nesse momento de salto, nesse conhecimento do abismo e do nada, nascem três forças que guiam o ser: O amor, a religião e a poesia. Todas possuem a mesma origem, o nada e a mudança, cada uma age a seu modo. O amor reconhece o vazio e traz a mudança na forma de um encontro com um outro. Um outro que é a mudança que se faz em voce mesmo. A religião traz a elevação da vida e a anulação da individualidade na comunhão com algo maior que o ser, seja Deus seja o cosmos. A poesia traz a transformação do vazio em imagens, o nada se faz palavra, a experiência se traduz em texto, o texto será compartilhado pelo leitor que provará a experiência do autor. Em comum nas três, amor, religião e poesia, a estranheza perante o cotidiano, o horror original da não-fixidez, a transformação e o maravilhamento. O reconhecimento de que eu sou nada. Sou um outro. Que jamais será.
   O mundo da modernidade, aquele que nasce por volta de 1790, abomina tudo o que parece aristocrático. Ele ama o que é útil, o que trabalha em prol do todo. As coisas devem ter uma função, fazer parte de uma maquinária. Tudo deve ter um peso, uma realidade que possa ser avaliada e vendida. O que não se encaixar nesse maquinário será ignorado. Ou pior, será aberração. Será doença e com esse rótulo estará vendido.
   No amor, na religião e na poesia existe a inspiração. Um momento em que voce se deixa levar e faz, fala, age como nunca antes. Um outro surge em voce e o mais estranho é que esse outro "é mais voce que voce mesmo". Porque o sentido dessa outridade, dessa eterna mudança, desse salto mortal é o de fazer de voce cada vez mais voce-mesmo. Estranho: nesse salto para frente voce tem a sensação de voltar. Retorno a que? O tempo é abolido no amor, na religião e na poesia. Voce torna a ser o que foi. Mas esse passado nunca existiu. Forma-se um círculo: voce é seu amor, voce é Deus, voce é a poesia que voce faz mas que não é feita pelo eu de antes mas sim pelo novo-eu, um outro. Se a modernidade é uma reta rumo ao futuro, o amor, a religião e a poesia causam asco por serem círculos, negam a reta, se voltam para dentro, dão um salto adiante que é um retorno, vêem no futuro o passado que é presente. Sabem que a reta é uma armadilha que faz do homem um ponto da reta, um ponto que será fixo, acabado, pronto, util e esquecido.
   A modernidade irã chamar o amor de mero instinto de procriação. A religião de doença. E a poesia de sublimação. Rótulos que nada explicam. Apenas colocam um veredito e encerram o caso. Não importa o que é a poesia, o que não se explica é: como ela se faz. O que leva a mão a criar imagens, a fazer das palavras um instrumento de maravilhamento. Porque alguns "doentes" fazem poesia e outros nada fazem? Não seria o caso de se dizer que a vida "normal" é uma sublimação da poesia? Que a repulsa a religião seria a doença? Ou que o instinto sexual nega o amor?
   Houve um tempo em que a poesia era aceita como fato cotidiano. Dante recebia inspiração e naturalmente a aceitava. A questão era: como traduzir em palavras a inspiração? A partir da modernidade, pressionado pelo mundo utilitário, o poeta precisa justificar a inspiração. Ser um poeta deixa de ser um dom e passa a ser um problema a se resolver. O poeta se justifica. Toda a poesia moderna é uma justificação. O poeta tenta se explicar, se aceitar e ser aceito. Nega a inspiração, chama esse dom de "trabalho". Tenta ser um operário. Tenta transpirar. Nega a poesia.
   O mesmo se dá com o amor. Ele deixa de ser uma transformação e passa a ser uma conquista. A religião deixa de ser mistério sagrado e se faz regra de bem viver. Todas os três saltos mortais negam sua outridade, não propõe mais a transformação, passam a ser um tipo de pirotecnia do salto, um engodo.
   Neste mundo em crise, mundo tão frágil que nega a morte, a transformação e o todo, mundo que luta para ser claro, uniforme, planejado, o homem, esse ser em construção, ser que tem por condição a mudança, se vê sem amparo. Nega dentro de si o salto, a estranheza, o vazio e o nada. Com medo, foge daquilo que é na verdade a vida, a consciência do todo, de se ser um nada, um nada que luta para ser mais.
   Nascemos para nascer sempre. Nascendo morremos sempre. Somos a vida e somos a morte. Morremos todo dia, nascemos todo dia. Criamos, nos libertamos. E fazemos tudo outra vez. De outro modo, sempre. Sempre que é já. Que foi. Que será. E que passou.

OCTAVIO PAZ E O NOSSO "OUTRO"

   Entrei em minha primeira faculdade aos 20 anos. Era uma época em minha vida muito confusa. Lembro que eu amava Dostoievski, Heminguay e Philip Roth e era incapaz de ler poesia. Tinha a certeza absoluta da inexistência de Deus e exibia uma imensa arrogãncia ao dizer que o homem nada mais é que um erro da natureza. Mas em meio a todo esse narcisismo, eu me traía. Delirava em viagens psicodélicas, mergulhava na música de Mozart e tinha uma profunda comunhão com o mar. Havia uma contradição em mim. Eu vomitava frases de certeza e de não-transcendência, mas vivia em busca de transcendência e de encontrar aquilo que não tinha. Só e muito infeliz.
   Então escrevi na primeira aula de Português uma redação que deixou a professora impressionada. Ela havia posto o Bolero de Ravel para tocar e havia pedido para escrevermos sem pensar, sob o efeito da música. Escrevi algo sobre estar perdido no deserto, só, e então encontrar uma imagem que diz tudo no silêncio e se desfaz para sempre. A professora me chamou e disse que eu devia ler Octavio Paz. Agora, 30 anos depois, cito frases de O Arco e a Lira, obra-prima do grande mexicano.
  " Os estados de estranheza e reconhecimento, de repulsa e fascinação, de separação e união com o Outro, são também estados de solidão e de comunhão conosco mesmos. Aquele que realmente está a sós consigo, aquele que se basta em sua própria solidão não está só. A verdadeira solidão consiste em estar separado de seu ser, em ser dois. ......O homem anda desamparado, angustiado buscando esse outro que é ele mesmo. E nada pode fazê-lo tornar a si, exceto o salto mortal: o Amor, a Imagem, a Aparição.
   ....Os primeiros a perceber a origem comum do amor, da religião e da poesia foram os poetas. O pensamento moderno confiscou essa descoberta para seus fins. Para o niilismo contemporãneo poesia e religião são apenas formas de sexualidade: a religião é uma neurose, a poesia uma sublimação. Todas essas hipóteses denunciam o imperialismo do particular, característico das concepções do século XIX. Por que não pensar então que todas essas experiências têm por centro algo mais antigo que a sexualidade, a organização econômica ou social, ou qualquer outra "causa"?
   ....A nostalgia da vida anterior é pressentimento de vida futura. Mas uma vida anterior e uma vida futura que são aqui e agora e que se resolvem num instante relampejante.  Essa nostalgia e esse pressentimento são a substãncia de todo grande empreendimento humano, quer seja um poema, um mito religioso, uma utopia social ou um feito heróico. 
   Religião e Poesia tendem a realizar de uma vez para sempre essa possibilidade de ser que somos e que constitui nossa própria maneira de ser, ambas são tentativas de abraçar essa "outridade", que Antonio Machado chamava de essencial heterogeneidade do ser.  A experiência poética, como a religiosa, é um salto mortal: um mudar de natureza que é também um regressar a nossa natureza original. Encoberto pela vida prosaica ou profana, nosso ser de repente se recorda de sua identidade perdida, e então emerge, aparece esse outro que somos.
   A liberdade do homem se funda e se radica em não ser mais que possibilidade. Realizar essa possibilidade é ser, criar-se a si mesmo. O poeta revela o homem criando-o. ....Entre o nascer e o morrer a poesia nos abre uma possibilidade que não é a vida eterna das religiões nem a morte eterna das filosofias, mas um viver que envolve também morrer, um ser isto que é ser também aquilo.
   A poesia afirma que a vida humana não se reduz ao "preparar-se para morrer" de Montaigne, nem o homem "ser para a morte" dos existencialistas. A existência humana encerra uma possibilidade de transcender nossa condição: vida e morte, reconciliação dos opostos. Nietzsche dizia que os gregos criaram a tragédia por excesso de saúde. E assim é: somente um povo que vive a vida com total exaltação pode ser trágico, porque viver plenamente quer dizer viver também a morte. 
   A impossibilidade de achar uma resposta que explicasse realmente a criação poética, a inspiração, transforma-se, desde o século XVIII, numa condenação de ordem moral e estética. ...Inspiração passa a ser chamada de preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. DELIRIO E INSPIRAÇÃO passam a ser sinônimos de LOUCURA E ENFERMIDADE. O ato poético deve ser então trabalho e disciplina, luta contra a corrente. É a moral burguesa se assenhorando do campo estético."
   Cito esses trecho, poucos em meio a tantos. Ofereço-os a voces e espero que os entendam. O livro, imenso, é uma revolução, uma revelação. Ele ensina mais que ler bem. Mais que entender certo. Ele ajuda a viver, ele resgata, ele elucida. A cabeça de Octavio Paz deveria ter sido convertida em tesouro. Imorredoura.
   

ARGO/ BURT REYNOLDS/ JOHN STURGES/ PIERCE BROSNAN

   ARGO de Ben Affleck
Um filme que é estéticamente como um episódio de série da TV. Miserávelmente pobre em termos visuais, tosco como desenvolvimento de personagens. Argo não é melhor que 24 Horas ou Os Sopranos. A TV está mais rica e o cinema ficou indigente. Desde 1997 ele tenta captar os tvmaníacos fazendo aquilo que eles  se acostumaram a ver. Não tem dado certo. Well...Esquecendo isso tudo, este é um filme legal. Exatamente isso, legal. O final tem um suspensizinho básico. Retrato de sua pobreza: Não lembro de mais nada no filme. Sou incapaz de descrever uma cena completa. A trilha sonora é desastrosa. Os hits da época entram sempre na hora errada. Affleck passa todo o filme com a mesma expressão. Alan Arkin e Goodman deveriam aparecer mais. A história é maravilhosa, mas não foi criada por ninguém do filme, então não é mérito dessa produção da Warner. Oscar de melhor filme. Sinal dos tempos, em 1972 ou em 64 não seria indicado. Voce, como eu, vai se divertir. Se desligar o senso de estética.  Nota 6.
   GOLPE BAIXO de Robert Aldrich com Burt Reynolds
Adam Sandler assassinou este filme em 2005. Esta é a versão original. Um jogador de futebol americano decadente vai preso após surrar uma mulher. Na prisão ele é "convencido" a formar um time de prisioneiros para enfrentar e servir de sparring ao time dos guardas. É um filme pop que se tornou cult nos EUA. Grande bilheteria em 1974, ele tem o espírito da época: Parece realista, crú. Aldrich adorava temas viris, machistas. Era um diretor brilhante para ação e para o clima de vestiário masculino. Burt começou a virar star aqui. Ele e Clint Eastwood seriam os top da década. O filme é bem divertido e o jogo final consegue ser engraçado e emocionante. Boa diversão. Nota 7.
   DUELO NA CIDADE FANTASMA de John Sturges com Robert Taylor e Richard Widmark
Que maravilha!!! Comprei alguns westerns que nunca vi !!! Este, muito bom, fala de um ex bandido, agora xerife, que é raptado por ex companheiro. É levado para guiar o bando até dinheiro roubado que foi escondido. Widmark é o bandido, claro. Seu rosto foi talhado para esse tipo de papel, parece sãdico. Tem prazer em fazer o mal. O filme se desenvolve nessa viagem rumo ao dinheiro. Robert Surtees fez a fotografia. As Montanhas Rochosas brilham em cenas de bela aventura. O final tem solução plausível e todo o filme voa sem jamais parecer estático. Sturges foi um mestre da ação. Entre 1955 e 1965 não errou uma só vez. Nota 7.
   SANGUE DE PISTOLEIRO de Phil Karlson com Van Heflin, Tab Hunter e James Darren
Vejam só...este é um western barato da Universal. Fala de um pai, dono de terras, e seus dois filhos. Um é vaidoso e racista, o outro é sensível e passivo. Ambos odeiam o pai, pai que é um tipo de super-macho alfa.   O roteiro se desenvolve nos conflitos entre os três. O final é trágico  e muito amargo, me emocionou.  Surpresa, é um grande filme! Após seus primeiros minutos, que são banais, a coisa vai num crescendo e atinge contornos operísticos. Voce se envolve completamente com essa familia quebrada, doente, sem saída. Karlson, que nunca deixou de ser um cineasta classe B, fez aqui um muito belo filme. Nota 8.
   MULHERES À VISTA de JB Tanko com Zé Trindade e Carlos Imperial
Adoro Zé Trindade, o malandro baiano que vive no Rio. Aqui ele quer montar um grupo de teatro de revista. Mas não tem dinheiro. Usa a lábia para se dar bem... Filme ingênuo e sou obrigado a dizer, funciona mal. O texto é fraco e Zé Trindade nada tem a fazer. Nota 3.
   TREZE CADEIRAS de F. Eichhorn com Oscarito, Renata Fronzi e Zé Trindade
Barbeiro herda 13 cadeiras sem saber que uma delas esconde fortuna. Oscarito foi o ator mais famoso do Brasil dos anos 50. Mas é estranho vê-lo hoje, parece triste! O filme não é ruim. Também não é grande coisa. Zé Trindade faz um tipo que me agrada: um pobre coitado dominado pela esposa. São dele os melhores momentos. Nota 4.
   AMOR É TUDO O QUE VOCE PRECISA de Susanne Bier com Pierce Brosnan e Trine Byrholm
Pierce, o melhor James Bond após Sean Connery, está de volta. E ainda transpira charme. Ele é um homem rico, viúvo, que trancou o coração e nada mais quer com namoro. Trine, excelente atriz dinamarquesa, sobrevive a quimioterapia e descobre o marido com uma amante jovem. Na Itália irá se realizar um casamento. A filha dela com o filho dele. É claro que eles vão se apaixonar. E surpreendentemente o filme funciona. Apesar de algumas cenas de uma tolice inexplicável, o interesse se mantém. O casal parece verdadeiro e torcemos pelos dois. Susanne tem aquele rigor luterano de tudo o que vem da Dinamarca, parece que ela se recusa a se soltar, a se deixar ir. Mas os atores vencem, a Itália vence e o filme agrada. Nota 6.

ABORTO, COELHO, CACHORRO E MARXISMO...QUANTA CHATICE...

   Ninguém merece uma aula de romantismo em viés Hobsbawn. Grande defeito dos marxistas: Eles superestimam o capitalismo. Toda a história da burguesia do século XIX contada como se fosse coisa racional, hiper-planejada. Não foi e não é. O capitalismo improvisa todo o tempo. Dizer que o conceito de nação foi criado pelos burgueses para poder negociar (???? ) e que a igreja foi secularizada para colocar o dinheiro como novo deus...Bem...Isso até pode ter acontecido, mas ninguém planejou. Por pretender ser racional e planejado, o marxismo sempre vê em tudo um plano oculto e bem bolado. Bobeira. Segurei o riso diante de tanta besteira. Na verdade a tendência do capital é abolir nações, não o contrário como disse a mestra. O dinheiro odeia fronteiras. Na prova terei de escrever mentiras...chato.
   A discussão entre Coelho e Calligaris na Folha exemplifica e desnuda o calcanhar de aquiles de todo pseudo-pensador. Nenhum dos dois dá chance a qualquer pensamento original. Cria-se um arcabouço virtual, um tipo de armadilha contra os discordantes e se expõe uma teoria dentro desse campo bem seguro. Primeiro se pensa a solução e depois o problema NÃO É analisado. Um quer ser realista, o outro pensa ser ético. O realista esquece que viver é prática, as coisas são independentes de nossa vontade. A tortura existe. Gente tortura. Torturar é errado. Todos torturariam em dada condição. Qual a novidade nisso? Pior o Coelho que, pasmem!, se recusa a responder! Pudicamente ele não admite falar que em dadas circunstâncias, sim, ele faria tortura. Weeellll...Paulo Francis daria um fim nessa lenga-lenga mandando todos pro castigo e dizendo: Cresçam.
   Francisco é um belo nome e remete ao último grande momento do catolicismo ( já se vão mais de 700 anos ). O que espero é que ele seja um melhor homem de ação. A caridade é o valor exemplar que o catolicismo criou e deveria voltar a advogar. Em ato e não apenas em oração. Quanto a corrupção e hipocrisia, qual o organismo politico que não o tem? Quando falo catolicismo falo de indivíduos que seguem a lei de Paulo. A força politica centrada em Roma pouco me importa. São mentirosos. Mas o fato de haver crime entre os religiosos não desqualifica todo o dogma. A medicina não pode ser desacreditada por causa de um médico assassino ou um país por causa de uma casta corrupta. 
   Disse uma frase que ofendeu uma amiga londrina. Disse que é ridiculo esse povo que defende a vida de cães de rua ( que adoro ), urrarem a favor do aborto. Então um feto vale menos que um filhote de foca? Na verdade o aborto é tipico de um povo sem responsabilidade. Voce faz o filho e depois apaga esse "erro" sem dó. Coisa de gente mimada. É só minha opinião, e sei, sou homem e blá blá blá. Façam seus abortos, Legalizem. Mas saibam, aborto é matar um feto. E mesmo que um feto não seja um homem, ele é no minimo tanto quanto um bebê cachorro. 
   Cada vez mais eu tenho a certeza. Ainda se fazem alguns filmes ok, mas o cinema como arte relevante acabou. Digo isso não como saudosista que sou, mas como apaixonado. Ia ser duro se eu trabalhasse em jornal ser obrigado a dar uma força para algum filme toda semana. Não, não falo que eles se vendem, o que digo é que se um crítico falar que o cinema acabou ele perde o lugar. Com justiça. Para que um crítico de uma pseudo-arte sem importância? Aliás, ainda se escrevem textos críticos sobre filmes? Não falo bio, falo estudos. Há?
   Plauto, Hobsbawn, Durkheim, Jakobsen e que tais...Aff, sinto saudades de ter tempo para meu Shakespeare...
   
   
   

ITAIM-BIBI

   Cheirava a chocolate. O bairro era a fábrica da Kopenhagen. As seis da manhã o perfume doce e hipnotizador invadia tudo. E eu andava de mãos dadas com meu pai. Ele tinha um bar na esquina da Bandeira Paulista com a Tabapuã. Esse primeiro Itaim que conheci era assim: da João Cachoeira pra cima era comercial, para baixo residencial. Um comércio de casas pequenas e de muitos bares diurnos. No fim da tarde o movimento morria. O Joakin já existia e ele era a alma exemplo dessa parte do bairro. Todos os comerciantes se conheciam, tudo tinha um jeitão de clube.
  O cinema Lumiére era mais bonito. As calçadas não tinham buracos e nem se sonhava com um assalto. O Itaim, como o Brooklyn, era uma esquina da cidade. Não era caminho para o centro, não tinha uma grande avenida, só ia para lá quem vivia ou trabalhava ali. No fim da tarde, quando voltava de taxi com meu pai, eu via a parte residencial. Sobrados cheios de gramados e de árvores, meninos de bicicleta na rua, portas abertas. O carro rodava pelas ruas quietas. Esse primeiro Itaim que conheci era uma vila pacata.
  Quando meu pai vendeu o bar e mudou-se para Pinheiros perdi o bairro por dez anos. Quando voltei tudo era outra coisa. O Itaim deixara de ser vila e agora era bairro de classe média. Ainda com poucos prédios, o trânsito já era um caos. Surf shops, o Itaim era bairro de surfistas. Uma comunidade de pegadores de onda vivia por lá. Nas tardes de sol ainda se tinha um espírito relax nas calçadas com sucos. Foi o tempo da Joyce Ballet, da madeireira na João Cachoeira e do Mappin. Uma favela imensa existia na JK, sim, a JK era uma favela que ia da esquina com a Clodomiro Amazonas até a marginal. A JK havia sido um rio e a favela começara nos anos 70. Em 1982 ela estava no auge. Mas se andava na rua de madrugada. Na Horácio Lafer se jogava bola no asfalto. Até amanhecer. Voce andava pelas ruas de manhã e ouvia rock pelas janelas dos quartos. Também sentia um odor da Jamaica no ar...
   Isso todo foi violentamente destruído quando abriram a Nova Faria Lima. Falar sobre esse terceiro Itaim é perder tempo. A cidade absorveu o bairro e ele se fez parte do todo e não mais um ser à parte. O Itaim é agora como Moema ou Vila Nova Conceição, ou Jardim qualquer coisa. Uma confusão mal planejada de prédios, ruas, calçadas estreitas e restaurantes que lutam para não morrer. Tornou-se um bairro todo voltado para o ato de se gastar muito dinheiro. Impossível andar por suas ruas. Flanar. O bairro que conheci convidava a preguiça e a longa conversa. O de agora nos dá pressa. 
   Os donos das lojas se encontravam no bar do meu pai e ficavam a tarde toda "perdendo tempo". Olhavam as mulheres na rua, riam de piadas, pediam mais um café. Penduravam a conta. Se tratavam por apelidos. Se conheciam. Iam ficando. 
   Hoje eles andam correndo, em carros grandes, de cara fechada, pedindo para que o vizinho "se foda". Puff....Nem sei pra que escrevi sobre o Itaim. Ele não existe mais. De todos os bairros de SP, nenhum foi mais destruído, enterrado e esquecido. Foi-se.

ÁFRICABRASIL- JORGE BEN, COMPLICAM OS BOÇAIS, JORGE SIMPLIFICA

   Em 1976 Jorge resolveu eletrificar. Pegou a guitarra e chamou uma nova banda ( Dadi entre eles ). Homem-Gol. O que ele sempre anunciara se explicitou: ritmo dominando melodia. Ritmo inclusive no sentido das palavras. A letra interessa se ritmar, não rimar. O Homem -Alegria revela seu segredo: Ser feliz é ritmar, ser infeliz é perder compasso. Como diz Octavio Paz, a vida é um ritmo. Só não sabe quem sai do compasso. Surdo de alma.
   Menos misticismo aqui. Jorge deixa de lado sua fascinação por Hermes e a alquimia e mergulha mais em São Jorge Guerreiro e Zumbi-que-vai-chegar. O disco é de briga. Briga de Jorge, briga de ginga centra ginga, briga de sorrisos. Grandes artistas são vozes de uma espaço. Eles brotam do chão e do ar para dar voz àquele local. Jorge Ben é a voz do Rio. Ele só poderia ser de Madureira. Pensar em Jorge nascido em outro espaço é como pensar em Goethe não-alemão ou em Debussy não-francês. Condensação de uma alma local. Jorge é samba, futebol, mar, calor, sorriso, malandragem, Rio.
   O disco pulsa. E a guitarra manda. Ela é usada como percussão. Mais que em James Brown, a guitarra é espancada, ribombada, baqueteada, ritmada. Sapeca. A banda é do cacete! Cavaleiro do Cavalo Imaculado tem uma linha de baixo que é obra-prima de swing. E a percussão desaba. Africabrasil Zumbi, faixa final, é um escândalo. Jorge agride com a voz, se enraivece, lança raios e lavas e a gente dança enquanto isso. ( Um segredo que Jorge cedo sacou: A Dança é o caminho mais direto ao céu. Quer conhecer tua alma? Dança! ).
   Zico merece a Camisa 10 da Gávea. Não se fazem mais jogadores como Zico. Não se fazem mais músicas para jogadores como as que Jorge fez. Mas também não se cantam mais meninas como as que Jorge cantou-canta. Ele não cata as meninas. Ele chega chegando. Não ganha uma mulher. Ele se deixa levar...
   Estudante de alquimia e de filosofias herméticas, Jorge sabe que magia é transformar e que portanto a natureza é mágica por ser transformação que se transforma. Viver é transformar e quem não muda, quem não faz de noite dia ou de chuva sol está morto. Esse o segredo de Hermes, mudar pedra em ouro, lágrima em riso e dor em renascimento. Jorge fez isso na música. Do nada se fez som e do som se fez ritmo. O ritmo vira dança e o corpo que dança vira alma que se torna imagem e se desfaz. A música é som que quer ser vida e a dança é vida tornada música. Faz-se o círculo. Jorge sabe.
   Profundezas abissais? Não. O mais sábio faz simples aquilo que um boçal complicaria. Ele é simples.

O ARTISTA QUE EU QUERIA SER

   Tá bom. Eu adoro Ingmar Bergman. Assim como Henry James ou TS Eliot. Mas se eu pudesse escolher, e ter o dom de fazer o tipo de arte à minha escolha, creia, eu ia pedir para poder produzir outro tipo de coisa. Apesar de admirar Fellini eu preferia fazer vários filmes de Monicelli. No lugar de meu amado Vigo, ia fazer filmes como os de Tati. Hitchcock foi o maior, mas eu preferia produzir Michael Powells...
   Nunca ia querer soltar Scorseses para o mundo. Howard Hawks às dúzias eu ia fazer.
   Queria escrever como Robert Louis Stevenson. Como Conan Doyle, como Conrad. Tolstoi e Proust são maiores, mas eu queria escrever como Saint-Exupéry.
   Não ia ser Bach ou Beethoven, ia ser Mozart e Debussy. Nem Picasso e nem Rembrandt, ia pintar Matisse e Vermeer.
   Meus atores mais admirados são Olivier, Brando, Redgrave e Nicholson, mas eu amo Erroll Flynn, Cary Grant e John Wayne. Preferia ser Bruce Willis e nunca Daniel Day Lewis.
   Isso porque se me fosse dado talento eu iria querer dar alegria ao mundo. Ia querer semear vida, aliviar o peso, mostrar possibilidades de leveza, ser um oásis.
   Nunca iria escolher meu amado Ozu, ia preferir Buster Keaton.

ANNA KARENINA/ MARNIE/ EUGENE O'NEILL/ BLIER/ KIM KI DUK

   O RISCO DE UMA DECISÃO de Richard Brooks com Gene Hackman, James Coburn e Candice Bergen
No início do século XX, uma corrida entre cavaleiros. O filme tem uma visão sensível, os cavalos são as vítimas. Hackman, excelente, é um cowboy humanizado. Ele ama os bichos. Coburn faz seu tipo de sempre, e isso é uma benção: um putanheiro, cachaceiro, malandro. O filme, do viril Brooks, é delicioso. A ação tem porque e os diálogos são ferinos. Brooks começou como pupilo de John Huston. Seu estilo é hustoniano: direto e sem firulas. Nota 7.
   MARNIE de Alfred Hitchcock com Tippi Hedren, Sean Connery e Diane Baker
O filme mais doentio de Hitch. Fala de uma cleptomaníaca. Connery é o milionário assaltado por ela que tenta a ajudar. É um filme desagradável. Feio. Hitch vai fundo no aspecto neurótico da personagem. Ela suja as imagens, borra a música, desfaz qualquer chance de beleza. O filme resulta como um tipo de pesadelo febril. Longe de seus melhores filmes, mesmo assim é obra invulgar. Há quem o adore. Não eu. Nota 6.
   PIETÁ de Kim Ki Duk
Um filme diferente dos habituais de Duk. Aqui o visual é pobre, feio. Tudo se passa num tipo de labirinto urbano, onde um homem trabalha como torturador. Ele quebra ossos de pessoas que devem dinheiro. Sem sentimentos, sua primeira cena é uma masturbação. Surge em sua vida uma mulher que confessa ser sua mãe. Ele bate nela, a humilha... O tema é religioso, Duk é budista. Todos cumprem carmas aqui. Mas o filme é aborrecido, sem emoção, frio. Nota 2.
   A FILHA DA MINHA MULHER de Bertrand Blier com Patrick Dewaere
Blier sempre ousa. Às vezes acerta, e quando acerta faz um filme soberbo como Corações Loucos. Quando erra faz um filme irritante, como este. Dewaere é casado. A esposa morre e lhe deixa a filha de outro casamento. Ele rouba-a do pai verdadeiro e ela o seduz. Cenas de cama, nudez, tudo liberado. Sem culpas. Hoje seria pedofilia, em 1981 era apenas "bem louco". O filme é árido. Não há emoção, tudo é feito sem sentimentos e sem sentidos. No final ele fica sem sua enteada, mas já de olho numa menina de 9 anos, filha de sua nova esposa-adulta. Dewaere era ídolo do cinema francês. Aqui já mostra as marcas do vicio que o mataria em seguida. Parece um zumbi doente. Como disse, Blier é sublime ou nojento. Nota 3.
   LONGA JORNADA NOITE ADENTRO de Sidney Lumet com Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards e Dean Stockwell
Eugene O'Neill foi, entre 1930-1960, o rei da intelectualidade americana. Um tipo de ídolo-gurú de quem era sério. Segundo americano a vencer o Nobel, suas peças são poços de angústia, desespero, vazio. Esta famosa peça foi sua herança. Escrita, ela só pode ser encenada após a morte do autor. Isso porque ela é muito autobiográfica. Uma familia está reunida numa casa de praia. O pai é um vaidoso e muito sovina ex-ator. A mãe é viciada em morfina e mergulha na loucura. O filho mais velho é um alcoólatra raivoso. E o mais novo é tuberculoso e volta à casa após ser marinheiro ( esse é Eugene O'Neill em auto-retrato ). A peça exibe as brigas, culpas e o aniquilamento do grupo familiar. É um tipo de texto que marcou a arte americana. Até hoje americanos sérios acham que arte deve ser assim, uma longa jornada noite adentro. O filme é pesado, estático, teatral e interminável. Lumet nada faz para disfarçar sua origem teatral. O que vemos são os atores e seu texto. Kate não está bem. Ela exagera. Ralph dá um show. O pai é tolo, frio, auto-centrado, um pavão egoísta. Jason Robards nos aterra. Tem ira, tem medo, tem inteligência destrutiva. E bebe. Dean está ok. Frágil, titubeante. Tennessee Willians roubaria de Eugene a centralidade do teatro americano. A ênfase deixaria de ser masculina-problemática e passaria a ser feminina-sonhadora. O filme não é bom. Mas vale a pena. 
   ANNA KARENINA de Joe Wright com Keira Knightley, Jude Law, Mathew MacFayden
Um grande filme! Dias depois ainda está em nossa alma. Bonito, forte, bem dirigido e muito bem interpretado, é o melhor filme de 2012. Algumas de suas cenas são obras-primas em encenação. Joe sabe tudo de montagem, de fotografia, orquestra uma polifonia de rostos e de vozes que fazem sentido todo o tempo. O filme, arriscado, nunca se perde. Navega pela obra de Tolstoi sem nunca ficar a deriva. Não é perfeito, não poderia ser, Tolstoi não se presta a simplificações. Mas em termos de cinema é um triunfo. Joe Wright ainda não errou. Nota 9.
   UM PARTO DE VIAGEM de Todd Philips com Robert Downey Jr., Zach Galifianakis
Não tem graça. E pior, para quem conhece um pouco de cinema, dá para notar cada um dos plágios. Todd usa dúzias de ideias de outros filmes. Rouba, não cita. Mas, pasmem, o filme não é ruim! Graças a dois atores com carisma, voce consegue assistir toda aquela bobagem e melhor, é um filme curto. É sobre dois caras que são obrigados a cruzar 3 estados americanos juntos. Sim, Steve Martin e John Candy fizeram isso melhor em 1988... Nota 5.

MAR, POEMAS DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

   "O olhar procura reunir um mundo que foi destroçado pelas fúrias."
Assim começa o poema O SOL, O MURO, O MAR, talvez, o mais belo dos poemas escrito em português dos últimos 50 anos. Sophia, visitando a Grécia, descreve um muro, o branco da cal. Depois fala das sombras que o sol faz. O mar. E acaba por reconhecer o Sagrado presente naquele lugar. Como se dá esse reconhecimento? Sophia olha.
   Nossa língua tem uma tradição de poesia íntima. Poesia para nós, ao contrário do que se pensa na Inglaterra, é confissão. O poeta em português expõe-se. Sophia nesse sentido NÂO se parece conosco. Ela olha para fora e nesse olhar encontra o sentido das coisas. Como fazem os ingleses e às vezes os alemães, ela procura no mundo. Não dentro de sua alma, mas sim a alma das coisas.
  Eu disse ser O Sol o melhor dos poemas? Mas então o que falar de O MINOTAURO? Ela diz que "sem drogas e sem vinho" é possuída por Dyonisus. O tema é a iluminação. Em Creta ela tem uma epifania. Ulysses e todos os deuses de volta. A vida fazendo sentido. No mundo nada que é humano tem valor. Nada tocado pelo homem tem vida. A verdade está nas coisas. Sophia nos conta essa verdade. Na praia nessa ilha, ela vê. Sente os deuses do paganismo e percebe a beleza eterna da vida. A vida eterna na beleza.
   "...a água que fala calou-se."
   Esse é o final de O CREPÚSCULO DOS DEUSES, poema de terrificante beleza. Nele ela constata a impossibilidade da felicidade em nundo onde se foram os deuses. Sem eles, nada mais fala conosco. Sós, abandonados, vagamos sem para que. Os versos brilham como areia. Chegam a cegar. Ofuscam.
   O que mais dizer de Sophia?
   " Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
     E nunca
     Um navio da costa se afastou
     Sem me levar"

ANNA KARENINA, FILME DE JOE WRIGHT

   Presos num teatro. Anna, Vronsky, todos vivem no palco dos costumes, das convenções com eventuais escapadas para os sujos bastidores. Menos Lievin, desajeitado personagem "fora do palco". Tom Stoppard, o roteirista, que é um dos mais importantes autores de teatro de hoje, entendeu bem onde vive o centro da coisa. Joe Wright, com absoluto dominio da técnica de cinema, teve o talento de transpor essa ideia para a tela. Em seu quarto filme, o diretor inglês prova ser o melhor dotado dos diretores em atividade. Sabe fazer cinema, fala com cortes, movimentos de câmera, cores. Tudo em sua obra tem a marca de um diretor que sabe o que quer. Nada ao acaso, nada gratuito. Em termos de know-how sua arte é uma aula. Os primeiros trinta minutos deste filme são absolutamente geniais. Ophuls ou Powell ficariam felizes em ver o que Wright faz. Depois o filme cai, não por erro de seu diretor ou de seu bom elenco, mas por ser Anna Karenina obra infilmável. Diante da cordilheira intransponível que é a obra-prima de Tolstoi, o filme até que se sai muito bem. Lindo de se ver, inteligente em suas decisões, tentando não tornar a trama superficial,( risco de toda adaptação de alta literatura para o cinema ), é este, de tudo que vi, o melhor filme de 2012. Tão melhor que provávelmente terá pouco público. É um filme que exige atenção, sensibilidade e bom gosto, tudo o que o público frequentador de cinema não tem.
   Anna morre por ser uma tola. Muita gente diz isso e tendo a concordar. O filme foge dessa conclusão. Um dos méritos da obra de cinema é a de que ela não vê Anna como eu vejo. A leitura de Stoppard é diferente da minha. E mesmo assim gostei muito do filme. Wright e Stoppard modernizam um pouco a personagem. Ela é quase uma mulher de 2012. Presa nas redes de 1880. Mas será apenas o moralismo sexual o assassino de Anna Karenina? Fosse escrito hoje, como Anna se salvaria de sua falência afetiva? Trabalhando e sendo uma "mulher livre"? Quase no fim do filme tive esse insight: Estamos tão aferrados a nossos costumes de hoje que pensamos automáticamente no trabalho como cura e liberdade. Por outro lado: O que uma mulher faria hoje para ser estigmatizada como Anna? Qual o pecado de 2012?
   A visão de Tolstoi no livro, que não sei se fica clara no filme, é a de que o amor puramente erótico leva sempre a destruição. Anna, o amante e o marido, estão presos em seus desejos. O marido em seu mundo de poder e de politica, Anna e Vronsky em seu desejo um pelo outro. Esse tipo de amor levando necessariamente ao fim, seja dele mesmo, seja da familia.
   Muito do amor que tenho pelo livro, um dos dois ou três que mais me emocionaram na vida, se deve ao personagem de Lievin, a voz de Tolstoi no livro. Perdido, rico, com sérias dúvidas sobre religião e sobre o sentido das coisas, Lievin tenta se livrar da angústia no trabalho. Mas não no puro trabalho "acumulativo", ele vive um tipo de comunismo ingênuo, usa as mãos para trabalhar, tenta ser um de seus empregados. Mas isso não o alivia. Então, em páginas que guardo como um tesouro, ele descobre que o amor só pode ser feliz se for dado a todo o universo. Lievin ama Kitty, mas o amor dos dois sobrevive porque se esparrama ao seu redor. Amando Kitty ele ama a vida, e amando a vida ele passa a trabalhar pela e para a vida. Tolstoi viveu isso e após a grande crise que sofreu em meio a redação de Anna Karenina, ele cria um tipo de cristianismo-socialista-franciscano-proto hippie que fez dele uma pessoa perseguida na Rússia e ao mesmo tempo venerada pelo mundo inteiro. Em 1900, 1905, intelectuais viajavam ao interior da Rússia para ver o mestre. Como mostra o recente filme sobre seus anos finais, sua fortuna foi dada aos camponeses.
   Lievin aqui é feito por um ator que tem o rosto e a voz de Lievin. escolheram muito bem. Mas puxa! Eu queria mais Lievin, please! A cena final, quando ele vai falar a Kitty que teve uma ideia e pega o filho no colo é belíssima. Em meio a montes de cenas belas, é talvez a mais bela. Não esquecerei daquela folha verde com a água da chuva a escorrer...
   Como não esquecerei a neve no trem, o campo sendo arado, a cena de reprovação no teatro, a corrida de cavalos....
   Termino este texto dizendo que é um prazer voltar a ver "um filme" feito em 2012. Um filme que é cinema. Feito de cortes, de cenários, de diálogos e de atores. Com ação e pensamento, com ideias e ideais. Coragem e extremo bom gosto. Nada de forçado, sem apelações. Sim, não é uma obra-prima, mas em tempo sem grandes filmes e sem grandes histórias, Anna Karenina e Joe Wright são uma grande esperança e um belo consolo.
   Que bom!

YOUTUBE, TYNAN E COLUMBIA

   Acho que foi a Veja que publicou. Uma matéria sobre o admirável mundo novo do youtube. Eles listam algumas das maravilhas que o tube botou a disposição de todos: Michael Jackson e o show dos Jacksons onde ele cria o moonwalk, Mick Jagger cantando no programa Shinding em 1964, Os Monty Python na Tv em 1968, ou seja, antes do programa deles, e por aí vai... As dicas e o texto é ok, mas isso é chover no molhado. Ou não? Bom, eu espero que voce, mocinho curioso, use o tube para ver "aquilo que voce nunca viu". As coisas que mais me impressionaram no tube: A voz de William Butler Yeats recitando um poema, imagens de Renoir em seu jardim, Jimi Page tocando violão na BBC aos 14 anos, um documentário sobre Man Ray, John Gielgud recitando Shelley, o MC5 tocando num campus em 1970, David Hamilton sendo entrevistado, um show de LSD em Londres, imagens do Kon Tiki originais, jogadas de George Best... tanta coisa mais que vi nesse canal aberto... Para quem tem alguma vontade de saber, de ver, uma mina inesgotável.
   A Folha malhou Hitchcock. O Estado deu duas páginas e gostou. Os dois botaram o show de Elton nas nuvens. Elton John foi muito malhado por punks e por wavers. A vingança tá aí. O tempo faz a verdade surgir. Um dos textos chega a fazer poesia. Diz que Rocket Man continua viva, nova, emocionante. Elton parece ainda interessado, criando e recriando, dando o que deve ser dado, a verdade. Fico feliz em ler isso.
   Festival Tarantino. Voces têm a chance de ver AS 36 CÂMARAS DE SHAO LIN e VANISHING POINT na telona. São filmes que Quentin ama. São filmes que eu amo.
   Kenneth Tynan dizia que existiam filmes bons-bons e filmes ruins-ruins. Mas que mais interessantes eram os ruins-bons e os bons-ruins. Tarantino faz filmes ruins-bons. PT Anderson fez um filme que é bom-ruim. Tarantino parte do que é considerado ruim ( western spaguetti, mentiras históricas, violência de HQ ) e faz algo de muito bom com esse lixo. PT, assim como Spielberg em Lincoln, parte de algo bom ( boas intenções, seriedade culta, verdades ) e faz algo de entediante, flácido, sem porque. Eis o bom-ruim. Duro de Matar 5, como todos da série, é um filme muito ruim que é muito bom. De uma montanha de lixo se faz uma diversão muito legal. Delicia!
   Depois de ler a história da Universal Studios estou lendo a história da Columbia. Engraçado, são as duas grandes que menos gosto. Queria ler a história da Warner e da Paramount, mas não há. O Brasil é uma pobreza em livros! Saiu um livro lá fora que conta a história dos porres e da amizade de Peter O'Toole, Richard Burton, Albert Finney e Peter Finch. Adoraria ler. Vai sair aqui? Jamais!
   A Columbia tem poucos filmes em sua história que eu adoro. Era o estúdio dos filmes mais familia. Mas tinha Frank Capra. E depois as fantasias de Ray Harryhausen. O legal é que eles tinham uma divisão na Inglaterra. Foi essa equipe que fez Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai. Mas o livro é ok. Montes de fotos. Média de 25 filmes feitos por ano.
   O verão se vai e o inverno não virá.